Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01666/20.0BEBRG
Data do Acordão:04/07/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:PENHOR
FUNDAMENTAÇÃO
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE DIREITO
Sumário:I - O acto de constituição de penhor, processualmente disciplinado no artigo 195.º do CPPT, constitui um acto administrativo em matéria tributária sujeito a fundamentação, nos termos conjugados dos artigos 77.º da LGT e 268.º, n.º 3 da CRP, a qual terá que traduzir um juízo sobre a necessidade da constituição deste tipo de garantia para assegurar a eficácia da cobrança da dívida, ou seja, a Administração Tributária terá que alegar (fundamentação formal) e demonstrar (fundamentação substancial) que o crédito dificilmente será assegurado sem essa medida cautelar.
II - Fora do excepcional circunstancialismo referido, não é admissível a constituição de penhor sem que esteja decorrido o prazo de pagamento voluntário, para deduzir Oposição Judicial ou requerer a dispensa de prestação de garantia, sob pena de serem postergados os direitos que lealmente estão reconhecidos aos Executados e de violação dos princípios da legalidade e boa- fé norteadores da actividade administrativa em geral.
Nº Convencional:JSTA000P27494
Nº do Documento:SA22021040701666/20
Data de Entrada:03/09/2021
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A………….. LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1.A……….. LDA”, notificada da realização de penhora do saldo de uma conta bancária de que é titular e da constituição de penhor sobre o valor do reembolso que lhe foi reconhecido, relativo ao exercício fiscal (IRC) do ano de 2019, no valor de € 50.807,79, ambos os actos praticados no Processo de Execução Fiscal n.º processo 0361202001082671, apresentou a presente Reclamação Judicial junto do Serviço de Finanças de Braga Reclamação Judicial, pedindo a sua anulação.

1.2. Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga foi julgada inútil a prossecução da lide no que concerne ao acto de penhora do saldo da conta bancária (revogado pela Administração Tributária na sequência da dedução da Reclamação Judicial) e procedente o pedido de anulação do acto de constituição do penhor, por falta de fundamentação do acto e por ter sido realizado antes de decorrido o prazo que a Executada dispunha para deduzir Oposição.

1.3. Inconformada com a sentença na parte em que julgou procedente a acção, a Autoridade Tributária e Aduaneira interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo, formulando, a final, as seguintes conclusões:

«I. A Fazenda Pública entende que a douta sentença ora recorrida ao determinar a anulação do ato de constituição de penhor sobre o crédito de IRC à ordem do processo executivo, sofre de errada interpretação dos factos e consequente erro de julgamento de direito.

II. Salvo o devido respeito por diferente opinião, entende a Fazenda Pública que, ao contrário do doutamente decidido, não se verifica, nos presentes autos, violação de lei, senão vejamos;

III. Com efeito, na decisão recorrida o Tribunal a quo considerou que o ato padece de ilegalidade por duas ordens de razões, por um lado considera que o mesmo se encontra sujeito a fundamentação nos termos do disposto no artigo 195º do CPPT, sujeitando assim o mesmo às formalidades dos atos administrativos, e por outro, pelo facto de o mesmo ter sido praticado em data em que o processo de execução fiscal se encontrava provisoriamente suspenso, uma vez que se encontrava a decorrer o prazo para deduzir oposição.

IV. Tendo o douto Tribunal a quo, concluído que nos termos dos factos assentes, conforme o teor que foi acolhido no ponto K. dos factos assentes, nada mais resulta do que a comunicação da constituição de penhor legal sobre o direito de crédito relativo a IRC e o seu valor, no processo de execução fiscal n.º 0361202001082671, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1 e 5, do CPPT, no interesse da eficácia da cobrança, para garantir o pagamento da dívida exequenda e acrescido.

V. No que ao ato de constituição de penhor diz respeito, a Administração Tributária pode, independentemente do consentimento do executado e por sua iniciativa, constituir penhor ou hipoteca legal para garantia (especial) dos créditos tributários, sempre que o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável (cf. art. 195.º do CPPT).

VI. Ao ato de constituição de penhor corresponde a medida cautelar de garantia de cobrança do crédito exequendo, que tem em vista a satisfação prioritária do crédito exequendo, sem contender com as garantias de defesa do executado, seja em sede de impugnação (graciosa ou contenciosa) do ato tributário, seja em sede de oposição à execução fiscal.

VII. Tendo, no interesse da eficácia da cobrança, e para garantir o pagamento da dívida exequenda e acrescido, sido efetuado penhor sobre o crédito da executada resultante do reembolso de IRC do ano 2019, no valor de € 50.807,79.

VIII. Destarte, o ato de constituição de penhor, enquanto medida cautelar de garantia de cobrança do crédito exequendo que tem em vista a satisfação prioritária do crédito exequendo, reforça a eficácia da cobrança do crédito exequendo.

IX. Mais, o penhor constitui um direito real de garantia da qual o OEF (órgão de execução fiscal) lança mão para garantir a cobrança da dívida nos termos do art.º 50.º n.º 2 da LGT e art.º 195.º n.º 1 do CPPT.

X. O penhor legal não constitui medida de coerção sobre o património do executado, pois do mesmo não resulta a indisponibilidade do crédito por parte do seu titular, pelo que se impõe concluir que o penhor legal reforça a eficácia da cobrança do crédito exequendo, desempenhado, nesta fase, uma função meramente garantística.

XI. Depois, para que se suspenda a cobrança executiva será necessária a associação de garantia após o termo do prazo de pagamento voluntário, ao meio processual adequado, para que então se produzam os efeitos suspensivos da cobrança, nos precisos termos que constam no artigo 169.º n.º 2 do CPPT.

XII. Ou seja, a prestação de garantia após o terminus do prazo de pagamento voluntário e até antes da apresentação do meio gracioso ou judicial, é imprescindível para suspender a mesma.

XIII. Ora, a douta decisão do Tribunal a quo assenta, a nosso ver, erradamente, na qualificação de que o ato de penhor é um ato que carece de fundamentação por via do art.º 195.º n.º 1 do CPPT.

XIV. Considerando, assim, por isso que a decisão de constituir penhor ou hipoteca legal está sujeita aos requisitos gerais dos atos em matéria tributária, inclusivamente no que concerne ao ónus de fundamentação, o Tribunal a quo considerou a ilegalidade do penhor.

XV. Mas é precisamente por outra razão que, no nosso entendimento, o ato de constituição de hipoteca legal ou penhor está sujeito a notificação, seja porque, por via de tais atos sejam afetados os contribuintes (cfr. art. 268.º, n.º 3, da CRP) que os poderão impugnar contenciosamente (n.º 3 do mesmo artigo), sendo que neste caso, tratando-se de decisão tomada em processo de execução fiscal, será através da reclamação prevista no art. 276.º do CPPT, por ser esse o meio próprio.

XVI. Ou seja, não estamos perante atos praticados por órgãos da administração tributária com natureza inteiramente administrativa como sejam a instauração da execução, por exemplo, mas perante um ato em que se ordena a constituição de um direito de garantia real através do penhor, com natureza executiva e processual.

XVII. Para que estivéssemos perante atos administrativos, procedimentais, necessário seria que estivéssemos perante uma decisão tomada no âmbito de poderes jurídico-administrativos, sendo que contrariamente, no caso dos autos, estamos antes perante atos típicos de execução fiscal, justificados opus legis e que, não terão de ser necessariamente praticados por um juiz, na medida em que o processo de execução fiscal se encontra jurisdicionalizado.

XVIII. Tanto assim é que, em nosso ver, foi essa a intenção do legislador quando, através da Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2007 (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro), procedeu à alteração do artigo 195º do CPPT. O n.º 1 do artigo 195º do CPPT, antes da referida alteração determinava que:

1 - Quando o risco financeiro envolvido o torne recomendável, o órgão da execução fiscal, para garantia dos créditos tributários, poderá fundamentadamente constituir hipoteca legal ou penhor, de forma que assegure o pagamento da totalidade da dívida exequenda e acrescido. (sublinhados nossos)

XIX. No entanto, com a alteração introduzida pela referia Lei, o n.º 1 do artigo 195º do CPPT passou a ter a seguinte redação:

1 – Quando o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável, o órgão de execução fiscal pode constituir hipoteca legal ou penhor. (sublinhados nossos)

XX. Ora, a alteração introduzida no n.º 1 do artigo 195º do CPPT, omitiu a referência à necessidade de fundamentação da decisão de constituir hipoteca legal ou penhor.

XXI. Sendo que, em nosso ver, deverá interpretar-se a alteração legislativa introduzida no n.º 1 do artigo 195º pela Lei n.° 53-A/2006 como afastando a necessidade de fundamentação do ato de decisão de constituir penhor, pois é a interpretação que se coaduna com os atos típicos de execução fiscal de natureza cautelar e processual.

XXII. Com efeito, sendo nosso entendimento que o ato de constituição de garantia (penhor) não constitui ato de natureza administrativa, mas ato típico de execução fiscal, justificado opus legis, inserido num processo de execução fiscal, desnecessário se torna a fundamentação do mesmo.

XXIII. Aqui chegados, e estando nós perante atos típicos de execução fiscal, inseridos num processo de execução fiscal, justificados opus legis, é nosso entendimento que aos mesmos não têm de ser aplicados os requisitos procedimentais exigidos para os atos de natureza administrativa, só assim se reforçando a eficácia da cobrança do crédito exequendo.

XXIV. Ao não se decidir assim, a douta sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do Direito.

XXV. Nestes termos, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por douto Acórdão que considere a Reclamação improcedente».

1.4. A Recorrida contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado, condensando no quadro infra as razões que adiantou nesse sentido:

«1. Ao determinar a anulação do ato de constituição de penhor sobre um direito crédito tributário (IRC) da titularidade de Reclamante, no valor de € 50.807,79 (cinquenta mil, oitocentos e sete euros e setenta e nove cêntimos), promovido no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0361202001082671 e apenso, a douta sentença ad quo não merece qualquer reparo ou juízo de censura, quer na apreciação da valoração da prova que foi efetuada relativa à matéria de facto, quer na subsunção do direito aos factos assentes, mostrando-se, aliás, exemplarmente fundamentada.

Sobre a questão nova suscitada em sede de recurso:

2. Defende a Recorrente, no âmbito do presente recurso, que o ato de constituição de penhor não carece de fundamentação. Ou seja, entende a AT que não lhe incumbe, nem é seu ónus, transmitir à Recorrida as razões de facto e de direito determinantes da necessidade da constituição de um penhor legal, no momento em que, nos termos legais, não havia decorrido o prazo para a Recorrida proceder ao pagamento voluntário da quantia exequenda exigida nos PEF´s em referência, ou alternativamente, deduzir oposição à execução, requerer o pagamento em prestações, prestar garantia que suspendesse a execução, ou ainda, requerer a dispensa de prestação de garantia.

3. Não só as alegações da Recorrente incidem sobre questão de direito que esta, podendo fazê-lo, entendeu não apresentar, nem configurar ou esgrimir, no processo que decorreu na primeira instância, como também são tais alegações manifestamente contraditórias com a anterior posição da AT expressa nos autos.

4. Com efeito, nos seus anteriores articulados (designadamente, na sua “Resposta” junta aos autos em 26.10.2020), a AT reconhece o seu ónus de fundamentação do ato praticado, objeto de reclamação no presente processo, defendendo, outrossim, que a fundamentação por si efetuada preenche as obrigações legais impostas pelos arts. 268.º da CRP e 77.º da LGT (vide arts. 31.º a 43.º do referido articulado “Resposta”).

5. Os recursos visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento; o que significa que o Tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre questões novas, ou seja, sobre matéria que não foi alegada, no momento próprio, pelas partes na instância recorrida e sobre pedidos que nela não foram formulados, sob pena de nulidade do Acórdão, nos termos dispostos nos arts. 666.º e 615.º, n.º 1, al. c), todos, do CPC.

Sobre o vício do ato por falta de fundamentação:

6. Do elenco da matéria de facto julgada provada resulta claro que a prática do ato de constituição de penhor ocorreu em momento em que não podiam ser praticados atos de penhora, penhor ou compensação de créditos, pelo facto de, por força das normas processuais previstas no CPPT, ocorrer uma suspensão provisória do processo executivo durante o período do decurso dos prazos legais procedimentais e de exercício de direitos da entidade executada, decorrentes da citação efetuada. Importa, ainda, registar que a obrigação de suspensão de atos se aplica, igualmente à constituição de penhor, nos termos do art. 195.º do CPPT (neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02.05.2012 (proc. n.º 0408/12) em que é Relator Casimiro Gonçalves).

7. Conforme bem decidido pelo Tribunal a quo e, aliás, tem vindo a ser entendimento da nossa jurisprudência, o ato de constituição de penhor legal, praticado pela administração tributária ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 50.º da LGT e do n.º 1 do artigo 195.º do CPPT, tem a natureza de ato administrativo em matéria tributária.

8. Por isso, a decisão de constituir penhor ou hipoteca legal está sujeita aos requisitos gerais dos atos administrativos em matéria tributária, inclusivamente no que concerne ao direito de audição e sua dispensa (arts. 121. º e sgts. do CPA e 45º do CPPT) e de fundamentação (arts. 152.º e 153.º do CPA e 77º da LGT) - neste sentido vide Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 24.05.2016 (proc. n.º 0584/16) e de 13.07.2016 (0532/16), em que são Relatores, respetivamente, Casimiro Gonçalves e Dulce Neto.

9. Por força do disposto no art. 268º, nº 3, da CRP e art. 77.º da LGT, a fundamentação de um ato deve permitir ao seu destinatário reconstituir o iter cognoscitivo e valorativo percorrido pelo seu autor, devendo a fundamentação ser entendida como a obrigação de enunciar expressamente (de modo direto ou por remissão) os motivos de facto e de direito que determinaram o autor do ato, esclarecendo o seu destinatário acerca das razões que o motivaram e do porquê do sentido decisório, pois só deste modo poderá o destinatário da atuação administrativa conformar-se, ou não, com a mesma e, em caso de discordância, reagir de modo adequado e consciente.

10. No caso concreto, a decisão de constituição de penhor, comunicada à Recorrida, limitou-se a repetir a lei não dando a conhecer à Reclamante, a razão da necessidade de constituição do penhor para garantir o cumprimento da dívida.

11. Não foram, portanto, cumpridas as exigências legais de fundamentação do ato que se destinam a esclarecer o seu destinatário sobre os fundamentos de facto e de direito da decisão, pelo que bem andou o douto Tribunal a quo em determinar a anulação do ato de constituição de penhor, objeto de reclamação no presente processo, por vício de violação de lei.

Sobre o conhecimento das demais questões suscitadas pela Recorrida:

12. Caso o douto Tribunal ad quem julgue a procedência do recurso interposto – o que apenas se coloca por mera cautela de patrocínio – desde já, se requer, a título subsidiário, ao abrigo do disposto do n.º 2 do art. 665.º do CPC, a apreciação por parte deste Tribunal, das demais questões invocadas pela Recorrida, na sua petição inicial, cujo conhecimento, em caso de procedência do recurso apresentado pela Recorrente se revela essencial à procedência do pedido formulado pela Recorrida.

13. No caso concreto, o OEF praticou o ato de constituição de penhor aqui discutido (em 18.08.2020), vinte dias após a citação da Recorrida (em 29.07.2020), pelo meio da qual foi esta expressamente advertida que dispõe de um prazo de 30 dias para pagar a quantia exequenda ou prestar garantia idónea, sob pena de o processo executivo prosseguir com a penhora de bens ou, direitos existentes no seu património, no valor suficiente para a cobrança da dívida exequenda.

14. Os referidos atos são, entre si, contraditórios, frustrando a legítima expectativa da Recorrida de poder pagar a quantia exequenda, prestar garantia, ou até pedir a sua dispensa, no prazo que a entidade exequente lhe concedeu.

15. A atuação da AT, ora Recorrente consubstancia-se numa conduta contraditória, lesiva da confiança suscitada na Recorrida que redunda na violação do princípio da boa-fé reconhecido nos arts. 59º, nº 1 da LGT, art. 10.º do CPA e constitucionalmente consagrado no art. 266º, nº 2 da CRP.

16. O princípio da boa-fé estabelece, desde logo, o limite à entidade e atividade administrativa de não poder frustrar a confiança que os particulares interessados razoavelmente criaram a partir da sua conduta anterior; a tutela da boa-fé aparece assim também consagrada no princípio da segurança jurídica a proteger os beneficiários, como corolário de um Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP.

17. Conforme tem vindo a ser entendimento da nossa jurisprudência a violação pela administração tributária do cumprimento da sua atuação segundo as regras da boa-fé consistiu um vício autónomo de violação de lei, determinante da anulação do ato praticado em violação destas regras.

18. Por outro lado, o ato de constituição de penhor de crédito tributário reconduz-se a uma situação de afetação da respetiva quantia ao pagamento da dívida exequenda, daí resultando que o crédito que a AT está obrigada a pagar dentro de um prazo legal, acaba por não ser colocado na disponibilidade do contribuinte, ficando antes afeto ao processo de execução fiscal por força do penhor. Em termos práticos, sob a forma de penhor, a AT procura efetivar e garantir a execução de um ato de compensação de créditos tributários.

19. Ora, uma vez que não estão verificados os pressupostos previstos no art. 89.º do CPPT para que, por iniciativa da AT, se opere a compensação de créditos tributários, não se pode admitir que a AT procure operacionalizar tal ato de compensação através do uso de um outro meio legal, designadamente através da constituição de um penhor sobre aquele crédito, sob pena de se estar a permitir comportamentos da Administração violadores do princípio da legalidade. Neste sentido, tem perfeita aplicação o entendimento afirmado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24.10.2012 (proc. n.º 01042/12) em que é Relatora Isabel Marques da Silva, na parte em que refere que “a jurisprudência firmada no sentido da inadmissibilidade da compensação de créditos por iniciativa da Administração tributária na pendência dos prazos de defesa e de pedido de suspensão da execução mediante oferecimento de garantia é igualmente transponível para o caso da constituição de penhor de créditos por iniciativa da Administração tributária que, ao que parece, surge agora utilizada pela administração tributária como sucedâneo da compensação.”

20. No caso, a constituição do penhor aqui discutido não determina um incremento visível e relevante na eficácia da cobrança da quantia exequenda reclamada nos PEF´s em referência.

21. Os factos alegados na Petição Inicial (sob os arts. 42.º a 51.º) permitem concluir que não se verificam quaisquer circunstâncias excepcionais que possam suportar o ato praticado pela AT de constituir um penhor de um direito de crédito da Reclamante, no decurso do prazo de oposição à execução, pelo que a prática deste ato que afeta negativamente a esfera jurídica da Reclamante, para além de não ter suporte legal, é um ato desnecessário e desproporcional, violador, portanto, do disposto nos arts. 266.º, n.º 2 da CRP e 46.º do CPPT.

1.5. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, pela Exma. Procuradora-Geral-Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, por na sentença ter sido feita «criteriosa análise da matéria de facto e correcta se mostra a sua subsunção jurídica”, e estar «devidamente fundamentada, apoiando-se em pertinente jurisprudência dos tribunais superiores, a saber deste STA, que a propósito cita, face às questões colocadas e nomeadamente no tratamento de um caso análogo, bem como de doutrina à matéria inerente».

1.6. Atenta a natureza urgente do processo, submetem-se os autos à conferência para decisão sem vistos prévios dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é o teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), desta forma impedindo que voltem a ser reapreciadas por este Tribunal de recurso. Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. A este propósito – vertente positiva – importa, face ao teor das alegações e das contra-alegações salientar o seguinte: não obstante a invocação expressa nas conclusões de recurso à alínea K) do probatório, da conjugação desta com o corpo das alegações conclui-se que a Recorrente não pretende questionar o seu teor (que constitui mera transcrição do teor do acto de penhor notificado à Recorrida) nem as ilações que dessa alínea o Tribunal a quo extraiu. Com o que a Recorrente verdadeiramente se não conforma é que o Tribunal tenha decidido anular o mesmo com fundamento em falta de fundamentação por a lei não exigir essa fundamentação e, em seu entender, ser suficiente a mera notificação do acto.

Em suma, se bem interpretamos as alegações de recurso, para a Recorrente o erro de julgamento não reside no facto que foi dado assente mas nos pressupostos de direito de que o Tribunal partiu para decidir a questão da alegada falta de fundamentação, uma vez que tudo se resume a uma imposição de notificação e não, como foi juridicamente enquadrado, a uma imposição de fundamentação, que, na tese que defende, não existe (ou de que está dispensada) por a própria lei a ter realizado (vide, em especial, conclusões II. e XIII. a XXV.).

É neste contexto que se afirma a nossa competência em razão da hierarquia e se decide conhecer do mérito do recurso.

2.3. Posto isto, a questão que importa dirimir é a de saber se o Tribunal a quo, ao concluir pela anulação do acto de penhor, incorreu em erro de julgamento porque (i) a fundamentação do acto de penhor realizado no âmbito do processo executivo resulta da própria norma que o prevê; (ii) o penhor só foi constituído após o decurso integral do prazo que a Executada legalmente dispunha para prestar garantia e sem que esta tivesse sido prestada.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

Em 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

A. A Reclamante foi notificada das liquidações oficiosas de IVA, emitidas em 21-1-2020, dos períodos de 01/2016 a 12/2016, no valor de € 1.304.288,66 [cfr. liquidações de fls. 29-40 do documento 6221168 SITAF].

B. A Reclamante foi notificada da liquidação oficiosa de IRC, emitida em 22-1-2020, do exercício de 2016, no valor a pagar de € 631.643,87 [cfr. liquidação de fls. 29-41 do documento 6221168 SITAF]

C. A Reclamante apresentou impugnações das liquidações a que se referem os dois pontos antecedentes, junto do Centro de Arbitragem Administrativa [CAAD], respetivamente, em 29-7-2020 e 11-8-2020, que foram registadas sob os processos 386/2020-T e 406/2020T [cfr. documentos de fls. 42-47 do documento 6221168 SITAF].

D. Em 25-3-2020, foi instaurado contra a Reclamante o PEF n.º 0361202001065815, por dívida de IVA do ano de 2016, no valor de € 1.304.288,66 [cfr. informação, documento 6221166 SITAF].

E. Em 15-4-2020, foi instaurado contra a Reclamante o PEF n.º 0361202001082671, por dívida de IRC do ano de 2016, no valor de € 631.643,87 [cfr. informação, documento 6221166 SITAF].

F. Em 10-7-2020, o PEF n.º 0361202001082671 foi apensado ao processo principal n.º 0361202001065815 [cfr. informação, documento 6221166 SITAF].

G. A Reclamante foi citada para o PEF 0361202001065815 e apensos, em 29-7-2020, pela quantia exequenda de € 1.304.288,66 [(principal) e € 631.643,87 (0361202001082671-apenso) - cfr. ofício fls. 48 do documento 6221168 SITAF; acordo]

H. O ofício de “citação pessoal dirigido à ora Reclamante na qualidade de executada, no processo de execução fiscal n.º 0361202001065815 e apensos, pela quantia exequenda total de € 1.942.523,92, relativa a dívida de IVA e IRC, integra o seguinte teor:

Fica por este meio citado(a), nos termos dos artigos 189.º e 190.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), da instauração do(s) processo(s)de execução fiscal à margem referido(s), para cobrança da dívida abaixo identificada.

A presente citação refere-se à globalidade das dívidas, nos termos do nº 7 do art.190º do CPPT, podendo os seus elementos ser consultados no Portal das Finanças em www.portaldasfinancas.gov.pt.

No prazo de 30 dias após a presente citação, deverá proceder ao pagamento da dívida exequenda e acrescido.

No mesmo prazo, poderá requerer a dação em pagamento, nos termos do artigo 201.º do CPPT, ou deduzir oposição, com os fundamentos previstos no artigo 204.º do CPPT. Até à marcação da venda dos bens penhorados poderá, ainda, requerer o pagamento em prestações, nos termos do artigo 196.º do CPPT.

Decorrido o prazo antes referido sem que a dívida exequenda e acrescido tenham sido pagos, ou tenha sido prestada garantia que suspenda a execução nos termos dos artigos 169.º e 199.º do CPPT, prosseguirá o processo com a penhora de bens ou direitos existentes no seu património de valor suficiente para a cobrança da dívida, conforme valor infra indicado. (…)

Valor para efeitos de garantia (válido por 30 dias): € 2.451.697,23 ” [conforme ofício de fls. 48 do documento 6221168 SITAF]

I. Em 18-8-2020 a AT procedeu à constituição de penhor, no processo 0361202001082671, apenso do principal 0361202001065815, sobre direito de crédito de IRC, do ano de 2019, no valor de € 50.807,79 [cfr. ofícios de fls. 49-50 do documento 6221168 SITAF; acordo].

J. Em data que não apurada, foi emitido ofício intitulado “informação sobre aplicação do crédito”, dirigido à Reclamante que integra o seguinte teor:

Fica informado(a) que na sequência do movimento financeiro identificado, não haverá lugar à restituição do valor do reembolso resultante da liquidação indicada, como demonstrado. Para mais informação deverá consultar a sua situação tributária no Portal das Finanças - www.portaldasfinancas.gov.pt. [cfr. ofício fls. 50 do documento 6221168 SITAF]

K. Em 27-8-2020 foi emitido o ofício intitulado “notificação constituição de penhor” no processo 0361202001082671, dirigido à Reclamante que integra o seguinte teor:

«Fica por este meio notificado(a) de que, nos termos dos n,°s 1 e 5 do artigo 195° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), no interesse da eficácia da cobrança, se procedeu na data supra indicada, à constituição de penhor do direito de crédito, correspondente ao(s) valor(es) do(s) crédito(s) acima enunciado(s), para garantir o pagamento da dívida exequenda e acrescido, cuja cobrança em execução fiscal corre em termos neste Serviço de Finanças, com número e pelo montante acima melhor identificados.

Do acto de constituição de penhor, ora notificado, poderá, querendo, apresentar junto do órgão de execução fiscal, reclamação dirigida ao Tribunal Tributário de 1a Instância (artigo 276° CPPT), no prazo de 10 (dez) dias, contados da assinatura do aviso de receção (artigo 277° n.°s 1 e 2 CPPT).

Poderá obter informações adicionais na página da AT na internet, em (www.portaldasfinancas.gov.pt), em qualquer Serviço de Finanças ou através do Centro de Atendimento Telefónico CAT (217 206 707)» [cfr. ofício de fls. 49 do documento 6221168 SITAF].

L. O ofício que antecede foi comunicado à Reclamante em 14-9-2020 [acordo]

M. Em 24-9-2020 a Reclamante apresentou a presente Reclamação [cfr. fls. 1 do documento 6221169 SITAF].

3.2. Fundamentação de Direito

3.2.1. O presente recurso, como deixámos assinalado na delimitação do seu objecto, vem sustentado no erro de julgamento de direito em que alegadamente terá incorrido o Tribunal a quo. Por ter interpretado e aplicado incorrectamente o regime jurídico relativo às exigências de fundamentação do acto de penhor do valor de reembolso apurado quanto ao ano de 2019. Por ter interpretado e aplicado mal o regime jurídico disciplinador dos actos de execução a praticar no processo de execução fiscal.

3.2.2. Para a Recorrida o julgamento sindicado é irrepreensível por os factos apurados revelarem claramente quer a falta de fundamentação do acto quer a sua prática antes de decorrido o prazo de que legalmente dispunha para exercer os direitos para que fora expressamente notificada.

Mais adianta que o fundamento do recurso se louva, no que concerne à fundamentação do acto, e até contraditoriamente, numa questão nova, já que ao longo do processo sempre defendeu que o acto não tinha que ser fundamentado por essa fundamentação resultar ope legis.

3.2.3. Começamos a apreciação do recurso começando por enfrentar a questão suscitada pela Recorrida de que parte do recurso se encontra sustentado na invocação de uma questão nova.

Será assim?

Entendemos que não.

No direito processual civil geral é considerada “questão nova” a questão que não foi oportunamente suscitada no processo. Ou porque não foi invocada como fundamento da pretensão vertida na petição inicial. Ou porque não foi suscitada como fundamento da contestação.

No que ao direito processual tributário concerne, particularmente hoje, face à expressa subsidiariedade da legislação processual civil consagrada no artigo 280.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) PPT, a temática da questão nova em recurso não assume contornos especiais.

Há, todavia, que ter em atenção que não devemos confundir questão nova para efeitos processuais e questão nova para efeitos substantivos, sendo que, quanto a esta última, considerando o contencioso de mera anulação em que (ainda) nos movemos - em que se insere o processo de Reclamação Judicial previsto no artigo 276.º do CPPT face à sua natureza meramente impugnatória - constituirá questão nova qualquer razão de facto e/ou de direito que extravase a fundamentação do acto administrativo em matéria tributária aduzida no momento da sua prolação ou concretização. Ou seja, devem ser consideradas questões substantivas novas as razões (de facto e de direito) que posteriormente à prolação do acto, incluindo no processo judicial, venham a ser invocadas para sustentar a sua legalidade.

Sem prejuízo da distinção feita e tendo presente a definição de questão que a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo vem sistematicamente acolhendo (São questões tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Ou seja, o Tribunal está perante uma questão sempre que as partes, por referência ao que foi alegado e sobre que divergem, seja em matéria de facto seja em matéria de direito, tenham formulado um pedido de decisão.) , entendemos que no caso concreto não há, nem do ponto de vista processual nem do ponto de vista substantivo-tributário, qualquer “questão nova”.

Não há questão nova do ponto de vista processual porque do teor dos articulados resulta claramente que a questão que a Recorrida qualifica como “questão nova” foi um dos fundamentos do pedido de anulação do acto reclamado e a questão mais debatida entre as partes [a análise da petição inicial permite facilmente identificar que um dos vícios apontados pela Recorrente ao acto foi o da falta de fundamentação (artigos 21.º a 38.º da petição inicial), questão que foi amplamente rebatida na contestação (artigos 32.º a 45.º)].E que constituiu igualmente um dos fundamentos da sentença de procedência da pretensão.

Não há questão nova do ponto de vista substantivo-tributário quanto à questão da falta de fundamentação porque a posição da Recorrente quanto à fundamentação do acto, quer na informação prestada ao abrigo do artigo 108.º do CPPT quer em contestação quer em recurso, foi sempre a de que o acto está fundamentado - ainda que, em recurso, esta existência de fundamentação se alicerce de forma mais vincada no entendimento de que o acto cumpre todos os pressupostos de fundamentação por força da própria lei, não recaindo sobre o órgão de execução fiscal o dever de adiantar qualquer outra fundamentação que não a invocação do normativo que legitima a constituição do penhor (garantia de eficácia da cobrança).

E também não há questão nova do ponto de vista substantivo quanto à questão do momento de prestação da garantia. É verdade que o cotejo da contestação com o teor das alegações de recurso nos leva a concluir que a este fundamento é agora dada acrescida relevância. Todavia, dos sumários dos acórdãos que foram expressamente convocados e transcritos pela Recorrente na contestação para sustentar a permanência do acto na ordem jurídica, particularmente nos artigos 46.º a 50.º desta peça processual, é ainda possível extrair-se a interpretação de que a Fazenda Pública já então defendeu a legalidade do acto por não ter sido prestada garantia dentro do prazo legal.

Não descuramos, como a Recorrida salienta, que das alegações de recurso parece decorrer que a Recorrente se apresenta a contradizer o que anteriormente afirmara ou defendera. Porém, sem prejuízo do relevo que ao primeiro dos comportamentos processuais, a comprovar-se, possa ser atribuído (quer do ponto de vista de uma eventual litigância de má fé quer em sede de custas processuais), essa aparente contradição não é, per se, suficiente, para que possamos afirmar que há uma questão nova.

Nesta medida, não estando vedado às partes invocarem em recurso, ainda que de forma mais desenvolvida, argumentos em defesa da sua pretensão revogatória, assumimos o dever de os apreciar.

Improcede, pois, a invocação existência de uma questão nova como fundamento de recurso.

3.2.4. Prosseguindo. Tem ou não o acto de penhor que ser fundamentado?

Começamos por adiantar, o que se nos afigura necessário face a parte das alegações de ambas as partes e ao teor dos acórdãos invocados, que independentemente da sorte que este recurso venha a merecer, é seguro que a confirmação ou infirmação do julgado não terá por fundamento qualquer juízo atinente a um eventual paralelismo com a legalidade da constituição do penhor antes de ser requerido ou decidido um pedido de dispensa de garantia para sustar a execução fiscal. Pela singela razão de que esse pedido, como resulta claramente das alegações das partes e dos factos provados, nunca foi formulado.

Aliás, se esse pedido tivesse sido formulado o nosso julgamento não seria difícil uma vez que existe jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal Administrativo «no sentido da inadmissibilidade da compensação de créditos por iniciativa da Administração Tributária na pendência de pedido de suspensão da execução mediante oferecimento de garantia» e quanto a esse entendimento ser «igualmente transponível para o caso da constituição de penhor de créditos por iniciativa da Administração Tributária (…).» (Neste sentido os acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 24-10-2012 (processo n.º 408/12), 15-2-2012 (processo n.º 89/12) e de 2-5- 2012 (processo n.º 408/12).)

No caso, a decisão sobre a verificação ou não de erro de julgamento terá que passar necessariamente pela resposta que venha a ser dada à seguinte questão: pode a Administração Fiscal constituir penhor sobre um direito de crédito (reembolso de IRC), após o titular desse direito ter sido citado em processo de execução fiscal mas antes de decorrido o prazo legal para pagamento voluntário, para ser requerida dação em pagamento, para ser requerido o pagamento em prestações ou para ser formulado um pedido de dispensa de garantia, sem adiantar qualquer outra razão que não o teor do artigo 195.º, n.º 1 do CPPT [“ Quando o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável, o órgão de execução fiscal pode constituir hipoteca legal ou penhor.”]?

Vejamos.

A Administração Tributária tem ao seu dispor na pendência do processo de execução três tipos de garantias especiais: a) garantias legais - penhor, hipoteca, privilégios creditórios e direito de retenção (artigo 50.º da LGT); b) garantias conservatórias - apreensão de bens (artigo 51.º da LGT) e c) garantias voluntárias - qualquer meio de garantia susceptível de assegurar os créditos tributários, prestado pelo executado ou por terceiro (artigo 52.º da LGT).

As garantias legais resultam directamente da lei e estão reguladas no artigo 195.º do CPPT; as garantias conservatórias, de iniciativa da Administração Tributária, estão reguladas no artigo 214.º do CPPT; as garantias voluntárias dependem da iniciativa do Executado e estão reguladas nos artigos 169.º e seguintes do mesmo diploma referido.

Como as garantias legais não dependem da vontade do Executado, a Administração Tributária vem entendendo, como no caso sucede, que aquele também não pode condicionar a sua constituição. E, consequentemente, que não tem que aguardar a sua citação ou o decurso do prazo de pagamento voluntário, dedução de Impugnação Judicial ou Oposição ou o prazo legal para o exercício dos demais direitos legalmente consagrados e susceptíveis de ser exercidos após aquela citação, incluindo um eventual pedido de dispensa de prestação de garantia.

Não nos parece, porém, que essa ilação seja totalmente correcta. É verdade que o sujeito passivo não pode condicionar a constituição do penhor (por a mesma poder ocorrer independentemente da sua vontade). É verdade que também não pode pretender ser dispensado dessa constituição, se interpretarmos essa dispensa como a “dispensa de garantia” a que se reporta o artigo 52.º n.º 4 do CPPT, uma vez que esta apenas vale apenas para as garantias voluntárias. Mas é legitimo que o Executado tenha a expectativa de não ser sujeito à constituição de uma garantia legal por parte da Administração Tributária, designadamente afectado o seu direito ao reembolso de IRC, como é o caso, nas situações em que não estão preenchidos os pressupostos para que o penhor seja constituído.

Do que vimos dizendo podemos extrair uma primeira conclusão: o direito da Administração Fiscal a assegurar por meio de constituição de garantias o valor em dívida, incluindo através da constituição de penhor, não é absoluto, existindo situações em que, pela qualidade do sujeito ou pela verificação ou preenchimento de certos requisitos legais, aquela constituição não é legalmente admissível, como se constata da simples leitura dos artigos 52.º n.º 4 da LGT ou 216.º do CPPP.

Acresce que, contrariamente ao que resulta das alegações de recurso, e já resultava da contestação, não podemos confundir o direito da Administração Fiscal a constituir penhor sem o consentimento do titular (e, consequentemente, do seu titular não poder condicionar aquela constituição) com uma inexistência de requisitos condicionadores e legitimadores dessa constituição. Ou seja, o poder que foi atribuído à Administração Fiscal está, constitucional e legalmente, condicionado, ainda que a vontade do titular do direito não deva ser considerado um factor juridicamente relevante.

Note-se que o penhor, regulado no artigo 666.º e seguintes do Código Civil (CC), confere ao credor um direito de preferência de pagamento do seu crédito e eventuais juros antes de qualquer outro credor, pelo valor de certa coisa móvel ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca pertencentes ao devedor ou a terceiro, razão pela qual a aferição da verificação do circunstancialismo legal que condiciona a sua constituição não projecta os seus efeitos apenas na esfera jurídica do Executado, afectando igualmente os demais potenciais credores deste.

Revertendo à situação dos autos, temos que, a Administração Fiscal, através da constituição do penhor, garante o cumprimento preferencial da obrigação fiscal (capital e juros), antes de qualquer outro credor, afectando a esta bens ou direitos de que o devedor é proprietário que não sejam susceptíveis de hipoteca (cfr. artigo 666.º e seguintes do Código Civil).

Esta garantia, como referido, está especialmente regulada no artigo 195.º do CPPT, importando sublinhar, para o que ora releva, que é necessário que o interesse da eficácia da cobrança torne recomendável a constituição do penhor, sendo que, para nós, esse interesse só existirá se a constituição (cautelar) dessa garantia se revelar necessária à cobrança efectiva da dívida - artigo 51.º, n.º 1 al. b) da LGT.

Em suma, a constituição do penhor só se mostrará justificada se da ponderação dos interesses em presença (interesse na cobrança da dívida) resultar um juízo de que é fundadamente recomendável, para esse efeito (satisfação do crédito), que o órgão de execução fiscal proceda à constituição do penhor (tudo, conforme artigos 50.º, n.º 2, al. b) LGT e 195.º nº 1 CPPT).

Diz a Recorrente, a este propósito, que a interpretação que fazemos do normativo em causa - no sentido de que se impõe uma fundamentação do acto de constituição de penhor - está desactualizada e é juridicamente incorrecta.

Desactualizada porque estaremos a olvidar a alteração de redacção do artigo 195.º, n.º 1 do CPPT operada pela Lei do Orçamento de Estado (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro), por força da qual deixou de ser feita na norma em apreço qualquer referência “à necessidade de fundamentação”.

Juridicamente incorrecta porque o acto de constituição de penhor não é um acto administrativo em matéria tributária, mas um mero acto praticado no processo de execução que, concretizado, deve ser notificado à parte para, querendo, dele reclamar para o Tribunal nos termos do artigo 276.º do CPPT.

A Recorrente labora num triplo erro de raciocínio. Porque o acto de constituição de penhor é, como este Supremo Tribunal Administrativo já o disse por diversas vezes, um acto administrativo em matéria tributária, o que significa que, sendo-o, lhe são inteiramente aplicáveis as exigências de fundamentação consagradas nos artigos 152.º e 153.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), 77.º da LGT e 268.º da nossa Lei Fundamental. (Neste sentido, entre outros, os acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 24-5-2016 e 13-7-2016, proferidos, já após a alteração de redacção invocada em recurso, respectivamente, nos processos n.º 584/16 e 532/16 (integralmente disponíveis em www.dgsi.pt).) Porque, mesmo que tivesse sido intenção do legislador ordinário dispensar” ou “eliminar“ a exigência da sua fundamentação – e seguramente não foi como por diversas vezes já se decidiu – a Administração Tributária não estava dispensada de fundamentar a constituição do penhor, por este se traduzir num acto que afecta os direitos e interesses legítimos da Executada e, consequentemente, obrigatoriamente sujeito a fundamentação por imposição constitucional – como, de resto, a Administração Fiscal reconheceu na sua contestação, ao defender, inclusive por referência ao mesmo quadro jurídico que invocamos, que o acto estava devidamente fundamentado. Porque a notificação, enquanto acto externo, seja ou não concretizada, não contende com a validade do acto mas com a sua eficácia, pelo que, sendo dois pressupostos distintos e destinados a atingir fins diversos (ainda que complementares) não se podem mutuamente substituir.

No caso concreto, para além de se não descortinar do probatório qualquer despacho que nos permita compreender o que esteve na base da decisão da Administração Tributária de proceder à constituição do penhor, ou seja, desconhece-se, em absoluto, o que terá determinado a Administração Fiscal a entender que era recomendável a constituição do penhor tendo em vista o interesse na eficácia da cobrança (questão que, naturalmente, se reconduz à falta de fundamentação formal do acto invocada na petição da presente Reclamação), também não resulta que a Administração Tributária tenha logrado demonstrar, ónus que na situação concreta a si cabia, que o penhor era necessário à cobrança da dívida, sendo que os documentos por si enviados aquando da notificação da constituição do penhor e vertidos no probatório, tal como se disse na sentença recorrida, apenas são idóneos a provar que ele foi constituído e não que o mesmo se mostrava necessário.

Sublinhamos, de novo, que não só não logrou demonstrar essa necessidade, como nem o tentou fazer, por entender, num primeiro momento, tanto quanto nos permite apreender o teor da contestação, que essa fundamentação resultava clara do ofício de notificação – ou seja, do facto de existir uma dívida liquidada e não paga até à data de constituição do penhor e, num segundo momento, tanto quanto nos permite apreender das suas alegações de recurso, por essa fundamentação resultar, nas suas palavras, ope legis – ou seja, que era suficiente invocar o ter do artigo 195.º do CPPT, no qual o próprio legislador tinha procedido à fundamentação do acto.

Esta oscilação de entendimentos revela bem que nem a própria Recorrente está segura de uma ou outra das teses jurídicas avançadas e, outrossim, que está ciente, ou pelo menos terá ponderado a hipótese, por diversas vezes já confirmada pelos nossos Tribunais Superiores, que é efectivamente impostergável formular esse juízo de necessidade e que subjacente ao mesmo tem que estar o comportamento que a Executada assuma até ao fim do prazo legal de pagamento (de este se realizar, não ser requerida a dação em pagamento ou oferecida garantia idónea, nomeados bens à penhora ou pedida e obtida a dispensa da prestação de garantia).

Direito esse – pagamento voluntário, dedução de Oposição, prestação de garantia ou isenção para a prestar – reconhecido de forma inequívoca pelo legislador tributário e que a constituição de um penhor nas circunstâncias de facto apuradas nos autos frustra em absoluto.

3.2.5. Entramos, pois, na apreciação e decisão da segunda parte da questão colocada – admissibilidade, fora daquele excepcional circunstancialismo, de constituição do penhor antes de decorrido o prazo legal de 30 dias que foi concedido à Executada para reagir ao acto de citação.

Os factos apurados, que a Recorrente não discute, não revelam apenas que o acto reclamado não foi acompanhado de qualquer razão que o legitime. Revelam ainda que foi praticado no decurso do prazo legal para apresentação dos meios de reacção processual ao dispor da Executada e de exercício dos demais direitos que a Lei lhe reconhece, que, de resto, a Administração Fiscal de forma expressa e muito completa lhe comunicou.

Na verdade, como se diz, bem, na sentença recorrida, por força da citação ocorrida a 29-7-2020, a Reclamante ficou investida no direito a, no prazo de 30 dias, pagar a quantia exequenda, ciente de que se o fizesse dentro do referido prazo não lhe seriam exigidos juros de mora nem custas e que, no mesmo prazo poderia, podia ainda requerer o pagamento em prestações, dação em pagamento ou deduzir Oposição Judicial com base em qualquer um dos fundamentos prescritos no artigo 204.º do CPPT. Pelo que, salvo alegação e prova de que no caso concreto a constituição do penhor era necessária para garantir a cobrança da dívida - prova que, como vimos, não foi feita -, este não podia ter sido concretizado antes de decorrido aquele prazo.

E não se diga, contra o que vimos afirmando, que o penhor constitui uma garantia que não é constituída no âmbito do processo de execução fiscal e que só com a conversão deste em penhora, já em sede dessa execução fiscal, os direitos da Executada ficam afectados.

Desde logo, porque ainda que o penhor seja efectivamente concretizado a montante daquela execução está umbilicalmente ligado àquela - só é constituído precisamente para garantir a dívida fiscal em execução, isto é, só formal e temporariamente se mostra autonomizado do processo de execução fiscal.

E também se não argumente que o que vimos defendendo contraria o regime consagrado no artigo 199.º do CPPT, isto é, a preferência do legislador pelas garantias legais já constituídas relativamente às garantias voluntárias e, por conseguinte, que nas situações em que já está constituída garantia legal, como é o caso do penhor, nas situações em que a Administração Tributária tenha a oportunidade de constituir e garantir o pagamento da totalidade da quantia exequenda e do acrescido, nem sequer se inicia o prazo para a prestação de garantia voluntária ou para requerer a sua dispensa.

Não contraria porque essa não é, em nosso entender, a correta interpretação do citado normativo, que tem por exclusivo fim regular a forma e/ou condições de exercício de direitos e não a anulação destes, como ocorreria se perfilhássemos essa interpretação.

Como se disse no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24-10-2012, a que supra já fizemos referência e cuja aplicabilidade aos nossos autos, nesta parte, nos parece indiscutível «embora a lei tributária permita à Administração fiscal, por sua iniciativa e independentemente de consentimento do respectivo titular, a constituição de penhor ou hipoteca legal para garantia (especial) dos créditos tributários (cfr. o artigo 50.º n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária e os n.ºs 1 e 5 do artigo 195.º do CPPT), e o n.º 1 do artigo 195.º do CPPT pareça permitir a constituição de penhor sempre que o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável, a Lei Geral Tributária - que lógica e naturalmente prevalece sobre o disposto no CPPT, como o próprio reconhece no seu artigo 1.º e porque, nos termos da respectiva autorização legislativa, este diploma visou adaptar as normas procedimentais e processuais vigentes ao disposto naquela Lei (cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Volume III, 6.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2011, p. 390/391 – nota 2 ao art. 195.º do CPPT) - exige que a constituição de tais garantias se revelem necessárias à cobrança efectiva da dívida».

Em suma, respondendo à questão do erro de julgamento colocada em recurso formulamos as seguintes conclusões:

- O acto de constituição de penhor, previsto no artigo 195.º do CPPT, constitui um acto administrativo em matéria tributária sujeito a fundamentação, nos termos conjugados dos artigos 77.º da LGT e 268.º, n.º 3 da CRP, a qual terá que traduzir um juízo sobre a necessidade da constituição deste tipo de garantia para assegurar a eficácia da cobrança da dívida, ou seja, a Administração Tributária terá que alegar (fundamentação formal) e demonstrar (fundamentação substancial) que o crédito dificilmente será assegurado sem essa medida cautelar;

- Fora do excepcional circunstancialismo referido, não é admissível a constituição de penhor sem que esteja decorrido o prazo de pagamento voluntário, para deduzir Oposição Judicial ou requerer a dispensa de prestação de garantia, sob pena de frustração destes direitos, legalmente reconhecidos à Executada, e de violação dos princípios da legalidade e boa- fé norteadores da actividade administrativa em geral.

3.2.6. Uma última nota se impõe, atento o relevo dado pela Recorrida aos diversos sentidos argumentativos da Recorrente e às consequências que este Supremo Tribunal Administrativo admitiu como podendo ser extraídas, para deixarmos explícito que, pese embora a falta de coerência que os articulados revelam, não entendemos que haja indícios suficientemente fortes que justifiquem que os autos prossigam para efeitos de eventual condenação por má-fé processual. Acredita-se, atenta a qualidade da Recorrente, que a posição contraditória que assumiu no processo é meramente aparente, se ficou a dever exclusivamente ao facto de terem sido distintos os autores de cada uma das referidas peças processuais e que subjacente à sua elaboração não esteve qualquer propósito de entorpecer ou dificultar a acção da justiça nem contribuir para que a Recorrida incorresse em erro quanto à posição que efectivamente defendia.

3.2.7. Improcedem, assim, com os fundamentos expostos, todas as conclusões aduzidas como fundamento do presente recurso, que a final será julgado totalmente improcedente.

3.2.8. As custas serão suportadas pela Recorrente, integralmente vencida, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do CPC.

4- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública.

Custas pela Recorrente.

Notifique e registe.

Lisboa, 7 de Abril de 2021. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) - José Gomes Correia - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.