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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02615/15.3BEALM
Data do Acordão:01/13/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE TRANSMISSÃO ONEROSA DE IMOVEIS
OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
DÉFICE INSTRUTÓRIO
Sumário:I - O Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (I.M.T.) é um imposto sobre a riqueza, cumprindo o comando constitucional que considera a riqueza como um dos dois indicadores fundamentais de capacidade tributária dos contribuintes (cfr.artº.103, nº.1, da C.R.Portuguesa). O I.M.T. sujeita a imposto a aquisição onerosa de bens imóveis, independentemente do título ou da forma jurídica utilizada nessa aquisição. O objecto da sujeição do imposto não é propriamente o acto ou contrato que titulam a aquisição, mas sim o efeito desses actos ou contratos, ou seja, a transmissão da propriedade ou dos direitos correspondentes sobre esses imóveis. A sujeição a imposto da aquisição do direito de propriedade de bens imóveis prevista no artº.2, nº.1, do C.I.M.T., consubstancia o mais importante facto tributário do I.M.T. Trata-se do facto tributário paradigmático e nuclear do I.M.T. e aquele cuja verificação é a mais frequente. Esta norma sujeita a imposto, tanto a aquisição da propriedade do imóvel, como de figuras parcelares deste. O valor tributável sujeito a imposto segue a regra geral, do maior dos valores, ou o declarado ou o valor patrimonial do imóvel, tal como se prevê no artº.12, nº.1, do C.I.M.T.
II - As obrigações/prestações acessórias estão previstas nos artºs.209 e 287, ambos do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo dec.lei 262/86, de 2/9, respectivamente, para as sociedades por quotas e para as sociedades anónimas. A sociedade comercial pode, portanto, através do contrato de sociedade, obrigar os seus sócios a efectuar prestações para além das entradas de capital (cfr.artºs.277 e 287, do C.S.Comerciais). O legislador não teve a preocupação de definir o que se entende por prestação acessória, limitando-se a consagrar o seu regime, quer para as sociedades por quotas, quer para as sociedades anónimas. Não obstante, o recorte legal das prestações acessórias permite-nos concluir que estas consistem em quaisquer prestações a que os sócios se obriguem, entre si, para além da obrigação de entrada para realização do capital social inicial.
III - Recaindo embora sobre as partes o ónus da prova dos factos constitutivos, modificativos e/ou extintivos de direitos, a actividade instrutória pertinente para apurar a veracidade de tais factos compete também ao Tribunal, o qual, atento o disposto nos artºs.13, do C.P.P.Tributário, e 99, da L.G.Tributária, deve realizar ou ordenar todas as diligências que considerar úteis ao apuramento da verdade, assim se afirmando, sem margem para dúvidas, o princípio da investigação do Tribunal Tributário no domínio do processo judicial tributário.
IV - Nos presentes autos, verifica-se uma situação de défice instrutório que demanda o exercício de poderes cassatórios por parte deste Tribunal nos termos dos artºs.682, nº.3, e 683, nº.1, ambos do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, devendo ordenar-se a baixa dos autos, com vista a que seja produzida a ampliação da matéria de facto pelo Tribunal de 1ª. Instância de acordo com os trâmites identificados neste aresto.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P26994
Nº do Documento:SA22021011302615/15
Data de Entrada:11/02/2020
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

X
RELATÓRIO
X
O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do T.A.F. de Almada, exarada a fls.118 a 135 do processo, a qual julgou procedente a presente impugnação pela sociedade recorrida, "A…………, S.A.", intentada e tendo por objecto acto de liquidação oficiosa de I.M.T. e juros compensatórios, no montante total de € 35.100,14.
X
O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.148 a 152-verso do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
A-Em causa no presente recurso está a douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial apresentada contra o ato de liquidação oficiosa de IMT e respetivos juros compensatórios, no valor total de € 35 100,14, praticado pelo Serviço de Finanças de Palmela;
B-A referida liquidação resultou do facto de, em 2009, o acionista da sociedade impugnante, B…………, ter efetuado prestações acessórias em espécie a título definitivo e gratuito, sob a forma de bens imóveis para a mesma;
C-Na sentença ora sob recurso o tribunal “a quo” julgou procedente a impugnação e em consequência determinou anulação do ato de liquidação oficiosa impugnado, por ter concluído que “…a liquidação oficiosa impugnada padece do vício de violação de lei, nomeadamente do disposto na alínea e) do n.º 5 do artigo 2.º do Código do IMT.”;
D-Salvo o devido e merecido respeito pelo tribunal “a quo”, entende a Fazenda Pública que na douta sentença foi feita uma errada interpretação do regime jurídico aplicável aos factos dados como provados nos autos e que aqui não se questionam;
E-Na alínea e) do n.º 5 do artigo 2.º do CIMT, apenas é feita referência a “capital”, não se fazendo nela qualquer distinção entre “capital social” ou “capital próprio”, por exemplo;
F-In casu, impunha-se ao Meritíssimo Juiz do tribunal “a quo” o respeito por um dos princípios basilares do direito segundo o qual onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo;
G-Perante as regras de interpretação da lei, que resultam do artigo 9.º do CC, deve concluir-se que onde a lei não distingue está vedado ao intérprete fazê-lo;
H-A figura das prestações acessórias, prevista no artigo 287.º do CSC para as sociedades anónimas, tem uma natureza societária, pois tais prestações são parte integrante da relação jurídica estabelecida entre os sócios;
I-A distinção que é feita no n.º 1 dos artigos 209.º e 287.º do CSC, entre prestações acessórias onerosas e prestações acessórias gratuitas, é uma distinção bastante ambígua, razão pela qual Raul Ventura in Sociedade por Quotas, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1987, pág., 214, refere que “As prestações gratuitas podem suscitar uma dúvida de natureza…; não havendo qualquer contrapartida da sociedade a uma prestação efetuada por um sócio, pode parecer que se trata de pura liberalidade do sócio. Na realidade não é assim; com ou sem contrapartida da sociedade, a obrigação acessória tem natureza societária, faz parte da relação jurídica criada entre os sócios pelo respetivo contrato. O sócio obriga-se a efetuar prestações acessórias como se obriga a efetuar a própria prestação de capital e todas as prestações que efetua à sociedade, na qualidade de sócio, têm um fim social, que as afasta das liberalidades ou doações. A nomenclatura legal «prestações feitas gratuitamente» pode levar a supor o contrário, mas o defeito é da nomenclatura…”;
J-As prestações acessórias efetuadas ao longo do contrato de sociedade, mesmo quando não têm contrapartida imediata ou direta, não podem, nunca, ser consideradas liberalidades;
K-A entrega de bens imóveis pelo sócio à sociedade, mesmo que a título de prestações acessórias, deve, em substância, ser considerada uma transmissão onerosa e não uma liberalidade, já que o seu cumprimento gera sempre o nascimento de um direito associado àquelas prestações;
L-A realização do capital através da figura de prestação acessória de bens imóveis mesmo quando efetuada a título gratuito, definitivo, não reembolsável nem originadora de qualquer contraprestação no momento da sua realização, tem como fim a consolidação desse mesmo capital, sendo este o fim que justifica a constituição de tal prestação;
M-Não se destinando a subscrever o capital social, as prestações acessórias integram o conceito de partes de capital, tanto por definição jurídica como contabilística;
N-A par dos aumentos de capital social, das prestações suplementares e dos suprimentos, também as prestações acessórias são fontes de financiamento internas;
O-Em termos contabilísticos as prestações acessórias devem ser contabilizadas como passivo, se forem onerosas ou restituíveis, e como instrumentos de capital próprio se forem gratuitas, tal como resulta do SNC, mais concretamente das NCRF 7, 11 e 27;
P-Nos termos do artigo 21.º n.º 1 alínea a) do CIRC, as prestações acessórias, revestindo a natureza de entradas de capital, e desde que reconhecidas no capital próprio, não concorrem para a formação do lucro tributável;
Q-Está devidamente provado nos presentes autos que a referida operação materializou-se pela contabilização dos correspondentes prédios no imobilizado corpóreo da impugnante e foi reconhecida no seu capital próprio;
R-Não há dúvida que estamos, in casu, perante uma operação que deverá ser qualificada como transmissão onerosa de imóveis e, como tal, sujeita às regras de incidência de IMT;
S-A AT, ao proceder à referida liquidação, respeitou, escrupulosamente, todas as normas legais aplicáveis, razão pela qual deve a liquidação impugnada ser mantida na ordem jurídica por este douto Tribunal de recurso;
T-Ao decidir pela revogação do ato de liquidação impugnado, nos moldes em que o fez na douta sentença aqui recorrida, o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 9.º do CC e nos artigos 1.º n.º 1, 2.º n.º 5 alínea e), e 4.º, estes do CIMT;
U-Por assim ser, como de facto é, e estando tudo devidamente provado nos presentes autos, não pode a sentença aqui em apreço manter-se na ordem jurídica, nos termos em que foi proferida, já que, nela, o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, incorreu em erro de julgamento de direito.
X
A sociedade impugnante e ora recorrida produziu contra-alegações no âmbito da instância de recurso (cfr.fls.156 a 162-verso do processo físico), as quais encerra com o seguinte quadro Conclusivo:
A-Os factos trazidos a juízo para apreciação do tribunal a quo respeitam, em suma, às prestações acessórias em espécie, sob a forma de bens imóveis, efetuadas à Impugnante pelo acionista B…………, a título definitivo, gratuito e não reembolsável, nem originador de qualquer espécie de contraprestação no momento da sua realização ou no futuro;
B-As prestações acessórias são, entre outros, instrumentos societários a par das entradas de capital e suprimentos que permitem aos sócios atribuir onerosa ou gratuitamente à sociedade meios financeiros para a prossecução do objeto social da mesma, carreando, assim, um reforço de garantia patrimonial para os credores das sociedades, e, em termos jurídico-societários, podem ser gratuitas ou onerosas, sendo que se estará diante de um ou de outro tipo conforme exista ou não, na esfera do sócio contribuidor, um direito à restituição do que prestou;
C-A onerosidade da prestação acessória assenta, portanto, na correspetividade de obrigações reciprocas num plano imediato, não sendo relevante para esta classificação o efeito mediato ou hipotético de uma eventual restituição futura, em resultado, por exemplo, da distribuição de lucros ou da dissolução e liquidação da Sociedade (beneficiária da prestação acessória gratuita);
D-É este o sentido perfilhado pela doutrina, como por exemplo pelo professor Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição atualizada, Coimbra Editora, 1996, pág. 403), quando refere que “os negócios onerosos ou a título oneroso pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, existindo, segundo a perspetiva destas, um nexo ou relação de correspetividade entre as referidas atribuições patrimoniais (normalmente traduzidas em prestações)”;
E-É pacífico o entendimento de que as prestações acessórias gratuitas distinguem-se das obrigações de entradas – típicas do status de sócio e que não são reembolsáveis (Vd. art.º 202.º a 208.º, do CSC), das prestações suplementares – permitidas pelos estatutos e deliberadas pelos sócios (Vd. art.º 201.º a 213.º, do CSC) – e dos suprimentos – equivalentes a um mútuo especial celebrado entre a sociedade e algum ou alguns dos sócios da mesma (Vd. art.º 243.º a 245.º, do CSC);
F-É também pacífico entre a doutrina e a jurisprudência que as prestações acessórias não têm restrições de qualquer espécie, podendo, assim, consistir na entrega de um imóvel, desde que se encontre estipulado no contrato de sociedade a obrigação sobre todos ou alguns dos sócios de efetuarem prestações acessórias, seja na sua versão inicial, seja numa alteração posterior, o que acontece in casu (Cfr. n.º 1, do art.º 287.º, do CSC.);
G-É inequívoco que as prestações acessórias gratuitas, ao não implicarem qualquer obrigação de restituição (por parte da Sociedade) ao sócio contribuidor, estão desprovidas de qualquer carácter de oneroso;
H-Assim, atenta a natureza jurídica das prestações acessórias gratuitas, dúvidas não subsistem de que é descabido sujeitar as prestações acessórias gratuitas à incidência objetiva da al. e), do n.º 5, do art.º 2.º, do CIMT. Porquanto, o IMT visa tributar as transmissões a título oneroso do direito de propriedade sobre imóveis ou de figuras parcelares desse direito (cfr. n.º 1 do artigo 2.º do Código do IMT). Pois;
I-O carácter oneroso das transmissões sujeitas a IMT (anteriormente a SISA) sempre esteve ligado a uma ideia de correspetividade de prestações, de sinalagmaticidade entre a transferência jurídica ou económica de um imóvel e uma atribuição patrimonial recíproca da parte do aquirente. Pelo que, a onerosidade das transmissões de direitos reais sobre imóveis radica na própria lógica do sistema de tributação do património: o IMT visa a tributação das transmissões onerosas enquanto o Imposto do Selo (que substituiu o Imposto sobre as Sucessões e Doações) visa tributar as transmissões gratuitas;
J-Inexistindo, in casu, qualquer contraprestação ou correspetividade da Sociedade (beneficiária) para com o sócio (contribuidor), inexiste, portanto, qualquer facto sujeito a IMT, na medida em que não se vislumbra na redação da al. e), do n.º 5, do art.º 2.º, do CIMT, qualquer incidência objetiva que admita a tributação de realidades em que a gratuidade está tão presente como no caso das prestações acessórias não renumeradas e não restituíveis;
K-É assim inegável que a ratio legis da al. e), do n.º 5, do art.º 2.º, do CIMT, é tributar somente as entradas dos sócios com bens imóveis para a realização do capital social das sociedades que, note-se, constituem a contrapartida de subscrição de ações ou quotas ou do aumento do respetivo valor nominal, e não já quaisquer outras entregas de bens à sociedade, como as realizadas em espécie através de prestações acessórias gratuitas. (Vd. neste sentido, a destrinça feita pelo ilustre Professor Coutinho de Abreu entre “obrigações dos sócios”, em que inclui a obrigação de entrada, e as “outras obrigações eventuais dos sócios”, em que se incluem as prestações acessórias e as prestações suplementares, in Curso de Direito Comercial, Vol. II “Das Sociedades”, 3.ª reimpressão da ed. De 2002, Almedina, pag. 267 e ss.);
L-O sentido da norma em crise (al. e), do n.º 5, do art.º 2.º, do CIMT), por se tratar de uma norma de incidência tributária, deve ser descoberto, por respeito aos padrões de tipicidade tributária que constitucionalmente a formatam (Vd. artigo 103.º CRP e artigos 8.º e 55.º da LGT), estando ainda sujeita ao princípio da legalidade, de que resulta a reserva de lei e a tipicidade taxativa (Vd. art. 103º, nº 2, da CRP). Devendo, assim, o intérprete de normas fiscais observar com rigor o princípio da indisponibilidade do tipo, recusando qualquer interpretação que desafie o recorte típico da norma;
M-Com efeito, conforme ensina o professor Alberto Xavier, “a tipicidade do Direito Tributário é, pois, segundo certa terminologia, uma tipicidade fechada: contém em si todos os elementos para a valoração dos factos e produção dos efeitos, sem carecer de qualquer recurso a elementos a ela estranhos e sem tolerar qualquer valoração que se substitua ou acresça à contida no tipo legal.” (Vd. Alberto Xavier, Os princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1978, p.92);
N-Destarte, face a todo o supra exposto, e tendo como princípio de interpretação o sentido literal do disposto na al. e), do n.º 5, do art.º 2.º, do CIMT, o qual não deve ferir a teleologia do IMT (sujeitar a imposto apenas as transmissões onerosas, como manifestações de riqueza dos aquirentes de imóveis), é seguro concluir que o legislador apenas quis tributar as entradas dos sócios com bens imóveis para a realização do capital social das sociedades que, note-se, constituem a contrapartida da subscrição de ações ou quotas ou do aumento do respetivo valor nominal, sendo essa a previsão e estatuição da norma. E por sua vez;
O-É também de concluir que, atento o princípio da tipicidade objetiva fiscal da norma em crise, é manifesta a inexistência de tributação de prestações acessórias em espécie, in casu, de imóveis, por inexistência do requisito da onerosidade da transmissão do direito de propriedade sobre os bens imóveis em causa – requisito esse fundamental para que ocorra o nascimento do facto gerador do IMT – padecendo, assim, as liquidações anuladas pela Douta Sentença do Tribunal a quo de ilegalidade decorrente de erro nos seus pressupostos de facto e de direito, por violação do mencionado princípio da tipicidade objetiva fiscal;
Ademais,
P-Tal como é fundamentado, e bem, na Douta Sentença do Tribunal a quo:
“No caso, o legislador pretendeu, através da previsão do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IMT, e como princípio, tributar a “transmissão onerosa do direito de propriedade sobre bens imóveis” e, no n.º 5, indica um conjunto de factos que se encontravam já antes sujeitos a imposto de SISA, sujeição que se mantém em IMT, prevendo na alínea e), aquela que ao caso releva, que há de considerar-se como “transmissão onerosa do direito de propriedade sobre bens imóveis” para efeitos de tributação em IMT as “entradas dos sócios com bens imóveis para a realização do capital das sociedades comerciais”.
O legislador usou, na referida alínea e), termos concretos para expressar em que casos a transmissão de bens imóveis do sócio para a sociedade fica sujeita a IMT: quando se trate de entradas para a realização do capital.
Ora, se o legislador tivesse pretendido a tributação em IMT de toda e qualquer transmissão de bens imóveis do sócio para a sociedade, não tinha particularizado os casos em que tais actos ficam sujeitos a tributação, mas fê-lo, e fê-lo com total clareza particularizando as situações em que a transmissão corresponda às entradas para realização do capital.
Ou seja, não inclui na incidência normativa as prestações acessórias desprovidas de carácter oneroso.
Como o legislador não previu a tributação em IMT das ditas prestação acessórias, prevendo apenas a transmissão onerosa da propriedade de imóveis dos sócios para a sociedade, quando tal transmissão substancie entradas para a realização do respectivo capital.
No caso não ocorreu qualquer aumento de capital, nem resulta dos autos que se esteja perante uma entrada ainda que diferida, não resultando que a Autoridade Tributária, ainda que residualmente, tenha ponderado tal aspecto, antes admitindo a existência do acto tal como declarado pela Impugnante – uma prestação acessória sem contrapartida (pelo menos imediata) por parte da sociedade para com o sócio.
Não pode colher assim o entendimento da Autoridade Tributária, vertido no relatório de inspecção tributária, de que a prestação acessória, em substância, em deve ser uma transmissão onerosa e não uma liberalidade, por o cumprimento da prestação acessória gerar o nascimento de um direito associado à mesma, que no limite, pode ser exercido na partilha do património aos sócios, no contexto da liquidação da sociedade.
Daí que a interpretação feita pela Autoridade Tributária é uma interpretação analógica, que cria uma verdadeira norma tributária, aplicável a uma realidade diversa daquela que o legislador previu.
O que viola os princípios da legalidade e da proibição da analogia, consagrados nos artigos 8.º e 11.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária, impondo-se concluir, em consequência que a liquidação oficiosa impugnada padece do vício de violação de lei, nomeadamente do disposto na alínea e) do n.º 5 do artigo 2.º do Código do IMT”.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo não provimento do recurso (cfr.fls.167 e 168 do processo físico).
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Com dispensa de vistos legais, atenta a simplicidade das questões a dirimir, vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.119-verso a 128-verso do processo físico):
1-Em 11 de Setembro de 2014 foi emitida comunicação escrita pela Direcção de Finanças de Lisboa, notificando a Impugnante do teor do despacho da Directora de Finanças de Lisboa, de 29 de Agosto de 2014, no qual se determinava a revogação do despacho de 21 de Março de 2014, proferido no âmbito da OI201305601 (sancionamento do relatório final de inspecção) – cfr. fls. 37 dos autos;
2-A acompanhar a comunicação referida no ponto anterior encontrava-se a seguinte informação:




- cfr. fls. 39 e 40 dos autos;
3-A Impugnante foi sujeita a procedimento de inspecção tributária credenciado pela ordem de serviço n.º OI201404336 – cfr. fls. 16 do processo administrativo apenso aos autos;
4-No Relatório de Inspecção Tributária resultante do procedimento inspectivo referido no ponto anterior consta, designadamente, o seguinte:

















































5-Com data de 12 de Outubro de 2015 foi emitida, pelo Serviço de Finanças de Palmela, comunicação escrita em nome da Impugnante, levando-lhe ao conhecimento liquidação de IMT com o seguinte teor:



X
A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: "… Compulsados os autos, analisados os articulados e atenta a prova documental constante dos mesmos, não existem quaisquer factos com relevância para a decisão, atento o objecto do litígio, que devam julgar-se como não provados…".
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Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: "…Os factos acima enunciados encontram-se, todos eles, comprovados pelos documentos acima discriminados, que não foram impugnados pelas partes nem há indícios que ponham em causa a sua genuinidade, e foram tidos em consideração por haverem sido articulados pelas partes ou por deles serem instrumentais [cfr.artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil]…".
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou totalmente procedente a presente impugnação, em consequência do que anulou o acto de liquidação oficiosa de I.M.T., e respectivos juros compensatórios, objecto do processo (cfr.nº.5 do probatório), com fundamento na não sujeição a I.M.T. das prestações acessórias em causa nos autos, nomeadamente, na norma de incidência prevista no artº.2, nº.5, al.e), do C.I.M.T., assim padecendo o mesmo acto tributário do vício de erro sobre os pressupostos de direito.
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Em sede de enquadramento jurídico se dirá, antes de mais, que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal "ad quem", ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário).
O recorrente dissente do julgado alegando, em síntese, que a entrega de bens imóveis pelo sócio à sociedade, mesmo que a título de prestações acessórias, deve, em substância, ser considerada uma transmissão onerosa e não uma liberalidade, já que o seu cumprimento gera sempre o nascimento de um direito associado àquelas prestações. Que não se destinando a subscrever o capital social, as mesmas integram o conceito de partes de capital, tanto por definição jurídica, como contabilística. Que está devidamente provado nos presentes autos que a referida operação se materializou pela contabilização dos correspondentes prédios no imobilizado corpóreo da sociedade impugnante, mais sendo reconhecida no seu capital próprio. Que as prestações acessórias em causa no presente processo consubstanciam uma verdadeira transmissão onerosa de imóveis e, como tal, sujeita às regras de incidência de I.M.T. Que o Tribunal "a quo", ao decidir em contrário, violou, além do mais, o disposto nos artºs.2, nº.5, al.e), e 4, do C.I.M.T. (cfr.conclusões A) a U) do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
O Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (I.M.T.) é um imposto sobre a riqueza, cumprindo o comando constitucional que considera a riqueza como um dos dois indicadores fundamentais de capacidade tributária dos contribuintes (cfr.artº.103, nº.1, da C.R.Portuguesa).
O I.M.T. sujeita a imposto a aquisição onerosa de bens imóveis, independentemente do título ou da forma jurídica utilizada nessa aquisição. O objecto da sujeição do imposto não é propriamente o acto ou contrato que titulam a aquisição, mas sim o efeito desses actos ou contratos, ou seja, a transmissão da propriedade ou dos direitos correspondentes sobre esses imóveis. A sujeição a imposto da aquisição do direito de propriedade de bens imóveis prevista no artº.2, nº.1, do C.I.M.T., consubstancia o mais importante facto tributário do I.M.T. Trata-se do facto tributário paradigmático e nuclear do I.M.T. e aquele cuja verificação é a mais frequente. Esta norma sujeita a imposto, tanto a aquisição da propriedade do imóvel, como de figuras parcelares deste. O valor tributável sujeito a imposto segue a regra geral, do maior dos valores, ou o declarado ou o valor patrimonial do imóvel, tal como se prevê no artº.12, nº.1, do C.I.M.T. (cfr.ac.S.T.A-2ª.Secção, 10/03/2011, rec.386/10; ac.S.T.A-2ª.Secção, 14/10/2020, rec.50/11.1BEAVR; José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 3ª. Edição, 2016, pág.233 e seg.; António Santos Rocha e Outro, Tributação do Património, 2ª. Edição, Almedina, 2018, pág.433 e seg.).
No caso "sub iudice", a questão a dirimir consiste em saber se a transmissão de bens imóveis para a sociedade impugnante e ora recorrida, por parte do sócio B…………, no âmbito do cumprimento de prestações acessórias, alegadamente, previstas no contrato de sociedade, consubstancia uma transmissão onerosa sujeita a I.M.T., nos termos dos artºs.2, nº.5, al.e), e 4, do C.I.M.T., por gerar o nascimento de um direito associado à mesma que, no limite, pode ser exercido na partilha do património aos sócios e no contexto da liquidação da sociedade, tudo conforme defende o recorrente.
Pelo contrário, o Tribunal "a quo" decidiu que as transmissões de imóveis em causa, realizadas no âmbito do cumprimento de prestações acessórias previstas no contrato de sociedade, de natureza gratuita, alegadamente, estão excluídas do âmbito de incidência objectiva do I.M.T., nos termos do citado artº.2, nº.5, al.e), do C.I.M.T., em consequência do que anulou o acto tributário objecto do processo (cfr.nº.5 da matéria de facto supra exarada).
Vejamos quem tem razão.
As prestações acessórias estão previstas nos artºs.209 e 287, ambos do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo dec.lei 262/86, de 2/9, respectivamente, para as sociedades por quotas e para as sociedades anónimas. A sociedade comercial pode, portanto, através do contrato de sociedade, obrigar os seus sócios a efectuar prestações para além das entradas de capital (a acessoriedade das prestações em causa define-se em relação às prestações de capital, as quais se assumem como principais - cfr.Paulo de Pitta e Cunha, A Fiscalidade dos Anos 90, Variações patrimoniais decorrentes de prestações acessórias, Almedina, 1996, pág.119 e seg.). (cfr.artºs.277 e 287, do C.S.Comerciais). O legislador não teve a preocupação de definir o que se entende por prestação acessória, limitando-se a consagrar o seu regime, quer para as sociedades por quotas, quer para as sociedades anónimas. Não obstante, o recorte legal das prestações acessórias permite-nos concluir que estas consistem em quaisquer prestações a que os sócios se obriguem, entre si, para além da obrigação de entrada para realização do capital social inicial.
A obrigação de prestações acessórias apenas é válida quando prevista no contrato de sociedade inicial ou, posteriormente, se alterado nesse sentido. No entanto, se as prestações acessórias apenas forem estabelecidas através da alteração do contrato de sociedade, o artº.86, nº.2, do C.S.Comerciais, estabelece que apenas ficarão obrigados à sua realização os sócios que as tenham aprovado. O que não impede que, uma vez consagrada no contrato de sociedade a obrigação de realização de prestações acessórias, estas possam recair apenas sobre alguns dos sócios ou que estas sejam qualitativa ou quantitativamente distintas entre si.
No que respeita ao objecto das prestações acessórias, o artº.209, do C.S.Comerciais, não estabelece qualquer limitação, permitindo que estas tenham por desígnio dinheiro ou qualquer outra coisa e possam materializar-se, nomeadamente, em obrigações de "dare", "facere" e "non facere" ou até mesmo em obrigações de suportar ou tolerar. Por último, no que tange à sua natureza, as obrigações de prestações acessórias surgem como cláusulas acidentais facultativas e típicas, próprias dos contratos de sociedade (cfr.artºs.209 e 287, do C.S.Comerciais; Raúl Ventura, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2ª. Edição, Almedina, 1989, pág.205 e seg.; António Meneses Cordeiro e Outros, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 3ª. Edição, Almedina, 2020, pág.748 e seg.; António Meneses Cordeiro, Direito das Sociedades, II, Das Sociedades em Especial, Almedina, 2017, pág.285 e seg.).
Passemos à vertente contabilística.
Para que possamos melhor compreender o tratamento contabilístico das prestações acessórias, devemos, em primeiro lugar, socorrer-nos da distinção efectuada, quer no artº.209, nº.1, do C.S.Comerciais, para as sociedades por quotas, quer no artº.287, nº.1, do mesmo diploma, para as sociedades anónimas, entre prestações acessórias gratuitas e onerosas, porquanto, é desta distinção que resultará o enquadramento das mesmas no "Capital Próprio" ou no "Passivo" da sociedade beneficiária. Nestes termos, quando a prestação acessória é gratuita, a sociedade beneficiária não assume, perante o sócio, qualquer contrapartida financeira decorrente da realização da mesma, ou seja, a sociedade não paga qualquer quantia em troco da prestação (bem entregue ou serviço prestado) ou não suporta os juros relativos às quantias entregues. Já quando a obrigação acessória é onerosa, à prestação realizada pelo sócio corresponde uma contraprestação financeira por parte da sociedade beneficiária, o que significa que a sociedade retribui financeiramente a prestação recebida, quer pagando o preço do bem ou serviço, quer suportando o juro sobre as quantias entregues. Esta diferenciação entre prestações acessórias gratuitas e onerosas e o facto de as segundas terem de ser pagas aos sócios, independentemente da existência de lucros, leva-nos a acompanhar a doutrina que sustenta que as prestações acessórias onerosas deverão ser enquadradas contabilisticamente como passivo da sociedade beneficiária, ou seja, na conta 25 (Financiamentos Obtidos). Relativamente às prestações acessórias gratuitas, uma vez que a sociedade não entrega ao sócio, em contrapartida da prestação recebida, qualquer contraprestação, deverão estes créditos ser enquadrados no capital próprio da sociedade beneficiária e registados numa subconta apropriada da conta 53 (Prestações Suplementares) e não na subconta 51 (Capital) atenta a distinção entre "Partes de Capital" e "Capital Próprio" (cfr.Sérgio Brigas Afonso, Regime Societário e Fiscal dos Créditos por Prestações Suplementares e Prestações Acessórias, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 10/2017, nº.2/Verão, pág.95 e seg.; Rogério Fernandes Ferreira e José Vieira dos Reis, Prestações Acessórias e Partes de Capital, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 3, nº.4, Almedina, pág.11 e seg.).
Revertendo ao caso dos autos, o Tribunal "a quo" não produziu prova sobre a alegada alteração do contrato de sociedade da impugnante/recorrida, no sentido de passar a prever a realização de prestações acessórias, a consequente concretização destas e sua natureza, gratuita ou onerosa, tudo factualidade que não consta do probatório supra exarado, apesar de, supostamente, figurar em prova documental cujo teor deveria fazer parte da matéria de facto provada.
Releve-se que a falta de apuramento de tais factos resulta da omissão de diligências que se impunha realizar por parte do Tribunal "a quo", pelo que, a sentença sindicada padece de défice instrutório, sendo que o S.T.A. é um Tribunal de revista (cfr.artº.12, nº.5, do E.T.A.F.), com exclusiva competência em matéria de direito, em regra (cfr.artº.26, al.b), do E.T.A.F.).
Por outro lado, mencione-se que, recaindo embora sobre as partes o ónus da prova dos factos constitutivos, modificativos e/ou extintivos de direitos, a actividade instrutória pertinente para apurar a veracidade de tais factos compete também ao Tribunal, o qual, atento o disposto nos artºs.13, do C.P.P.Tributário, e 99, da L.G.Tributária, deve realizar ou ordenar todas as diligências que considerar úteis ao apuramento da verdade, assim se afirmando, sem margem para dúvidas, o princípio da investigação do Tribunal Tributário no domínio do processo judicial tributário (cfr.ac.S.T.A-2ª.Secção, 6/05/2020, rec. 7/18.1BEPDL; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, 4ª. edição, Editora Encontro da Escrita, 2012, pág.859; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.173 e seg.).
Arrematando, verifica-se uma situação de défice instrutório que demanda o exercício de poderes cassatórios por parte deste Tribunal nos termos dos artºs.682, nº.3, e 683, nº.1, ambos do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, aplicáveis "ex vi" do artº. 281, do C.P.P.T. (cfr.ac.S.T.A-2ª.Secção, 10/12/2014, rec.118/14; ac.S.T.A-2ª.Secção, 20/06/2018, rec.483/18; ac.S.T.A-2ª.Secção, 21/11/2019, rec.670/15.5BEAVR; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 4/12/2019, rec.1555/08.5BEBRG; ac.S.T.A-2ª.Secção, 6/05/2020, rec. 7/18.1BEPDL; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Novo Regime, 4ª. Edição, 2017, Almedina, pág.430 e seg.), devendo ordenar-se a baixa dos autos, com vista a que seja produzida a ampliação da matéria de facto pelo Tribunal de 1ª. Instância de acordo com os trâmites identificados supra, ao que se procederá na parte dispositiva deste aresto.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO, ANULAR A SENTENÇA RECORRIDA E ORDENAR A BAIXA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE 1ª. INSTÂNCIA, cumprindo-se em conformidade com as diligências de instrução que se reputem úteis e necessárias à ampliação da matéria de facto para os fins acima precisados, após o que se deverá proferir nova sentença que leve em consideração a factualidade entretanto apurada.
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Condena-se em custas a sociedade recorrida, porque vencida na presente instância de recurso (cfr.artº.527, do C.P.Civil).
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 13 de Janeiro de 2021. - Joaquim Manuel Charneca Condesso (relator) - Paulo José Rodrigues Antunes – Pedro Nuno Pinto Vergueiro.