Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:019/18.5BEVIS
Data do Acordão:01/13/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULA CADILHE RIBEIRO
Descritores:SEGURANÇA SOCIAL
TRABALHADORES
INDEPENDENTE
CONTRATO
Sumário:I - A atividade de criação de frangos, independentemente de estar organizada sob a forma de atividade profissional ou empresarial, uma vez enquadrando-se na categoria B do IRS, é sempre subsumível à categoria de trabalhador independente à luz das normas do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRC).
II - A contribuição devida pelas Entidades Contratantes ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 140.º, 150.º, n.º 3, 151.º, n.º 2, 153.º, 154.º, n.º 2, 155.º, n.º 3 e 167.º do CRC decorre da situação de incidência descrita no artigo 140.º, ou seja, de à mesma ser imputável o benefício, no mesmo ano civil, de pelo menos 80% do valor total da atividade desenvolvida pelo trabalhador independente.
Nº Convencional:JSTA000P26960
Nº do Documento:SA220210113019/18
Data de Entrada:03/05/2020
Recorrente:A..................., S.A.
Recorrido 1:INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P. – CENTRO DISTRITAL DE VISEU
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1- RELATÓRIO
1.1. A………………………., S.A., identificada nos autos, recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, de 01 de dezembro de 2019, que julgou improcedente a impugnação judicial contra a liquidação de obrigação contributiva, emitida pelo Instituto de Segurança Social, I.P., no montante de 12.256,86€, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:
“I. A recorrente é titular de uma empresa que se dedica à indústria transformadora, tendo como objeto a atividade de abate e transformação de carne de aves, comércio de produtos avícolas e processamento, transformação e comercialização de outras carnes, explorando um matadouro de aves e uma unidade de processamento e transformação de carnes avícolas.
II. Para o desenvolvimento da sua atividade, a recorrente necessita de se abastecer diariamente com elevadas quantidades de aves, celebrando, para esse efeito, contratos com terceiros com vista a garantir o fornecimento dessas aves.
III. Esses terceiros desenvolvem a atividade de criação de aves, as quais, quando atingem uma idade determinada, são entregues à recorrente, sendo proprietários de imóveis destinados à criação de aves e, bem assim, de um conjunto de outros meios de produção próprios.
IV. Estas entidades com as quais a recorrente contrata recebem aves recém-nascidas, e procedem à sua criação, dando-lhes alojamento, maneio, alimentação, água e medicação e assumem o risco da sua atividade económica.
V. A recorrente adquire as aves recém-nascidas e coloca-as nas instalações desses operadores entregando-lhes as rações e os medicamentos necessários ao processo de criação e no final de cada processo de criação é apurada, de acordo com um preço pré-acordado entre as partes, a diferença entre o valor dos produtos efetivamente entregues à recorrente e o valor dos fornecidos pela recorrente aos operadores, podendo daí resultar um saldo positivo ou negativo para o operador.
VI. Os terceiros com os quais a recorrente contrata gerem uma atividade empresarial, a qual acarreta um risco, não se tratando de uma prestação de serviços normal, em que é fixado um preço fixo por uma determinada prestação quantificada.
VII. Está em causa a exploração, por esses terceiros, de um estabelecimento comercial, uma organização concreta de fatores produtivos, com valor de posição no mercado, constituída por imóveis, meios de produção, equipamentos, pessoal, contratos de fornecimento, entre outros elementos.
VIII. Cada um desses operadores é titular e explora um estabelecimento comercial, fazendo-o por sua conta e risco, atuando com autonomia de gestão, no quadro da operação de um negócio próprio, suportando diretamente custos com pessoal, instalações e com vários meios de produção, com exceção do custo com rações, medicamentos e aves recém-nascidas.
IX. A razão pela qual estes operadores desenvolvem a sua atividade em mais de 80% para a recorrente, é de mero controlo sanitário.
X. Os operadores aqui em apreço não são qualificados como trabalhadores independentes, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 132.º e seguintes do CRC, pois o trabalhador independente pressuposto pelo legislador não desenvolve uma atividade idêntica àquela que é desenvolvida pelos operadores aqui em causa.
XI. Não está aqui em causa o desempenho de uma atividade profissional, ou a prestação do resultado de uma atividade, contra uma remuneração certa e pré-determinada.
XII. Por outro lado, aplica-se ao caso vertente o disposto na alínea b) do n.º2 do artigo 134.º do CRC, porquanto, não se consideram explorações agrícolas as atividades e explorações que se destinem essencialmente à produção de matérias-primas para indústrias transformadoras que constituam, em si mesmas, objetivos dessas atividades.
XIII. Por consulta ao sistema informático da SEGURANÇA SOCIAL -SEGURANÇA SOCIAL DIRETA – divisa-se que face à generalidade das pessoas ali mencionadas consta a seguinte observação: “De acordo com o código regimes contributivos do sistema previdencial de segurança social, Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro, conforme o seu artigo 134.º, n.º 2, alínea b), o contribuinte em causa não pode ser enquadrado no regime dos trabalhadores independentes, porquanto a sua atividade e exploração, se destina exclusivamente à produção de matérias-primas para a indústria.”
XIV. Quer por não se aplicar o disposto no artigo 132.º do CRC, quer por operar a exclusão prevista na alínea b), do n.º 2, do artigo 134.º do mesmo diploma, falecem os pressupostos de aplicação à recorrente do disposto no artigo 140.º do CRC, pelo que não poderá ser a mesma considerada entidade contratante no caso em apreço nem objeto da liquidação da obrigação contributiva notificada pelo INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
XV. Ao decidir como decidiu a sentença recorrida violou os artigos 132.º,134.º n.º 2 b) e 140.º do CRC.
Nestes termos, deve este recurso ser considerado procedente, revogando-se a sentença recorrida e, julgando-se a impugnação procedente, sendo determinada a anulação do ato de liquidação de obrigação contributiva notificado pelo Instituto de Segurança Social, I.P.
Como é de inteira JUSTIÇA!”

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3. O excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

1.4. A questão que se coloca no presente recurso é a de saber se existe erro de julgamento da sentença recorrida na interpretação e subsunção jurídica que fez da relação jurídica subjacente aos contratos de prestação de serviços celebrados entre a Recorrente e os produtores avícolas à luz das regras do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRC).

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Nos termos do disposto nos artigos 663.º, n.º 6, e 679.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), remete-se para a matéria de facto constante da decisão recorrida.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A questão que se coloca no presente recurso, acima enunciada, a de saber se existe erro de julgamento da sentença recorrida na interpretação e subsunção jurídica que fez da relação jurídica subjacente aos contratos de prestação de serviços celebrados entre a Recorrente e os produtores avícolas à luz das regras do CRC, foi recentemente decidida por este Tribunal, no acórdão de 02/12/2020, proferido no processo 0137/13.6BEVIS, em que tiveram intervenção as mesmas partes, em que a situação de facto é semelhante à dos presentes autos e em que as conclusões de recurso têm exatamente o mesmo teor das acima transcritas, nos termos que se transcreve:

«3.1. Resulta do contrato de prestação de serviços celebrado entre a aqui Recorrente os produtores avícolas que este se obrigam perante aquela a receber os pintos, as rações e os medicamentos, à engorda dos primeiros, por sua conta e risco, até estes se transformarem em frangos (ou seja, até terem mais de 29 dias), e a proceder à entrega àquela dos referidos frangos, sendo a sua remuneração calculada a partir do preço convencionado de €785,61/tonelada frango, deduzido do valor dos pintos, rações, medicamentos e gás fornecido pela Recorrente (ponto 3 da matéria de facto).

Resulta também da matéria de facto assente que os produtores avícolas se encontram inscritos no Instituto de Segurança Social como trabalhadores independentes (ponto 5 da matéria de facto).

3.1.1. O litígio assenta na qualificação da Recorrente como “Entidade Contratante” nos termos e para efeitos do disposto no artigo 140.º do CRC, preceito legal cuja redacção era a seguinte em 2011, data a que respeitam os factos:

«Artigo 140.º

Entidades contratantes

1 - As pessoas colectivas e as pessoas singulares com actividade empresarial, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, que no mesmo ano civil beneficiem de pelo menos 80 % do valor total da actividade de trabalhador independente, são abrangidas pelo presente regime na qualidade de entidades contratantes.

2 - Para efeitos do número anterior considera-se como prestado à mesma entidade contratante os serviços prestados a empresas do mesmo agrupamento empresarial».

(Redacção dada pelo artigo 69.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro)

3.1.2. A Recorrente rejeitou aquele enquadramento legal por considerar que: i) os produtores avícolas não poderiam qualificar-se como trabalhadores independentes segundo o disposto no artigo 132.º do CRC; ii) sempre seriam excluídos daquela qualificação por força do disposto no artigo 134.º, n.º 2, al. b) do CRC.

3.1.3. Sobre o segmento da sentença recorrida que conclui pela qualificação dos produtores avícolas como trabalhadores independentes ao abrigo do disposto nos artigos 132.º, 133.º e 134.º do CRC, o mesmo não merece a censura que o Recorrente lhe pretende atribuir.

Com efeito, dispõem os artigos em questão o seguinte:

«Artigo 132.º

Trabalhadores abrangidos

São obrigatoriamente abrangidos pelo regime dos trabalhadores independentes as pessoas singulares que exerçam actividade profissional sem sujeição a contrato de trabalho ou a contrato legalmente equiparado, ou se obriguem a prestar a outrem o resultado da sua actividade, e não se encontrem por essa actividade abrangidos pelo regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem.

Artigo 133.º

Categorias de trabalhadores abrangidos

1 — São, designadamente, abrangidos pelo regime dos trabalhadores independentes:

a) As pessoas que exerçam actividade profissional por conta própria geradora de rendimentos a que se reportam os artigos 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares;

(…)

d) Os sócios de sociedades de agricultura de grupo ainda que nelas exerçam actividade integrados nos respectivos órgãos estatutários;

e) Os titulares de direitos sobre explorações agrícolas ou equiparadas, ainda que a actividade nelas exercida se traduza apenas em actos de gestão, desde que tais actos sejam exercidos directamente, de forma reiterada e com carácter de permanência.

2 — O carácter de permanência afere-se pela adstrição dos titulares de explorações agrícolas ou equiparadas a actos de gestão que exijam uma actividade regular, embora não a tempo completo.

Artigo 134.º

Categorias de trabalhadores especialmente abrangidos

1 — São obrigatoriamente abrangidos pelo regime dos trabalhadores independentes com as especificidades previstas no presente título:

d) Os produtores agrícolas que exerçam efectiva actividade profissional na exploração agrícola ou equiparada, bem como os respectivos cônjuges que exerçam efectiva e regularmente actividade profissional na exploração;

(…)

2 — Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior:

a) Consideram-se equiparadas a explorações agrícolas as actividades e explorações de silvicultura, pecuária, hortofloricultura, floricultura, avicultura e apicultura, ainda que nelas a terra tenha uma função de mero suporte de instalações;

b) Não se consideram explorações agrícolas as actividades e explorações que se destinem essencialmente à produção de matérias-primas para indústrias transformadoras que constituam, em si mesmas, objectivos dessas actividades.

Do teor dos preceitos antes transcritos e do conteúdo do contrato antes mencionado e dado como assente no probatório, resulta, com meridiana clareza, que a actividade desenvolvida por estes avicultores ao abrigo do denominado “contrato de prestação de serviços” com a aqui Recorrente se tem de reconduzir à de trabalhador independente nos termos e para os efeitos do CRC, independentemente da forma como esteja organizada esta actividade, seja como actividade profissional ou empresarial, uma vez que a mesma se enquadra, em ambos casos, na categoria B do IRS, como bem conclui o Tribunal a quo, pelo que a relação jurídica que se estabelece com a Recorrente é, por essa razão, sempre subsumível no âmbito do artigo 140.º do CRC.

Em outras palavras, a contribuição devida pelas entidades contratantes ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 140.º, 150.º, n.º 3, 151.º, n.º 2, 153.º, 154.º, n.º 2, 155.º, n.º 3 e 167.º do CRC, decorre da situação de incidência descrita no artigo 140.º, ou seja, o benefício, no mesmo ano civil, de pelo menos 80% do valor total da actividade de trabalhador independente; sendo incluída nesta categoria (na dos trabalhadores independentes), também a actividade empresarial sujeita ao pagamento da categoria B de IRS (artigo 133.º, n.º 1 a) do CRC), incluindo uma actividade de produção aviária (artigo 134.º do CRC), como é o caso aqui.

3.1.4. Sobre o segmento da sentença recorrida que conclui que os produtores avícolas aqui em apreço não estão excluídos da categoria de trabalhadores independentes ex vi do disposto na al. b), do n.º 2 do 134.º do CRC, o mesmo não merece, igualmente, a censura que lhe vem dirigida.


Como bem se explica na sentença recorrida, a redacção desse preceito legal tem um fundamento histórico (que decorre da integração da actividade agrícola na segurança social) que permite concluir que os trabalhadores das actividades agrícolas (incluindo a avicultura) “inseridos” em cadeias de transformação/produção industrial não beneficiam das taxas contributivas mais reduzidas que se aplicam aos restantes profissionais e empresários agrícolas. Assim, e como bem se afirma no aresto recorrido, mesmo que o contrato de prestação de serviços aqui em apreço pudesse levar à integração dos referidos avicultores nesta categoria (o que não se afirma, nem se analisa), ainda assim tal seria irrelevante para a questão aqui em apreço, porquanto daí resultaria a aplicação de uma taxa contributiva mais agravada a estes avicultores (a taxa do n.º 1 do artigo 168.º do CRC e não a do n.º 3 do mesmo preceito), mas não a exclusão da incidência da contribuição devida pelas entidades contraentes ex vi do disposto no artigo 140.º do CRC.».

No contexto que descrevemos e atento o disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil (CC), que determina que nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, assumimos como nossa a fundamentação e decisão do acórdão reproduzido, o que conduz à improcedência do presente recurso.

Em conclusão (e acompanhado também o sumário do acórdão reproduzido):
I - A atividade de criação de frangos, independentemente de estar organizada sob a forma de atividade profissional ou empresarial, uma vez enquadrando-se na categoria B do IRS, é sempre subsumível à categoria de trabalhador independente à luz das normas do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRC).
II - A contribuição devida pelas Entidades Contratantes ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 140.º, 150.º, n.º 3, 151.º, n.º 2, 153.º, 154.º, n.º 2, 155.º, n.º 3 e 167.º do CRC decorre da situação de incidência descrita no artigo 140.º, ou seja, de à mesma ser imputável o benefício, no mesmo ano civil, de pelo menos 80% do valor total da atividade desenvolvida pelo trabalhador independente.

IV- DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 13 de janeiro de 2021. - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro (Relatora) - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Gustavo André Simões Lopes Courinha (com declaração de voto)


Declaração de Voto
Votei favoravelmente o acórdão, por entender que a posição aí vertida traduz a única interpretação possível da letra da lei e, acresce, já ter logrado vencimento num outro aresto deste Supremo Tribunal, em tudo similar ao atual.
Todavia, e em simultâneo, considero que o, ora controvertido, regime de contribuições exigidas às entidades contratantes de trabalhadores independentes, decorrente do Código Contributivo, parte de um pressuposto (implícito) que, na presente factualidade, parece encontrar-se ausente, a saber, a presunção legal de existência de abuso na contratação de trabalhadores independentes – o designado “abuso dos recibos verdes”, com entidades empregadoras a manter os seus fornecedores de serviços numa situação continuamente precária.
Com efeito, foi com este (mais ou menos) assumido desiderato que um tal regime foi constituído e justificado, na sua versão inicial; ora, a generalização da sua aplicação, por meio do alargamento do circunstancialismo contributivo – acompanhada, ainda recentemente, do aumento muito significativo das respectivas taxas contributivas – conduziu à forçosa deturpação daquele desiderato e à criação de um tributo autónomo sobre a prestação de serviços.
Acresce que a distorção do propósito de tal regime conduz a uma (também) provável distorção no mercado e nas formas jurídicas adotadas, precisamente quanto a situações como aquelas constantes dos presentes autos, porquanto os trabalhadores independentes e os empresários individuais sentir-se-ão induzidos à constituição de empresas unipessoais ao invés da prestação dos mencionados serviços a título individual, por forma a desonerar tributariamente os seus serviços.
Porém, não se encontrando suficientemente vertidas na letra da lei nenhumas destas preocupações, mais não resta senão votar favoravelmente o presente acórdão.
(Gustavo Lopes Courinha)