Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0669/15
Data do Acordão:05/10/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
INSOLVÊNCIA
Sumário:I - Os bens apreendidos e vendidos em processo de insolvência continuam a ser propriedade do insolvente até à venda.
II - A diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respectivo produto fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente.
III - Sendo certo que o CIRE, no n.º 1 do seu art. 268.º, prevê a isenção das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou cessão de bens do insolvente aos credores no âmbito do processo de insolvência, já não prevê idêntica isenção no caso da venda, nada fazendo crer (designadamente para efeitos da aplicação extensiva da norma a esta última situação) que o legislador tenha dito menos que pretendia.
Nº Convencional:JSTA00070168
Nº do Documento:SA2201705100669
Data de Entrada:05/28/2015
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A.............
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PENAFIEL
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR FISC - IRS.
DIR PROC TRIBUT CONT.
Legislação Nacional:CIRE04 ART1 ART2 N1 A ART36 N1 G ART46 ART81 N1 ART158 N1 ART268 N1.
CIRS01 ART10 N1 A.
EBFISC01 ART10.
CCIV66 ART9 N3.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0582/15 DE 2016/09/21.; AC STA PROC0592/11 DE 2011/11/23.
Referência a Doutrina:PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA - CÓDIGO CIVIL ANOTADO VOLI 3ED PAG586.
OLIVEIRA ASCENSÃO - EFEITOS DA FALÊNCIA SOBRE A PESSOA E NEGÓCIOS DO FALIDO - ROA DEZ/95 PAG652-653.
MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO - OS EFEITOS SUBSTANTIVOS DA FALÊNCIA - PUC2000 PAG127.
PAULA COSTA E SILVA - A LIQUIDAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE - ROA 2005 VOLIII PAG717-719.
BRUNO SANTIAGO E BEATRIZ CAPELOA GIL - A RESPONSABILIDADE PELO IMPOSTO DEVIDO NA LIQUIDAÇÃO DOS BENS QUE INTEGRAM A MASSA INSOLVENTE - CADERNOS DE JUSTIÇA TRIBUTÁRIA CEJM N13 PAG13-15.
CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA - CIRE ANOTADO 3ED PAG916-917.
LIMA GUERREIRO - OS CRÉDITOS FISCAIS NO NOVO CPEREF FISCO ANOV N54 PAG118.
SARA LUIS DA SILVA VEIGA DIAS - O CRÉDITO TRIBUTÁRIO E AS OBRIGAÇÕES FISCAIS NO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA PAG98-99.
ANA PRATA, JORGE MORAIS DE CARVALHO E RUI SIMÕES - CIRE ANOTADO 2013 PAG716.
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública (adiante Recorrente) recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, julgando procedente a impugnação judicial deduzida por A………….. (a seguir Impugnante ou Recorrido), anulou a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) efectuada com referência à mais-valia apurada pela venda de um imóvel, ocorrida no âmbito do processo em que aquele foi declarado insolvente.

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações, que sintetizou em conclusões do seguinte teor:

«A. Com a ressalva do sempre devido respeito por melhor opinião, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim decidido, porquanto considera existir erro de julgamento em matéria de direito na interpretação efectuada pelo Tribunal a quo sobre o âmbito e alcance do disposto no n.º 1 do art. 268.º do CIRE.

B. A liquidação em causa tem subjacente as mais-valias obtidas com a alienação onerosa de bens imóveis integrados na massa insolvente que, segundo o entendimento da Autoridade Tributária, não se encontram abrangidas pela isenção de IRS prevista no preceituado do n.º 1 do art. 268.º do CIRE.

C. As referidas mais-valias não foram realizadas por efeito de uma dação em cumprimento de bens do devedor, no sentido da realização de uma prestação, diferente da que é devida, com o fim de extinguir imediatamente a cobrança.

D. As mais-valias também não resultam de uma cessão de bens aos credores, em que o devedor encarrega os credores de liquidar o seu património ou de parte dele e de repartirem entre si o respectivo produto para satisfação dos seus créditos, a que expressamente se refere o n.º 1 do art. 268.º do CIRE.

E. A questão a dirimir, prende-se, como aliás o douto decisório aponta, em saber se a venda de bens imóveis da massa insolvente é susceptível de gerar uma mais-valia do insolvente, sujeita a tributação em sede de IRS.

F. De acordo com o estabelecido nos artigos 1.º e 2.º n.º 1 al. a), do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e, designadamente, a repartição do produto obtido pelos credores.

G. Proferida a sentença de declaração de insolvência o juiz decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador de insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, cfr. alínea g) do n.º 1 do artigo 36.º do CIRE.

H. Com a declaração de insolvência, o insolvente fica imediatamente privado de poder administrar e dispor dos bens integrantes da massa insolvente, uma vez que é o administrador de insolvência que fica incumbido de tais poderes (cfr. n.º 1 do artigo 81.º do CIRE).

I. A massa insolvente destina-se, por isso, à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, competindo, todavia, os poderes de administração e de disposição dos respectivos bens integrantes ao administrador da insolvência, cfr. n.º 1 do art. 46.º do CIRE.

J. Do mesmo modo prescreve o artigo 149.º do CIRE, quando determina a imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente após ter sido proferida sentença declaratória de insolvência.

K. Ainda sobre a entrega dos bens apreendidos, refere o artigo 150.º do CIRE, que o administrador de insolvência, a quem são entregues os bens, fica depositário dos mesmos.

L. Deste modo facilmente se apreende que o insolvente embora fique na indisponibilidade de dispor e administrar os bens da massa insolvente, não deixa de continuar a ser o efectivo proprietário dos mesmos.

M. Pelo que, os ganhos obtidos com a alienação do imóvel, mesmo fazendo parte integrante da massa insolvente, deverão ser sujeitos a tributação em sede de IRS na esfera do seu proprietário, de harmonia com o disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS.

N. Sendo certo que tais ganhos não se encontram abrangidos pelas isenções estabelecidas no art. 268.º do CIRE

O. Seguindo a doutrina, da anotação n.º 2 ao artigo 268.º do CIRE, constante do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, da autoria de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda extraímos o seguinte entendimento: “(...) a de isentar de tributação, em impostos sobre o rendimento de pessoas singulares ou colectivas, mais-valias resultantes de actos de dação em cumprimento de bens do devedor e de cessão, aos credores, de bens ou de elementos do activo da empresa, taxativamente enumerados no seu n.º 1.
As mais-valias em causa não serão, assim, levadas em conta na determinação da matéria colectável aos referidos impostos.
O beneficiário desta isenção fiscal é o próprio devedor”.

P. Como bem se compreende, no caso sub judice não estamos perante qualquer acto de dação em cumprimento ou cessão de bens aos credores, mas sim perante a venda de um bem cuja propriedade pertence ao devedor e que gerou um rendimento passível de tributação em sede de mais-valias.

Q. Questão diferente é o destino ou afectação do rendimento e aí sim, por força da declaração de insolvência, o mesmo é afecto à satisfação dos credores de insolvência.

R. Deste modo, entende a Fazenda Pública que a operação em causa configurou a alienação de um imóvel que, embora integrando a massa insolvente, não inviabiliza a tributação dos ganhos daí advenientes na esfera do seu proprietário [impugnante].

S. Atento ao exposto, considera a Fazenda Pública que a liquidação em causa respeitou em pleno todos os pressupostos legais não padecendo de qualquer vício passível de suscitar a sua anulabilidade, sendo de manter firme o acto de liquidação na ordem jurídica.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com as devidas consequências legais».

1.3 O Recorrido não apresentou contra-alegações.

1.4 Remetidos os autos a este Supremo Tribunal Administrativo, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso, revogada a sentença e julgada improcedente a impugnação judicial, com a seguinte fundamentação ( As notas que no original estavam em rodapé serão transcritas no texto, entre parêntesis rectos.):

«[…] A questão que se coloca consiste em saber se os ganhos obtidos com a venda de imóvel apreendido no âmbito de processo de insolvência estão ou não sujeitos a tributação em sede de IRS, categoria “E”, na esfera jurídica do insolvente.
Afigura-se-nos que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Com efeito, não oferece dúvidas que a diferença verificada entre o valor da aquisição do imóvel e o valor da sua venda consubstancia uma mais-valia sujeita a tributação nos termos das disposições conjugadas dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), n.ºs 3 e 4, alínea a), e 43.º do CIRS.
O facto de o imóvel ter sido apreendido na sequência da declaração de insolvência dos recorridos e fazer parte da chamada “massa insolvente” não altera a sua titularidade, mas apenas o afecta ao pagamento dos créditos da massa insolvente – artigo 46.º do CIRE. Com efeito, os efeitos da declaração de insolvência em relação ao insolvente reflectem-se nos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – artigo 81.º, n.º 1, do CIRE –, mas não na sua titularidade. O insolvente não perde a sua titularidade, mas a sua disponibilidade, de modo que qualquer acto que pratique em relação àqueles bens é ineficaz em relação à massa insolvente – cfr. a este propósito Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, 2014, Almedina, pág. 109 e segs.
Assim e ainda que a massa insolvente configure um património autónomo adstrito à satisfação dos interesses dos credores1 [1 Neste sentido Maria do Rosário Epifânio. ob. cit., pág. 251], o mesmo não sofre qualquer modificação na sua titularidade. De facto, a satisfação desses interesses tanto pode passar pela liquidação desse património, como pela aprovação de um plano de insolvência que preveja outro destino para esse património2 [2 Ainda Maria do Rosário Epifânio, ob. cit., pág. 254].
Não se pode assim concluir, como se fez na sentença recorrida, que os recorridos (insolventes) não obtiveram os rendimentos sujeitos a tributação – mais-valias –, uma vez que o produto da venda, embora fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente. E tal situação resulta bastante clara no caso do produto da venda ser superior ao valor dos créditos reclamados, situação em que o remanescente será entregue ao insolvente3 [3 Uma vez que a insolvência empresarial caracteriza-se, no essencial, por um quadro de insuficiência, não necessariamente irreversível, de liquidez para solver as suas obrigações financeiras contratuais] – artigo 184.º, n.º 1, do CIRE.
Por outro lado consagrando o CIRE no Título XIII – artigo 267.º a 270.º – normas em que estão previstos os benefícios fiscais do devedor (e não da massa insolvente) e não sendo subsumível à sua previsão o caso dos presentes autos, temos que concluir que não há fundamento legal para não sujeitá-las a tributação, ao abrigo das normas supra citadas do CIRS.
Questão distinta é a de saber se as obrigações tributárias resultantes de factos tributários ocorridos na pendência do processo de insolvência e relacionados com bens ou direitos que integram a massa insolvente não constituirão dívidas desta.
A este propósito, Rui Duarte Morais4 [4 In “Os credores Tributários no Processo de Insolvência”, Direito e Justiça, Vol. XIX, 2005, tomo II, pág. 218], defende que «as dívidas de imposto originadas por factos relativos aos bens que integram a massa falida são dívidas da massa insolvente», considerando que embora não previstas expressamente no artigo 51.º do CIRE são subsumíveis na alínea c) do n.º 1 que prevê as “dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente”, e que lhes é aplicável o disposto no artigo 172.º do CIRE, ou seja, que devem ser pagas pelo administrador.
Se tal entendimento é defensável no caso dos tributos que incidem sobre determinados actos praticados pelo administrador (caso do IVA e IMI que o mesmo Autor dá como exemplo), já o mesmo é difícil de conciliar com a natureza pessoal do IRS e em que a determinação da matéria colectável tem em consideração outras variáveis (tais como menos-valias apuradas no mesmo ano).
Propendemos a considerar que neste caso a dívida de imposto (IRS) decorrente das mais-valias apuradas com a alienação de imóvel que faz parte da massa insolvente não seja subsumível no artigo 51.º do CIRE, como dívida da massa insolvente, mas sim como dívida do devedor insolvente».

1.5 Após os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«A) O impugnante e a sua mulher, B………….., contribuinte fiscal n.º …………., foram declarados insolventes por sentença transitada em julgado em 18/05/2009, proferida no processo de insolvência n.º 480/09.9 TBPFR, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Paços de Ferreira (fl. 72 e seguintes).

B) Nesse processo de insolvência foi apreendido à sua ordem o prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão, andar, anexos e logradouro, sito no Lugar de ………., da freguesia de ……., concelho de Paços de Ferreira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o número 1082, da referida freguesia, e inscrito na matriz predial dessa freguesia sob o artigo 1687 (fls. 72 e seguintes).

C) Este prédio foi alienado em 24/06/2011, por escritura pública de compra e venda outorgada por C……….., na qualidade de administradora da insolvência de pessoa singular no processo n.º 480/09.9 TBPFR do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira, pelo preço de € 110.000,00 (fls. 66 e seguintes).

D) O preço foi pago à administradora da insolvência e parte depositado à ordem do processo de insolvência (fls. 66 e seguintes).

E) Na sequência desta venda o Serviço de Finanças de Paços de Ferreira procedeu à correcção oficiosa da declaração de rendimentos do impugnante do ano de 2011, procedendo à declaração das mais-valias obtidas com a alienação do referido prédio pelo valor de € 110.000,00 (apenso).

F) Esta correcção deu origem à liquidação n.º 2012 5005118660, da qual resultou um valor a pagar de € 4.975,43, sendo € 4.855,71 de imposto e € 119,72 de juros compensatórios (fls. 36)».


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

No âmbito de um processo de insolvência foi apreendido e vendido um bem imóvel pertencente ao ora Recorrido e sua mulher. A AT, considerando que dessa venda resultaram para estes ganhos sujeitos a IRS (categoria E “mais-valias”), que não foram oportunamente declarados, procedeu à liquidação adicional de imposto e respectivos juros compensatórios.
O insolvente impugnou essa liquidação adicional de IRS com os seguintes dois fundamentos: i) com a declaração de insolvência e apreensão de todos os bens do insolvente, o prédio em causa «deixou de ser propriedade do Insolvente, passando a ser da Massa Insolvente» e ii) a situação em causa, de apreensão de bem imóvel com vista ao pagamento dos credores, «configura claro e manifesto acto de dação em cumprimento ou cessão de bens aos credores» e, por isso, deve beneficiar da isenção prevista pelo art. 268.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel julgou a impugnação judicial procedente e anulou aquela liquidação. Para tanto, e em síntese, depois de salientar que a mais-valia sujeita a tributação é a diferença entre o valor de aquisição e o valor de realização, considerou que, porque a venda foi efectuada no âmbito do processo de insolvência e pela administradora da insolvência, «o rendimento obtido com a alienação onerosa não foi realizado pelo impugnante, mas pela massa insolvente (art. 46.º do CIRE), representada pelo administrador da insolvência, à ordem de quem havia sido apreendido o referido imóvel». Assim, porque «[a] alienação em causa é uma venda que resulta da execução do património do impugnante (art. 1.º do CIRE) no âmbito do processo de insolvência a favor de quem foi depositado e pago o preço da venda», «o impugnante não obteve qualquer rendimento com a alienação», motivo por que «[o] produto da venda não é susceptível de consubstanciar um rendimento obtido pelo impugnante e como tal não constitui um ganho capaz de integrar qualquer mais-valias sujeitas a tributação em sede de IRS».
A Fazenda Pública, discordando desse entendimento, recorreu da sentença para este Supremo Tribunal. Sustenta, em resumo, que as mais-valias em causa não foram realizadas no âmbito de uma dação em cumprimento nem de uma cessão de bens os credores, motivo por que não se encontram abrangidas pela isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE; que o imóvel alienado, pese embora tenha sido objecto de apreensão e entrega do âmbito do processo de insolvência, para ser integrado na massa insolvente, não deixou de ser propriedade do insolvente, motivo por que os ganhos obtidos com a venda do mesmo estão sujeitos a tributação em IRS na esfera do seu proprietário, atento o disposto no art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS.
Por isso, enunciámos a questão a apreciar e decidir é a de saber se a venda de um bem imóvel da massa insolvente é, ou não, susceptível de gerar uma mais-valia do insolvente que seja pessoa singular, sujeita a tributação em sede de IRS, o que, atento o teor da sentença e a conformação do recurso, passa por indagar se a mais-valia valia resultante dessa venda está ou não abrangida pela isenção prevista no art. 268.º do CIRE e, na negativa, se a mesma deve considerar-se ganho do insolvente ou da massa insolvente, designadamente se, como afirma a sentença, o imóvel deixou ser propriedade do insolvente com a sua apreensão para a massa insolvente.

2.2.2 DA TRIBUTAÇÃO EM IRS DA MAIS-VALIA DECORRENTE DA VENDA DE BEM IMÓVEL QUE INTEGRE A MASSA INSOLVENTE

O art. 268.º do CIRE, que tem como epígrafe «Benefícios relativos a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas», prevê no seu n.º 1 uma isenção relativamente aos impostos sobre o rendimento nos seguintes termos:
«As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas, não concorrendo para a determinação da matéria colectável do devedor».
Como resulta da letra da lei apenas estão abrangidas pela isenção de IRS, as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do insolvente e da cessão desses bens aos credores e já não as resultantes da venda desses bens – figuras jurídicas inequivocamente distintas e tratadas autonomamente no Código Civil (CC) –, ainda que o seu produto seja aplicado no pagamento aos credores.
Antes do mais, cumpre ter presente que, em matéria de isenções, há que observar o princípio constitucional da legalidade tributária, na sua vertente de tipicidade, que veda a integração analógica de normas de isenção de imposto, embora consinta na sua interpretação extensiva, como, aliás, reconhece o legislador ordinário (cfr. art. 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais). A interpretação extensiva pressupõe que, por via interpretativa, se conclua que o legislador minus dixit quam voluit, que o legislador disse menos do que aquilo que se pretendia dizer (Sobre a questão, vide o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 23 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 592/11, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/276fb5605d95722d8025795d00445be9.
), ou seja, que quando isentou de IRS as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do devedor aos credores ou da cessão de bens aos credores pretendia igualmente abranger no âmbito da isenção as mais-valias realizadas com a venda a terceiros desse bens, pelo menos na parte em que o produto dessa venda fosse utilizado no pagamento aos credores.
Mas, salvo o devido respeito, qualquer que seja o juízo sobre a bondade da opção legislativa, não pode é sustentar-se que o legislador pretendia também abranger na isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE as mais-valias resultantes da venda de bens do devedor. Na verdade, a ser assim, por certo o teria dito expressamente (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CC), tanto mais que as situações de venda serão mais vulgares que as de dação em pagamento ou cessão de bens aos credores. Por outro lado, nada permite concluir, designadamente a ratio legis, que o legislador quisesse aplicar às situações em que há venda de bens (transferência de bens do insolvente para terceiros) tratamento idêntico àquele em que há uma transferência directa de bens da esfera patrimonial do insolvente para a dos credores, sendo legítimo concluir que pretendeu estimular este modo de extinção das dívidas do insolvente.
Concluímos, pois, que as mais-valias resultantes da venda de bens do insolvente não estão abrangidas pela isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE.
Mas será que, como sustentou o Juiz do Tribunal a quo, que o insolvente não obteve qualquer rendimento com a alienação do imóvel?
Atento o disposto nos arts. 1.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e, designadamente, a repartição do produto obtido pelos credores, podendo ser objecto de tal processo quaisquer pessoas singulares ou colectivas, sendo que, no caso, apenas nos interessa considerar a insolvência de pessoa singular.
Quando uma pessoa singular é objecto de uma declaração de insolvência, os seus bens susceptíveis de penhora são apreendidos, de acordo com a alínea g) do n.º 1 do art. 36.º do CIRE, e passam a integrar um património autónomo e de afectação, uma vez se destina à satisfação dos interesses dos credores da insolvência, denominada massa insolvente. A massa insolvente, de acordo com o conceito do n.º 1 do art. 46.º do CIRE, «destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo».
Esses bens são entregues ao administrador da insolvência ( O administrador da insolvência é um órgão da insolvência sem poderes de representação do insolvente que seja pessoa singular, contrariamente ao que sucede relativamente às pessoas colectivas (cfr. art. 81.º, n.º 4, do CIRE).), que é quem pode exercer poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE).
Daqui decorre que a massa insolvente tem autonomia patrimonial, que existe quando se está perante uma «certa massa de bens afectada ao pagamento de um conjunto próprio de dívidas» ( Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, anotação 4 ao art. 601.º, pág. 586.
No mesmo sentido, OLIVEIRA ASCENÇÃO, Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido, Revista da Ordem dos Advogados, Dezembro de 1995, págs. 652/653; MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os efeitos substantivos da falência, PUC 2000, pág. 127; PAULA COSTA E SILVA, A liquidação da massa insolvente, Revista da Ordem dos Advogados, 2005, volume III, págs. 717 a 719, onde fala de «património de afectação» (também disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=44561&ida=44625).), mas não constitui uma pessoa (singular ou colectiva), um novo ente, distinto daquele a quem o património autónomo continua a pertencer (() Não passam a existir duas pessoas, tal como não existem três entes em resultado de um casamento, apesar de existirem dois patrimónios próprios e um comum.). Dito de outro modo, «A constituição de um património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor insolvente que lhe deu origem» ( Cfr. BRUNO SANTIAGO e BEATRIZ CAPELOA GIL, A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente, Cadernos de Justiça Tributária, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, n.º 13, págs. 3 a 15.).
A massa insolvente constitui apenas uma parte separada do património da pessoa singular a quem os bens pertencem e a quem não deixam de pertencer por força da declaração de insolvência; o que acontece, quando há uma declaração de insolvência, é apenas a transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, da pessoa insolvente para o administrador da insolvência (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE). Os bens não deixam de ser propriedade do insolvente; apenas se dá uma transferência daqueles poderes sobre eles.
Assim, praticando o administrador actos de liquidação da massa insolvente, designadamente vendendo ( Segundo o art. 158.º, n.º 1, do CIRE, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente.) bem imóvel integrante dessa massa (venda efectuada na qualidade de fiel depositário dos bens do devedor, como representante da massa insolvente, e não em nome próprio), se a venda for efectuada por um valor superior àquele pelo qual o imóvel foi adquirido, gera um acréscimo do património do insolvente, constituindo assim um rendimento sujeito a IRS, nos termos do art. 10.º, n.º 1, alínea a), do Código daquele imposto. Como deixou já dito este Supremo Tribunal Administrativo, para a qualificação como mais-valia sujeita a tributação releva unicamente a diferença positiva entre o valor pelo qual um imóvel foi alienado e o valor da sua aquisição, corrigido e acrescido nos termos legais, sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu ( Cfr. o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 21 de Setembro de 2016, proferido no processo n.º 582/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b601a4ed1e38d3eb80258037004cbb31.). Aliás, nem sequer pode dizer-se que não haja benefício para o insolvente, pois esse acréscimo patrimonial beneficiou o insolvente embora na parte do seu património separada para a massa, traduzindo-se numa diminuição do seu passivo.
Neste sentido, aponta também, a contrario, o disposto no art. 268.º do CIRE, ao prever uma isenção de IRS para as mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento (realização de uma prestação, diferente da que é devida, com o fim de extinguir imediatamente a obrigação) de bens do devedor e da cessão de bens aos credores (em que o devedor encarrega os credores de liquidar o seu património ou parte dele e de repartirem entre si o respectivo produto para satisfação dos seus créditos); o que significa que, se as mais-valias não resultarem de um desses negócios previstos nesta norma de isenção, designadamente se resultarem da venda de bens da massa insolvente, e a menos que gerem rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais ( Ou seja, pressupomos que os imóveis pertencem ao património particular do sujeito passivo, isto é, que não estavam afectos a qualquer actividade empresarial e/ou profissional.), estão abrangidas pelo IRS, concorrendo para a determinação da matéria colectável em sede deste imposto [art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS]. Neste sentido também se pronunciam a AT, na informação vinculativa emitida no processo 5957/2010 da Direcção-Geral dos Impostos, com despacho concordante da Subdirectora-Geral de 1 de Outubro de 2010 (() Disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/B88EB745-5794-49A6-8C8C-00AFC4C8030F/0/ProcN%C2%BA5957_2010IRS.pdf.), e a doutrina ( Designadamente:
- CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3.ª edição, Quid Juris, 2015, págs. 916/917;
- LIMA GUERREIRO, Os créditos fiscais no novo CPERF, Fisco, ano V, n.º 54, pág. 118;
- SARA LUÍS DA SILVA VEIGA DIAS, O crédito tributário e as obrigações fiscais no processo de insolvência, págs. 98/99, dissertação de mestrado, no repositorium da Universidade do Minho, disponível em
http://hdl.handle.net/1822/21395;
- ANA PRATA, JORGE MORAIS DE CARVALHO e RUI SIMÕES, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, Almedina, 2013, pág. 716, em anotação ao art. 268.º.).
Daqui decorre que não podemos concordar com a sentença quando, considerando inexistir rendimento do insolvente sujeito a tributação em IRS, anulou a liquidação com esse fundamento. O recurso será, pois, provido.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos a seguinte conclusão:

I - Os bens apreendidos e vendidos em processo de insolvência continuam a ser propriedade do insolvente até à venda.

II - A diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respectivo produto fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente.

III - Sendo certo que o CIRE, no n.º 1 do seu art. 268.º, prevê a isenção das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou cessão de bens do insolvente aos credores no âmbito do processo de insolvência, já não prevê idêntica isenção no caso da venda, nada fazendo crer (designadamente para efeitos da aplicação extensiva da norma a esta última situação) que o legislador tenha dito menos que pretendia.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a impugnação judicial.

Custas pelo Recorrido.


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Lisboa, 10 de Maio de 2017. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Casimiro Gonçalves.