Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:021/20.7BALSB
Data do Acordão:03/24/2021
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:PAULA CADILHE RIBEIRO
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Sumário:As disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objecto dos n.ºs 3 e 9 do art. 88.º do CIRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.
(da resp. dos serviços)
Nº Convencional:JSTA00071086
Nº do Documento:SAP20210324021/20
Data de Entrada:02/14/2020
Recorrente:CTT - CORREIOS DE PORTUGAL, S.A.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão:CONHECE DO RECURSO, NEGA-LHE PROVIMENTO E UNIFORMIZA JURISPRUDÊNCIA
Legislação Nacional:ART. 88.º, N.ºS 3 E 9, CIRC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório
1.1. CTT – CORREIOS DE PORTUGAL, S.A., sociedade identificada nos autos, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 152.º, n.º 1, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) e 25.º, n.ºs 2 a 4, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no processo n.º 323/2019-T, datada de 17 de janeiro de 2020, invocando contradição com a decisão do mesmo CAAD, proferida no processo n.º 628/2014-T.

Com a interposição do recurso apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões:
«a) Da oposição no âmbito da mesma questão fundamental de direito entre a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento
A) Na decisão arbitral ora recorrida (processo n.º 323/2019-T) estava em causa saber se era legal a autoliquidação de tributação autónoma em IRC de 2014 do Grupo Fiscal CTT, na medida correspondente à tributação incidente sobre despesas e encargos com utilização de veículos (incluindo motociclos, próprios e alheios) no que respeita à parcela destas despesas e encargos com referência à qual seja demonstrada utilização exclusiva dos veículos em causa (rectius, das despesas e encargos com os mesmos) na actividade da empresa (do Grupo Fiscal CTT).
B) A decisão arbitral recorrida decidiu que não haveria presunção alguma subjacente a esta tributação autónoma, que não haveria nesta tributação presunção implícita de ausência parcial ou total de utilização do veículo (rectius, da despesa com a utilização do veículo) na actividade da empresa, e por conseguinte não haveria presunção alguma susceptível de ilisão, isto é, e por conseguinte a tributação autónoma operaria mesmo que fosse demonstrada a utilização exclusiva dos veículos (rectius, da despesa e encargos com a utilização dos veículos) na actividade da empresa.
C) Na decisão arbitral fundamento (processo n.º 628/2014-T), transitada em julgado, estava em causa resolver a mesma questão da existência ou não, em sede de tributação autónoma sobre despesas e encargos com a utilização de veículos, de presunção implícita de ausência parcial ou total de utilização do veículo (rectius, da despesa com a utilização do veículo) na actividade da empresa, e decidiu-se diferentemente que esta presunção implícita existe, sendo susceptível de ilisão, e por conseguinte decidiu-se, contrariamente à decisão arbitral recorrida, que sendo demonstrada a utilização exclusiva dos veículos (rectius, da despesa e encargos com a utilização dos veículos) na actividade da empresa, a tributação autónoma não operava.
D) Inexiste alteração da regulamentação jurídica aplicável entre um caso e outro.
E) Deve, pois, ser admitido o presente recurso para uniformização de jurisprudência regulado no artigo 152.º do CPTA, por remissão do artigo 25.º, n.ºs 2 e 3, do RJAT (na redacção dada pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro), e fundado na oposição sobre a mesma questão fundamental de direito entre a decisão arbitral recorrida proferida em 17.01.2020, e a decisão arbitral fundamento de 02.02.2015, proferida no processo n.º 628/2014-T, por se verificaremos requisitos exigidos para o efeito.
b) Disposições legais violadas pela decisão arbitral recorrida.
F) A decisão arbitral recorrida viola o artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do CIRC, designadamente o espírito e a finalidade deste normativo, e bem assim viola o princípio da interpretação o mais conforme possível à Constituição, a prescrição legal de que “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (artigo 9.º, n.º 3, do código civil), o artigo 350.º, n.º 2, do código civil, e o artigo 73.º da Lei Geral Tributária (LGT).
c) Introdução à questão de direito controvertida e análise das razões de improcedência do argumentário específico da decisão arbitral recorrida.
G) Juridicamente a questão fundamental era e é esta: sabendo-se que estas tributações autónomas têm por fundamento o risco acrescido, em consumos desta natureza, de utilização pessoal, ou pelo menos utilização promíscua e sem controlo, de veículos cujos custos de utilização são suportados pela empresa, sabendo-se que, por isso, estas tributações autónomas visam compensar a evasão fiscal que se presume poder ocorrer mais frequentemente neste tipo de consumos ou gastos (a doutrina e a jurisprudência são unânimes e convergentes nesta leitura das normas de tributação autónoma aqui em causa), quid juris (questão fundamental de direito) quando a empresa mostre para além da dúvida razoável que no caso destas frotas ou destes abonos quilométrico, a utilização é exclusivamente empresarial, com exclusão de qualquer utilização pessoal, estando instituídos os controlos necessários para garantir que assim acontece.
H) Uma corrente, a primeira a formar-se, concluiu que subjacente a estas tributações autónomas há uma presunção de ausência parcial de empresarialidade das despesas e encargos onerados com a mesma (sob pena de arbitrariedade, de falta de legitimidade, constitucional até, da norma), e daí concluiu que legal e constitucionalmente falando (interpretação mais conforme à constituição) esta presunção implícita existe normativamente falando e é elidível.
I) A decisão arbitral ora recorrida integra-se na corrente jurisprudencial oposta que se formou posteriormente em sede de arbitragem tributaria, e muito embora (se bem a entendemos) também reconheça que estas tributações autónomas têm por fundamento o risco de uso promíscuo dos equipamentos cujas despesas são suportadas pela empresa, e consequentemente assentam na presunção de que isso ocorrerá com frequência, afirma, se bem se entende, que tudo isso se passa apenas ao nível da produção legislativa da norma (“razão de política fiscal que levou o legislador a tributar essas despesas”, nas exactas palavras de decisão recorrida) – cfr. pág. 11, a partir do ponto 6., e pág.12, da decisão arbitral recorrida.
J) Em suma, com esta separação entre o que levou o legislador a agir e a criar norma decerto tipo e com certo conteúdo, e o fruto caído deste processo legislativo, a decisão arbitral recorrida recusa a existência de qualquer presunção implícita.
K) E vai mais longe a decisão arbitral recorrida: esta norma assim considerada no momento da sua interpretação e aplicação, livre de qualquer razão de ser ou fundamento (que presidiu apenas à sua criação), de nenhuma inconstitucionalidade padece.
L) Julga-se ser inaceitável esta separação, em dois universos que não se tocam, entre processo legislativo da norma (em que a decisão recorrida aceita a presença e relevância da razão de ser da sua criação), e processo de interpretação e aplicação da norma (em que a decisão recorrida rejeita a presença e relevância da razão de ser da sua criação).
M) E artificial.
N) Quer isto dizer nesta tese (que se rejeita) que para o intérprete e aplicador da norma, se o legislador tivesse pensado simplesmente em tributar estes encargos das empresas, por razão nenhuma, sem critério algum, seria igual. Porque em sede de interpretação e aplicação nenhuma consideração lhe cabe nesta tese fazer dos juízos de valor que presidiram à criação da norma, que explicam a criação da norma e sua configuração.
O) Se amanhã em vez da tributação destas despesas, se tributar os livros que cada um tem em casa, estará tudo bem igualmente, pela mesma razão (verdadeiramente a única) que a decisão arbitral aponta: a despesa em livros revela capacidade contributiva.
P) Pois revela. E a despesa em CDs com música que A ou B acumulem em suas casas não revela isso igualmente? Porquê fazer incidir tributação adicional só nestas despesas (amantes de livros) e não noutras (amantes de música, despesas anuais com restaurantes, etc.)?
Q) A capacidade contributiva assim vista, fragmentariamente, como um absoluto (“gastou nisto, logo tem capacidade contributiva, logo a tributação instituída é inatacável”), é um princípio vazio que autoriza toda a arbitrariedade e toda a desigualdade.
R) O mesmo problema se põe com as despesas que estas tributações autónomas elegeram: “tu que tens muitos carros, ou motociclos para distribuir correio, vais pagar muita tributação autónoma porque sim; tu que o que tens é muitos aviões, ou muitos barcos, ou muitas máquinas, ou muitos outros activos de outro tipo, na tua actividade, não pagas nada.”.
S) Isto não pode ser, constitucionalmente e humanamente falando. Daí que seja absolutamente fundamental olhar para além do simples facto mecânico de que a norma atinge um fragmento de manifestação de riqueza (fizeste aquela despesa).
T) No caso das tributações autónomas aqui em causa, olhar para além deste aspecto mecânico e fragmentário, é chamar à colação a razão de ser pela qual aquelas despesas foram separadas das restantes despesas, para sobre elas e respectivos sujeitos se fazer incidir uma tributação adicional.
U) No caso da tributação autónoma associada a veículos e uso de veículos, é clara e pacífica essa sua razão de ser: risco acrescido de utilização promíscua (e consequente evasão fiscal) a que se prestam as despesas e encargos associadas a veículos automóveis e motociclos.
V) Afastar este elemento finalístico aquando da interpretação e aplicação da lei, isto é, afastar a razão de ser para o imposto acrescido sobre aquelas despesas, para a diferenciação tributária daquelas despesas, é aceitar uma aplicação cega à fronteira real (inteligível) da lei, e aceitar conviver com a arbitrariedade e com a insindicabilidade da arbitrariedade.
W) Há ainda um outro equívoco na decisão arbitral recorrida. Ninguém defende ou alguma vez defendeu, pelo menos neste processo, que a medida (tributação autónoma sobre despesas associadas à utilização de veículos automóveis, incluindo ciclomotores) é inidónea ou inepta “tomando como referência a aproximação ao fim visado” (lidar com a evasão fiscal a que esse tipo de despesas se prestam em maior grau, pela susceptibilidade acrescida de uso promíscuo decorrente da sua natureza).
X) O que se contesta é o excesso da medida, em caso de ausência de válvula de escape (possibilidade de ilisão da presunção implícita na norma). O que está em causa é o princípio da proporcionalidade em sentido restrito (cfr. a propósito das três dimensões do princípio da proporcionalidade, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 06960/13).
Y) É este último subprincípio, o da proporcionalidade em sentido restrito, que aqui está em causa: a medida legal cumpre com o seu fim legítimo (adequação e idoneidade), mas, nesta visão da decisão arbitral recorrida, de ausência de válvula de escape, de ausência de presunção susceptível de ilisão, atropela também e atinge o que à luz da sua finalidade (razão de ser) não devia atropelar nem atingir, chocando com o princípio da proibição do excesso.
Z) É que, olhando agora ao caso concreto e sua tipologia, entre o mais o motociclo afecto à distribuição de correio, a sua documentação legal e respectivas chaves, são levantados no início do giro diário e devolvidos e parqueados em instalações dos CTT no final do giro, o motociclo tem caixa inamovível para colocação do correio, o motociclo tem as cores e sinais identitários dos CTT, sabe-se de antemão o número de quilómetros do giro de distribuição de correio, pelo que é possível detectar de imediato e com segurança desvios de quilometragem face ao que de antemão se sabe serem os quilómetros do giro, etc. (cfr. os factos assentes na decisão arbitral, em especial na pág. 5 e segs.).
AA) Numa palavra, demonstra-se para além da dúvida razoável que esta frota de motociclos (e também a frota de Viaturas de Serviço Geral, ou VSG) tem, exclusivamente, utilização empresarial.
BB) Tem, no caso, exclusivamente as mesmas funções de uma frota de veículos de transporte de mercadorias (os motociclos de distribuição postal são isso e nada mais).
CC) Os motociclos são substantivamente falando, na circunstância da actividade empresarial dos CTT, uma frota de veículos de transporte de mercadoria, que nenhuma razão há para onerar com tributação autónoma, pela mesmíssima razão que não se onera com tributação autónoma a frota de transporte de mercadorias da ……. ou da ……... .
DD) São, indiscutivelmente, ferramentas de trabalho, por oposição a “benefícios escondidos” aos trabalhadores.
EE) E do ponto de vista constitucional (interpretação conforme à Constituição), é manifesto que a imposição de tributação autónoma a encargos com motociclos destinados especialmente ao transporte de carga, configura uma discriminação negativa injustificada das empresas para cuja actividade é especialmente adequada a utilização de motociclos de carga, incompaginável com o princípio da igualdade, enunciado no artigo 13.º da Constituição.
d) Aprofundamento do tema da finalidade desta tributação autónoma, da jurisprudência produzida sobre esta finalidade, e da jurisprudência mais específica sobre a ilisão da presunção implícita nesta tributação (em especial o acórdão fundamento)
FF) A razão de ser desta espécie de tributação autónoma, isto é, a respectiva função fiscal, é unívoca e de apreensão desprovida de dificuldade: lidar com o problema de despesas ou encargos especialmente propensos a uso promíscuo, isto é, a uso fora da actividade empresarial da empresa e para proveito da esfera pessoal de outrem (sem a correspondente tributação em IRS, por ser “rendimento subterraneamente auferido”).
GG) É verdade que há outras espécies de tributações autónomas com razão de ser distinta. Mas o que está aqui em causa não são outras tributações autónomas, são estas (veículos e abonos quilométricos), e quanto a estas nada há de inextrincável ou, para usar as palavras da decisão arbitral (p 11), a sua razão de ser fiscal não é complexa e múltipla.
HH) No estudo da então DGCI, mais concretamente do seu Centro de Estudos Fiscais, publicado em 1994, explica-se sem ambiguidade e com clareza a função desta espécie de tributação autónoma então em gestação: lidar com o problema de despesas especialmente propensas a uso promíscuo, cuja utilidade gerada na esfera de terceiro (rendimento em espécie) escapava mais facilmente ao IRS (cfr. MARIA DOS PRAZERES RITO LOUSA, “Aspectos Gerais Relativos à Tributação das Vantagens Acessórias”, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 374, Abril-Junho 1994).
II) Não é, pois, nenhuma invenção doutrinária ou jurisprudencial, identificar-se firmemente o combate à evasão fiscal como sendo a ratio, a finalidade, da tributação autónoma sobre as despesas propícias a uso promíscuo de que são exemplo as despesas e encargos suportados pela empresa com a utilização de veículos próprios ou alheios.
JJ) E esta evidência ancora-se no estudo fundador promovido pela AT, do alargamento em Portugal das tributações autónomas para lá do seu primitivo alvo (as despesas confidenciais e não documentadas), às despesas e encargos com utilização de veículos.
KK) Mas é revelada também, e fortemente, na própria normação desta tributação autónoma, como se viu supra em detalhe. Tributação esta que cessa quando há tributação em IRS, na esfera do trabalhador, dos encargos com a viatura (incluindo abonos quilométricos), e que cessa a sua aplicação quando há um terceiro envolvido, isto é, quando há facturação dos abonos quilométricos ao cliente da empresa (cfr. n.ºs 6 e 9 do artigo 88.º do CIRC).
LL) Porque, justamente, o problema da potencial evasão fiscal (uso promíscuo sem tributação na esfera do beneficiário) cessa de existir quando se assume como remuneração do trabalhador as despesas e encargos com os veículos (incluindo abonos quilométricos), e a suspeita tem de ser posta de lado quando se facturam os abonos quilométricos ao cliente da empresa.
MM) E cessa esta tributação autónoma ainda a sua aplicação, quando se trate de veículos destinados ao aluguer, ao transporte público de passageiros ou ao transporte pesado de mercadorias. Porque, mais uma vez, nesse caso é infundado ou excessivo, à luz de padrões de normalidade, o receio de que a razão de ser da existência das viaturas na empresa seja proporcionar subterraneamente o uso das mesmas para fins pessoais de colaborador da empresa.
NN) Em conclusão, é o próprio conteúdo do regime desta espécie de tributação autónoma (despesas e encargos pela utilização de veículos, próprios ou alheios), é a própria de limitação de fronteiras traçada pelo regime em si mesmo, o primeiro e principal revelador (denunciante) da inequívoca função e finalidade desta espécie tributária: é uma tributação compensatória da elisão fiscal presuntivamente associada a este tipo de despesas e encargos, e por isso quando se é capaz de identificar a priori tipologias de situações em que esse receio é infundado, o próprio regime exclui-as da tributação por si imposta.
OO) Há uma confirmação massiva, pela jurisprudência e doutrina (de SALDANHA SANCHES a CASALTA NABAIS e RUI DUARTE MORAIS), de que esta e não outra é a função e finalidade, a ratio, da espécie de tributação autónoma aqui em causa.
PP) Na jurisprudência podem-se citar dezenas de decisões arbitrais, entre as quais as proferidas nos processos n.ºs 187/2013-T, 209/2013-T, 210/2013-T, 246/2013-T, 255/2013-T, 260/2013-T, 282/2013-T, 292/2013-T, 298/13-T, 6/2014-T, 36/2014-T, 37/2014-T, 59/2014-T, 79/2014-T, 80/2014-T, 93/2014-T, 94/2014-T, 163/2014-T, 166/2014-T, 167/2014-T e 211/2014-T, 659/2014-T, 697/2014-T e 769/2014-T, 113/2015-T, 219/2015-T, 369/2015-T, 370/2015-T, 535/2015-T, 637/2015-T, 673/2015-T, 740/2015-T, 744/2015-T, 781/2015-T, 784/2015-T e 775/2015-T.
QQ) Isto sem entrar ainda nas decisões arbitrais que especificamente afirmam a existência de presunção elidível nesta espécie tributária, justamente em decorrência da sua finalidade e função, de que se podem destacar, para além da decisão arbitral fundamento do presente recurso, de 02.02.2015, proferida no processo n.º 628/2014-T (Conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA, Juiz JOSÉ PEDRO CARVALHO, e Dra. MANUELA ROSEIRO), a decisão arbitral de 16.01.2017, proferida no processo n.º 309/2016-T (JOSÉ PEDRO CARVALHO, JOSÉ NUNES BARATA e FRANCISCO PESSOA VAZ), a decisão arbitral de 28.06.2017, proferida no processos n.º 411/2016-T (MARIA FERNANDA DOS SANTOS MAÇÃS, JOSÉ PEDRO CARVALHO e MANUELA ROSEIRO), a decisão arbitral de 14.09.2017, proferida no processo n.º 649/2016-T (JOSÉ BAETA DE QUEIROZ, FERNANDO ARAÚJO, SOFIA CARDOSO), a decisão arbitral de 31.03.2018, proferida no processo n.º 503/2017-T (AUGUSTO VIEIRA), a decisão arbitral de 24.05.2018, proferida no processo n.º 285/2017-T (JOSÉ BAETA DE QUEIROZ, FERNANDO ARAÚJO, HENRIQUE FIÚZA), a decisão arbitral de 30.05.2019, proferida no processo n.º 500/2018-T (JOSÉ BAETA DE QUEIROZ, LEONARDO MARQUES DOS SANTOS e REGINA DE ALMEIDA MONTEIRO), a decisão arbitral de 06.08.2019, proferida no processo n.º 434/2018-T (JOSÉ POÇAS FALCÃO, JORGE CARITA e ISAQUE MARCOS RAMOS), etc.
RR) E fora da arbitragem tributária há a destacar também a convergência acerca da finalidade e função desta espécie de tributação autónoma, entre o STA (acórdão de 21 de Março de 2012, proferido no âmbito do Processo n.º 0830/11), o TCAS (acórdão de 08.03.2018, proferido no processo n.º 1294/14.0BELRS) e o Tribunal Constitucional (acórdão n.º 310/2012, de 20 de junho de 2012), como se viu supra em detalhe.
SS) No acórdão do TCAS proferido no processo n.º 1294/14.0BELRS (JORGE CORTÊS, CRISTINA FLORA, ANA PINHOL), afirmou-se sem rodeios em sede de obiter dictum que a espécie de tributação autónoma aqui em causa assenta no facto de se estar perante “despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros (…).Estando em causa tributações autónomas respeitantes a “encargos com viaturas”, “despesas de representação” e “encargos com ajudas de custo e de compensação pela deslocação em viatura própria do trabalho”, i.e., respeitantes a despesas dedutíveis, a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem os distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários.”
TT) E mais se concluiu abordando directamente a questão do presente recurso, que “as tributações autónomas cujo encargo pretendem as Requerentes ver subtraídas ao seu lucro tributável, poderão ser encaradas como uma espécie de norma antiabuso consensual, em que o legislador propõe ao contribuinte uma de três alternativas, a saber: (…) c) provar a empresarialidade integral da despesa, e deduzi-la integralmente, não suportando a tributação autónoma. De resto, o reconhecimento desta natureza presuntiva, será, para além de tudo o mais, uma salvaguarda da sua constitucionalidade”»”.
UU) É exactamente isto que pensa a decisão arbitral fundamento do presente recurso, e outras supra citadas que a acompanharam.
VV) É exactamente este também o entendimento do STA com respeito à questão, estruturalmente similar, da norma do artigo 44.º, n.º 2, do CIRS, que impunha a consideração do valor patrimonial tributário (VPT) usado para efeitos de IMT como valor de venda para efeitos de tributação em IRS, sempre que o valor escriturado fosse inferior àquele.
WW) À data relevante para o acórdão do STA em causa esta disposição do IRS nenhuma previsão ex professo tinha de presunção e susceptibilidade de ilisão da mesma, mas tinha uma teleologia, uma finalidade, de combate a suspeita de evasão fiscal (tal como a espécie de tributação autónoma aqui em causa): considera ou suspeita o legislador, e por isso consagrou essa solução do artigo 44.º, n.º 2, do CIRS, que é provável que o imóvel não tenha efectivamente sido transacionado por valor inferior ao seu valor patrimonial tributário, digam as partes na compra e venda o que disserem na escrituração da operação.
XX) É óbvia a identidade com o problema que levou o legislador a instituir a tributação autónoma com respeito às despesas e encargos das empresas com utilização de viaturas.
YY) Também aí o legislador presume, porque acha isso provável, e presume igualmente de modo implícito (chega-se lá, igualmente, pela identificação da ratio da norma) que o uso da viatura terá também uma componente privada, de remuneração escondida do trabalhador, donde compensar-se as consequências dessa suspeição de evasão fiscal, com uma tributação autónoma.
ZZ) Quid juris se o contribuinte atingido por aquela norma anti-evasão, elidir a presunção que subjaz à norma em causa? Continua ela a aplicar-se como se nada fosse?
AAA) Não continua.
BBB) Como bem assinalou e decidiu o STA, no acórdão de 11.10.2017, proferido no processo n.º 0880/16 (CASIMIRO GONÇALVES, FRANCISCO ROTHES, ARAGÃO SEIA; sublinhados nossos):“Na verdade, tendo em atenção o princípio da igualdade, na vertente da imposição de imposto segundo a capacidade contributiva e do objectivo constitucional da «repartição justa dos rendimentos e riqueza» (cfr. nº 1 do art. 103º da CRP), aquela imputação de matéria colectável considerando como valor de realização o resultante da posterior avaliação para efeitos de IMT, há-de reconduzir-se, como diz a sentença, a uma presunção legal ou, até, a uma ficção legal que, face ao disposto no art. 73º da LGT (que afasta expressamente, no domínio das normas de incidência tributária, a possibilidade de existência de presunções inilidíveis) deverá ter-se por ilidível. (Cfr. o ac. do STA, de 9/4/2003, proc. nº 0320/03.).
(…)
Em situações deste tipo, está-se perante a aplicação de presunções contidas em normas de incidência objectiva (conceito em que se englobam as normas sobre determinação da matéria tributável de natureza substantiva, como é jurisprudência assente do TC), pelo que os interessados podem ilidi-las, ao abrigo do disposto no art. 73° da LGT, e fazer uso do procedimento de ilisão de presunções previsto neste art. 64° do CPPT; é admissível ilidir as presunções implícitas porque o que se pretende «sempre» é tributar rendimentos reais e não inexistentes e é por esta razão, de se querer «sempre» tributar valores reais, que o art. 73° da LGT permite «sempre» ilidir presunções.
CCC) E referindo-se expressamente ao momento temporal durante o qual a lei não previa ainda expressamente a possibilidade de ilisão da presunção implícita na norma (tal como não prevê expressamente ainda hoje para a tributação autónoma aqui em causa, relacionada com a utilização de veículos), explica o STA no mesmo acórdão: “É que, independentemente de só a partir daquela data a lei ter conferido aos titulares de rendimentos da Categoria B a faculdade de suscitar o procedimento previsto no art. 129° do CIRC, (Sobre a matéria atinente à forma, regras e meios impugnatórios, aplicáveis no âmbito deste procedimento, cfr. os acs. do STA, de 09/03/2016, proc. nº 820/15, de 03/12/2014, no proc. nº 0881/12 e de 06/02/2013, no proc. nº 0989/12.) ou independentemente de ser admissível requerer 2ª avaliação para efeitos de IRS, IRC e IMT (nº 3 e nº 8 do art. 76º do CIMI, na redacção dada pelo art. 93º da Lei nº 64-A/2008, de 31/12) essa possibilidade de ilisão da presunção (ou ficção) de rendimentos já então se impunha face às normas constitucionais e à lei ordinária (LGT).”.
DDD) No caso, mutatis mutandis, e parafraseando o citado acórdão do STA, as presunções em matéria tributária podem ser implícitas e aqui, na tributação autónoma de despesas e encargos com a utilização de veículos, tem de se entender que contém presunção implícita, já que não se pode aceitar, à face do princípio constitucional da igualdade, que se queiram tributar a título compensatório situações de evasão fiscal inexistentes. As ficções ou presunções de existência de evasão fiscal foram introduzidas na lei no pressuposto de que corresponde à realidade a presunção da sua existência.
EEE) Continuando a parafrasear o STA, com adaptações mínimas ao caso concreto (que de nada mais carece esta situação), é esta a interpretação que está em sintonia, por um lado, como princípio enunciado no art. 11°, n° 3, da LGT de que, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias «deve atender-se à substância económica dos factos tributários» e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários e não se compagina com a existência de casos especiais de tributação com base em situações em que é conhecida ou é apurável a real utilização das viaturas a que se referem os encargos e despesas sujeitas a tributação autónoma: como a tributação de situações de evasão fiscal inexistentes conduziria a que quem nelas não incorreu fosse tributado como quem nelas incorreu e tal ofende o princípio da igualdade, é «sempre» possível demonstrar a realidade, ilidindo o que se presume nas normas de tributação compensatória de presuntiva evasão fiscal.
FFF) Continuando com o STA (com adaptações mínimas, como se referiu), pode tributar-se com base em ficções de evasão fiscal, quando a lei a presume, mas só se pode fazê-lo porque se presume que a evasão fiscal corresponde à realidade, admitindo-se «sempre» a prova de que há dissonância entre a evasão ficcionada/presumida e a realidade.» (Jorge de Sousa, loc.cit. anotação 5, pp. 589-591, concluindo que também na tributação autónoma de encargos e despesas com utilização de veículos se estabelece uma presunção implícita de evasão fiscal.”.
GGG) Finalizando, ainda com o STA, independentemente de se conferir ou não expressamente a faculdade de elidir a presunção implícita na norma, essa possibilidade de ilisão da presunção (ou ficção) de evasão fiscal impõe-se face às normas constitucionais e à lei ordinária (LGT).
HHH) É de notar que esta doutrina foi vindicada ainda pelo acórdão do STA de 08.11.2017, proferido no processo n.º 01108/14 (FONSECA CARVALHO, ISABEL MARQUES DA SILVA e PEDRO DELGADO), pelo acórdão do TCAS de 22.02.2018, proferido no processo n.º 1412/10.7BESNT (CATARINA ALMEIDA E SOUSA, ANA PINHOL e JOAQUIM CONDESSO), e por inúmeras decisões arbitrais.
III) O acórdão arbitral fundamento do presente recurso, e outros que supra se referenciaram, mais não fez do que aplicar esta sólida, e sã (constitucionalmente falando, e não só), jurisprudência e doutrina, ao caso da tributação autónoma sobre despesas e encargos com a utilização de viatura, e presunção implícita subjacente à mesma de evasão fiscal na utilização dessas despesas (presunção de utilização, parcial ou total, fora da actividade da empresa). Esta presunção implícita é susceptível de ilisão.
e) A título subsidiário: inconstitucionalidade do sentido normativo, oposto ao da decisão arbitral fundamento, da decisão arbitral recorrida.
JJJ) Saber como se deve interpretar-aplicar a tributação autónoma sobre encargos e despesas com a utilização de viaturas, é uma questão da exclusiva competência da jurisdição fiscal encimada pela secção de contencioso tributário do STA.
KKK) O que opõe a recorrente à decisão arbitral recorrida é justamente, antes de tudo o mais, uma divergência sobre a interpretação-aplicação da tributação autónoma aqui em causa, conforme acima passado em revista.
LLL) Naquela questão primeira e principal, as normas e princípios constitucionais só intervém a título auxiliar, na medida em que a interpretação conforme à Constituição é um dos cânones do processo e metodologia de interpretação do direito ordinário, no caso direito fiscal.
MMM) Só a título secundário, subsidiário, a recorrente invocou e invoca a inconstitucionalidade do regime tributário aqui em causa: caso a norma seja aquilo que a decisão arbitral diz que é, então ela é inconstitucional, como se defendeu em sede arbitral, e continua a defender-se.
NNN) Acresce que a inconstitucionalidade da interpretação que a decisão arbitral recorrida optou por perfilhar é uma das razões, se bem que uma das últimas, que leva a decisão arbitral fundamento (e outras decisões arbitrais, supra referenciadas com transcrição dos trechos relevantes) a rejeitá-la. E que leva a rejeitá-la o TCAS, no obter dictum supra referenciado. Em aplicação do princípio da interpretação conforme à constituição
OOO) Supra desenvolveu-se também a questão da inconstitucionalidade.
PPP) Aqui vai-se só sinteticamente recordar a intervenção do Tribunal Constitucional na matéria paralela da norma que, à data sem prever também ex professo faculdade de ilisão de presunção alguma, se limitava simplesmente, com o intuito de combater a elisão fiscal, a decretar que o preço de venda do imóvel relevante para tributação da mais-valia, haveria de ser o valor patrimonial tributário (relevante para efeitos de IMT), se superior ao preço escriturado.
QQQ) Decidiu e julgou o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 211/2017, constitucionalmente inadmissível ver-se na razão implícita subjacente à troca do preço declarado pelo VPT (presunção implícita de evasão fiscal), uma presunção inilidível.
RRR) Donde suscitar-se a título subsidiário (isto é, aplicável somente caso se conclua que a lei é como a decisão arbitral recorrida diz que é, ou algo de similar) as seguintes inconstitucionalidades: Inconstitucionalidade das normas constantes do n.º 3 (no segmento da tributação autónoma sobre encargos com veículos ligeiros de passageiros e motociclos) e do n.º 9 (no segmento da tributação autónoma sobre encargos dedutíveis com compensação ao trabalhador pelo uso de viatura própria ao serviço da entidade patronal, não facturados a cliente, vulgo “abonos quilométricos”), interpretadas no sentido de que não integram presunção (i) de uso pessoal ou privado, máxime pelos trabalhadores e colaboradores da empresa, dos veículos a que se referem os encargos tributados, e de abonos quilométricos acima do custo incorrido pelo trabalhador ao serviço da empresa, cuja prova em contrário deva ser admitida (cfr. a pág. 12 da decisão arbitral),por violação do princípio da igualdade, que manda tratar o desigual desigualmente (salvo impraticabilidade, o que não é a priori o caso) e, pela mesma razão, por violação do princípio da capacidade contributiva, do princípio da tributação fundamentalmente do rendimento real e do princípio da proporcionalidade, que implicam igualmente o tratamento desigual do que é desigual, salvo impraticabilidade, o que não é a priori o caso. Violação, pois, do artigo 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da Constituição.
f) A intensidade do ónus da prova na ilisão da presunção
SSS) Numa outra decisão arbitral, felizmente caso único até à data, a proferida no processo n.º 576/2019-T, defendeu-se, depois de se concluir que não havia presunção implícita na tributação aqui em causa, que de todo o modo mesmo que houvesse seria este o ónus da prova: prova absoluta de factos negativos, no caso, “que não ocorra em caso algum utilização pessoal”, etc. Prova diabólica humanamente impossível de realizar por esse standard.
TTT) Este critério normativo é constitucionalmente inaceitável, pela mesmíssima razão que o são essas normas fiscais quando interpretadas como não contendo qualquer presunção susceptível de ilisão.
UUU) Com efeito, dizer-se que a norma não contém presunção susceptível de ilisão, ou pedir se uma prova diabólica, impossível de se realizar fora da hipótese extrema, e ilegal, de filmagem em contínuo dos carteiros e outros colaboradores, é o mesmo no que ao direito, ciência prática e de regulação social, possa importar.
VVV) Donde esta inconstitucionalidade, indissociável da primeira relativa ao entendimento normativo de que nenhuma presunção há, que se contém nesta:
Inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil (ou do artigo 73.º da LGT),interpretada como dela se extraindo o critério normativo de que a intensidade da prova exigida para efeitos de ilisão de presunção implícita nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do CIRC, qual seja a ilisão de presunção de empresarialidade parcial dos gastos ou, na outra face da mesma moeda, de utilização pessoal dos gastos, seria o de que “não ocorra em caso algum utilização pessoal” e/ou (ii) “que se verifique que a utilização das viaturas seja, em termos permanentes e de modo exclusivo para finalidades próprias da atividade empresarial da Requerente” por violação do princípio da igualdade, do princípio da capacidade contributiva, do princípio da tributação fundamentalmente do rendimento real e do princípio da proporcionalidade, em especial na vertente da proibição de excesso e da justa medida. Violação, pois, do artigo 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da Constituição.
WWW) Especificamente sobre o critério normativo da intensidade da prova exigida, veja-se o que explica com elegância JOSÉ PEDRO CARVALHO na sua declaração de voto no processo n.º411/2016-T (pág. 46 e segs. da versão PDF no site do CAAD), veja-se a decisão arbitral proferida no processo n.º 503/2017-T (AUGUSTO VIEIRA - pág. 32 da versão PDF) e veja-se a decisão arbitral proferida no processo n.º 285/2017-T (JOSÉ BAETA DE QUEIROZ, FERNANDO ARAÚJO e HENRIQUE FIÚZA - págs. 99 a 103 da versão PDF no site do CAAD).
g) Considerações finais, em especial sobre argumentário disperso da AT
XXX) Faz algum sentido que a frota de motociclos dos CTT para entrega de objectos postais, pouca ou nada atractiva para utilização pessoal (caixa inamovível no lugar do pendura, sinais identitários por todo o lado) e dotada de um controlo de utilização fortíssimo para garantir a sua utilização exclusiva na actividade de distribuição postal, seja, em contraste com os veículos designados de UBER, sujeita a tributação autónoma? Cfr. a ficha doutrinária extraída do “Processo 2017 2097 - PIV 12210, sancionado por despacho de 2017-10-19, da Diretora de Serviços do IRC”, consultável no seguinte link:(http://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/informacoes_vinculativas/rendimento/circ/Documents/PIV_12210_2097_2017_DSIRC.pdf).
YYY) Contrariamente ao que a AT tentou invocar, não há incompatibilidade entre (i) a possibilidade de elidir a presunção subjacente a esta tributação autónoma sobre encargos pela utilização de veículos e (ii) o artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC, como supra se desenvolveu.
ZZZ) E se houvesse ela seria prévia e independente da questão da presunção elidível, como supra se mostrou igualmente.
AAAA) A ausência de incompatibilidade está igualmente rebatida na decisão arbitral proferida no processo n.º 285/2017-T (JOSÉ BAETA DE QUEIROZ, FERNANDO ARAÚJO e HENRIQUE FIÚZA), e bem assim no processo arbitral n.º 649/2016-T.
BBBB) A ratio da espécie de tributação autónoma aqui em causa não é uma qualquer finalidade ambiental, contrariamente ao que a AT tentou também invocar in extremis, como supra se desenvolveu.
CCCC) Em síntese, é a excepção para veículos eléctricos à tributação que é motivada por razões ambientais, e não a tributação-regra.
TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO,
- DEVE SER ADMITIDO O PRESENTE RECURSO POR SE VERIFICAREM OS PRESSUPOSTOS LEGAIS PARA O EFEITO,
- DEVE SER ANULADA A DECISÃO ARBITRAL RECORRIDA,
- E DEVE SER EMITIDO ACÓRDÃO POR ESTE TRIBUNAL DECIDINDO A QUESTÃO CONTROVERTIDA NOS TERMOS PETICIONADOS, COM A CONSEQUENTE ANULAÇÃO PARCIAL DA AUTOLIQUIDAÇÃO DE TRIBUTAÇÃO AUTÓNOMA EM IRC DO EXERCÍCIO DE 2014 DO GRUPO FISCAL CTT, NO QUE RESPEITA AO MONTANTE DE € 403.735,91, POR VIOLAÇÃO DE LEI, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE O REEMBOLSO À RECORRENTE DO MONTANTE DE € 403.735,91, ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS À TAXA LEGAL CONTADOS DESDE 1 DE FEVEREIRO DE 2019 ATÉ INTEGRAL REEMBOLSO.»

1.2. Admitido o recurso foi cumprido o disposto no artigo 25.º, n.º 5, do RJAT.

1.3. A Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
«A. serão requisitos de admissibilidade do recurso,
a. a existência de contradição entre uma decisão arbitral e uma outra decisão arbitral ou acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou do Supremo Tribunal Administrativo;
b. o trânsito em julgado da decisão fundamento;
c. a existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito; e,
d. desconformidade entre a orientação perfilhada na decisão impugnada e a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
B. Salvo o devido respeito, o recurso apresentado falha na verificação dos pressupostos, não obstante a Recorrente, de forma enviesada, tentar urdir argumentos onde empreende uma pretensão recursiva que assenta numa lógica que se abstrai em absoluto dos contornos fácticos das situações subjacentes, que tendo embora alguns pontos em comum, apresentam diferenças de relevo, como infra se verá.
C. No caso concreto, não há similitude de factos (por se tratarem de exercícios diferentes) e por não se debruçarem sobre os mesmos exactos factos,
D. nem de direito (porquanto as redacções dos normativos aplicáveis sofreram alterações) não havendo, por conseguinte, qualquer divergência da decisão final.
E. A ora Recorrente é contribuinte sujeito a IRC pelo regime geral de acordo com o art.º 3.º do CIRC, sendo tributado através do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS) previsto nos art.ºs 69.º e seguintes do CIRC, e constituindo-se como a empresa dominante do Grupo.
F. Por outro lado, a Requerente na decisão fundamento é uma entidade que faz parte de um grupo fiscal de empresas dominada por uma outra empresa.
G. Note-se que, a decisão recorrida respeita a situações tributárias relativas ao período de tributação de 2014 e a decisão fundamento é referente a situação tributária referente ao período de tributação de 2009, pelo que, ao menos, há que fazer referência às diferentes redacções das normas em causa.
H. A matéria que foi objecto de pronúncia na decisão arbitral recorrida, proferida no Processo n.º 323/2019-T reporta-se à sujeição a taxas de tributação autónoma, nos termos dos n.º 3, 6 e 9 do art.º 88.º do CIRC, dos encargos suportados pela Requerente e seu Grupo Fiscal com motociclos para distribuição postal, com viaturas ligeiras de passageiros caracterizadas como Viaturas de Serviços Geral e com compensações pelas deslocações em motociclos próprios (abonos quilométricos) aos carteiros pela distribuição de correio, no exercício de 2014.
I. Por seu turno, na decisão arbitral fundamento, proferida no processo n.º 628/2014-T estavam em causa só e apenas os n.ºs 3, 5 e 6 do art.º 81.º na numeração da redacção em vigor à data dos factos, i.e., encargos relativos a motociclos.
J. Pelo que é manifesto, repita-se, que não há similitude factual entre os dois arestos arbitrais.
K. Quanto ao direito, não obstante a Recorrente afirmar que não existe qualquer alteração legislativa entre a data em que foi proferida a decisão fundamento e aquela em que foi proferida a decisão arbitral recorrida, asseverando mesmo que o quadro legislativo convocado em ambas as decisões é o mesmo (cf. art.º 65.º das doutas alegações de recurso).
L. Tal afirmação não tem respaldo na realidade, porquanto, como vimos de verificar, estamos perante redacções normativas dispares, referentes a realidades distintas e/ou nem sempre coincidentes.
M. Sobre as tributações autónomas há uma qualquer presunção de “empresarialidade”?
N. A questão controvertida no presente recurso prende-se em saber se a sujeição a tributação autónoma em IRC dos encargos suportados pela Requerente e seu Grupo Fiscal com motociclos para distribuição postal, com viaturas ligeiras de passageiros caracterizadas como Viaturas de Serviços Geral e com compensações pelas deslocações em motociclos próprios (abonos quilométricos) aos carteiros pela distribuição de correio, no exercício de 2014, na parte em que não estão sujeitos a IRS, nos termos dos números 3 a 6 do art.º 88.º do CIRC, é afastada quando aqueles bens estão exclusivamente afectos ao serviço da actividade da ora Recorrente (questão factual que não se coloca nos exactíssimos mesmos factos na decisão fundamento, como já supra se referiu).
O. Prende-se em saber se, enquanto norma de incidência, os n.ºs 3, 6 e 9 do art.º 88.º alberga ou não uma presunção ilidível, nos termos e para os efeitos do art.º 73.º da LGT, passível de ser afastada através de produção de prova que afirme a exclusiva “empresarialidade” das despesas eleitas como factos tributários.
P. Sobre esta temática a ora Recorrida, desde já, dá por integralmente reproduzida a Resposta apresentada nos autos do processo arbitral n.º 323/2019-T, cuja decisão é agora recorrida e que ora junta como Doc. 1.
Q. De um ponto de vista civil, as presunções, sejam elas absolutas/inilidíveis ou relativas/ilidíveis, caracterizam-se por, quando perante a dúvida sobre os contornos de certo facto ou situação a regular, a regra de direito supõe que esses contornos são os de outro facto ou situação previstos numa outra regra jurídica.
R. Ora, analisada a redacção do art.º 88.º do CIRC, conclui-se que o legislador não pretendeu delinear os contornos da despesa com os encargos – que consubstancia o facto tributário sujeito à incidência da tributação autónoma – por recurso aos contornos que delineiam outro facto, previstos numa outra regra jurídica.
S. Isto é, a norma aqui em causa, art.º 88.º do CIRC, não tratou de presumir um determinado montante a ser tributado a título de encargos com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, nem tratou de presumir a respectiva base tributável do facto tributário, tendo, antes, se limitado a elencar realidades a que resolveu dar relevância sob o ponto de vista da tributação, evidenciados em certas despesas eleitas pelo legislador e incorridas pelas pessoas colectivas, alvo de incidência das tributações autónomas.
T. O art.º 88.º, n.º 3, 6 e 9 do CIRC, não contém nenhuma presunção de empresarialidade parcial, não aludindo, em lado algum da redacção da norma, que a tributação autónoma apenas incida sobre os gastos aí elencados, quando os mesmos sejam incorridos em fins alheios aos que prosseguem o respetivo escopo social.
U. Aliás, o n.º 5 do art.º 88.º do CIRC é bem claro quanto ao que se deve entender por encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, definindo, mais à frente, que assim se consideram as depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.
V. A invocação do art.º 73.º da LGT, quanto à possibilidade de elidir presunções presentes em quaisquer normas de incidência, tem todo o senso quando essas normas de incidência contêm em si, expressa ou de modo sugestionado, que não por escrito, presunções conducentes à tributação.
W. Deveria ser o teor do art.º 88.º do CIRC a disponibilizar indícios claros e concretos para que o intérprete pudesse da sua redação retirar a “presunção de empresarialidade parcial” da despesa suportada com viaturas ligeiras e mistas.
X. A presunção de “empresarialidade parcial” deveria, pois, constar e resultar da leitura do teor do art.º 88.º do CIRC, e não por interposta leitura do art.º 73.º da LGT, que estabelece a regra de que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
Y. Ao ficcionar uma presunção inexistente no corpo da norma, o intérprete está a adulterar o espírito do art.º 88.º do CIRC, adicionando-lhe um pretenso elemento condicionador da tributação que aí não existe, somente por si fabricado e a partir da redacção de um art.º previsto na LGT, o art.º 73.º, que prevê uma teoria geral a aplicar às normas de incidência, quando essas mesmas normas alberguem em si presunções queridas e impostas pelo legislador.
Z. É neste preciso sentido que a interpretação veiculada pela Recorrente, e na qual se escora a decisão fundamento, se mostra contrária à Constituição da República Portuguesa (“CRP”), violando o princípio constitucional da legalidade, patente no n.º 2 e 3 do art.º 103.º, CRP, nos seus corolários da reserva de lei parlamentar e da tipicidade e princípio da eficiência fiscal, patente no art.º 103.º, n.º 1 da CRP.
AA. Isso, por que, colide com os mencionados princípios constitucionais uma interpretação normativa que sustente a existência de uma presunção de empresarialidade parcial presente no art.º 88.º, do CIRC, por recurso à aplicação inflexível da regra presente no art.º 73.º da LGT, que estipula que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
BB. Observando a redação do n.º 3 e 6 do art.º 88.º, à data dos factos, estavam (e permanecem) excluídos de tributação:
• Veículos movidos exclusivamente a energia elétrica;
• Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo;
• Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do art.º 2.º do Código do IRS.
CC. Se alguma dúvida ainda persistisse sobre a bondade da interpretação destes normativos legais acolhida pelo Tribunal arbitral, ela foi inteiramente dissipada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2018.
DD. Com efeito, o art.º 264.º da referida Lei aditou ao Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) o art.º 59.º-H (Produção cinematográfica e audiovisual), com a seguinte redação:
«Os sujeitos passivos que beneficiem do incentivo à produção cinematográfica e audiovisual, nos termos legalmente estabelecidos, são excluídos do disposto no n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC relativamente aos encargos que suportem com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos e motociclos, destinados a serem utilizados na produção cinematográfica e audiovisual.»
EE. Pois bem, a redacção deste normativo revela que o legislador, ao conceder uma isenção de tributação autónoma aos encargos suportados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do art.º 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos e motociclos, destinados a serem utilizados na produção cinematográfica e audiovisual, explicitou, sem qualquer reserva, que as viaturas utilizadas na actividade principal desenvolvida pelas empresas cabem no âmbito de incidência que resulta do n.º 3 do art.º 88.º do CIRC, deitando por terra, desta forma, as teses peregrinas elaboradas à volta da existência, nesta norma, de uma presunção de “empresarialidade” parcial.
FF. Não restam dúvidas de que, o legislador e a lei não quiseram excluir da tributação os veículos pertencentes a uma frota empresarial, mesmo que a sua utilização se restrinja exclusivamente ao uso profissional da actividade desenvolvida pelo sujeito passivo.
GG. Permitir que, por via de uma presunção –inexistente, saliente-se–, é instrumentalizar o regime das presunções com o propósito de, a par dos factos que foram excluídos de tributação pelo legislador, poder o sujeito passivo, por meio de elementos probatórios, obter a exclusão de tributação de outros factos que, originariamente, eram tributáveis e que a lei nunca pretendeu eximir ao tributo.
HH. Presunção que o legislador entendeu consagrar na redacção de um outro número do art.º 88.º CIRC, propondo que o sujeito passivo prove que as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável a que se refere o n.º 1 do art.º 63.º-D da Lei Geral Tributária, ou cujo pagamento seja efetuado em contas abertas em instituições financeiras aí residentes ou domiciliadas correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado.
II. A interpretação normativa sustentada na decisão arbitral fundamento traduz-se no desprezo da imposição legal presente no n.º 2 do art.º 103.º da CRP, de que os elementos essenciais do imposto, entre eles a incidência e a delimitação negativa de incidência, devem somente ser fixados por lei, não podendo, nem devendo o intérprete distinguir aquilo que a lei não distingue.
JJ. Assim como se traduz no desprezo pela necessidade premente de o legislador concretizar o elenco dos factos tributários que devem ser sujeitos a tributação e o elenco dos factos que não devem ser sujeitos a tributação, o que coloca em risco a precisão, a clareza e a determinabilidade das normas e dos atos tributários, com especial relevo para aqueles que se referem aos elementos essenciais do imposto.
KK. Ora, qualquer interpretação que sustente a tese defendida pela Recorrente e escorada na decisão fundamento é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da proteção jurídica e da confiança (n.º 2 e 3 do art.º 103.º CRP), quando interpretado no sentido de albergar em si uma presunção ilidível, nos termos e para os efeitos do art.º 73.º da LGT, capaz de afastar a tributação sobre encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do art.º 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, sempre que seja possível provar a sua indispensabilidade para o funcionamento eficiente das empresas.
LL. Para além da violação do princípio constitucional da legalidade, nos seus corolários da reserva de lei parlamentar e da tipicidade, a interpretação normativa de que o art.º 88.º do CIRC, nos números que ora nos ocupam, como norma de incidência, alberga em si uma presunção ilidível de empresarialidade parcial através da aplicação do art.º 73.º, viola dois princípios subjacentes à redacção do n.º 1 do art.º 103.º CRP,
MM. i.e, e não é facto despiciendo para a boa decisão da causa, o da eficácia e eficiência fiscais, e que se concretizam na ideia concreta e real de que o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, o que deverá ser alcançado da forma mais eficiente possível.
NN. Descendo ao caso concreto das tributações autónomas, não é demais lembrar novamente a forma como o legislador delimitou a factualidade que integra a previsão das normas do n.ºs 3 e 6 do art.º 88.º, na redação em vigor em 2014: estão sujeitos a tributação autónoma os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas no art.º 7.º/1-b) do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo:
• Os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica;
• As viaturas, motos e motociclos afectos à exploração de serviço público de transportes destinados a serem alugados no exercício da actividade normal do sujeito passivo;
• As viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) do art.º 2.º/3-b) do Código do IRS.
OO. Naturalmente, os objectivos que presidiram à instituição das tributações autónomas, no que em particular concerne a viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, não se mantiveram estáticos, desde a sua criação.
PP. As tributações autónomas incidem sobre um conjunto heterogéneo de realidades muito díspares – despesas ou encargos e rendimentos – cuja justificação aponta também para finalidades distintas que, tanto a doutrina como a jurisprudência, têm abundantemente abordado.
QQ. Se, no caso das despesas não documentadas ou nos pagamentos a entidades localizadas em jurisdições com regimes fiscalmente privilegiados (art.º 88.º, n.ºs 1, 2 e 8, do CIRC), os objetivos associados às tributações autónomas se identificam em muitos aspectos com os prosseguidos pelo n.º 1 do art.º 65.º do mesmo Código, que, no essencial, visam enfrentar situações que configuram fenómenos de evasão ou fraude fiscais, noutros casos, como o das tributações autónomas dos encargos suportados com veículos, as motivações da tributação autónoma têm evoluído no sentido de alguma diversificação, que se têm traduzido na associação das razões de natureza puramente fiscal outras de natureza extrafiscal.
RR. Numa linha de aprofundamento dos objetivos extrafiscais atribuídos à tributação autónoma dos veículos, outras alterações foram introduzidas em 2014:
• Primeiro, através da Lei 2/2014, de 16 de janeiro, que estratificou as taxas em função do valor de aquisição dos bens, de forma a favorecer as viaturas de menos cilindrada;
• Seguiu-se a Lei 82-C/2014, de 31 de dezembro, que acrescentou as viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do art.º 7.º do Código do Imposto sobre Veículos;
• Por fim, a Lei 82-D/2014, de 31 de dezembro (vulgo Reforma da Tributação Ambiental), que reduziu as taxas de tributação autónoma às viaturas ligeiras de passageiros híbridas plug-in e às viaturas ligeiras de passageiros movidas a GPL ou GNV (n.º 17e 18 do art.º 88.º).
SS. Relatório elaborado pelo Grupo para o estudo da política fiscal, competitividade, eficiência e justiça do sistema fiscal, de 03-10-2009 que:
«Por fim, e sobre as tributações autónomas, cuja receita em 2006 ascendeu a 205 milhões de euros, o relatório específico apresenta a resenha legislativa da evolução desta forma tributação, e manifesta a preocupação pela tendência para a extensão do seu campo de aplicação que pode subverter princípios fundamentais da tributação do rendimento. Reconhece, porém, pragmaticamente que, dados os constrangimentos da receita, não se antevê alternativa válida para a sua substituição imediata por outro regime.»
TT. A importância que as tributações autónomas assumem no âmbito do IRC, para concretização dos princípios constitucionais da eficácia e da eficiência fiscal, ínsitos no artigo 103.º, n.º 1 da CRP, é evidenciada no acórdão arbitral proferido no processo n.º 659/2014-T 25:
«Vale a pena referir que a receita do IRC estimada para o corrente ano de 2015 é de cerca de 4.690 milhões de euros, ao passo que a receita estimada do IRS ascende a quase três vezes mais, remontando a 13168 milhões de euros.»
UU. Sendo certo que a evolução da receita proveniente das tributações autónomas se mantém praticamente incólume, em especial em tempos de crise, conforme é facilmente perceptível em https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/dgci/divulgacao/estatisticas/estatisticas_ir/Pages/Estatisticas_IRC.aspx
VV. Abrir um precedente interpretativo no sentido que vem sido há vários anos sindicado junto do Centro de Arbitragem e que é propugnado pela Recorrente, é perigoso e insustentável, quer pela mera interpretação jurídica, quer pela interpretação daquilo que é o também carácter redicticio das tributações autónomas e do peso que estas consubstanciam para os cofres do Estado,
WW. em especial nos hodiernos tempos que atravessamos, cujo esforço de despesa do Estado aumentou exponencialmente e todos são chamados a contribuir.
XX. A par de preocupações de percepção de receita fiscal, a tributação autónoma assentou também em razão das externalidades negativas provocadas pelos veículos (internalizando-as), foi dirigida para a consecução de objetivos extrafiscais, ligados às metas da proteção ambiental, de tal modo que, no limite, um sujeito passivo pode eximir-se completamente a esta imposição ou reduzir, em grande medida, o impacto da tributação, se orientar as suas opções no sentido pretendido pelo legislador.
YY. Neste sentido, o uso dos impostos para intervir activamente no desenvolvimento tem vindo a dar cada vez maior importância a aspectos qualitativos deste, como, por exemplo, a protecção e defesa do ambiente, e, ao lembrar que em Portugal a preocupação ambiental passou a ser contemplada com algumas medidas fiscais, dá conta que o Relatório da Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde (2014), indica que no quadro do CIRC uma dessas medidas é justamente a relativa à tributação autónoma dos encargos com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos.
ZZ. Aliás, esta preocupação do legislador e a discussão em fóruns doutrinais não é novidade, tendo sobre a matéria da concatenação entre impostos e o ambiente se debruçado Saldanha Sanches no derradeiro trabalho intitulado Justiça Fiscal.
AAA. Aí refere o insigne e saudoso Professor e fiscalista que:
«Todas as alternativas tributárias para uma maior eficiência energética devem ser ponderadas tecnicamente e respaldadas numa armadura constitucional inabalável, já que estamos num campo em que a justificação económica, técnica e jurídica de um tributo é a garantia da sua sobrevivência. O campo de actuação potencial é alargado, mesmo em matéria de taxas. Pense-se, por exemplo, no road pricing (taxas cobradas pelo acesso a cidades ou parte destas, como defendemos dever ser instituído em Lisboa); na revisão das tarifas de saneamento, na incorporação de uma forte componente ambiental na tributação dos resíduos sólidos urbanos; na possibilidade de onerar as taxas urbanísticas em relação a construtores energeticamente menos eficientes; na possibilidade de criação de taxas sobre certos tipos de resíduos ou tipos de comércio que o produzam em maior escala, etc. Não é, assim, na Constituição ou na lei que encontramos obstáculos a este tipo de políticas. Os obstáculos à sua concretização existem e são muitos, embora provenham todos da mesma zona: eles consistem na dificuldade de encontrar consensos sociais quando as políticas da energia atingem de forma profunda o modo como estamos a viver.
Também aqui, a justiça fiscal própria dos impostos ecológicos é refém dos interesses económicos e dos grupos de pressão.» Negrito e sublinhado nossos
BBB. Nas tributações autónomas, como noutros domínios em que estão em causa limitações à dedução de encargos que podem conter elementos de natureza pessoal e empresarial, o legislador fiscal recorre com frequência, por razões de simplificação e de operacionalidade das normas, a “tipificações legais”, baseado no princípio de que a separação entre a esfera privada e a esfera empresarial ou profissional torna-se muito difícil, senão impossível, de fazer ou de demonstrar, nomeadamente quando se trate de bens cuja utilização pode ser feita nas duas esferas.
CCC. A única concessão que o legislador se permitiu fazer é, tão-só, a relativa aos bens referidos no n.º 6 do art.º 88.º, em atenção ao facto de, em certas actividades, os veículos constituírem o principal suporte da exploração e, bem assim, para salvaguardar a não cumulação de tributação em IRS e em IRC.
DDD. Se o legislador tivesse pretendido inserir uma presunção de empresarialidade parcial tê-lo-ia feito, através da inserção de uma excepção similar à constante no número 8 da mesma norma, não o fez, não apenas pela dificuldade extrema em produzir prova da exclusiva empresarialidade da despesa, como, acima de tudo, a génese desta específica tributação acabou por se transformar ao longo do tempo em verdadeira preocupação reditícia, de arrecadação de receita, bem como de preocupação do ponto de vista ambiental, com a exclusão da tributação de veículos eléctricos
EEE. é através da liberdade de conformação legislativa que assiste ao legislador que faz com que centre o propósito das tributações autónomas na tributação da capacidade contributiva das empresas, através da eleição de despesas em que incorrem como factos tributários que evidenciam a dita capacidade contributiva.
FFF. Como tem vindo a ser defendido de forma consistente, os normativos dos n.ºs 3 a 6 do art.º 88.º não têm subjacente qualquer tipo de presunções legais, isto é, de ilações que a lei retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, como previsto no art.º 349.º do Código Civil.
GGG. As normas que estabelecem tributações autónomas são simplesmente normas de incidência objetiva,
HHH. assumindo o legislador que a tributação autónoma incide sobre os encargos relacionados com as viaturas tipificadas no número 3, e não abrangidas pelas exceções previstas no n.º 6 do art.º 88.º do CIRC, sejam tais encargos dedutíveis ou não dedutíveis nos termos dos art.ºs 23.º, 23.º-A ou 34.º, o que vale por dizer é de todo irrelevante que os bens em causa tenham uma utilização total ou parcial na actividade exercida pela empresa.
III. Como bem ensina Ana Paula Dourado:
«O legislador fiscal tem pois um espaço de liberdade para regulações generalizadoras, tipificantes e mesmo forfetárias, segundo tipos médios ou frequentes, desconsiderando diferenças e servindo assim o princípio da igualdade. A tipificação também serve o princípio da praticabilidade, reduzindo os meios humanos e financeiros disponíveis do Estado.» Negrito nosso
JJJ. Recordar que, o critério da “empresarialidade”, enquanto elemento de ilisão de presunção, emergiu exclusivamente no contexto das decisões arbitrais do CAAD, sem qualquer tipo de respaldo na doutrina ou na lei, uma vez que aquele termo, além de ter um significado indeterminado, nunca foi utilizado pelo legislador fiscal no CIRC, nomeadamente como crivo para aferir a dedutibilidade dos encargos para efeitos da determinação do lucro tributável.
KKK. Efectivamente, no CIRC o teste da dedutibilidade dos encargos suportados é efectuado com base no preenchimento dos critérios e enunciados nos art.ºs 23.º e ss. do CIRC, sendo de notar, porém, que, nos termos da redação actual do n.º 3 do art.º 88.º – como acima ficou dito – tanto encargos dedutíveis como os não dedutíveis cabem na incidência da tributação autónoma.
LLL. Na verdade, se a ratio da norma impositiva de tributação autónoma fosse o de meramente estabelecer uma presunção, o legislador teria formulado as normas reduzindo o seu alcance à mera distribuição ou inversão do ónus da prova, caso em que – hipoteticamente – determinaria apenas «os encargos relativos a viaturas presumem-se não exclusivamente afectos à actividade económica exercida pelo sujeito passivo», ou qualquer outra formulação equivalente.
MMM. Porém, como resulta linearmente da lei, não é essa a formulação, nem a mecânica própria da tributação autónoma, pois que as normas estabelecem uma verdadeira imposição fiscal:
iv. à verificação de uma previsão (realização de certas despesas)
v. associam uma consequência ao nível do Direito Tributário (a tributação),
vi. in casu, impõem a tributação autónoma, a título de IRC.
NNN. O art. 73.º da LGT não exige que o contribuinte possa ilidir as tipificações em todos os casos de incidência em sentido amplo, em especial, no quadro de tributações massificadas, desde que não se afastem da realidade e não colidam com o princípio da igualdade.
OOO. Refere Sérgio Vasques que:
«Os sistemas fiscais modernos estão povoados por normas de incidência assentes em juízos de normalidade e as presunções de que se serve o legislador são muitas vezes indispensáveis para garantir a igualdade tributária, que é sempre uma igualdade vivida, com todos os condicionalismos de ordem prática que rodeiam a aplicação da lei. O recurso a juízos presuntivos pode com certeza prestar-se a excessos e em certos casos sacrificar em demasia o princípio da capacidade contributiva; noutros casos pode revelar-se a única forma de lhe dar concretização mínima, ou de dar concretização a outros valores constitucionais que infundem a nossa fiscalidade.
Normas como as que limitam o direito à dedução em sede de IVA ou a dedução de custos em sede de IRC, com fundamento na “empresarialidade parcial” das despesas ou com fundamento em objectivos de ordem extrafiscal, não podem por isso ser consideradas liminarmente inconstitucionais por assentarem em juízos de tipo presuntivo e por não admitirem prova em contrário, tudo dependendo do equilíbrio de valores que encerrem.
É verdade que o princípio da capacidade contributiva aponta em primeira linha noutro sentido mas o combate à evasão e as razões da praticabilidade podem justificar o seu uso, como o podem fazer outros objectivos de ordem extrafiscal – seja o propósito de limitar as frotas automóveis das empresas, para protecção do ambiente, seja o propósito de limitar o recurso a remunerações em espécie, para protecção dos trabalhadores. Precisamente por isso, o seu controlo há-de fazer-se perguntando se o sacrifício que trazem ao princípio da igualdade é necessário, adequado e proporcionado à protecção dos valores em causa, como o será muitas vezes, e não tomando a igualdade como princípio absoluto, dando por adquirida a sua violação, para assim degradá-las em presunções ilidíveis É esta, de resto, a metodologia que segue o Tribunal Constitucional em acórdãos como os nº 451/2002, n.º 85/2010 ou n.º 753/2014, para concluir que certas regras que limitam a dedução de custos em sede de IRC são conformes à Constituição da República, ainda que não admitam prova em contrário. Deixa assim claro o tribunal que o combate à evasão e as exigências da praticabilidade podem constituir “razões de política legislativa” válidas e que a presunção inilidível da “empresarialidade parcial” de certas despesas pode servir para “assegurar os princípios materiais da igualdade e da justiça fiscal”. E deixa claro o tribunal que o controlo material destas normas não se faz por apelo ao artigo 73.º da LGT, tomando-as genericamente como presunções ilidíveis a afastar mediante prova em contrário, mas através do mesmo teste de proporcionalidade a que sujeitamos quaisquer outras normas que estejam em tensão com o princípio da igualdade tributária.» Sublinhado nosso
PPP. Conforme é referido na declaração de voto de vencida da árbitra Sofia Cardoso, formulada no processo n.º 649/2016-T 28:
«A prova de empresarialidade constitui um expediente, não objetivamente verificável, por si só de comprovar, bem como, de controlar com rigor e, por isso mesmo, o espírito do legislador terá sido o de uniformização e de equilíbrio na redação dos números 3 e 6 do artigo 88º do CIRC (…)».
QQQ. As tributações Autónomas são normas de incidência tout court, às quais subjazem instrumentos de política fiscal de significativa relevância, aferida pela receita que proporcionam e pelo leque de finalidades que lhe são cometidas, tais como:
i. evitar a hipertrofia de gastos, os quais diminuem, nos casos previstos pelas TA, artificialmente a capacidade contributiva dos seus destinatários, prejudicando deste modo a receita do Estado e, por conseguinte, os demais contribuintes;
ii. incentivar uma gestão empresarial transparente, por oposição à opacidade, sem comportamentos desviantes, quer através da exigência de justificação das despesas, quer delimitando e colocando fronteiras visíveis naquilo que na prática empresarial nem sempre é perceptível, i.e., encargos inseridos numa zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial;
iii. evitar as despesas excessivas e com isto promover a racionalidade de comportamentos (e.g. gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25% da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500, salvo se o seu pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50% por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período); 29
iv. evitar a economia paralela, através da exigência de justificação e documentação dos encargos;
v. Reduzir a vantagem fiscal que resulta para as empresas da realização de despesas que são dedutíveis mas não têm uma causa empresarial. (e.g. n.º 13 do art.º 88.º CIRC);
vi. Evitar a erosão fiscal também do lado do rendimento das pessoas singulares, tributando a atribuição de benefícios (e.g. utilização de veículos pelos trabalhadores; pagamentos de ajudas de custo), ou as indemnizações e quaisquer compensações devidas não relacionadas com a concretização de objectivos de produtividade previamente definidos na relação contratual, quando se verifique a cessação de funções de gestor, administrador ou gerente, ou ainda os as gastos relativos à parte que exceda o valor das remunerações que seriam auferidas pelo exercício daqueles cargos até ao final do contrato, quando se trate de rescisão de um contrato antes do termo, que de outro modo poderiam não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários;
vii. combater a evasão fiscal (e.g. a distribuição oculta de lucros/”lavagem de dividendos”; pagamentos efectuados a residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável); 31
viii. promover o primado do princípio da igualdade (n.º 1 do art.º 103.º da CRP) repartindo mais adequadamente a carga fiscal;
ix. penalizar, com o agravamento das taxas, as empresas que, apurando resultados fiscais negativos, mantêm a sua política de gastos em matéria de despesas de representação, ajudas de custo, compensação por deslocações ao serviço da empresa, indemnizações e bónus pagos a gestores, administradores ou gerentes.32 33
RRR. em suma, são verdadeiras normas de incidência - tipificadas em comportamentos médios - dissuasoras, compensatórias e de combate à fraude e à evasão fiscais englobando toda uma panóplia de fins que, concentradas na mesma forma de tributação, não encontram, repita-se, paralelo no ordenamento fiscal.
SSS. Para João Sérgio Ribeiro o que subjaz às tributações autónomas é, «….por um lado, atenuar ou anular a vantagem da dedução de custos que não sejam essenciais para o desenvolvimento da actividade empresarial e, por outro, compensar o não pagamento de impostos (cuja ocorrência é mais do que provável dada a natureza das despesas envolvidas) por parte dos terceiros que beneficiam dessas despesas. Tem, por conseguinte, como principal objectivo o combate à evasão fiscal. Isso porém não obsta a que se ligue, igualmente, este tipo de tributação, especialmente no que diz respeito às despesas não justificadas, ao combate à corrupção.» 34
TTT. Ainda que, intrinsecamente, seja esta a hermenêutica que subjaz às tributações autónomas, também não é despiciendo, tal como é percetível factualmente, re-assinalar o seu crescente peso nas receitas do Estado.
UUU. Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus, ou seja: onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir.
VVV. A admissibilidade das teses da “empresarialidade” além de revelarem debilidades, esvaziam a teleologia das tributações autónomas, retiram-lhes qualquer conteúdo prático-tributário o que, passe-se a redundância, tem como consequência final um efeito nulo daquele regime, seja nas práticas que visa evitar e desincentivar, seja, facto não desprezível, na arrecadação de receita fiscal.
WWW. Recuperando a tese da “empresarialidade” parcial, é de notar que esta encerra um ciclo vicioso fechado ou, em última análise, uma interpretação ab-rogante fazendo-nos voltar a 1990, porquanto, antes da instituição inicial das tributações autónomas na década de 90, a administração tributária via-se forçada a ponderar e a demonstrar, em sede inspectiva, a não afetação empresarial de cada bem e, consequentemente, a não consideração dos gastos relativos à sua aquisição ou utilização ou, noutros casos, dirigindo a tributação a quem beneficiava da sua utilização na esfera pessoal.
XXX. Foi uma realidade de profusa evasão fiscal que se observava na gestão de certas categorias de despesas pelos contribuintes, associada à inviabilidade operacional de a AT exercer o indispensável escrutínio sobre a elegibilidade de cada despesa (no caso dos veículos automóveis, isso implicaria a prova da utilização total ou parcial do bem fora do contexto empresarial e da medida dessa utilização, quando apenas parcial) que impeliu o legislador a encontrar formulas de incidência capazes de superar o extenso abuso e evasão fiscal centrados em certas categorias de despesas.
YYY. As tributações autónomas são, assim, uma das fórmulas encontradas pelo ordenamento jurídico tributário português para dar combate a algumas situações de abuso e evasão fiscal sistémica, ao lado de outras, em que pontificam as disposições especiais e geral antiabuso.
ZZZ. Volvidas quase três décadas sobre a instituição das tributações autónomas, pode-se dizer que, com o emergir da tese em crítica de que estas configuram não mais do que presunções de não afetação empresarial de certas despesas, estamos sob a ameaça de fechar o círculo e regressar à situação que existia antes da instituição das tributações autónomas, quando era necessária a prova de que a despesa (cada despesa per si) não se inscrevia no exercício da actividade empresarial.
AAAA. Porém, a situação que tal hipótese prenuncia, é agravada pelo facto de a AT nem sequer dispor de quadro legal para exercer qualquer escrutínio sobre as despesas em causa.
BBBB. Na verdade, em contestação dos litígios judiciais a AT já nada poderá fazer para refutar a prova de uma alegada afetação empresarial dos bens, ficando, assim, a prova exclusivamente à disposição dos SP.
CCCC. Por outro lado, facto de as tributações autónomas gerarem receita é uma mera decorrência da sua natureza de normas de incidência, facto que não lhes retira a sua teleologia primária que é a de evitar ou desmotivar práticas que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos tributários, poderão envolver situações de menor transparência fiscal, estimulando as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afectem negativamente a receita fiscal, pelo que, consequentemente o resultado será um incremento desta.
DDDD. O argumento que imputa às tributações autónomas o fim de visarem a coleta de receita fiscal, sem esclarecer em quê e em que medida esse desígnio reditício pode ser motivo de censura nas TA, obnubila que o objectivo de arrecadação de receita não é específico ou distintivo destas em relação a quaisquer outras normas de incidência tributária.
EEEE. A preocupação reditícia é transversal ao ordenamento jurídico tributário, constituindo, aliás a sua razão de ser. Não ocorre diferenciadamente nas normas relativas a tributações autónomas, não configurando anomalia ou patologia distintiva de quaisquer outras normas de incidência tributária.
FFFF. De resto, o entendimento defendido pela Requerente e acolhido por alguns, e só por alguns, tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD (única jurisdição, aliás, onde tal tese nasceu) tem sido fortemente criticado pela melhor doutrina produzida sobre esta questão.
GGGG. Pelo que se repudia, por incorrecta, a afirmação exaustivamente repetida nas doutas alegações de recurso de que a jurisprudência arbitral é avassaladora na adopção da tese propugnada pela Recorrente, não foi, não é e, ademais, tem sido exactamente ao contrário,
HHHH. basta, para tanto, verificar todos os votos de vencido nas decisões citadas pela Recorrente e, por fim, chamar aqui à colação, a título meramente exemplificativo, as decisões:
a. 516/2018-T 35
b. 448/2018-T 36
c. 433/2018-T 37
IIII. Ademais é prepóstera a tentativa da Recorrente de “colar” alguma jurisprudência arbitral e dos Tribunais Superiores sobre esta temática na tua excelsa peça,
JJJJ. é que essa tentativa falha na mera verificação silogística do iter da Recorrente, e, é assim, porquanto a premissa de que parte é a de que estamos perante uma presunção,
KKKK. que, o que é por demais evidente, não estamos.
LLLL. pelo que, a jurisprudência profusamente citada é totalmente descontextualizada, na medida em que os trechos, estrategicamente autonomizados, dizem respeito a temáticas que não correspondem àquela que aqui nos ocupa.
MMMM. Mais uma vez se recorde que, o critério da “empresarialidade”, enquanto elemento de ilisão de presunção, emergiu exclusivamente no contexto das decisões arbitrais do CAAD, sem qualquer tipo de respaldo na doutrina ou na lei, uma vez que aquele termo, além de ter um significado indeterminado, nunca foi utilizado pelo legislador fiscal no CIRC, nomeadamente como crivo para aferir a dedutibilidade dos encargos para efeitos da determinação do lucro tributável.
NNNN. Como refere Sérgio Vasques, obra citada, que:
«É evidente, porém, que pela rapidez com que produzem decisões e pelo carácter definitivo que estas têm à partida, os tribunais arbitrais tendem a amplificar os efeitos de qualquer guinada doutrinária mais súbita.
Uma decisão mais arrojada ou ditada por factualidade muito particular facilmente se pode transformar no ponto de partida para uma corrente jurisprudencial com alcance incerto e consequências imprevistas.
Mais ainda quando é certo que os contribuintes que recorrem à arbitragem a empregam por vezes como balão de ensaio, testando os tribunais arbitrais com pequenos processos em que se tenta fixar doutrina que se alargue depois a processos de maior dimensão.
Tudo isto faz parte das regras do jogo.
Mas tudo isto obriga-nos também a ponderar com maior cuidado o alcance das decisões que tomamos e os resultados a que nos conduzem.» Negrito e sublinhado nossos
Nestes termos, nos mais de Direito e com o mui douto suprimento de V. Ex.as., deve
a) o presente recurso não ser admitido desde logo porque se não encontram reunidos os requisitos que permitem a admissão do recurso para efeitos de uniformização de jurisprudência, nos termos do disposto no artigo 145.º do CPTA., ou, não se entendendo assim,
b) a presente instância ser suspensa, até à pronúncia do Tribunal Constitucional nos autos de recurso 71/20 apresentado pela ora Recorrente;
c) ser a presente recurso de uniformização ser julgado improcedente por não provado mantendo-se a decisão ora recorrida incólume na ordem jurídica, uniformizando-se a jurisprudência em consonância com o entendimento, na melhor aplicação do Direito, ali vertido e propugnado pela Recorrida.».

1.3. A excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta, notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1 do CPTA, emitiu douto parecer no sentido de o recurso ser admitido por estarem preenchidos os pressupostos para o seu conhecimento, e de a questão controvertida ser decidida de acordo com o propugnado na decisão arbitral recorrida.

1.4. O Tribunal Constitucional, após reclamação para a conferência, rejeitou o recurso interposto da decisão arbitral aqui também sindicada, ficando, assim, prejudicado o pedido da Recorrida no sentido de a instância ser suspensa até à decisão daquele pleito.

1.5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 92.º do CPTA, há que decidir.

2. Fundamentação de facto
2.1. Na decisão arbitral recorrida consta o seguinte julgamento da matéria de facto:
«A) A Requerente é a sociedade dominante do Grupo B... sujeito em 2014 ao RETGS e que integra as seguintes sociedades: i) A..., S.A.; ii) C..., S.A.; iii) D..., S.A.; iv) E..., S.A., contribuinte n.º...; v) F..., SGPS, S. A; vi) G..., S.A.; e vii) H..., S.A. .
B) No dia 1 de junho de 2015, apresentou a declaração de IRC, Modelo 22, do Grupo B... referente ao exercício de 2014, tendo sido apurado um valor de tributação autónoma de € 582.127,02.
C) A totalidade das despesas e encargos com veículos do Grupo B... e com abonos quilométricos pelo uso de viatura própria do trabalhador, sujeitas a tributação autónoma em 2014, ascendeu a um total de € 7.407.077,40.
D) A tributação autónoma liquidada com respeito a estas despesas e encargos foi de € 580.878,28.
E) A impugnação objeto destes autos circunscreve-se à tributação autónoma do exercício de 2014 que diz respeito a despesas e encargos com motociclos de distribuição postal e determinadas viaturas ligeiras de passageiros (denominadas Viaturas de Serviços Gerais) e aos encargos com abonos quilométricos concernentes a motociclos dos carteiros utilizados na atividade de distribuição postal do Grupo B... .
F) A tributação autónoma liquidada com respeito a estas despesas e encargos foi de € 403.735,91, dos quais € 170.142,6782 são referentes a encargos com motociclos para distribuição postal, € 120.571,55 referentes a encargos com Viaturas de Serviços Gerais (VSG) e € 113.021,69 respeitantes a abonos quilométricos a carteiros pela utilização dos seus motociclos ao serviço da distribuição postal do A... .
G) A Requerente, no dia 2 de janeiro de 2019, apresentou pedido de revisão oficiosa relativamente à referida autoliquidação, sustentando que os encargos com motociclos próprios e viaturas de serviços gerais, bem como com abonos quilométricos, são dotados de total empresarialidade, devendo considerar-se ilidida a presunção que determina a tributação autónoma nos termos do artigo 88.º do Código de IRC.
H) As empresas do Grupo B... definem diferentes giros de distribuição do correio, com a ponderação de uma multiplicidade de fatores, como sejam o tipo de correio a ser transportado (incluindo volumetria e peso), o número e frequência de paragens, o tipo de zona geográfica (urbana ou rural), o tipo de construção predominante (prédios ou moradias).
I) Para assegurar essa finalidade existem cerca de 4659 giros, sendo que a cada giro corresponde uma certa distância a ser percorrida pelo carteiro, o que exige a opção por um meio de locomoção adequado.
J) A opção é, por via de regra, realizada em função da distância a percorrer, para os giros mais curtos os carteiros deslocam-se a pé ou de bicicleta, para giros de 10 a 40 quilómetros utilizam veículos de baixa cilindrada, até 50 centímetros cúbicos e, para giros a partir de 40 quilómetros, utilizam motociclos de cilindrada superior, até 125 centímetros cúbicos, ou viaturas automóveis.
L) Cerca de 2000 giros são assegurados por motociclos, com a cilindrada de 50 ou 125 centímetros cúbicos.
M) A realização dos giros com recurso aos motociclos tem como justificação constituírem o meio de locomoção que, pelas suas características, a isso mais se adapta, nomeadamente, pela sua agilidade no trânsito, facilidade de estacionamento, custo de aquisição reduzido, manutenção simples e não dispendiosa e consumos reduzidos.
N) Naqueles giros em que as empresas do Grupo B... identificaram que o motociclo constitui o tipo de viatura mais adequado é dada a possibilidade ao carteiro de utilizar motociclo próprio em contrapartida de um “abono quilométrico”, determinado com base nos quilómetros estimados para os giros alocados àquele carteiro.
O) Os motociclos da frota da Requerente são afetos, por via de regra, a um giro e não a um carteiro, sendo a alocação dos motociclos efetuada em função dos Centros de Distribuição Postal (CDP), havendo rotação entre vários carteiros afetos ao mesmo giro.
P) Existem mecanismos de controlo da utilização dos motociclos da aludida frota, como os constantes do Manual de procedimentos para veículos de distribuição, destinados a dissuadirem os carteiros de os utilizarem para fins pessoais, designadamente a sua utilização está limitada ao horário de atividade social da Requerente e a obrigatoriedade de preenchimento diário do documento de controlo de utilização dos motociclos, no qual são identificados o giro e respetivos quilómetros percorridos, ficando arquivado por diversos anos.
Q) Os motociclos são dotados de uma caixa de carga, inamovível e apresentam os sinais identitários da Requerente.
R) O abastecimento dos motociclos deve ser realizado, em exclusivo, com recurso ao programa de combustível de frota, o qual identifica expressamente a viatura associada.
S) É obrigatório o parqueamento dos motociclos em instalações da Requerente nos CDP, onde ficam imobilizados entre o final de cada dia de trabalho e o início do dia seguinte, sendo as chaves dos motociclos entregues aos seguranças.
T) As lojas do A... estão dispersas por todo o país e carecem de uma organização logística que permita o contacto entre os vários pontos da organização.
U) Por isso, a Requerente dispõe ainda de uma frota de Viaturas de Serviço Geral (VSG), necessárias a manter o contacto entre as suas várias estruturas organizativas existentes em todo o território nacional.
X) Essa frota destina-se à manutenção do contacto entre os vários pontos da organização e com clientes.
Z) As Viaturas de Serviço Geral são veículos ligeiros de passageiros, por se destinarem ao transporte de pessoas e quando se deslocam a uma reunião são transportadas 3 a 4 pessoas.
AA) Em regra, as Viaturas de Serviço Geral estão identificadas com o logótipo da Requerente, tal só não acontece em relação a uma das funções realizadas com as aludidas viaturas, a fiscalização, em relação às quais é aconselhável que não exista essa caraterização.
BB) Para cada uma das direções do Grupo B... é atribuída uma dotação de Viaturas de Serviço Geral, de acordo com uma organização em pool.
CC) As Viaturas de Serviço Geral são utilizadas exclusivamente ao serviço da empresa e cada utilização requer o preenchimento de um Boletim de Viatura.
DD) Nas normas sobre a utilização das Viaturas de Serviço Geral constam a obrigatoriedade de parqueamento do veículo, a devolução da chave e boletim da viatura, sendo neste identificados o dia, o local de partida, o destino, os quilómetros à partida e à chegada e a hora de partida e de chegada.
EE) Com periodicidade mensal, a área de Recursos Físicos e Segurança da Requerente ou do Grupo B... analisa a informação recolhida e outra informação pertinente (como extratos de “via verde”), por forma a identificar desvios, tais como a utilização das viaturas fora do horário normal de trabalho (identificado, por exemplo, com base no detalhe da via verde), consumos médios de combustíveis superiores aos expectáveis em face dos destinos das deslocações e distâncias percorridas não justificadas face aos destinos das deslocações, sendo que, caso algum desvio não seja devidamente justificado e, consequentemente, fique indiciado um uso indevido da VSG, é instaurado processo interno de inquérito, o qual pode culminar em processos disciplinares.
FF) Naquelas hipóteses em que a Requerente pretende conferir aos seus trabalhadores a possibilidade de utilização pessoal das viaturas - Viaturas de Utilização Pessoal (VUP) - faz constar tal utilização de acordo escrito, sendo a utilização tributada na esfera dos trabalhadores.
GG) A Requerente no dia 10 de Fevereiro de 2019 foi notificada do indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
HH) O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 7 de Maio de 2019.».

2.2. Na decisão arbitral fundamento consta o seguinte julgamento da matéria de facto:

«A.1. Factos dados como provados

1- No âmbito da Ordem de Serviço n.º OI2013..., a DSIT procedeu a uma acção inspectiva externa de âmbito parcial na esfera da ora Requerente, relativa ao IRC do período de tributação de 2009.

2- Em resultado desta acção de inspecção, a Requerente foi notificada, em 17 de Julho de 2013, do Projecto de Conclusões de Inspecção Tributária (“Projecto de Conclusões”), o qual veio propor diversas correcções, conforme descrito na tabela infra:

3- Em 12 de Agosto de 2013 a Requerente procedeu à regularização do montante de imposto em falta, o qual ascendia a €49.021,74 (montante este que já inclui juros compensatórios).

4- A Requerente não exerceu o direito de audição prévia sobre o Projecto de Conclusões, pelo que, tendo procedido à regularização voluntária das correcções propostas, foi notificada em 23 de Agosto de 2013 do resultado da acção de inspecção, o qual não reflectiu qualquer correcção adicional.

5- A Requerente não se conformou com a correcção promovida pela DSIT relativa à tributação autónoma incidente sobre os encargos com viaturas, no montante de €45.262,07, pelo que em 10 de Dezembro de 2013 deduziu reclamação graciosa contra o acto de autoliquidação do IRC do exercício de 2009, na parte correspondente.

6- Os argumentos apresentados pela ora Requerente não foram acolhidos pela Autoridade Tributária, tendo a Requerente sido notificada, em 1 de Abril de 2014, do projecto de indeferimento de reclamação graciosa, tendo exercido o respectivo direito de audição prévia em 16 de Abril de 2014.

7- Os argumentos da ora Requerente não foram acolhidos pelos serviços de Inspecção Tributária, pelo que em 14 de Maio de 2014 a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, na qual a Divisão de Justiça Administrativa (“DJA”) manteve as correcções promovidas pelos Serviços de Inspecção Tributária.

8- A Requerente tem como actividade a fabricação, transformação, distribuição e comercialização de produtos alimentares.

9- Para o desenvolvimento da sua actividade de comercialização e distribuição de produtos alimentares, a Requerente necessita de colocar ao dispor dos seus funcionários veículos para a entrega dos seus produtos aos clientes.

10- No âmbito da prossecução da sua actividade de prestação de serviços de distribuição de produtos alimentares, a Requerente é proprietária de diversos motociclos que se encontram devidamente registados na sua contabilidade como activos tangíveis e aos quais se encontram associados diversos encargos, nomeadamente depreciações, seguros, manutenção e conservação e combustíveis.

11- A correcção ao imposto a pagar no montante total de € 45.262,07, indicada no quadro constante do ponto 3 supra, é relativa a encargos suportados pela Requerente no exercício de 2009, com os motociclos referidos no ponto que antecede.

12- Os motociclos supra mencionados são unicamente utilizados para a entrega dos bens alimentares e apenas durante o horário de funcionamento da A..., não sendo permitida a utilização dos mesmos a título pessoal pelos funcionários.

13- O Manual de Procedimentos interno de utilização dos motociclos da Requerente, dispõe que a utilização de motociclos pelos funcionários da Requerente se cinge, única e exclusivamente, ao exercício da sua actividade, referindo-se, expressamente, que os motociclos “destinam-se à realização de entregas ao domicílio”.

14- O mesmo Manual dispõe que cabe a cada colaborador a quem foi atribuída uma mota, a cada início e fim de período de trabalho, a responsabilidade pela recolha e estacionamento daquela na garagem ou parqueamentos afectos à Loja em causa, devendo igualmente proceder à devolução à equipa de gerência da Loja, das chaves da mota e da garagem/estacionamento.

15- Está também previsto no Manual de Procedimentos que a eventual utilização abusiva dos motociclos (nomeadamente para fins alheios à actividade da Requerente) constitui uma infracção disciplinar.

16- A utilização de viaturas comerciais revelar-se-ia inadequada para a actividade de entrega de produtos ao domicílio, na medida em que dificultaria a circulação dos colaboradores encarregues das entregas, quando comparada com a utilização de motociclos os quais, pela facilidade de circulação, permitem que seja realizado um maior número de entregas em menor tempo, aumentando a facturação.

17- Analisada a facturação mensal da Requerente em 2009, de acordo com a contabilidade da Requerente, a facturação decorrente de entregas ao domicílio tem o peso na facturação exposto na tabela infra:

IMAGEM

18- De acordo com a contabilidade da Requerente, facturação nos pontos de venda foi, em 2009, a constante da tabela infra:

19- A Requerente possui oficinas próprias e exclusivas, destinadas à reparação e manutenção dos motociclos da A..., certificadas e homologadas por uma reconhecida marca de motociclos (a ………), beneficiando das mesmas condições que qualquer concessionário da marca usufrui.

20- De acordo com a política comercial da Requerente, não há qualquer valor a somar ao da refeição, no caso de a mesma ser entregue ao domicílio, sendo que a quantia correspondente ao serviço de entrega não consta expressamente discriminada nas facturas que emite.

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.».

3. Fundamentação de Direito
3.1. Da admissibilidade do recurso
Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 25.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é suscetível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.
A este recurso, de acordo com o preceituado no n.º 3 do artigo 25.º do RJAT, aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no artigo 152.º do CPTA.

São pressupostos da admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência: i) que a decisão arbitral se tenha pronunciado sobre o mérito da pretensão deduzida e tenha posto termo ao processo (artigo 25.º, n.º 2 do RJAT); ii) que exista contradição entre essa decisão e uma outra decisão arbitral ou com um acórdão proferido por algum dos Tribunais Centrais Administrativos ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, relativamente à mesma questão fundamental de direito (artigo 25.º, n.º 2 do RJAT).

Depois, ainda que se verifique tal oposição, o recurso não prosseguirá seus termos se a orientação perfilhada na decisão arbitral recorrida estiver de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (artigo 152.º n.º 3 do CPTA, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 25.º do RJAT).

O não preenchimento de tais requisitos obstará ao conhecimento do mérito do recurso.

Não havendo controvérsia quanto ao preenchimento do primeiro dos requisitos referidos – a decisão arbitral recorrida conheceu do mérito e pôs termo ao processo arbitral -, impõe-se conhecer do segundo, da contradição relativamente à mesma questão fundamental de direito entre a decisão recorrida e a decisão fundamento.

De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, para se apurar da existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito é exigível que:
i) o fundamento de direito seja o mesmo;
ii) não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica;
iii) haja oposição na solução perfilhada nos dois arestos, o que pressupõe a identidade de situações de facto;
iv) a oposição decorra de decisões expressas, que não apenas implícitas (também não relevando a oposição de fundamentos).

Vejamos se tais pressupostos se verificam no caso do presente recurso.
Na decisão arbitral recorrida foi delimitada a questão a analisar como sendo a da «sujeição a taxas de tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º do Código do IRC, dos encargos suportados pela Requerente e o seu Grupo Fiscal com motociclos para a distribuição postal, com viaturas ligeiras de passageiros caraterizadas como Viaturas de Serviços Geral e com compensações pelas deslocações em motociclos próprios (abonos quilométricos) aos carteiros peça distribuição do correio.».
Por seu turno, na decisão fundamento identificaram-se as seguintes questões a decidir: «…em primeiro lugar, se a norma em que assente a tributação autónoma que aquela [Requerente] contesta tem subjacente uma presunção, se, em caso afirmativo, será legalmente possível ilidir tal presunção, e, por fim, se no caso concreto, a Requerente logrou fazê-lo.». Em causa estava a tributação autónoma sobre gastos com depreciações, seguros, manutenção e conservação e combustíveis, relativos a motociclos e foi objeto de interpretação o artigo 81.º do Código do IRC, vigente à data do facto tributário (2009) e que corresponde ao atual artigo 88.º.

A Recorrida defende que não existe similitude/identidade de situações de facto nem de direito nos arestos em confronto. Invoca, quanto à matéria factual, como distintivos dois elementos: i) que na decisão recorrida a requerente é contribuinte sujeito a IRC pelo regime geral de acordo com o artigo 3.º do Código do IRC, sendo tributada através do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), previsto nos artigos 69.º e seguintes do Código de IRC, e constituindo-se como a empresa dominante do Grupo, enquanto a requerente na decisão fundamento é uma entidade que faz parte de um grupo fiscal de empresas dominada por uma outra empresa; ii) a matéria que foi objeto de pronúncia na decisão arbitral recorrida reporta-se à sujeição a taxas de tributação autónoma, nos termos dos n.º 3, 6 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, dos encargos suportados pela Requerente e seu Grupo Fiscal com motociclos para distribuição postal, com viaturas ligeiras de passageiros caracterizadas como Viaturas de Serviços Geral e com compensações pelas deslocações em motociclos próprios (abonos quilométricos) aos carteiros pela distribuição de correio, no exercício de 2014, e, por seu turno, na decisão arbitral fundamento estavam em causa só e apenas os n.ºs 3, 5 e 6 do artigo 81.º na numeração da redação em vigor à data dos factos, isto é, encargos relativos a motociclos.
E, no que respeita ao quadro normativo aplicado, alega a Recorrida que a afirmação da Recorrente de que não existe qualquer alteração legislativa entre a data em que foi proferida a decisão arbitral fundamento e aquela em que foi proferida a decisão arbitral recorrida, asseverando mesmo que o quadro legislativo convocado em ambas as decisões é o mesmo, não tem respaldo na realidade, por estarmos perante redações normativas dispares, referentes a realidades distintas e/ou nem sempre coincidentes.
Ora, não obstante todo o esforço argumentativo da Recorrida, entendemos que as diferenças apontadas em termos factuais não relevam do ponto de vista da sua subsunção jurídica. Ou seja, um e outro quadro factual, ainda que não totalmente coincidentes no que respeita, sobretudo, e no que poderia importar, às despesas tributadas autonomamente, têm o mesmo enquadramento jurídico, o artigo 88.º do Código do IRC, aplicado pela decisão recorrida, que corresponde ao artigo 81.º antes da republicação do Código operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13/07, e que vigorou até 31/12/2009, aplicado pela decisão fundamento, sendo que a questão jurídica a que ambos os arestos responderam, se a tributação autónoma sobre as despesas enunciadas no artigo 88.º (anterior artigo 81.º) tem implícita uma presunção de empresarialidade dessas despesas, coloca-se em relação a todas e a cada uma delas identificadas nos diferentes números do artigo 88.º do Código do IRC, e, consequentemente, a resposta que for dada, aproveita também a todas e a cada uma delas. Como este Tribunal tem afirmado, a oposição de soluções jurídicas pressupõe apenas uma identidade substancial (e não uma total coincidência) das situações fácticas, entendida esta apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais.
E o mesmo se diz relativamente ao direito aplicado nos arestos em confronto, pois, apesar de a Recorrida alegar que se está “perante redacções normativas dispares”, não apontou a(s) diferença(s), sendo certo que teria(m) de ser substancial(ias) ou seja, ela(s) própria(s) determinante(s) de soluções jurídicas diferentes. De acordo com a jurisprudência deste Tribunal, a alteração substancial da regulamentação jurídica relevante para afastar a existência de oposição de julgados verifica-se sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base a diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica. Na situação em apreço, apesar da diferente ordenação da previsão da tributação autónoma, a redação da norma não sofreu alterações que se mostrem significativas para a resolução da querela.
Temos assim que em ambas as decisões está em causa a tributação autónoma de determinadas despesas, com enquadramento legal no artigo 88.º do Código do IRC, que corresponde ao artigo 81.º antes da republicação, e em ambas colocava-se a mesma questão, a de saber se os preceitos legais ao delimitarem as situações em que há lugar a tributação autónoma, consagram presunções implícitas, e se estas presunções são suscetíveis de serem ilididas por prova em contrário em conformidade com o artigo 73.º da Lei Geral Tributária (LGT).
A decisão recorrida entendeu que não, que aquelas normas de incidência não assentam na demonstração por inferência de certos factos presumidos, que possam ser afastados na base de prova em contrário, antes operando objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa.
Já a decisão fundamento respondeu que sim, que as normas têm materialmente subjacente uma presunção de empresarialidade “parcial” das despesas sobre que incidem, “em função da […] circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa provada, de consumo, sendo que em muitos casos, a despesa terá efetivamente na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular)”, e que tal presunção é suscetível de ser ilidida nos termos do artigo 73.º da LGT.
Há, pois, oposição relativamente à mesma questão fundamental de direito que justifica a prossecução do presente recurso para uniformização de jurisprudência, uma vez que sobre a mesma não existe jurisprudência deste Tribunal.

3.2. Do mérito do recurso
A questão que se coloca no presente recurso para uniformização de jurisprudência é saber se os n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, ao delimitarem as situações em que há lugar a tributação autónoma, consagram presunções implícitas iuris tantum, suscetíveis de serem ilididas por prova em contrário em conformidade com o artigo 73.º da LGT.

A decisão arbitral recorrida, como resulta do acima exposto, respondeu negativamente à questão com a seguinte argumentação que se transcreve:
«5. A questão em análise reporta-se à sujeição a taxas de tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º do Código de IRC, dos encargos suportados pela Requerente e seu Grupo Fiscal com motociclos para distribuição postal, com viaturas ligeiras de passageiros caracterizadas como Viaturas de Serviços Geral e com compensações pelas deslocações em motociclos próprios (abonos quilométricos) aos carteiros pela distribuição de correio.

Sustenta a Requerente, em primeira linha, que todos esses encargos são integralmente imputáveis à exploração do serviço da distribuição postal no território nacional e se encontram justificados pelo seu carácter empresarial, havendo de entender-se que se encontra ilidida a presunção implícita de tributação autónoma que decorre do disposto nos n.ºs 3, 6 e 9 do artigo 88.º do Código relativamente a encargos com motociclos e viaturas ligeiras e despesas de compensação pela deslocação do trabalhador em viatura própria.

A Autoridade Tributária defende, em contraposição, que o artigo 88.º do Código do IRC constitui uma norma de incidência objectiva de tributação autónoma e não contempla qualquer presunção susceptível de ser ilidida por prova em contrário, com base no carácter empresarial dos gastos que se encontrem cobertos por essa disposição.

Sobre essa mesma questão, com os mesmos contornos de facto, pronunciaram-se em sentido negativo os recentes acórdãos proferidos nos Processo n.º 448/2018-T e 516/2018-T, em que se analisavam pedidos idênticos, formulados pela aqui Requerente, e que se referia à liquidação de tributação autónoma em IRC referente aos exercícios de 2015 e de 2016.

E não há motivo para alterar agora o entendimento que foi aí sufragado.

O referido artigo 88.º do Código do IRC, na redacção aplicável ao período de tributação em referência, dispõe o seguinte:

“3 — São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:
a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a € 25 000;
b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a € 25 000 e inferior a € 35 000;
c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a € 35 000.
5 — Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.
6— Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com:
a) Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e
b) Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.
9 — São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não facturados a clientes, escriturados a qualquer título, excepto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário, bem como os encargos não dedutíveis nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 45.º suportados pelos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que os mesmos respeitam.
14 — As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.
15 — As taxas de tributação autónoma previstas nos nºs 7, 9, 11 e 13, bem como o disposto no número anterior, não são aplicáveis aos sujeitos passivos a que se aplique o regime simplificado de determinação da matéria coletável.
16 — O disposto no presente artigo não é aplicável relativamente às despesas ou encargos de estabelecimento estável situado fora do território português e relativos à atividade exercida por seu intermédio.
17 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros híbridas plug-in, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 5 %, 10 % e 17,5 %.
18 - No caso de viaturas ligeiras de passageiros movidas a GPL ou GNV, as taxas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 são, respetivamente, de 7,5 %, 15 % e 27,5 %.”

Resulta especialmente dos transcritos n.ºs 3 e 6 que são tributados autonomamente os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, com exclusão dos veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, bem como as viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes ou destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo, e as viaturas automóveis afectas à utilização pessoal do trabalhador. Decorre também do n.º 9 que são sujeitos a tributação os encargos relativos à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário.
Na perspectiva da Requerente, os mencionados preceitos, ao delimitarem as situações em que há lugar a tributação autónoma, limitam-se a consagrar presunções implícitas iuris tantum suscetíveis de ser ilididas por prova em contrário em conformidade com o artigo 73.º da LGT.

Cabe começar por recordar, a este propósito, que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil). Tratando-se de uma presunção legal ela é uma inferência realizada pela lei de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido (artigo 350.º), distinguindo-se das presunções judiciais que assentam no simples raciocínio de quem julga com base em máximas da experiência ou em juízos de probabilidade.

Assim, as regras legais de presunção apresentam necessariamente na sua estrutura uma implicação entre dois factos, ou seja, estabelecem que um determinado facto conhecido implica um outro facto desconhecido (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Coimbra, 2012, pág. 234).

As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante a prova do contrário, ou seja, mediante a prova de que o facto presumido não é verdadeiro (presunções tantum juris), excepto nos casos em que a lei o proibir (presunções juris et de jure).

Não está, em todo o caso, excluída a possibilidade de presunções legais implícitas. Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 753/2014, “As presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, quando são reveladas pelo uso da expressão «presume-se» ou de expressão de idêntico significado, mas podem também resultar implicitamente do enunciado linguístico da norma, o que sucede quando se considera como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis no pressuposto de que são esses valores que correspondem à realidade, prescindindo-se do apuramento do valor real ou do valor que tiver sido declarado pelo sujeito passivo”.

Por outro lado, e em vista a detectar uma possível presunção legal nos citados dispositivos do artigo 88.º, importa ter presente a configuração própria das tributações autónomas.

Como se esclareceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, “a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal”. Nesse sentido, como aí se acrescenta, “[a] despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa”.

No caso vertente, o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas. A sujeição a imposto é a consequência jurídica da verificação de um certo facto tributário - a realização da despesa legalmente prevista -, não se descortinando aí uma qualquer condição de aplicação da norma que se prenda com a demonstração, por inferência, de outro facto. A própria realização da despesa determina a aplicação da norma.

A inexistência de uma qualquer presunção legal relacionada com o carácter empresarial das despesas surge também evidenciada pelo contexto verbal das disposições em causa. Excluem-se da tributação autónoma certo tipo de veículos de acordo com critérios de política fiscal e estabelecem-se taxas diferenciadas com base em características atinentes ao custo de aquisição dos bens (artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC) e à tipologia dos veículos (artigo 88.º, n.ºs 17 e 18, cfr. Lei n.º 82-D/2014). Também no que concerne aos encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, a que se reporta o n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, a incidência da tributação autónoma determina-se em função de certos aspectos relacionados com a específica situação tributária que está em causa.

Acresce ainda o facto de as taxas de tributação autónoma serem elevadas em 10 pontos percentuais relativamente aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem os factos tributários competentes relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC (artigo 88.º, n.º 14, do Código do IRC).

Em suma, as normas de incidência em apreço não assentam na demonstração, por inferência de certos factos presumidos, que possam ser afastados na base de prova em contrário, mas operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa.

E basta notar que a razão de ser das tributações autónomas é complexa e múltipla, podendo ter em vista prevenir, por razões de cobrança de receita fiscal, que seja afetada a receita respeitante à tributação do lucro tributável, desincentivar, por razões de política extra-fiscal, certas despesas que são reputadas socialmente como inconvenientes e desincentivar despesas normalmente associadas a comportamentos evasivos ou mesmo fraudulentos (v., entre o mais, o n.º 14 do artigo 88.º).

6. Não pode ignorar-se que diversa jurisprudência arbitral tem acolhido o entendimento de que as tributações autónomas têm subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, partindo da ideia de que essas despesas revestirão, em regra, uma dupla natureza, correspondendo a gastos que em parte se enquadram na actividade produtiva da empresa e noutra parte se reportam a despesas de consumo de carácter particular.

Quanto a esta jurisprudência, começa por se perceber mal o que se entende por presunção parcial. Parece querer dizer-se que as normas que preveem a tributação autónoma estabelecem uma presunção quanto ao carácter não empresarial das despesas, mas que (conforme configuradas pelo legislador essas normas) o contribuinte não poderá ilidir na sua globalidade na medida em que há sempre despesas que se presume que são do foro privado e, como tal, são inilidíveis.

Esta abordagem coloca, desde logo, uma dificuldade. É que a jurisprudência constitucional tem afastado a instituição de presunções inilidíveis em matéria tributária por se considerar que impossibilitam o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva que a lei tem como presumida com base num certo pressuposto económico (acórdãos n.ºs 348/97, 452/2003 e 211/2003). E, por isso mesmo, existindo uma presunção de que as despesas não se justificam por razões empresariais, o interessado deveria ser chamado a fazer a prova de que não ocorre o facto que constitui a base da presunção (que é, afinal, note-se, a realização da despesa), o que lhe permitiria excluir da tributação não apenas uma parte das despesas mas a sua totalidade.

A pretendida presunção implícita de não empresarialidade das despesas está, por sua vez, associada ao próprio objectivo fiscal que se pretende com a tributação autónoma.

Como explica SALDANHA SANCHES, a introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).

E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal. O legislador tem em vista desincentivar a realização de certas despesas, admitindo a dedutibilidade do custo, mas reduzindo a vantagem fiscal por via da tributação autónoma, assim se compreendendo que a tributação incida não sobre a percepção de um rendimento mas sobre a realização de despesas.

Assim sendo, a presunção que se pretende ilidir por prova em contrário não é a natureza não empresarial das despesas mas a própria razão de política fiscal que levou o legislador a tributar essas despesas, levando a discussão para o plano da conformação legislativa que se encontra vedado ao julgador.

Certo é que o autor há pouco citado refere, a propósito da tributação autónoma, que se cria aqui “uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial” (ob. e loc. cit.). Mas como se depreende de todas as considerações que antecedem esse excerto, o autor não está a referir-se a uma presunção em sentido técnico jurídico, mas a fazer notar justamente o objectivo fiscal que se teve em vista ao tributar esses custos.

Nestes termos, em face da apontada jurisprudência, não há motivo para alterar o entendimento anteriormente exposto, havendo de concluir-se que as disposições legais que estabelecem tributações autónomas objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.».

Não obstante todo o esforço argumentativo da Recorrente para demonstrar o contrário, a interpretação que fez a decisão recorrida dos preceitos em causa é a que, por um lado, desde logo, tem assento na letra da lei, a qual não contém de forma expressa ou de algum modo sugestionada, uma qualquer presunção de empresarialidade das despesas (artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil), e, por outro, a que respeita o espírito e a finalidade da criação da tributação autónoma, tal como o acórdão recorrido explanou, sob pena de, na adoção da tese contrária, e usando as palavras da Recorrida, se esvaziar a teleologia das tributações autónomas, retirando-lhe qualquer conteúdo prático-tributário, pois ela conduz a um efeito nulo do regime, seja nas práticas que visa evitar e desincentivar, seja na arrecadação de receita fiscal.

Em conclusão, tal como a decisão recorrida entendeu, as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário, pelo que o recurso não merece provimento.

4. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em:
a) Conhecer do recurso, negar-lhe provimento e confirmar a decisão arbitral recorrida.
b) Uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos: as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.

Custas pela Recorrente, com dispensa do pagamento em 50% do remanescente da taxa de justiça, no respeito pelo princípio da proporcionalidade, ponderada a complexidade da causa, acima da média, agravada pelas extensas alegações e contra-alegações das partes e respetivas conclusões (n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais).

Comunique-se ao CAAD.

Diligências necessárias.

Lisboa, 24 de março de 2021.

Assinado digitalmente pela relatora, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente acórdão os restantes Conselheiros que integram a formação de julgamento.

Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro (relatora) - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Paulo José Rodrigues Antunes - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Anabela Ferreira Alves e Russo.