Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0143/18.4BEPDL
Data do Acordão:10/14/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26465
Nº do Documento:SA2202010140143/18
Data de Entrada:01/22/2020
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A..........
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada (TAF de Ponta Delgada) datada de 11 de Outubro de 2019, que julgou procedente a impugnação, deduzida por A……….., contra o ato de liquidação do IRS, do período de 2016.
A decisão do TAF de Ponta Delgada determinou a anulação da liquidação de IRS, de 2016, na parte em que apurou mais-valias tendo por base, como valor de aquisição, o VPT de € 4.040,26.

Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
A) O Tribunal a quo incorreu em erro de interpretação e aplicação do Direito, ao defender que, para apuramento das mais-valias a tributar, no caso de alienação de um imóvel construído pelos próprios sujeitos passivos, se deverá atender, para efeitos de definição do que se entende por valor de aquisição, ao valor patrimonial mais atualizado, se superior ao valor do terreno, e não, como deveria ter interpretado, ao valor patrimonial definido, pura e simplesmente, no momento da aquisição;
B) Entende o Tribunal a quo, concretamente, que «Parece entender a administração tributária que o valor de aquisição deve ser calculado com base nos valores vigentes nas datas em que os direitos reais entram na esfera jurídica dos interessados, corrigidos por aplicação do coeficiente de correção»
(…)
Só há, portanto, um valor oficial dos imóveis e não tantos quantos a diferente realidade a tributar (uma para efeitos de IMI/IMT e outra para efeitos do apuramento das mais-valias, em sede de IRS/IRC, etc.).
Note-se que, por certo, o impugnante teve que pagar o IMI tendo por base o VPT de € 129.740,00, pelo que, também para a administração tributária, deverá ser atendível o VPT fixado em último lugar». (realce nosso)
C) E conclui que «Ante o exposto, uma vez que a administração tributária não teve em consideração o VPT de € 129.740,00, sendo este superior ao respetivo valor em vigor em 1997 (cfr. 6) e 7)), deve o ato ser anulado» (realce nosso);
D) Do supra expendido, verifica-se que o Meritíssimo Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento por interpretação e aplicação incorreta do Direito;
E) Decorre do n.º 1 do artigo 46.º do CIRS que para obter o valor de aquisição a título oneroso de bens imóveis (a considerar para efeitos da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, nos termos da alínea a) do artigo 10.º do CIRS), será tido em conta o valor que tiver servido para efeitos de liquidação do imposto municipal sobre as transações onerosas de imóveis (IMT), e, anteriormente, o valor da sisa, enquanto do n.º 2 do mesmo preceito pode retirar-se que, caso não tenha havido lugar à liquidação do IMT, considera-se o valor que lhe serviria de base, caso fosse devida, determinado de harmonia com as regras próprias daquele imposto;
F) Por seu turno, os números 3 e 4 deste inciso legal estabelecem, simplesmente, que o valor de aquisição de imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos é o valor patrimonial inscrito na matriz ou, caso seja superior ao valor patrimonial tributário, considerar-se-á o valor do terreno, acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, sendo o valor do terreno determinado pelas regras constantes dos números 1 e 2 deste artigo, o que significa que o valor do terreno será obtido a partir do valor que tiver servido para efeitos de liquidação do IMT;
G) Entende o Tribunal a quo que, no caso dos imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos, o valor de aquisição a ter em consideração é o valor patrimonial tributário mais atualizado, e não o VPT inscrito na matriz na altura da aquisição, o que redundaria numa discriminação que o legislador não quis que existisse, entre os imóveis adquiridos a título oneroso, em que o valor a considerar é o valor do IMT ou o que lhe seria aplicável ao tempo da aquisição, e os imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos, em que o valor a considerar é o valor patrimonial inscrito na matriz que, na interpretação do Tribunal a quo, seria o valor patrimonial mais atualizado;
H) Também a alínea a) do n.º 2 do artigo 50.º nega a tese do Tribunal a quo, uma vez que refere expressamente que «[a] data de aquisição é a que constar do título aquisitivo, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes: a) Nos casos previstos no n.º 3 do artigo 46.º, é a data relevante para efeitos de inscrição na matriz»;
I) Numa leitura sistemática do n.º 3 do artigo 46.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 50.º, conclui-se que, no caso de imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos o valor de aquisição corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz ou ao valor do terreno, acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, se superior àquele, sendo o valor de aquisição corrigido pela aplicação de coeficientes, tendo a data de aquisição como premissa a data para efeitos de inscrição na matriz;
J) Não podem subsistir dúvidas acerca da aplicação deste critério, nem outro sentido se alcança da letra da lei, não devendo o intérprete tentar obter soluções diversas daquelas que estão claramente expressas na letra da lei;
K) Não se conseguiria compatibilizar a tese defendida pelo Tribunal a quo, de aplicar o valor patrimonial dos imóveis mais atualizado com a alínea a) do n.º 2 do artigo 50.º referente à correção monetária, até porque o imposto em causa nos autos é referente ao ano de 2016, por o imóvel ter sido alienado em 2016, ano coincidente com o valor patrimonial do imóvel mais atualizado;
L) Se aplicássemos a lógica jurídica defendida pelo Tribunal a quo, deixaria de ter qualquer relevância o que se encontra expressamente previsto no n.º 3 do artigo 46.º do CIRS: «O valor de aquisição de imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz», sendo sempre objeto de uma interpretação atualista, que corresponderia ao valor patrimonial mais recentemente inscrito na matriz, o que desvirtuaria o próprio conceito de valor de aquisição, pois não corresponderia este ao valor no momento da aquisição, mas sim ao valor de aquisição mais atual, o que nem sequer faz sentido;
M) Resulta claro do artigo 46.º do CIRS que: 1) se se tratar de um imóvel adquirido a título oneroso, o valor de aquisição é o que tiver servido para efeitos de liquidação do IMT (ou, anteriormente, sisa); 2) se não tiver havido liquidação do IMT, é o valor que lhe serviria de base para liquidação deste imposto; 3) no caso de imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos, o valor de aquisição é o valor patrimonial inscrito na matriz, ou o do valor do terreno com os custos de construção comprovados, se for superior ao do valor patrimonial inscrito na matriz, sendo o valor do terreno determinado pelo valor que tiver servido para efeitos de liquidação do IMT ou, se não tiver havido liquidação do IMT, é o valor que lhe serviria de base para liquidação desse imposto;
N) Conforme se extrai do artigo 10.º do Código do IRS, as mais-valias são os ganhos obtidos que resultem de alienação onerosa de imóveis, sendo sujeitos ao IRS os ganhos que advêm da diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, considerando-se obtidos no momento da prática dos atos;
O) Refere João Taborda da Gama que as mais-valias tributáveis respeitam «à diferença entre o montante recebido pela deslocação de um bem para fora de um património e o valor desse mesmo bem quando ingressou nesse mesmo património», daqui se concluindo que não poderá haver outra interpretação alternativa quanto ao «valor desse mesmo bem quando ingressou nesse mesmo património»;
P) A tributação das mais-valias representa a adoção da teoria do rendimento-acréscimo em detrimento do rendimento-fonte, pelo que a mais-valia é a valorização ocorrida em bens ou direitos, alheios a uma atividade comercial ou industrial, de carácter ocasional ou fortuito, que dão origem a um acréscimo patrimonial na esfera do proprietário alienante, indiciadora de uma certa capacidade contributiva que justifica a sujeição a imposto;
Q) Sendo o rendimento-acréscimo que está em causa, necessariamente será de tributar o acréscimo patrimonial obtido através da comparação do que foi obtido no momento da venda do bem e o que foi despendido aquando da aquisição [inicial] do mesmo bem, aplicando-se-lhe as necessárias correções monetárias, por os bens imóveis, tendencialmente, se valorizarem por si próprios, e como consequência da desvalorização da moeda;
R) Pode estabelecer-se um paralelismo e recorrer, novamente, ao elemento sistemático, quanto aos bens que foram adquiridos a título gratuito – artigo 45.º do Código do IRS – pois nesse quadro jurídico considera-se valor de aquisição: a) O valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto do selo; e b) O valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido, estando ainda previsto que no caso de direitos reais sobre bens imóveis adquiridos por doação isenta, nos termos da alínea e) do artigo 6.º do Código do Imposto do Selo, considera-se valor de aquisição o valor patrimonial tributário constante da matriz até aos dois anos anteriores à doação;
S) Incorreu o Tribunal a quo em erro de interpretação e, consequentemente, em erro na aplicação do Direito, ao defender que, para apuramento das mais-valias a tributar, no caso de alienação de um imóvel construído pelos próprios sujeitos passivos, se deverá atender, para efeitos de definição do que se entende por valor de aquisição, ao valor patrimonial mais atualizado, se superior ao valor do terreno, e não, como deveria ter interpretado, ao valor patrimonial definido, pura e simplesmente, no momento da aquisição, levando à inexistência de uma parte substancial deste rendimento-acréscimo, pois, no caso dos autos, a Administração Tributária considerou como valor de aquisição do imóvel o valor patrimonial do imóvel fixado em 1997, no montante de €4.040,26, enquanto o Tribunal a quo pugna pela consideração do VPT de €129.740,00, valor vigente à data de alienação do imóvel (em 2016), como valor de aquisição.
T) Ainda que assim não se entenda, sendo o ato tributário cindível, a anulação do ato deverá ser parcial, uma vez que, apesar do decidido, sempre será devido imposto pela mais-valia.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas., COLENDOS JUÍZES CONSELHEIROS, doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado totalmente procedente por provado, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo, sendo substituída por outra que determine a improcedência total da impugnação, com as legais consequências.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público notificado pronunciou-se tendo concluído “(…)Entendemos, assim, que a sentença padece dos vícios de erro de julgamento, por errónea interpretação e aplicação do disposto no nº3 do artigo 46º do CIRS, e de nulidade, por falta de julgamento da matéria de facto necessária ao julgamento da questão de direito colocada ao tribunal, motivo pelo qual se impõe a sua revogação, determinando-se a baixa dos autos para prolação de nova sentença, julgando-se, nesta parte, procedente o recurso.”.

Cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
1) Em 30 de maio de 1995, A………… e a sociedade B…………. Lda., celebraram um contrato denominado “contrato de empreitada”, com o seguinte teor:








2) Em 22 de junho de 1995, A………… adquiriu, pelo preço de 1.023.000$00, o prédio urbano destinado a construção sito na ………….., da freguesia …………, Concelho de Lagoa, descrito sob o n.º 1842 na Conservatória do Registo Predial de Lagoa, omisso na matriz predial.
3) Em 23 de junho de 1995, foi elaborado um relatório de avaliação com o seguinte teor:









4) Em 30 de outubro de 1995, foi elaborado um escrito denominado “Mútuo com hipoteca”, pelo qual A……….. obteve um empréstimo no valor de 13.000.000$00, junto do banco Caixa Económica Montepio Geral, nos termos de fls. 28 a 39, do ficheiro em formato pdf., do doc. com a ref.ª SITAF n.º 004198037, de 18-03-2019.
5) Em 21 de março de 1996, A……….. apresentou no Serviço de Finanças de Lagoa, a Declaração para Inscrição ou Alteração de Inscrição de Prédios Urbanos na Matriz, modelo 129 da Contribuição Predial, com base no motivo “prédio novo”, através do qual inscreveu a edificação composta por casa alta para habitação, com jardim, logradouro e quintal, com a área de 341 m2.
6) Na sequência da apresentação da declaração indicada em 5), o imóvel indicado em 2), ficou inscrito na matriz sob o artigo 3121 da predial da freguesia de …………., município da Lagoa, tendo sido avaliado na quantia de 810.000$00 (€ 4.040,26).
7) Em 22 de agosto de 1997, o Serviço de Finanças de Lagoa elaborou no ofício n.º 2256, dirigido a A………., pelo qual levou ao respetivo conhecimento do teor do ato de avaliação do imóvel, nos termos seguintes:



8) Em 13 de julho de 2016, A……….. apresentou a declaração modelo 1 de IMT, pela qual declara que adquiriu o prédio urbano inscrito sob o artigo 4501 da matriz predial da freguesia de …………., município da Lagoa, pelo preço de € 114.000,00.
9) Em 14 de julho de 2016, A………….. vendeu o imóvel inscrito sob o artigo 3121 da matriz predial da freguesia de …………, município da Lagoa, pelo preço de € 280.000,00, sendo que o valor patrimonial do mesmo cifra a quantia de € 129.740,00.
10) Em 16 de outubro de 2017, A………… apresentou a 1ª declaração de rendimentos modelo 3, de IRS, do período de 2016.
11) O anexo G, da declaração modelo 3, referenciada em 10), foi preenchida da seguinte forma:


12) Em 15 de novembro de 2017, a sociedade B………….. Lda., elaborou um escrito com o seguinte teor:


13) Em 9 de julho de 2018, o Chefe do Serviço de Finanças de Lagoa, no âmbito do processo de gestão de divergência n.º 15877203, decidiu fixar como valor de aquisição do imóvel indicado em 6), a quantia de € 4.404,26, com base nos fundamentos da informação com o seguinte teor:




14) Em 3 de outubro de 2018, foi elaborada a liquidação de IRS n.º 2018.5005541359, no valor de € 5.472,08, do exercício de 2016.
15) Em 26 de novembro de 2018, A……….. apresentou a petição inicial que deu origem ao presente processo de impugnação judicial n.º 143/18.4BEPDL.
16) O prédio inscrito na matriz sob o artigo 3121 da predial da freguesia de ………….., município da Lagoa, foi objeto das seguintes avaliações patrimoniais:


Nada mais se deu como provado.

Há agora que apreciar o recurso que nos vem dirigido.
Este recurso vem interposto da sentença do TAF de Ponta Delgada, que julgou procedente a ação intentada contra o ato de liquidação adicional de IRS relativo ao ano de 2016, no valor de € 5.472,08 euros, na sequência do apuramento de mais-valias imobiliárias.
Alega a Recorrente que a sentença padece do vício de erro de julgamento, por errónea interpretação e aplicação da lei ao caso concreto, designadamente do disposto no artigo 46.º, n.º 3, do CIRS.
Invoca para tanto que no cálculo das mais-valias se deve ter em consideração a diferença entre o valor da aquisição e o valor da realização, sendo que neste caso o valor da aquisição deve corresponder ao valor constante da matriz à data da conclusão da construção efetuada no terreno para construção.

Na sentença recorrida deu-se como assente que no decurso do ano de 1995 o impugnante adquiriu um terreno para construção pelo preço de 1.023.000$00 (€ 5.102,70 euros), no qual edificou uma construção que destinou a habitação, tendo para o efeito celebrado um contrato de empreitada com uma sociedade de construção civil, no qual foi fixado o valor de 15.300.000$00 como preço da empreitada.
Mais se deu como assente que em 21/03/1996 o prédio construído foi inscrito na matriz, ao qual foi atribuído o valor patrimonial de esc. 810.000$00 ( € 4.040,26 ); e em 14/07/2016, data em que o valor patrimonial do prédio era de € 129.740,00 euros, o mesmo foi vendido pelo preço de € 280.000,00 euros.
Também se julgou provado que na declaração de IRS relativa ao ano de 2016 o sujeito passivo fez constar como valor de aquisição, o valor de € 75.000,00, e, como valor de realização, o valor de € 177.500,00.
Mais se deixou assente que no âmbito de procedimento de divergência, a AT emitiu liquidação adicional de IRS, relativa ao ano de 2016, na qual foi apurado imposto no valor de € 5.472,08 euros, tendo por base as mais-valias obtidas na venda do referido imóvel, as quais foram determinadas tendo por referência o valor de aquisição de € 4.040,26 euros, correspondente ao valor patrimonial constante da matriz em 1996, e o valor de venda de € 280.000,00 euros.

O Tribunal recorrido concluiu pela anulação do ato de liquidação porque considerou que o valor de aquisição do imóvel que a AT relevou para efeitos de liquidação do Imposto sobre o Rendimento não reflete o valor real do prédio, seja por ser inferior ao valor de aquisição do terreno para construção onde foi implantada a moradia, seja porque a avaliação foi efetuada ao abrigo de outras regras e normas, pelo que há que atender ao valor patrimonial tributário fixado ao abrigo das normas do CIMI e que está em consonância com o valor de mercado.
O tribunal também considerou que o disposto no n.º 3 do artigo 46.º do CIRS não permite concluir que o valor de aquisição é o valor inscrito na matriz à data da aquisição, pelo que há que atender ao valor mais atualizado e que no caso concreto corresponde ao último VPT fixado, ou seja, ao valor de € 129.740,00 euros.

Assim, a questão que se coloca à apreciação deste Supremo Tribunal consiste em saber se na sentença ocorreu um erro de julgamento ao ter sido considerado como valor de aquisição, para efeitos de determinação das mais-valias imobiliárias, o último valor patrimonial atribuído ao prédio.
Dispõe o artigo 10.º, n.º 4, do CIRS, que o ganho sujeito a IRS é constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição.
Dispõe, por sua vez, o n.º 3 do artigo 46.º do CIRS, que “o valor de aquisição de imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz ou ao valor do terreno, acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, se superior àquele”.
No caso concreto dos autos o Recorrido adquiriu um lote de terreno para construção, pelo valor de 1.023.000$00 (€ 5.102,70), no qual edificou uma casa para habitação, tendo para o efeito junto diversa documentação para comprovação dos custos suportados com essa construção.
A Administração Tributária não deu qualquer relevo a essa documentação (contrato de empreitada e declaração da empresa que a realizou), tendo considerado como valor de aquisição o valor patrimonial do prédio inscrito na matriz à data da conclusão das obras, ou seja, o valor de esc. 810.000$00 ( € 4.040,26 ) .
O tribunal “a quo”, por sua vez, atendeu igualmente ao valor patrimonial do prédio, mas considerou como tal para efeitos do valor de aquisição o valor inscrito na matriz à data da venda.
Lidas atentamente as normas relevantes surpreende-se que o legislador ao referir-se no n.º 3 do artigo 46.º do CIRC ao “valor inscrito na matriz”, este valor se deve reportar à data da conclusão das obras e respetiva inscrição, nos termos do artigo 14.º, n.º 1, alínea d) do revogado Código da Contribuição Autárquica (correspondendo ao atual artigo 13.º, n.º 1, alínea d), do CIMI) e 50.º, n.º 2, alínea a), do CIRS.
Ao atender-se, na sentença recorrida, ao VPT mais recente, por alegadamente o mesmo refletir o valor de mercado do prédio, está-se a anular a valorização que o prédio beneficiou no período anterior à fixação desse valor patrimonial, o que viola o espírito das normas tributárias aplicáveis, que é o de captar essa mesma valorização.
Ou seja, embora o Tribunal a quo tenha considerado aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 46.º do CIRS e constatado que só o preço pago pelo terreno era superior ao valor patrimonial constante da matriz, o que afasta desde logo a consideração deste último valor, não fez qualquer apreciação do esforço do contribuinte para a comprovação do valor suportado na construção, seja em sede de julgamento da matéria de facto, seja em sede de julgamento da matéria de direito, como também a AT havia desconsiderado esse valor referente à construção.
Na verdade, estabelecendo o normativo em causa – n.º 3 do artigo 46.º do CIRS -, que o valor da aquisição corresponde, em alternativa, a um dos valores mais altos: (i) ao valor patrimonial inscrito na matriz ou (ii) ao valor do terreno, acrescido dos custos de construção, então há que averiguar, em face da prova produzida, qual dos valores é superior. E para tanto havia que fixar, em termos de matéria de facto, quais os custos suportados pelo sujeito passivo com a aquisição do terreno e com a construção da casa. Ora, este labor não foi realizado pelo tribunal “a quo”, nem pela AT, pois embora tenha fixado o valor pago pelo terreno, não se pronunciou sobre os custos da construção (dando ou não como comprovado (total ou parcialmente) o valor adiantado pelo sujeito passivo), embora tenham sido levados ao probatório alguns elementos de facto que não mereceram qualquer apreciação pelo tribunal sobre a sua aptidão para comprovar ou não os alegados custos suportados com a construção.
Ou seja, tendo nós agora como certo que nem a AT, no momento da liquidação impugnada, nem o Tribunal a quo, na sentença recorrida, relevado o valor referente à construção da moradia de habitação, sendo certo no entanto que não pode ser relevado para efeitos de Tributação de mais valias obtidas pelo sujeito passivo o valor singelo do terreno no momento da aquisição, porque aliás era inferior ao valor efectivamente pago pelo recorrido, não restam dúvidas que ocorreu erro, tanto nas operações de liquidação do imposto como na sentença recorrida, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 01-07-2020, proc. n.º 0315/14.0BEFUN.
Porém, face a este circunstancialismo sempre teríamos que concluir que a liquidação impugnada não se pode manter, tal como decidido pelo tribunal a quo, pelo que, restaria saber se no caso concreto o ato tributário é cindível e, em consequência, se poderá ocorrer a sua anulação parcial.
Este Supremo Tribunal já decidiu por diversas vezes esta questão, sempre no sentido de não ser admissível a anulação parcial de um ato de liquidação deste tipo, relevando-se agora o que se deixou dito no acórdão datado de 28.06.2017, proc. n.º 01129/16:
A recorrente AT levanta a questão da possibilidade de anulação parcial do acto tributário de liquidação do IRS impugnado uma vez que só em parte, isto é, no que toca às mais-valias, julgou-se ter havido erro de facto e de direito.
No acórdão datado de 09.07.2014, recurso n.º 01146/13, escreveu-se com interesse: “Consequentemente, e à primeira vista, pareceria que a liquidação deveria ser anulada parcialmente, na parte atinente aos ganhos provenientes da transmissão … atenta a regra da admissibilidade da anulação parcial do acto de liquidação de imposto, consensualmente aceite pela jurisprudência e pela doutrina por apelo à divisibilidade desse acto tributário. (Cfr., o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 10/4/2013, no rec. nº 298/12, onde se reafirma a jurisprudência vertida nos acórdãos da Secção, de 12/1/2011, no rec. nº 0583/10, de 12/1/2012, no rec. nº 0965/10, de 10/10/2012, no rec. nº 0533/12 e de 5/12/2012, no rec. nº 0477/12.)
Todavia, não nos parece que tal possa acontecer no presente caso.
É que para se saber se o acto de liquidação deve ser total ou parcialmente anulado há que determinar o tipo de ilegalidade que o inquina e analisar se ele é susceptível de o afectar no seu todo, caso em que ele tem de ser integralmente anulado.
Ora, no caso dos autos, há que ter atenção que estamos perante imposto sobre o rendimento, em que a determinação do quantitativo de imposto devido passa pela aplicação das taxas gerais correspondentes ao rendimento colectável determinado, taxas que são, em regra, progressivas e não fixas, como acontece com a tributação dos ganhos com a alienação de imóveis por sujeitos passivos residentes, a que são aplicáveis as taxas finais de IRS.
(…)
Pelo que a redução do rendimento colectável exige a prática de novo acto tributário, sendo impraticável a mera anulação parcial ou a reforma do acto tributário impugnado, porque o tribunal não pode substituir a taxa de imposto efectivamente aplicada na liquidação impugnada por outra, isto é, não pode substituir-se à administração tributária na aplicação de outra taxa de imposto ao rendimento tributável que subsista para tributação em mais-valias.”, cfr. mais recentemente o acórdão datado de 23.11.2016, recurso n.º 039/16.
Também no caso dos autos estamos perante uma situação idêntica à daqueles acórdãos que negaram a anulação parcial do acto, e fizeram-no precisamente por não se poder antever, para já, qual será o efectivo resultado da referida anulação sobre a liquidação efectuada, se se bastará com uma mera operação aritmética de subtração do rendimento àquele que se considerou para efeitos de cálculo do imposto e de determinação das taxas ou se exigirá a reponderação da aplicação de nova taxa de imposto ao rendimento não afectado pela anulação, etc.

Concluindo-se, assim, pelo erro de facto e de direito na liquidação impugnada, bem como pela não possibilidade de anulação parcial desse mesmo ato tributário, e apesar de também a sentença recorrida ter incorrido em erro de interpretação das normas aplicáveis, não restam dúvidas que a anulação do ato tributário impugnado tem que se manter, ainda que por razões parcialmente diversas daquelas que foram apontadas na sentença recorrida.
Assim, o recurso não obterá provimento.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
D.n.

Lisboa, 14 de Outubro de 2020. – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Gustavo André Simões Lopes Courinha.