Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02453/05.1BEPRT 0402/18
Data do Acordão:10/30/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
RECLAMAÇÃO GRACIOSA
OBJECTO DA IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
VÍCIO PROCEDIMENTAL
Sumário:I - A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objeto imediato a decisão da reclamação e por objeto mediato os vícios imputados ao ato de liquidação;
II - Anulado o ato impugnado por insuficiente fundamentação da decisão da reclamação graciosa e das correções que suportaram o ato de liquidação, não tem o tribunal que apreciar os demais vícios imputados a este ato.
Nº Convencional:JSTA000P25096
Nº do Documento:SA22019103002453/05
Data de Entrada:04/18/2018
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA E OUTROS
Recorrido 1:A.......... LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

1.1. O REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA recorre da sentença proferida pelo Mm.º Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou procedente a impugnação judicial da decisão que indeferiu parcialmente a reclamação graciosa n.º 3468-97/400183.4, na sequência das correções técnicas efetuadas à matéria coletável do exercício de 1992 e que deram origem à liquidação n.º 8310018675, no valor de € 9.152,10.

Impugnação esta que tinha sido interposta por A………….., Lda., N.I.F. ……….., com sede na ………….., n.º …………/…………., ………. Rio Tinto.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notificada da sua admissão, apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões:

«(…) A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida, na sequência do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação adicional de IRC relativa ao exercício de 1992, no valor de € 9.152,10.

B. Na douta sentença, o Tribunal a quo apreciou unicamente o vício de falta de fundamentação, decidindo pela procedência do vício e, consequentemente, pela procedência da presente impugnação, ficando prejudicada a análise da restante matéria alegada, que envolvia questões de legalidade do acto de liquidação.

C. O Tribunal a quo fundamentou a decisão e procedência nos seguintes termos: “… verifica-se que tal decisão, alicerçada no Relatório que lhe subjaz, mostra-se claramente insuficiente para explicar o porquê da decisão que foi tomada e não outra. Na verdade, baseando-se a decisão da reclamação nas conclusões do Relatório, outra não seria provavelmente a decisão, uma vez que o próprio Relatório surge confuso, nada esclarecedor, e nada fundamentado. Na verdade, da leitura do referido relatório, do projeto da decisão e da decisão de deferimento parcial, muito pouco se consegue retirar. Nada na decisão ou projeto de decisão é explicado, apenas é afirmado, sendo impossível ao Tribunal considerar que tais afirmações sejam corretas atenta a falta de justificação/fundamentação de tais afirmações.”

D. Decidindo o douto Tribunal a quo que: “Assim, é forçoso concluir nestes autos pela insuficiente fundamentação do ato impugnado e, por conseguinte, a presente impugnação procede, mostrando-se prejudicada a análise da restante matéria alegada.”

E. Considera a FP, sempre com o devido respeito, que o tribunal a quo ao decidir pela procedência da impugnação com fundamento na falta de fundamentação, da decisão da reclamação, e considerando prejudicado o conhecimento dos vícios da liquidação impugnada incorreu em erro de julgamento.

F. como tem sido pacificamente e reiteradamente entendido pela jurisprudência o processo de impugnação judicial instaurado na sequência e por causa do indeferimento expresso de uma reclamação graciosa tem por objecto imediato esse mesmo indeferimento e por objecto mediato o ato de liquidação em si, conforme se extrai da al. C) do nº 1 do art. 97º do CPPT.

G. Assim, deduzida a impugnação judicial do indeferimento de uma reclamação graciosa, tendo a impugnação judicial como objecto quer a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, quer o próprio acto de liquidação, cabe tão só ao Tribunal confirmar o indeferimento, mantendo-se o acto tributário impugnado; ou anular esse indeferimento, nomeadamente, como o considerou por vício de falta de fundamentação, neste caso, tem o Tribunal de apreciar os vícios ou ilegalidades imputados ao acto de liquidação controvertido.

H. O legislador entendeu que a impugnação deveria abranger quer a decisão de reclamação graciosa, quer o acto de liquidação, pelo que a decisão da impugnação não poderá ser no sentido de procedência da impugnação por vício formal do procedimento de reclamação graciosa e, consequente anulação da liquidação, como aconteceu no presente caso, sem que sejam apreciados os vícios imputados ao acto de liquidação, já que o tribunal está obrigado a conhecê-los.

I. Deste modo, face a uma decisão de procedência por vício formal do procedimento de reclamação graciosa, não afectando aquele vício formal o acto de liquidação, ao ter concluído o Tribunal a quo como concluiu pela procedência da mesma, sem apreciar os vícios ou ilegalidades imputados ao acto de liquidação controvertido, incorreu em erro de julgamento de direito.».

Concluiu dizendo que deve ser concedido provimento ao recurso e pedindo fosse revogada a douta sentença recorrida e ordenada a baixa do processo ao Tribunal de primeira instância para apreciação dos demais vícios invocados contra o ato de liquidação.

A RECORRIDA não apresentou contra-alegações.

1.2. Recebidos os autos neste tribunal, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que a sentença impugnada deve ser confirmada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



2. Da questão a decidir

A questão fundamental a decidir no recurso é a de saber se o tribunal recorrido, ao anular a decisão da reclamação graciosa por falta de fundamentação, deve conhecer dos vícios imputados à liquidação impugnada.



3. Dos fundamentos de facto

Foi o seguinte o julgamento de facto em primeira instância:

«Factos Provados:

1. A Impugnante foi objeto de inspeção tributária pelo Serviço de Fiscalização Tributária em 1997 – cfr. fls. 39 a 46 do processo físico;

2. Finda a inspeção, foi elaborado a 21 de Agosto de 1997 relatório de inspeção, cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido – cfr. fls. 39 a 46 do processo físico e 24 a 30 do P.A apenso;

3. No seguimento da inspeção referida em 2), foi emitida a liquidação adicional de IRC referente ao ano de 1992, nº 8310018675, no valor de € 9.152,10 – acordo das partes, 1.º artigo da petição e 1º da contestação;

4. Da liquidação referida em 3), a Impugnante deduziu reclamação graciosa a 18 de dezembro de 1997, considerando-se aqui reproduzido todo o teor da reclamação – cfr. fls. 47 a 50 do processo físico e fls. 1 a 4 do P.A. apenso;

5. Pelo ofício 15763, datado de 16 de agosto de 2001, foi a Impugnante notificada para proceder à entrega de documentos, considerando-se aqui reproduzido todo o teor do ofício – cfr. fls. 31 do P.A- apenso;

6. No seguimento do referido em 5), a Impugnante dá entrada a 31 de agosto de 2001, de requerimento, cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido, requerimento ao qual foram juntos 70 documentos – cfr. fls. 35 a 107 do P.A. apenso;

7. A 12 de maio de 2005 é proferido projeto de decisão, cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido – cfr. fls. 108 a 110 do P.A. apenso;

8. Pelo ofício 40494/0403, datado de 13 de setembro de 2005 foi a Impugnante notificada para exercer o seu direito de audição face ao projeto de indeferimento da reclamação graciosa – cfr. fls. 112 e 113 do P.A. apenso;

9. A 03 de outubro de 2005 foi proferido despacho de “deferimento parcial do pedido”, cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido – cfr. fls. 114 e 115 do P.A. apenso;

10. A 18 de outubro de 2005 foi proferido despacho de “deferimento parcial do pedido”, cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido – cfr. fls. 119 e 120 do P.A apenso;

11. Pelo ofício 55266/0403, datado de 28 de outubro de 2005 foi a Impugnante notificada do despacho referido em 10 – cfr. fls. 121 a 123 do P.A. apenso;

12. A 16 de novembro de 2005 foi deduzida impugnação judicial – cfr. fls. 2 do processo físico;

13. A 16 de junho de 1998 foi instaurado processo executivo nº 3468-98/101341.6 para cobrança coerciva da quantia subjacente à liquidação aqui impugnada – cfr. fls. 1 e 2 do processo executivo apenso;

14. A 27 de julho de 1997 a Impugnante apresentou requerimento a oferecer à penhora bens móveis, tendo sido elaborado auto de penhora de tais bens a 29 de julho de 1998 – cfr. fls. 2 a 4 do processo executivo apenso;

15. A 23 de novembro de 2005 a Impugnante apresenta requerimento a solicitar a sua notificação para prestar garantia, com determinação do respetivo montante e prazo da prestação, com a finalidade de suspender a execução – cfr. fls. 6 e 7 do processo executivo apenso;

16. Pelo ofício 4271, datado de 03 de julho de 2006 foi a Impugnante notificada do montante a prestar como garantia – cfr. fls. 10 e 11 do processo executivo apenso;

17. 19 de setembro de 2006 foi lavrado auto de penhora de bens móveis, cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido – cfr. fls. 28 e 29 do processo executivo apenso;

Factos não provados

Para a decisão da causa, sem prejuízo das conclusões ou alegações de matéria de direito produzidas, de relevante, nada mais se provou.

Fundamentação da matéria de facto:

A decisão da matéria de facto, consonante ao que acima ficou exposto, efetuou-se com base nos documentos e informações constantes do processo.».



4. Do Direito

Vem o presente recurso interposto da sentença do Mm.º Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou procedente a impugnação judicial que teve por objeto «a decisão que indeferiu parcialmente a reclamação graciosa apresentada pela impugnante (…), na sequência das correcções técnicas efectuadas à matéria colectável do exercício de 1992 e que deu origem à liquidação» (citação extraída do artigo 1.º da petição inicial) e onde era pedida, a final, a anulação da liquidação por vício de violação de lei.

A RECORRENTE não se conforma com o decidido pelo tribunal recorrido porque, abrangendo a impugnação judicial quer a decisão da reclamação graciosa quer o ato de liquidação, a procedência do vício formal de falta de fundamentação da decisão da reclamação graciosa obriga o tribunal a conhecer dos vícios substanciais imputados ao ato de liquidação.

A questão que a RECORRENTE assim coloca ao tribunal de recurso é, por isso, a de saber se, tendo sido decidida a procedência da impugnação instaurada na sequência do indeferimento expresso (no caso, do indeferimento parcial) da reclamação graciosa, com fundamento em vício de falta de fundamentação, o tribunal recorrido teria que conhecer dos demais vícios (no caso dos vícios de violação de lei imputados ao ato de liquidação).

Esta questão já foi colocada inúmeras vezes a este tribunal e tem sido decidida de forma reiterada e uniforme no sentido de que «[a] impugnação judicial do indeferimento de reclamação graciosa tem por objecto imediato a decisão da reclamação e por objecto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação» e que «[a]nulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário» [cit. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2016/10/12, processo n.º 0427/16, onde vem, por sua vez, citada a jurisprudência mais antiga sobre esta matéria].

Ou seja – e no que para aqui importa – o tribunal que decida pela falta de fundamentação da decisão da reclamação graciosa de uma liquidação deve também conhecer dos vícios substanciais que tenham sido imputados ao ato de liquidação.

Isto sucede, fundamentalmente, porque deriva do artigo 111.º, n.º s 3 e 4, do Código de Procedimento e de Processo Tributário uma preferência absoluta pelo meio judicial de impugnação frente aos meios administrativos. Chegando o legislador ao ponto de consignar que o objeto da reclamação graciosa é considerado para todos os efeitos, no âmbito do processo de impugnação. Sendo, assim, «atribuída ao tribunal competência para decidir todas as questões que tenham sido suscitadas administrativamente relativas ao acto judicialmente impugnado, mesmo que não tenham sido suscitadas na impugnação judicial» [cit. JORGE LOPES DE SOUSA, in «Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado», Volume I, Áreas Editora, 6.ª edição 2001, pág. 670].

Ora, se o legislador pretendeu que os vícios imputados na reclamação graciosa ao ato de liquidação fossem apreciados na impugnação judicial entretanto deduzida contra o mesmo ato de liquidação, não poderia ter pretendido que a procedência de vícios formais imputados à própria reclamação graciosa desonerasse o tribunal de apreciar os vícios da mesma liquidação e que este devolvesse a decisão à Administração Tributária para os reapreciar.

No caso dos autos, a Impugnante, ora RECORRIDA, tinha imputado às correções que deram origem ao ato de liquidação impugnado um conjunto de vícios substanciais («a errónea qualificação e quantificação do facto tributário»), que o tribunal recorrido não chegou a apreciar, por considerar «prejudicada a análise da restante matéria alegada» face à «insuficiente fundamentação do ato impugnado».

E, a entender-se – como entendeu a RECORRENTE – que a insuficiência de fundamentação foi imputada à decisão da reclamação graciosa, a decisão recorrida não poderia manter-se, pelas supra indicadas razões.

Mas não é assim que deve ser interpretada a sentença recorrida. Porque o que deriva do respetivo discurso fundamentador é que a falta de fundamentação foi imputada quer à decisão da reclamação graciosa quer ao próprio relatório que sustenta as correções.

É o que deriva do segmento que a própria recorrente transcreve na conclusão “C.” das doutas alegações do recurso: «…o próprio Relatório surge confuso, nada esclarecedor e nada fundamentado». O julgador está ali a referir-se, inequivocamente, ao «relatório de inspeção» a que alude o ponto 2 dos factos provados.

O que é confirmado logo no parágrafo seguinte da sentença: «a presente impugnação é um daqueles raros casos, que mesmo após a leitura da reclamação graciosa, da petição inicial e da contestação, não consegue este Tribunal aferir da justeza das correções efetuadas. A tal circunstância não será alheia o facto da inspeção ter sido realizada no ano de 1997 e ser referente ao ano de 1992 e o Relatório possuir um teor demasiado conclusivo, nada descrevendo e quase nada fundamentando. Sendo certo que tal falta de fundamentação, acarretaria a impossibilidade de averiguação da alegada errónea qualificação e quantificação dos factos tributários».

Ou seja, o tribunal recorrido afirmou-se impossibilitado de apreciar os vícios substanciais imputados à liquidação impugnada porque o respetivo discurso fundamentador [que é, aliás, idêntico ao que foi apreciado no acórdão deste tribunal de 20 de maio de 2015 (processo n.º 01021/14)] não lhe permite aferir das razões porque foram efetuadas as respetivas correções.

Ora a única interpretação que julgamos lógico extrair deste discurso é a de que o Mm.º Juiz a quo conheceu da falta de fundamentação quer da decisão da reclamação graciosa (na parte impugnada) quer das conclusões da informação que suportou as correções (no mesmo segmento). E concluiu que nenhum deles estava fundamentado.

E é assim, também, porque ao afirmar que a decisão de indeferimento (parcial) da reclamação graciosa está «alicerçada no Relatório que lhe subjaz» e concluir, logo de seguida, que se mostra claramente insuficiente para explicar o porquê do decidido, o Mm.º Juiz a quo está a dizer inequivocamente que a decisão da reclamação graciosa participa das mesmas insuficiências de fundamentação que inquinam originariamente a própria liquidação.

E, assim sendo, ao decidir pela procedência da impugnação o tribunal recorrido não decidiu apenas a anulação da decisão da reclamação graciosa, mas também a anulação da liquidação.

O que significa, na prática, que não podemos acompanhar a conclusão “I.” do presente recurso. Não estamos perante uma decisão de procedência (apenas) por vício formal do procedimento da reclamação graciosa. Nem estamos perante uma situação de apreciação de um vício formal que não afeta a liquidação.

Ora, não estando atacada a parte da decisão que apreciou a legalidade das correções que suportam a liquidação e não sendo caso de apreciação de algum vício de que este Tribunal devesse conhecer oficiosamente e que importasse a revogação dessa decisão, o recurso não pode merecer provimento.



5. Conclusões

I. A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objeto imediato a decisão da reclamação e por objeto mediato os vícios imputados ao ato de liquidação;
II. Anulado o ato impugnado por insuficiente fundamentação da decisão da reclamação graciosa e das correções que suportaram o ato de liquidação, não tem o tribunal que apreciar os demais vícios imputados a este ato.


6. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pela RECORRENTE.

Registe e notifique.

Lisboa, 30 de outubro de 2019. – Nuno Bastos (relator) – Francisco Rothes – Aragão Seia.