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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0387/17.6BEMDL
Data do Acordão:09/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA EQUIVALÊNCIA
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
PRINCIPIO DA TUTELA DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA NÃO RETROACTIVIDADE DA LEI
Sumário:I – O regime da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE) foi aprovado pelo artº.228, da Lei 83-C/2013, de 31/12 (OE 2014), tributo que tem como objectivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético (cfr.artº.1, nº.2, do Regime da CESE).
II – A CESE revela as características de uma contribuição financeira, que não de um verdadeiro imposto (cfr.artº.165, nº.1, al.i), da C.R.Portuguesa; artº.3, nº.2, da L.G.T.).
III – Os artºs.2, 3, 4, 5, 11 e 12, do Regime da CESE, não padecem do vício de inconstitucionalidade, tal como do vício de ilegalidade devido a violação de normas constantes da L.G.T. (sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P26327
Nº do Documento:SA2202009160387/17
Data de Entrada:07/24/2019
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACÓRDÃO
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RELATÓRIO
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"A…………, S.A.", com os demais sinais dos autos, deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do T.A.F. de Mirandela, constante a fls.79 a 83 do processo, a qual julgou improcedente a presente impugnação pelo recorrente intentada e visando, mediatamente, acto de autoliquidação de Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), relativo ao ano de 2015 e no montante de € 392.542,36.
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O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.88 a 101-verso do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
1-Vem defendendo a impugnante, ora recorrente, que a CESE é pela sua natureza, conteúdo e continuidade uma contribuição financeira de natureza não bilateral ou sinalagmática, constituindo um verdadeiro imposto e, como tal, viola nos moldes em que foi determinada e imposta os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real, bem como, cumulativamente, os princípios da proporcionalidade, da igualdade e da confiança e da proteção jurídica;
2-Todavia, diferentemente deste entendimento, a sentença recorrida acolheu tese qualificativa distinta, assentando na sua fundamentação a construção de que a CESE é uma contribuição extraordinária e transitória, que não se revela desproporcionada, por não ser nem inadequada, desnecessária ou excessiva;
3-Pelo contrário, entende a recorrente ser manifesta a sua desconformidade com a Constituição da República Portuguesa, impondo-se por isso a sua anulação à luz do disposto no artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo “ex vi” do artigo 2.º da Lei Geral Tributária;
4-Isto porque o artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013 de 31 de dezembro, que contém a tipificação da CESE, instituiu um regime que choca ostensivamente com os mais elementares princípios constitucionais e legais;
5-Designadamente o princípio da capacidade contributiva que consubstancia o critério material da igualdade absoluta e relativa dos impostos, enquanto expressão do princípio da igualdade, o princípio da tributação pelo rendimento real que impõe, de uma forma clara e transparente, que o tributo deverá pautar-se pela adequação, necessidade e proporcionalidade ao abrigo do princípio da proporcionalidade, os princípios da igualdade e universalidade e ainda o princípio da proteção da confiança e segurança jurídica;
6-Viola ainda os artigos 4º, 5.º, n.º 2, 8.º e 13º da LGT ao não revelar de forma totalmente clara e precisa a definição da sua incidência objetiva e os pressupostos do tributo;
7-Foi intenção do Governo que fossem as entidades do setor energético a suportar, totalmente, o encargo do novo tributo, sendo a receita que provém da CESE consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, nos termos do preceituado no artigo 11.º do regime jurídico da CESE;
8-Em face dos desígnios subjacentes à criação da CESE e do FSSSE, é manifesto que o seu cariz seria forçosamente temporário, com vista não só ao financiamento de políticas de sustentabilidade do setor energético e ao financiamento do défice tarifário, mas também tendo como foco a contribuição para o equilíbrio das contas públicas;
9-Assim sendo, para a efetivação da autoliquidação, a CESE apresenta então a sua incidência sobre os ativos líquidos fixos tangíveis, os ativos intangíveis (com exceção de propriedade intelectual) e os ativos financeiros, desde que afetos a concessões ou atividades licenciadas, estando, por isso, intimamente relacionada com a atividade operacional dos respetivos sujeitos passivos os ativos a tributar;
10-Foi ainda objetivo de criação da CESE a redução do défice tarifário, dispondo o Decreto-Lei n.º 29/2006 de 15 de fevereiro as bases gerais da organização do SEM, prevendo, designadamente, que relativamente às condições de venda de eletricidade, o Comercializador de Último Recurso (CUR) deve aplicar aos seus clientes tarifas reguladas, publicadas pela ERSE, de acordo com o estabelecido no Regulamento Tarifário;
11-Afigura-se inócuo e até abusivo que, para além do esforço empunhado pelos grupos do setor energético, (entretanto divididos em estruturas societárias autónomas por imposição legal) venha ainda a ser imputado a outras empresas do grupo – e em concreto à impugnante A……….. – o pagamento de uma “contribuição” que, sublinhe-se, tem como mesmíssima finalidade o financiamento deste mesmo défice, o qual, em boa verdade, deveria ser suportado pela generalidade dos consumidores de energia;
12-No plano jurídico-fiscal, a CESE subsume-se, sem margem para dúvidas, à figura de tributo, sendo essencial avaliar o cumprimento dos preceitos legais e constitucionais que lhe estão intrínsecos, incluindo-se a possibilidade de recondução da CESE a qualquer uma das categorias típicas de tributo, expressamente previstas na lei;
13-Nestes moldes, seguindo-se o guião imposto pelos artigos 3.º, n.º 2 e 4.º da LGT, os tributos revestem-se sob a forma de imposto, taxa ou contribuição especial;
14-No sentido estrito da tipicidade tributária, a figura da CESE não se encontra especialmente prevista na LGT e, nesta perspetiva, poder-se-ia concluir que a mesma não integra a classificação de tributos previstos pelo legislador e antes poderia configurar uma contribuição financeira, com acolhimento constitucional expresso no artigo 165.º, n.º 1 alínea i) da CRP;
15-A análise abstrata dos conceitos aproxima a figura da contribuição com a da taxa, sendo entre elas sinal diferenciador o sinalagma difuso que pauta a contribuição e que se traduz na impossibilidade de se determinar concreta e individualmente quais e de que modo os seus sujeitos passivos beneficiam da contraprestação, enquanto nas taxas o sinalagma é efetivo, estabelecendo-se uma concreta bilateralidade entre o serviço prestado e a contribuição paga;
16-Consequentemente, as taxas e contribuições devem encontrar correspondência com o custo ou valor das prestações públicas, sendo elementar que, no cumprimento da Lei, seja observada uma equivalência efetiva com custos ou benefícios reais e não apenas especulativos ou imaginários;
17-Deste pressuposto facilmente se depreende que a figura da CESE não apresenta, “tout court”, a natureza sinalagmática exigida com maior grau de compromisso, no que concerne à taxa e ainda que, com a caracterização já indicada da contribuição, que decorre da LGT, certo é que a CESE não poderá enquadrar-se também neste tipo de tributo;
18-O que significa que, perante este circunstancialismo, é concretamente aplicável o regime dos impostos, já que a CESE não consubstancia a contraprestação pela existência de uma troca que, presumivelmente, provoca benefícios para a reclamante ou um aumento do valor dos seus ativos;
19-Pelo que, ainda que seja atendível e compreensível a necessidade de fomentar a sustentabilidade sistémica, como vem especialmente evidenciado na sentença recorrida, crê-se não ser a CESE o instrumento tributário correto para aprovisionar o FSSSE;
20-Sendo a CESE um verdadeiro imposto, separa-se desde logo dos restantes tributos à luz da unilateralidade que o caracteriza, já que não cria um benefício para os seus sujeitos passivos, mas antes para o Estado em geral e aos consumidores em particular;
21-Na mesma linha, reforçando-se a unilateralidade da CESE, tenha-se em linha de conta que os objetivos da figura são o equilíbrio das contas públicas, sustentabilidade sistémica do setor energético, políticas públicas sociais e ambientais do setor energético e a diminuição da divida tarifária, sendo todos eles absolutamente desprendidos do facto tributário que se associa à mera detenção de ativos;
22-No entanto, a impugnante entende que a CESE desrespeita claramente os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real porquanto, como ressalta de uma visão meramente superficial, não será correto pressupor a capacidade contributiva de um sujeito passivo com base na mera detenção de ativos;
23-Respeitando o princípio da capacidade contributiva, os impostos aplicáveis às sociedades devem incidir sobre o lucro efetivamente obtido pelas empresas, determinado à luz da sua contabilidade, composto posteriormente por determinadas correções fiscais; sendo que, a aplicabilidade deste princípio implica que ao lucro das empresas resultante do desenvolvimento da sua atividade sejam deduzidos os custos em que incorreu, precisamente com o desenvolvimento dessa atividade;
24-Deste patamar facilmente se depreende que o legislador errou ao entender que os ativos dos sujeitos passivos da CESE traduzem a sua capacidade contributiva;
25-Mais grave é ainda a regra da não dedutibilidade e da não repercussão, estabelecidas pelos artigos 12.º e 5.º do Regime Jurídico da CESE, que violando os princípios da capacidade contributiva e de tributação pelo rendimento real, configuram uma infeliz situação de dupla tributação, cuja invocação desde já se apresenta;
26-A CESE, peregrina no ordenamento jurídico português, assenta na tributação do rendimento presumido, aferido de acordo com a expressão monetária dos ativos, sem qualquer consideração pela capacidade contributiva manifestada pelos seus sujeitos passivos e, por essa via, manifestamente violador do princípio da igualdade;
27-A CESE e a sua criação não consideraram que já existia um imposto sobre o rendimento das empresas denominado IRC (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas);
28-Por conseguinte, retomando a temática da inconstitucionalidade, é de referir que a presunção do lucro por esta via é absolutamente inconstitucional por violação expressa do artigo 104.º, n.º 2 da CRP;
29-É manifestamente ilegal a autoliquidação imposta da CESE por ser sustentada em normas inconstitucionais;
30-O princípio da proporcionalidade é uma decorrência do princípio da igualdade e do princípio da capacidade contributiva, o qual apresenta uma tripla exigência para que se verifique, ou seja, adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito;
31-O princípio da especialidade e a própria essência do Estado Português refletida na CRP pressupõe que todas as sociedades visam, em última instância, o lucro. Assim, não pode nunca ser imposto a um grupo pequeno e (aparentemente) de forma aleatória um sacrifício que a impugnante não tinha como prever;
32-Nem tampouco perpetuar esta situação “ad aeternum”!
33-A CESE é manifestamente desproporcionada, seja porque é cumulada com o IRC, porque não é considerado o rendimento real das empresas, porque se nega a possibilidade de repercussão e dedutibilidade da CESE e porque esta figura acabou por assumir um caráter definitivo (2014-2019) sem previsão de quando termine;
34-O princípio da igualdade deve nortear a atuação da administração em todas as suas intervenções, independentemente do impacto que aparentemente daí advenha e encontra a sua consagração no artigo 13.º da CRP, aplicável mesmo quando está em causa a repartição de encargos públicos;
35-A título exemplificativo, tenha-se em consideração que uma sociedade que apresente um balanço de 1.500.001,00 €, em que foge ao crivo da isenção por 1,00 € nos termos do artigo 4.º do regime jurídico da CESE deverá, em situação análoga à da reclamante, pagar 127.500,00 € caso tenha um ativo avaliado por aquele valor, já que em boa verdade poderá ser significativamente superior;
36-Por seu turno, se uma empresa com a mesma atividade apresentar um resultado no balanço de 1.499.999,00 € foge à aplicabilidade da CESE e, por consequência, beneficia de uma situação significativamente mais favorável por influência do Estado que assim distorce o livre funcionamento do mercado, penalizando significativamente uma empresa em detrimento de outra por uma variação de apenas 1,00 €;
37-No que toca ao princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica, assume “in casu” especial relevância a questão da irretroatividade fiscal, já que o artigo 103.º, n.º 3 da CRP determina que “ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”;
38-E concretiza o n.º 1 do artigo 2.º da LGT dispondo que “as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos”;
39-Ora, embora o Orçamento de Estado de 2014 vise e atribua a produção dos respetivos efetivos efeitos desde 1 de janeiro de 2014, a verdade é que lança um tributo retroativo na medida em que é aplicável diretamente a factos tributários ocorridos em 2013, isto porque, o artigo 3.º, n.º 3 do Regime Jurídico da CESE considera que o valor do ativo, para efeitos de liquidação do tributo, é o que consta das demonstrações financeiras a 1 de janeiro de 2014, o qual não se formou naquele dia mas sim no decurso de vários anos de atividade;
40-Não restam, pois, dúvidas que o tributo cobrado e com referência a 1 de janeiro diz respeito ao ano anterior, sendo por inerência a sua aplicabilidade retroativa, o que ataca violentamente este princípio constitucional basilar do sistema fiscal português;
41-Foram violados todos os preceitos citados da CRP e da LGT.
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Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância de recurso.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo não provimento do recurso (cfr.fls.136 e 137 do processo físico).
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Corridos os vistos legais (cfr.fls.141 e 142 do processo físico) vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.79 e verso do processo físico):
1-A Impugnante é uma sociedade comercial residente em território nacional que está colectada na actividade de distribuição de combustíveis gasosos por condutas (CAE 35220);
2-A Impugnante enquadra-se, para efeitos do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade mensal desde 1/1/2005;
3-No que respeita ao Imposto sobre o Rendimento (IRC), enquadra-se no regime geral desde 1/1/2009;
4-Relativamente ao exercício de 2015, atenta a actividade exercida pela ora Impugnante, é a mesma considerada sujeito não isento da contribuição extraordinária sobre o sector energético (CESE), nos termos do preceituado no art. 2.º do Regime da Contribuição Especial Sobre o Sector Energético (RCESE);
5-Em 30/10/2015 a Impugnante efectuou autoliquidação da CESE no montante de 392.542,36 €;
6-Por entender não ser devida tal contribuição, a Impugnante apresentou reclamação graciosa com o fundamento em erro de autoliquidação;
7-A reclamação graciosa foi expressamente indeferida e notificada à Impugnante por carta registada datada de 2/8/2017.
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A fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: "…art.ºs 2 a 5 e 11 da PI e docs 1 a 6 deste articulado; e factos expostos nos art.ºs 10.º a 16.º da contestação, não impugnados…".
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou totalmente improcedente a presente impugnação, em consequência do que manteve o acto de autoliquidação de CESE, relativo ao ano de 2015 e no montante de € 392.542,36 (cfr.nº.5 do probatório).
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Antes de mais, se dirá que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário).
O recorrente dissente do julgado alegando, em síntese, que a Lei 83-C/2013, de 31/12, que tipifica a CESE, instituiu um regime que consagra um verdadeiro imposto e, como tal, atento os moldes em que foi determinado, viola os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real, bem como, cumulativamente, os princípios da proporcionalidade, da equivalência, enquanto subprincípio derivado do princípio da igualdade, da protecção da confiança e segurança jurídica. Que o mesmo regime consagra a cobrança/autoliquidação por referência a 1 de Janeiro de cada ano, assim sendo, por inerência, a sua aplicabilidade retroactiva, o que viola este princípio constitucional basilar do sistema fiscal português, porque aplicável directamente a factos tributários ocorridos no ano anterior. Que os artºs.2, 3, 4, 5, 11 e 12, do Regime da CESE, padecem do vício de inconstitucionalidade, tal como do vício de ilegalidade devido a violação de normas constantes da L.G.T. (cfr.conclusões 1 a 41 do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar erros de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
O regime da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE) foi aprovado pelo artº.228, da Lei 83-C/2013, de 31/12 (OE 2014), tributo que tem como objectivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético (cfr.artº.1, nº.2, do Regime da CESE).
A receita obtida com a CESE foi consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo dec.lei 55/2014, de 9/4, com o objectivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Eléctrico Nacional decorrentes de custos de interesse económico geral (CIEG), designadamente resultantes dos sobrecustos com a convergência tarifária com as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, e para o Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN), tudo nos termos do artº.11, nº.1, do Regime da CESE.
Estabeleceu o artº.2, do citado dec.lei 55/2014, de 9/4, sobre os objectivos do FSSSE que este visa contribuir para a promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do sector energético e da política energética nacional, designadamente através:
a) Do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética;
b) Da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o sector energético prevista no artº.228, da Lei 83-C/2013, de 31/12.
O tributo sob exame foi criado como um cariz extraordinário e a vigorar no ano de 2014, mas a sua vigência tem vindo a ser anualmente prorrogada. A constância para o ano de 2015 foi estipulada pelo artº.237, da Lei 82-B/2014, de 31/12 (OE 2015).
Em sede de incidência objectiva, a CESE recai sobre:
i) o valor dos elementos do activo dos sujeitos passivos (ou seja, activos líquidos reconhecidos na contabilidade dos sujeitos passivos, com referência a 1 de Janeiro de 2015, ou no 1.º dia do exercício económico) que respeitem, cumulativamente, a:
a) Activos fixos tangíveis;
b) Activos intangíveis, com excepção dos elementos da propriedade industrial; e
c) Activos financeiros afectos a concessões ou a actividades licenciadas exercidas pelos sujeitos passivos identificados pela norma de incidência subjectiva (cfr.artº.3, nº.1, do Regime da CESE).
Já em sede de incidência subjectiva, este tributo tem como sujeitos passivos (cfr.artº.2, do Regime da CESE):
"São sujeitos passivos da contribuição extraordinária sobre o sector energético as pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de Janeiro de 2015, se encontrem numa das seguintes situações:
a) sejam titulares de licenças de exploração de centros electroprodutores, com excepção dos localizados nas Regiões Autónomas dos Açores ou da Madeira;
b) sejam titulares, no caso de centros electroprodutores licenciados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto, de licença de produção e tenham sido considerados em condições de ser autorizada a entrada em exploração, conforme relatório de vistoria elaborado nos termos do n.º 5 do artigo 21.º do referido decreto-lei, com excepção dos localizados nas Regiões Autónomas dos Açores ou da Madeira;
c) sejam concessionárias das actividades de transporte ou de distribuição de electricidade;
d) sejam concessionárias das actividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural;
e) sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural;
f) sejam operadores de refinação de petróleo bruto e de tratamento de produtos de petróleo;
g) sejam operadores de armazenamento de petróleo bruto e de produtos de petróleo;
h) sejam operadores de transporte de petróleo bruto e de produtos de petróleo;
i) sejam operadores de distribuição de produtos de petróleo;
j) sejam comercializadores grossistas de gás natural;
l) sejam comercializadores grossistas de petróleo bruto e de produtos de petróleo;
m) sejam comercializadores grossistas de electricidade;
n) seja comercializador do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN) ".

Prescreve a lei que esta contribuição visa, genericamente, o desenvolvimento de medidas que contribuam para o equilíbrio e sustentabilidade sistémica do sector energético.
Pelo que, ainda que não referida a uma contraprestação directa, específica e efectiva, resultante de uma relação concreta com um bem ou serviço, o que afasta a sua qualificação como taxa, a sujeição à CESE de determinados operadores económicos tem como um dos seus objectivos "financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético" (cfr.artº.1, nº.2, do regime da CESE). Portanto, a par do objectivo da redução da dívida tarifária - que é uma das suas causas - o objectivo da promoção de mecanismos para financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, bem como de medidas de apoio às empresas, gerará, igualmente, contrapartidas, ainda que difusas, dirigidas aos sujeitos passivos da CESE. A existência destas presumidas contraprestações que vão além do mero objectivo da redução tarifária, e que a criação do FSSSE garante, assegura, também, o carácter estrutural de bilateralidade ou sinalagmaticidade da relação subjacente ao tributo em causa, permitindo excluir a sua caracterização como imposto, já que nelas (contraprestações) é possível identificar a satisfação das utilidades do sujeito passivo do tributo como contrapartida do respectivo pagamento. É a participação de um especial sector da atividade económica nos benefícios/custos presumidos da adopção destas políticas de financiamento que permite isolá-los dos demais contribuintes, sujeitando-os à contribuição criada pelas normas em apreciação, sem que essa diferenciação possa considerar-se violadora da Constituição, como veremos. Assim, apesar de não pressupor uma contraprestação directa, específica e efectiva, razão pela qual não pode ser qualificada como taxa, a CESE, reveste características de bilateralidade na relação entre o Estado e os sujeitos passivos do tributo, pela conexão entre a origem das receitas e o seu destino.
Não estamos, por isso, perante uma cobrança de tributo para participação nos gastos gerais da comunidade, numa pura angariação de receitas, que vise prover, indistintamente, às necessidades financeiras do Estado, que traduza o cumprimento de um dever geral de cidadania e solidariedade, como o dever de pagar impostos, em que esteja ausente uma qualquer contraprestação pública dedicada. Isto porque não é finalidade imediata e genérica deste tributo a obtenção de receitas, a serem afectadas, geral e indiscriminadamente, à satisfação de encargos públicos.
O facto de não ser possível individualizar-se, de forma concreta e absolutamente objectiva, uma compensação efectiva que, pelo seu conteúdo e natureza, seja especificamente dirigida aos sujeitos passivos que desenvolvam a actividade que cai no âmbito de incidência deste tributo, mas apenas as vantagens difusas, tal não retira carácter comutativo às prestações que visem financiar os objectivos que vão além da redução da dívida tarifária, já que estas contrapartidas não estão dissociadas de prestações públicas, ainda que genericamente destinadas a um grupo específico, sendo de presumir que os mesmos sujeitos passivos da CESE beneficiarão dos mecanismos que promovem a sustentabilidade sistémica do sector energético. Ou seja, no caso da CESE, estamos perante um tributo comutativo, em virtude de, ainda que de forma difusa, ser possível identificar nos objetivos do FSSSE, a que foi consignada, contraprestações destinadas a um determinado grupo de sujeitos passivos que mantêm suficiente proximidade com as finalidades que este prosseguirá.
Acresce que a CESE é consignada a um fundo que tem natureza de património autónomo, sem personalidade jurídica e com autonomia administrativa e financeira, o citado Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), instituído pelo dec.lei 55/2014, de 9/4. Esta consignação ao FSSSE foi expressamente fixada, logo na Lei do Orçamento de Estado para 2014 (cfr.artº.11, do regime da CESE), assim se retirando esta receita ao financiamento de despesas públicas gerais do Estado.
A revisão constitucional de 1997 introduziu, a propósito da delimitação da reserva legislativa parlamentar, a categoria tributária das contribuições financeiras a favor das entidades públicas, dando cobertura constitucional a um conjunto de tributos parafiscais que se situam num ponto intermédio entre a taxa e o imposto (cfr.artº.165, nº.1, al.i), da C.R. Portuguesa). As contribuições financeiras constituem um "tertium genus" de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas colectivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos, porque não têm, necessariamente, uma contrapartida individualizada para cada contribuinte e, em parte, da natureza das taxas, porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam colectivamente de uma actividade administrativa (cfr.Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., Coimbra Editora, 4ª. Edição, pág.1095; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, 4ª. edição, Editora Encontro da Escrita, 2012, pág.72 e seg.; Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2013, pág.82 e seg.).
Revertendo ao caso dos autos, não pode deixar de se considerar que a CESE revela as características de uma contribuição financeira, que não de um verdadeiro imposto (cfr. artº.165, nº.1, al.i), da C.R.Portuguesa; artº.3, nº.2, da L.G.T.; ac.Tribunal Constitucional 7/2019, de 8/01/2019, proc.141/16; decisão sumária do Tribunal Constitucional 229/2020, 21/04/2020, proc.181/20; Parecer 4/2016, de 26/01/2018, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República, 2ª. Série, de 2 de Março de 2018; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/01/2020, rec.386/17.8BEMDL).
Avançando, atenta a matéria de facto provada, a sociedade impugnante e recorrente assume-se como sujeito passivo da CESE ao abrigo do citado artº.2, al.d), do Regime da CESE (cfr.nºs.1 e 4 do probatório supra).
Concluindo-se que a CESE deve ser qualificada como contribuição financeira, e não como um imposto, fica precludida a análise dos argumentos da recorrente que sustentavam a inconstitucionalidade das normas que a criaram e estabeleceram o respectivo regime, remetendo para os princípios constitucionais que regulam estes tributos, como seja a violação do princípio da capacidade contributiva, na vertente da igualdade material (quanto à já identificada incidência objectiva da CESE), ou a violação do princípio da tributação das empresas pelo lucro real e a consequente, e alegada, situação de dupla tributação em face do I.R.C.
Invoca, igualmente, a apelante, que o regime da CESE é violador dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da equivalência (enquanto subprincípio derivado do princípio da igualdade).
Quanto ao exame e decisão do presente esteio do recurso segue-se, de perto, a fundamentação do já citado ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/01/2020, rec.386/17.8BEMDL, no qual o relator integrou o respectivo colectivo, enquanto 1º. Adjunto.
Antes de mais, se dirá que os vícios de inconstitucionalidade buscam uma fiscalização concreta e com características oficiosas. Esta caracteriza-se por ser um controlo que compete a todos os Tribunais, mais tendo natureza difusa e incidental (cfr.artºs.204 e 280, nº.1, da C.R.Portuguesa; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/11/2015, rec.103/15; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/10/2019, rec.179/19.8BEPFN; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 2º. Volume, Coimbra Editora, 2010, págs.518 e seg. e 940 e seg.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. Edição, 21ª. Reimpressão, Almedina, 2019, pág.982 e seg.).
O princípio constitucional da proporcionalidade, encontra consagração no artº.18, nº.2, da C.R.Portuguesa, como pressuposto material para que se verifique uma restrição legítima de direitos, liberdades e garantias consagrados no nosso Diploma Fundamental.
O princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa "justa medida", impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos. Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de "direitos, liberdades e garantias", que consiste no respeito do "conteúdo essencial" dos respectivos preceitos (cfr.J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 1º. Volume, Coimbra Editora, 2007, pág.392 e seg.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. Edição, 21ª. Reimpressão, Almedina, 2019, pág.266 e seg.).
Já quanto ao princípio da equivalência (na vertente derivada da igualdade perante a repartição dos encargos públicos), enquanto subprincípio do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artº.13, do Diploma Fundamental, diz-nos que o legislador não deve consagrar a existência de sacrifícios especiais de indivíduos ou grupos de indivíduos, por razões de interesse público, sob pena do reconhecimento de uma indemnização ou compensação a tais grupos particularmente sacrificados. Por outro lado, com o dito princípio da equivalência visa-se que as taxas e contribuições se adaptem às prestações públicas de que beneficiarão, real ou presumidamente, os respectivos sujeitos passivos (cfr.J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 1º. Volume, Coimbra Editora, 2007, pág.344 e seg.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. Edição, 21ª. Reimpressão, Almedina, 2019, pág.431; ac.Tribunal Constitucional 7/2019, de 8/01/2019, proc.141/16).
Revertendo ao caso dos autos, a sujeição à CESE do grupo constituído pelos operadores económicos em que a recorrente se inclui não é desprovida de contrapartidas. Nem quando, globalmente considerado, o grupo de operadores no sector da energia, nem quando, especificamente considerados, aqueles que operam no sector do gás natural. Aliás, na definição da consignação de receitas, é para o sector da energia globalmente considerado que são destinadas a maior parte das verbas, visando o financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, e de apoio às empresas, já que apenas um terço é reservado à redução da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional (SEN).
É, em suma, o carácter sinalagmático, atrás enunciado, que traduz a verificação da paridade necessária, pelo que não pode deixar de se concluir não existir desrespeito pelo princípio da equivalência. Ao mesmo tempo, a assinalada bilateralidade, encontrada na contraprestação correspondente à sujeição à CESE, retira-lhe o carácter de imposto que incidiria sobre o património das empresas do sector energético que a ela estão obrigadas. Como descrevemos, a estrutura bilateral do tributo justifica que se distinga estes sujeitos passivos dos demais contribuintes, respeitando-se, por isso mesmo, o princípio da equivalência e afastando-se uma injustificada desigualdade.
Invoca a recorrente que a imposição deste encargo igualmente viola o princípio da proporcionalidade. Uma tal questão remete-nos para o controlo do critério escolhido pelo legislador para a definição desta contribuição, ou seja, para o equilíbrio entre prestação e contraprestação.
Ora, a objectividade conseguida na relação entre uma taxa e a troca real e efectiva que a justifica e, por outro lado, uma contribuição e a prestação genérica e presumida que lhe dá origem, será de grau necessariamente diferenciado, já que, nas prestações presumidas/custos provocados, esta relação não poderá deixar de ser mais difusa ou reflexa, pela sua própria natureza. Por isso, na finalidade de promoção de mecanismos para financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, prevista como um dos destinos da CESE, a que, aliás, a lei consigna a maior parte das receitas deste tributo (cfr.artº.4, nº.2, al.a), do Regime da CESE), não se procura a identificação de benefícios efectivos, concretos, objectivamente mensuráveis e comparáveis com o sacrifício imposto, mas um mínimo de probabilidade na obtenção desses benefícios pelos sujeitos passivos. E, no caso da recorrente, ainda que se pudesse considerar que inexistiria relação causal entre o desempenho da sua actividade e a dívida tarifária do SEN, ou que não beneficiaria de medidas promovidas para sua redução – já que a recorrente não integra o sector electroprodutor – sempre aqueloutro objectivo, enunciado como destino maioritário da alocação de verbas, pode ser identificado como elemento suficientemente justificador da relação causal entre o tributo a pagar e o financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental. É que, como se afirmou já, a causalidade estrutural desta contribuição não assenta, de modo algum, exclusivamente, na redução da dívida tarifária do SEN.
Consequentemente, a incidência subjetiva da CESE abrange um conjunto justificável e diferenciável de destinatários que irão, através dela, compensar prestações que presumivelmente serão por estes provocadas ou aproveitadas – seja, a redução tarifária do SEN, ou, no caso dos operadores económicos desempenhando a actividade da apelante, os encargos com os mecanismos de promoção da sustentabilidade do sector energético – mantendo estes inegável proximidade com as finalidades procuradas com o lançamento da CESE, nesse sentido assumindo aquela contraprestação uma natureza grupal, razão justificadora da tributação que sobre o grupo recai, distinguindo-o dos demais contribuintes.
No quadro de um modelo de Estado regulador, o objectivo do financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético é especialmente aproveitada pelo grupo de operadores económicos em que a recorrente se inclui. Como já se afirmou, neste contexto, é possível identificar uma suficiente conexão entre a origem da receita, cuja fonte são os agentes económicos sujeitos à CESE, e a sua finalidade, que a lei consignou ao FSSSE, de instituição de mecanismos para financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, de que o mesmo sector económico beneficiará.
É na promoção desta finalidade, e nos benefícios e encargos que daí advêm para determinados sectores, que o legislador sustenta a imposição a operadores do sector económico da energia de um tributo que não recai sobre outros operadores económicos, nem sobre a generalidade dos cidadãos contribuintes. E esta prestação é inegavelmente útil à consecução do fim a que se destina, de assegurar as medidas do sector energético referidas, sem onerar a generalidade dos operadores de sectores distintos e os cidadãos em geral, a que não se destinam, que as não causaram nem delas beneficiam.
É por esta mesma razão, de afastar do financiamento destas medidas de sustentabilidade energética os demais contribuintes que não lhes dão origem, nem delas beneficiarão de modo directo, que resulta patente que impô-las não se poderá considerar discriminatório (cfr.ac.Tribunal Constitucional 7/2019, de 8/01/2019, proc.141/16).
Também no que respeita à incidência objectiva da CESE se considera estar garantido um nexo causal suficiente entre os activos (no caso, activos regulados) sobre os quais recai a CESE (cfr.artº.3.º, nº.1, do Regime da CESE) e as políticas públicas de cariz social e ambiental do sector energético.
A titularidade dos activos tributáveis por parte das empresas que as normas legais sujeitam à CESE, cuja justificação radica na sustentabilidade sistémica do sector energético, torna-as presumíveis beneficiárias das políticas públicas de energia e da sua regulação. Os activos não surgem como manifestação meramente hipotética da capacidade contributiva, que fosse exigida como receita para despesas gerais do Estado, mas como indicador que permite presumir a potencial utilidade das prestações públicas que aos operadores aproveitam, tal como os custos presumidos que provocam, já que os activos são elementos essenciais ao desenvolvimento da actividade, sendo suficientemente adequados para diferenciarem aquele impacto. Também por esta razão, não pode ligar-se a sujeição do activo ao tributo a qualquer demonstração de que estaríamos perante um imposto sobre o património das empresas. Na lógica do legislador, a titularidade de activos em certa área da economia é um dado que permite aferir da susceptibilidade da empresa para ser causa de/beneficiar de políticas de sustentabilidade, o que a distingue dos demais operadores de outras áreas e dos cidadãos contribuintes em geral.
Note-se, na sequência do que vem dito, que o facto de o nexo de incidência objectiva à CESE ser diferenciada em função da titularidade do valor dos elementos do activo de determinados operadores económicos, ou do valor dos activos regulados, assim afastando a imposição de um encargo à generalidade dos contribuintes, e ajustando a base de incidência em função dos diferentes grupos de sujeitos passivos do tributo, não é, ao contrário do que sustenta o recorrente, indício de desigualdade, mas, antes, de delimitação da base de incidência em função da presumida contraprestação, cujo benefício/custo respeita ao sector energético, desde logo, não a impondo à generalidade dos contribuintes, e procurando a acomodação da contribuição ao custo/benefício presumidos. Daqui não se segue – o que é reforçado pela natureza do tributo em causa – que, da definição das isenções, ou da diferenciação introduzida, dentro de cada grupo de operadores económicos, em função do critério dos activos como base de incidência, ou da distinção feita através da definição de taxas diferentes, tenham de resultar esforços com peso relativo rigorosamente igual, sob pena de se dever considerá-los arbitrários, já que, não apenas se entende que a definição das obrigações encontra fundamento nas características da sua actividade, como procura levar em conta os diversos contributos dos operadores para a sustentabilidade, verificando-se que a diferenciação não é arbitrária.
Em conclusão, quer porque o critério escolhido pelo legislador para delimitar a base subjectiva e objectiva de incidência da CESE não é totalmente desligado da finalidade que com a contribuição financeira se procura realizar, quer porque o critério definidor do montante não é manifestamente injusto, flagrante e intolerável, este regime não implica qualquer violação dos princípios da equivalência e da proporcionalidade, contrariamente ao defendido pela sociedade recorrente (cfr.ac.Tribunal Constitucional 7/2019, de 8/01/2019, proc.141/16; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/01/2020, rec.386/17.8BEMDL).
Por último, examinemos se o identificado regime da CESE viola os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, tal como o da proibição da retroactividade da lei fiscal, como também defende a sociedade apelante.
O princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, deve ser apreciado, em sede de tutela constitucional, enquanto emanação do princípio do Estado de Direito democrático (cfr.artºs.2 e 9, al.b), da C.R.Portuguesa). Como postulados deste princípio vemos surgir as noções de fiabilidade, de clareza, de racionalidade e de transparência face a todos os actos de poder, legislativo, executivo ou judicial. Em relação a eles o cidadão/ente colectivo deve ver garantida a segurança nas suas disposições pessoais e dos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Enquanto refracção deste princípio e em sede de actos normativos, vemos surgir a proibição de normas retroactivas e restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos, com especial incidência no âmbito das leis fiscais (cfr.artº.103, nº.3, da C.R.Portuguesa; ac.Tribunal Constitucional 1011/1996, 8/10/1996; ac.Tribunal Constitucional 260/2010, de 29/06/2010; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 1º. Volume, Coimbra Editora, 2007, pág.204 e seg.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. Edição, 21ª. Reimpressão, Almedina, 2019, pág.257 e seg.).
No ordenamento jurídico português o princípio da proibição de impostos com natureza retroactiva (o qual contempla, apenas, o tipo de retroactividade autêntica) foi expressamente introduzido no texto constitucional com a revisão constitucional de 1997 (cfr.artº.103, nº.3, da C.R.P.; artº.12, nº.1, da L.G.T.), desta forma explicitando um postulado que já poderia considerar-se como uma decorrência do princípio da protecção da confiança, inscrito no princípio do Estado de Direito (cfr.artº.2, da C.R.P.). Desse modo, não são lícitos constitucionalmente os impostos criados para incidir sobre rendimentos já auferidos ou sobre factos tributários (transacções, etc.) já transcorridos. A forma enfática como a norma está formulada não deixa dúvidas sobre a natureza absoluta desta proibição, dando a todo o contribuinte o direito de se recusar a pagar tal tributo. Nessa medida, o imposto retroactivo (ou qualquer outra norma fiscal retroactiva, desde que desfavorável) é sempre constitucionalmente ilícito. A Constituição fez aplicação à obrigação de pagar impostos - que se traduz sempre numa ablação pecuniária dos contribuintes - do mesmo regime de proibição da retroactividade que vale para as restrições de direitos, liberdades e garantias nos termos do artº.18, nº.3, do Diploma Fundamental (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 17/12/2019, rec.62/06.7BEPRT; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 1º. Volume, Coimbra Editora, 2007, pág.1092 e seg.; J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3ª. Edição, Coimbra Editora, 2007, pág.186 e seg.).
"In casu", não nos encontramos perante um imposto, conforme já concluído supra, sendo a CESE uma contribuição financeira criada para fazer face a uma situação de excepção que teve a sua génese e fundamento na iminente ruptura financeira das contas públicas e, consequentemente, também de conturbação do sector da energia, onde se revelava indispensável a intervenção do Estado pelo modo em apreço.
A jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional tem afirmado que, fora do âmbito dos impostos, a retroactividade de outros tributos apenas deve ser recusada em caso de violação intolerável de direitos e expectativas legitimamente fundadas dos contribuintes, sendo que, relativamente ao princípio da segurança jurídica, na vertente material da confiança, exige, para que esta seja tutelada, a verificação de dois pressupostos cumulativos (cfr.ac.Tribunal Constitucional 135/2012, de 7/03/2012). A afectação de expectativas dos contribuintes, em sentido desfavorável, será inadmissível:
1-Quando sejam introduzidas na ordem jurídica normas que produzam uma mutação dessa mesma ordem, com que, razoavelmente, os seus destinatários não possam contar;
2-Quando a alteração da ordem jurídica não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes sobre os interesses particulares afectados (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no citado artº.18, nº.2, da C.R.Portuguesa).
Ora, no caso, estes pressupostos não se verificam. Com efeito, qualificando-se a CESE como um tributo extraordinário também não pode ignorar-se que tal tributo surgiu num contexto de crise financeira.
Na verdade, e ainda que se admita que a sociedade recorrente possa alegar que no início da sua actividade económica não previu, concretamente, este pedido de contribuição financeira, também não podemos deixar de referir que tal lhe fosse completamente imprevisível e inopinado, uma vez que se existe sector de actividade em que o inesperado e o contingente é o de maior imprevisibilidade, é este, o da energia.
Conforme é consabido, este é o sector económico mais volátil, em que o próprio preço pode exprimir num curto espaço de horas, não as condicionantes naturais e causais da sua produção e de outros custos fixos, mas de meros fenómenos climatéricos e ambientais extremos, acções especulativas e a ocorrência de conflitos armados, distantes que sejam, induzindo tais factores variações imediatas nos preços que se multiplicam por vários dígitos, e consequentemente nas expectativas de rentabilidade, que no limite podem mesmo conduzir ao colapso económico. Assim sendo, contribuir para políticas públicas de eficiência energética, esbatimento no impacto ambiental, e até mesmo da redução marginal do défice tarifário, na expressão da estabilização do sector em que a apelante desenvolve a sua actividade, situação que surgiu numa situação de excepção e de emergência financeira nacional e em que também foram chamados a contribuir todos os restantes actores económicos e, bem assim, as pessoas individuais, mesmo as mais desfavorecidas, que ao invés de se confrontarem com uma mera redução da sua expectativa económica, se chegaram a ter que confrontar até com situações extremas de desespero, decorrentes de desemprego, milhares delas, e de insolvência, não sendo esta sequer a situação da sociedade recorrente, pelo que não se antevê em que medida pode a mesma considerar-se afectada nas suas expectativas imprevisíveis e inauditas de confiança e segurança jurídica ao ser chamada a contribuir para uma solução de que até é beneficiária e lhe interessa, concretamente, estabilização do mercado energético.
Em suma, dada a conjuntura económica e financeira ao tempo (a qual, em certa medida ainda se mantém), não se nos afigura que os sujeitos passivos em causa não pudessem, razoavelmente, contar com a criação da CESE, em termos de se considerar que ocorreu violação intolerável de direitos e expectativas legitimamente fundadas dos mesmos.
Já quanto à alegada violação do princípio da proibição da retroactividade das leis fiscais, também ela se não verifica no caso concreto, por três ordens de razões:
1-Conforme já aludido acima, a proibição constitucional apenas abrange a retroactividade de 1º. grau (os casos de retroactividade inautêntica serão tutelados à luz do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático);
2-O referido princípio constitucional aplica-se apenas aos impostos, excluindo-se as outras figuras tributárias (taxas e contribuições financeiras). Para estas, mesmo perante uma situação de retroactividade autêntica, a apreciação da conformidade constitucional das normas deverá ter como parâmetro o princípio da tutela da confiança e da segurança jurídica;
3-O facto tributário configurado nos autos (cfr.ano de 2015 - nºs.4 e 5 do probatório), verificou-se após o início da vigência do regime da CESE, não havendo, pois, aplicação da lei nova a factos tributários integralmente verificados ou cujos efeitos estivessem integralmente produzidos e verificados no domínio de lei antiga, ou seja, antes da entrada em vigor da lei nova, nem ocorrendo, por outro lado, destruição de efeitos produzidos por actos pretéritos.
Como consequência de tudo o acabado de expender, deve concluir-se que os artºs.2, 3, 4, 5, 11 e 12, do Regime da CESE, não padecem do vício de inconstitucionalidade que lhe é imputado, tal como do vício de ilegalidade devido a violação de normas constantes da L.G.T.
Por último, o valor da presente acção excede o montante de € 275.000,00. E, atenta a decisão, não temos por verificado o requisito de "menor complexidade" a que alude o artº. 6, nº.7, do R.C.Processuais.
Não obstante, porque se nos afigura que o montante da taxa de justiça devida é manifestamente desproporcionado em face do concreto serviço prestado nos autos, pondo em causa a relação sinalagmática que a taxa pressupõe, decide-se dispensar em 50% o pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Atento o relatado, sem necessidade de mais amplas considerações, julga-se improcedente o presente recurso e mantém-se a decisão recorrida, embora com a presente fundamentação, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
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Condena-se o recorrente em custas, com dispensa do pagamento de 50% do remanescente da taxa de justiça.
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Registe. Notifique.
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Lisboa, 16 de Setembro de 2020. – Joaquim Condesso (relator) – Paulo Antunes – Aragão Seia.