Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0287/14.1BEVIS
Data do Acordão:02/03/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:FALTA
DECLARAÇÃO
ENCERRAMENTO
ANULAÇÃO PARCIAL
Sumário:I - Como há muito se vem consignado na jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, o acto tributário deve ser parcialmente anulado sempre que a ilegalidade afecte apenas parte do acto e não a sua totalidade, não consubstanciando nem pressupondo essa anulação parcial a prática pelo tribunal de um acto tributário, nem qualquer violação do princípio da separação de poderes.
II - Tendo ficado provado que o sujeito passivo ainda exercia actividade durante o ano em que a mesma foi encerrada, e que esse encerramento só aconteceu em Junho, deve o acto de liquidação oficiosa do rendimento ser apenas parcialmente anulado, por inexistência de rendimento, correspondente ao período de Julho a Dezembro.
Nº Convencional:JSTA000P27101
Nº do Documento:SA2202102030287/14
Data de Entrada:03/17/2020
Recorrente:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A………….
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I - Relatório

1 – A Fazenda Pública inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu em 30 de Junho de 2018, que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida por A……….., na qualidade de responsável subsidiário, da devedora originária “B………….. Lda.”, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2658201301000438, recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul, formulando, para tanto, alegações que concluiu do seguinte modo:
a) Incide o presente recurso sobre a aliás douta sentença, que, entre outras, julgou parcialmente procedente a presente impugnação, sendo que o presente recurso versa apenas a parte da douta decisão que ordenou a anulação da liquidação constante no processo de execução fiscal n.º 2658201301000438, mormente a liquidação de IRC do exercício de 2011, no valor de €11.398,71, com fundamento em inexistência de facto tributário;
b) Nos termos conjugados dos art.º 1.º e 3.º do CIRC, o imposto sobre as pessoas colectivas (IRC) incide sobre os rendimentos obtidos, no período de tributação, pelos respectivos sujeitos passivos, incidindo este imposto sobre os lucros das sociedades comerciais que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;
c) Ora, é entendimento jurisprudencial assente que inexistindo facto tributário em resultado da inactividade do sujeito passivo e consequente não demonstração da obtenção de receitas no ano a que respeita a tributação, não se verifica o pressuposto do imposto - cfr. Acórdãos do STA de 22.04.2015, recurso n.º 0826/13; de 05.07.2012, recurso n.º 474/11; de 02.03.2011, recurso n.º 1039/10; e de 04.11.2009, recurso n.º 533/09;
d) Tal significa que inexistindo qualquer actividade económica geradora de rendimentos e, consequentemente, qualquer lucro susceptível de tributação em sede de IRC, não poderá haver lugar a tributação, por inexistência de facto tributário, sob pena de violação do princípio da tributação pelo rendimento real estatuído no n.º 2 do art.0 104.º da CRP;
e) In casu, entendeu o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo que, tendo sido decidida a liquidação da sociedade devedora originária, há que considerar que inexistiu facto tributário, razão pela qual, relativamente ao exercício de 2011, ordenou a anulação da liquidação de IRC daquele exercício;
f) Ressalvado o devido respeito, que é muito, não poderia o julgador determinar, como o determinou, a anulação total da liquidação de IRC do exercício de 2011, exigida no PEF 2658201301000438;
g) De facto, da douta sentença consta como facto provado que, em 06.04.2011, no âmbito do processo n.º 101/11.0TBSCD, foi proferida sentença declarando a insolvência da sociedade “B……………., Lda." - cfr. ponto C) do probatório, sendo que, em 07.06.2011 foi deliberado o encerramento da actividade e a liquidação da sociedade em Assembleia de Credores - cfr. ponto E) do probatório;
h) Porém, consta do probatório que, à data da declaração de insolvência, a sociedade devedora originária encontrava-se em actividade - cfr. ponto D) do probatório, pelo que foi dado como facto provado que, pelo menos, até à data da declaração da insolvência, a sociedade devedora originária se encontrava activa, exercendo, assim, uma actividade geradora de rendimentos;
i) Ora, se, até aquela data, a dita sociedade se encontrava em actividade, forçoso é concluir que a mesma obteve rendimentos, rendimentos esses que estariam, então, sujeitos a tributação em sede de IRC;
j) Incorreu, assim, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo em erro de julgamento ao determinar a anulação, na totalidade, da liquidação de IRC do exercício de 2011, com base em inexistência do facto tributário;
k) Pois, salvo melhor douta opinião, entende a Fazenda Pública que, atenta à factualidade assente (exercício da actividade da sociedade insolvente até à data da declaração da sua insolvência) e considerando a divisibilidade do acto tributário, deveria, antes, a sentença sob recurso ter determinado a anulação parcial da liquidação de IRC ora em questão;
l) Solução essa que, aliás, estaria em consonância com a decisão do julgador em determinar, apenas, a anulação das liquidações de IVA exigidas nos PEF 2658201201010069, 2658201301000926 e 2568201301003976, por respeitarem a períodos ulteriores à decisão de encerramento da actividade da sociedade insolvente, mantendo, por sua vez, a liquidação de IVA do período 2011-03T, no valor de €363,75, exigida no PEF 2658201201007785;
m) Não obstando, sequer, a tal possibilidade o facto de se tratar de uma liquidação oficiosa efectuada nos termos do art.º 90.º, n.º 1 alínea b) do CIRC, tanto mais que, mesmo no caso de liquidações que tiveram como base correcções à matéria colectável com recurso a métodos indirectos, a jurisprudência tem entendido que, ainda nessa situação, o acto tributário é divisível - Cfr., neste sentido, Acórdão do STA de 12.05.2012, recurso n.º 0477/12;
n) É, também, esse o entendimento pacífico da doutrina, nomeadamente Jorge Lopes de Sousa, anotação n.º 4 ao art.º 100.º e anotação n.º 20 ao art.º 124.º, ambos do CPPT anotado e comentado, 6.ª edição, 2011, Volume II, páginas 134 e 342;
o) A decisão do Julgador de determinar a anulação total da liquidação de IRC do exercício de 2011 padece, assim, de erro de julgamento, por errónea apreciação e valorização da factualidade assente na douta decisão ora recorrida.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, ordenando-se, em consequência, a substituição da douta sentença recorrida, por outra em que, nessa parte, determine a anulação parcial da liquidação de IRC do exercício de 2011, com as legais consequências.

2. Não foram produzidas contra-alegações.

3. O Tribunal Central Administrativo Sul, por decisão sumária de 9 de Março de 2020, declarou-se hierarquicamente incompetente para conhecer do presente recurso, declarando competente, para o efeito, o Supremo Tribunal Administrativo.

4. O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de o recurso ser procedente.

5. Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

II – Fundamentação

1. De facto
Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A) Os prédios urbanos inscritos na matriz predial da urbana da união das freguesias de Santa Comba Dão e Couto do Mosteiro, do concelho de Santa Comba Dão, sob os art.° U- 2703 e U-2707 (provenientes dos art.° U-1878 e U-1881 da extinta freguesia de Santa Comba Dão) encontram-se inscritos como sendo da titularidade de «B…………. Lda.» e o prédio inscrito na matriz predial rústica da união das freguesias de Santa Comba Dão e Couto do Mosteiro sob o art.° R-4378 (proveniente do art.° R-2177 da extinta freguesia de Santa Comba Dão) em nome de «C……………. » por aquisição no processo de insolvência n.º 101/11.0TBSCD
[cfr. certidões de teor de fls. 115 a 116 dos autos]
B) A sociedade «B…………. Lda.» encontrava-se inscrita no cadastro tributário em sede de IVA no regime normal trimestral, não tendo apresentado declarações para os períodos de impostos ulteriores ao quarto trimestre de 2010
[cfr. print do cadastro de fls. 116 verso dos autos e listagem das declarações de fls. 117]
C) Em 6 de Abril de 2011 no âmbito do processo n.º 101/11.0TBSCD instaurado no Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, 1.° Juízo, foi proferida sentença declarando a insolvência de «B………….. Lda.» a qual transitou em julgado em 13 de Maio do mesmo ano [cfr. certidão de fls. 53 a 73 dos autos]
D) À data da declaração de insolvência a sociedade encontrava-se em atividade.
[cfr. emerge do teor das sentenças proferidas no proc.° 101/11.0TBSCD e no seu apenso 101/11.0TBSCD-A de fls. 26 a 73 dos autos]
E) Em 7 de Junho de 2011 foi deliberado o encerramento da atividade e a liquidação da sociedade em Assembleia de Credores
[cfr. emerge da posição das partes expressa nos respetivos articulados, nomeadamente art.º 13.º da PI e art.º 43.º a 51.º da contestação.]
F) Não foi apresentada a competente declaração de cessação de atividade
[cfr. resulta do print de cadastro fiscal de fls. 116 dos autos.]
G) Em 29 de Novembro de 2013 foi elaborado o ofício citação no âmbito do processo de execução fiscal 2658201101004255 e Apensos (proc.° n.º 2658201201000330, 2658201201010069, 206582012010025189, 2658201201007785, 2658201201009176, 2658201301000926, 2658201301000438, 26582013010003976 e 2658201301006070) com vista à citação de A………………. para pagamento do valor de EUR 25.700,60
[cfr. citação de fls. 99 e 100 dos autos]
H) Em 2 de Dezembro de 2013 foi elaborado o ofício citação no âmbito do processo de execução fiscal 2658201101005170 e Apensos (proc.° n.º 2658201101005278, 2658201101006193, 26582011009109, 2658201201001370, 2658201201002384, 2658201201002708, 2658201201003380, 2658201201009729, 2658201201006746, 2658201301000853 e 2658201301003330) com vista à citação de A………. para pagamento do valor de EUR 3.867,00
[cfr. citação de fls. 103 e 104 dos autos]
I) As citações referidas nos 2 factos precedentes foram rececionadas em 6 de Dezembro de 2013
[cfr. aviso de receção de fls. 102 e 106 dos autos]
J) Foram revertidas contra o Impugnante as seguintes dívidas tributárias no montante global de EUR 25.700,60:

K) A dívida constante do processo 2658201201009176 foi anulada em 14 de Janeiro de 2014
[cfr. informação do SF de fls. 148 e de fls. 30 do procedimento de reclamação graciosa apenso]
L) O Impugnante apresentou reclamação graciosa onde peticionou a declaração de nulidade dos atos tributários que liquidaram impostos e coimas relativos à devedora original, posteriores à data em que foi declarada a sua insolvência e ainda a nulidade de decisão de reversão, constantes dos processos de execução fiscal 26582011010004255, 2658201201000330, 2658201201010069, 20658201201005189, 2658201201007785, 2658201201009176, 2658201301000926, 2658201301000438, 2658201301003976 e 2658201301006070, que foi autuada sob o n.º 265820140400030 no SF de Santa Comba Dão [cfr. emerge de fls. 2 a 7 do procedimento de reclamação graciosa apenso]
M) Em 22 de Abril de 2014 foi proferida decisão de indeferimento no procedimento de reclamação graciosa
[cfr. emerge de fls. 56 verso do procedimento de reclamação graciosa apenso]
N) Em 22 de Abril de 2014 elaborado o ofício n.º 2651 destinado à notificação da decisão constante do facto precedente, o qual foi rececionado em 28 do mesmo mês
[cfr. emerge do aviso de receção de fls. 59 do procedimento de reclamação graciosa apenso]
O) O Impugnante apresentou a presente Impugnação por correio eletrónico em 3 de Maio de 2014
[cfr. emerge de fls. 3 dos autos]
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão.


2. Questões a decidir
A única questão que vem suscitada no âmbito do presente recurso é a de saber se existiu erro de julgamento do TAF de Viseu ao anular o acto de liquidação oficiosa de IRC respeitante ao exercício fiscal de 2011, atento o facto de ter sido dado como provado que à data da declaração de insolvência, ou seja, em Abril de 2011, a sociedade se encontrava em actividade e que só em Junho desse ano (2011) foi deliberado o encerramento da mesma. (pontos D e E da matéria de facto assente).


3. Do direito
3.1. O Representante da Fazenda Pública não se conformou com o decidido a respeito da anulação da liquidação oficiosa de IRC referente ao exercício de 2011, com fundamento em inexistência de facto tributário, por resultar da prova assente que a sociedade em causa ainda exerceu actividade durante aquele ano, pelo menos, até Abril de 2011 (pronto D da matéria de facto assente). Assim, entende o Recorrente que a anulação do acto de liquidação, a existir, deveria ter sido parcial e não total, o que seria possível atenta a natureza divisível do acto tributário em questão.

3.2. O Requerente tem razão quando afirma que este Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que o acto de liquidação pode ser objecto de anulação parcial e que essa decisão de anulação parcial não consubstancia a prática pelo tribunal de um acto tributário, ou seja, não redunda em qualquer violação do princípio da separação de poderes – neste sentido, por todos, v. acórdão de 30 de Janeiro de 2019 (proc. 0436/18.0BALSB) e a restante jurisprudência aí referida.

E também razão quando alega que o acto deve ser parcialmente anulado sempre que a ilegalidade afecte apenas parte do acto e não a sua totalidade, como igualmente se deixou consignado na jurisprudência antes mencionada.

3.3. Transportando estes pressupostos para o caso dos autos, concluímos que a liquidação oficiosa nos termos do artigo 90.º, n.º 1 al. b) do CIRC, praticada pela AT no seguimento da falta de entrega de declaração de rendimentos por parte da empresa executada relativamente ao exercício de 2011, não pode considerar-se totalmente desprovida de facto tributário, uma vez que ficou provado (a partir dos elementos apurados em sede de tributação em IVA) que aquele sujeito passivo continuou a exercer a actividade naquele ano, pelo menos até Abril, e que só procedeu ao encerramento da mesma em Junho de 2011.

Assim, apenas a partir da data do encerramento, Junho de 2011 – uma vez que o revertido não provou (embora tenha chegado a alegar) que a actividade que ainda era exercida em Abril de 2011 tenha cessado em data anterior à do encerramento –, se pode considerar que não existe facto tributário que sustente a liquidação e, por essa razão, a anulação da mesma deve ser parcial, correspondendo apenas a 6 meses de rendimento, e não total.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida na parte em que julgou totalmente procedente a impugnação judicial da liquidação de IRC constante do processo de execução fiscal n.º 2658201301000438 e, em substituição, anular parcialmente aquela liquidação no que corresponde à tributação imputável aos meses de Julho a Dezembro, por inexistência de facto tributário relativamente a este período.


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Custas pelo Recorrido [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário] nesta instância e na parte correspondente ao decaimento da impugnação.
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Lisboa, 3 de Fevereiro de 2021. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.