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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0112/14
Data do Acordão:03/26/2014
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
REEMBOLSO DO IMPOSTO PAGO
DÍVIDA INCOMUNICÁVEL
Sumário:A Administração Tributária não pode, ad libitum, extinguir por acto de compensação uma dívida da exclusiva responsabilidade do executado através de um crédito integrante do acervo patrimonial comum do casal.
Nº Convencional:JSTA00068630
Nº do Documento:SA2201403260112
Data de Entrada:01/30/2014
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A............ E FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF COIMBRA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART89 N1 ART220.
CIRC01 ART13.
LGT98 ART16.
CCIV66 ART1696 N1 ART843 N1.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. O MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, a fls. 205 e segs., que julgou procedente a reclamação judicial que A………… deduziu contra a decisão do órgão de execução fiscal que procedeu, por iniciativa própria, à compensação da dívida exequenda (da exclusiva responsabilidade do executado B…………, cônjuge da Reclamante), com um crédito integrante do acervo patrimonial comum do casal, derivado de reembolso de IRS.
Terminou as alegações de recurso com as seguintes conclusões:

1. O regime fiscal vigente prevê a obrigatoriedade de apresentação conjunta pelos cônjuges da declaração de rendimentos, nos termos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (art. 13º) e Lei Geral Tributária (art. 16º).
2. Sendo a declaração conjunta, na eventualidade de se apurar na liquidação a realizar pelos serviços tributários haver lugar a reembolso, esse reembolso será, igualmente, conjunto e não fraccionado.
3. No apuramento dos rendimentos do agregado familiar será usado o quociente conjugal, que será benéfico para o agregado na eventualidade de haver rendimentos diferenciados por parte de ambos os cônjuges, uma vez que se presumem iguais.
4. Na eventualidade de existirem dívidas fiscais da responsabilidade apenas de um dos elementos do agregado familiar, pode a administração tributária proceder à compensação com esse direito a reembolso - artigo 89º CPPT.
5. Deve o outro cônjuge ser citado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 220º do citado diploma legal, isto é, para requerer a separação de bens.
6. Não pode, deste modo, deferir-se uma reclamação apresentada pelo cônjuge não devedor para efeitos de os serviços tributários procederem ao reembolso de metade do valor apurado pelos mesmos na liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares na sequência da declaração conjunta.
7. Ao ser deferida tal reclamação foi violado o preceituado nos artigos 13º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, 16º Lei Geral Tributária, 89º e 220º Código de Procedimento e Processo Tributário.
Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada, por violação de lei, nos termos sobreditos.

1.2. A Recorrida não apresentou contra-alegações.

1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal não emitiu parecer, atento o facto de o recurso haver sido interposto pelo Ministério Público.

1.4. Com dispensa de vistos, dada a natureza urgente do processo, cumpre decidir.

2. Na sentença recorrida constam como provados os seguintes factos:
A - Em 10.06.1989, a Reclamante A………… e B………… contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial (cf. doc. a fls. 158 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
B - Foram movidos contra C…………, Ld.ª os processos de execução fiscal nº 0850-00/100170.1 e apensos (cf. docs. a fls. 4 a 115 dos autos que aqui se dão, para todos os efeito legais, como integralmente reproduzido).
C - Em 23.08.2001, o Sr. Chefe do SEF de Soure lavrou despacho no qual determinou a reversão da execução contra D…………, E………… e B…………, tendo estes sido notificados (cf. docs. a fls. 33 a 40 dos autos que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).
D - Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Soure, datada de 05.02.2004, foi reconhecida a situação de insolvência económica da C…………, Ld.ª (cf. doc. a fls. 170 a 179 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
E - Em 30.05.2013, a Reclamante e B………… apresentaram via Internet a Declaração Modelo 3 de IRS de 2012 (cf. docs. a fls. 159 a 165 dos autos que aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos).
F - A Reclamante recebeu a liquidação nº 2013 5004062112, datada de 23.06.2013, relativa ao IRS de 2012, dela resultando a título de montante a reembolsar a quantia de € 925,90 (cf. doc. a fls. 122 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
G - A Reclamante recebeu a «Demonstração de Acerto de Contas», relativa à Compensação nº 2013 00007916720 (cf. doc. a fls. 123 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
H - A Reclamante recebeu a «Demonstração da Aplicação do Crédito», tendo sido notificada “[...] de que, nos termos do artigo 89º do Código de Procedimento Tributário (CPPT), se procedeu à compensação das dívidas fiscais acima enunciadas com o(s) valor(es) do(s) crédito(s) também identificados, sem conformidade com a presente demonstração de compensação.
Do acto da compensação das dívidas fiscais poderá, querendo, apresentar reclamação judicial no órgão de execução fiscal dirigida ao Tribunal Administrativo e Fiscal, no prazo de 10 dias a contar da assinatura do aviso de recepção, de conformidade com o previsto nos arts. 276º e 277º do CPPT [...]” (cf. doc. a fls. 124 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
I - A Reclamante recebeu o oficio referido na alínea anterior em 01.08.2013 (cf. doc. a fls. 202 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido).
J - A petição inicial do presente meio processual deu entrada nos Serviços de Finanças de Soure em 13.08.2013 (cf. fls. 119 a 124 dos autos).

3. Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou procedente a reclamação deduzida pelo cônjuge do devedor/executado por reversão da execução fiscal, reclamação que teve por fundamento a ilegalidade do acto praticado pelo órgão de execução fiscal, de compensação de créditos, traduzido na amortização da dívida exequenda através de crédito de reembolso de IRS/2012 devido ao casal. A reclamante consubstanciou a ilegalidade desse acto no facto de não ser responsável pelo pagamento da dívida exequenda e de esse reembolso de IRS também lhe pertencer, por via da comunhão conjugal, pedindo, a final, que a Administração Tributária lhe devolvesse o seu quinhão (1/2) no aludido crédito de reembolso, correspondente à quantia de € 462,95.
O tribunal recorrido, deu razão à reclamante, com a seguinte argumentação:
«Nos presentes autos, o cônjuge da Reclamante terá uma dívida para com a Entidade Reclamada que esteve na origem do acto de compensação aqui questionado. Igualmente resulta dos autos, que os sujeitos passivos de IRS que são a aqui Reclamada e o seu cônjuge terão tido um crédito de reembolso de IRS que está considerado na aludida compensação.
Porém, o aludido crédito não é do executado, antes pertencendo à realidade tributária que lhe está subjacente em sede de IRS e cuja titularidade é mista e a proporção é incerta, pelo que tal crédito não é suscetível de compensação. É que normativamente inexiste qualquer regra que permita configurar a natureza e quota do aludido crédito, repartindo-a na invocada ou em qualquer outra proporção.
Por isso, tal como defende a Reclamante, tal crédito pertence aos sujeitos passivos, sem que, no entanto, se possa apurar a quota-parte de cada um por ser indivisível a realidade tributária subjacente que resulta dos diferentes componentes necessários para o cômputo do IRS.
Assim, procede a presente reclamação.».

Discorda o Ministério Público do assim decidido, por entender, em suma, que incidindo o IRS sobre o conjunto dos rendimentos do agregado familiar, tomando-se em conta, designadamente, um quociente conjugal, não é possível fraccionar o valor de reembolso, e que, por outro lado, nos termos do art. 89º do CPPT, pode ser integralmente utilizado na compensação de créditos, relativamente a dívidas fiscais da responsabilidade exclusiva de um dos cônjuges, devendo, nessa circunstância, ser citado o outro cônjuge para requerer a separação de bens nos termos do art. 220º do CPPT.
Deste modo, a questão que se coloca neste recurso é a de saber se, ao ordenar a devolução à reclamante de metade do valor do reembolso de IRS, a sentença incorreu em erro de julgamento, violando os artigos 13º do CIRS, 16º da LGT, 89º e 220º do CPPT.
Vejamos.
É inquestionável que a dívida em causa no processo de execução fiscal é da exclusiva responsabilidade do cônjuge da Reclamante, ora Recorrida, e que face à entrega conjunta da declaração de IRS, nos termos do art. 13º do CIRS, o reembolso que por via dela foi apurado constitui um bem comum do casal.
É também inquestionável que na execução por dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem, em primeiro lugar, os bens próprios dele e só subsidiariamente a sua meação nos bens comuns do casal, em conformidade com o disposto no nº 1, do art. 1696º do Código Civil. Todavia, relativamente às dívidas tributárias, a lei, no art. 220º do CPPT, permite a imediata penhora de bens comuns do casal para garantir o pagamento de dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, impondo, neste caso, que o outro cônjuge seja citado «para requerer a separação judicial de bens, prosseguindo a execução sobre os bens penhorados se a separação não for requerida no prazo de 30 dias ou se se suspender a instância por inércia ou negligência do requerente em promover os seus termos processuais.».
E, ainda quanto a estas dívidas, o art. 89º, nº 1, do CPPT estabelece que «Os créditos do executado resultantes de reembolso, revisão oficiosa, reclamação ou impugnação judicial de qualquer acto tributário são aplicados na compensação das suas dívidas cobradas pela administração tributária (...)», o que significa que na pendência de execução fiscal a Administração Tributária deve utilizar os créditos de natureza tributária, de que seja titular o executado, na compensação das dívidas em cobrança.
No caso em apreço, a Administração Tributária não procedeu a qualquer penhora do reembolso, mas antes utilizou integralmente esse crédito, que resultou do apuramento do IRS do casal, em compensação da dívida exequenda.
Ora, a penhora e a compensação de créditos consubstanciam realidades com efeitos e regimes jurídicos totalmente diversos.
Enquanto a penhora é uma providência que consiste na apreensão judicial de bens, retirando-os da disponibilidade material do proprietário-devedor, para serem objecto de execução destinada a dar realização efectiva ao direito do credor-exequente, já a compensação de créditos é uma forma de extinção das obrigações, que opera através de um encontro de contas, em que o devedor se liberta da obrigação «por extinção simultânea do crédito equivalente de que dispunha sobre o seu credor» (Vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 6ª ed., pag. 195.). E esse encontro de contas, que tem a sua disciplina nos arts 843º e segs. do Código Civil, apenas pode ocorrer entre entidades que sejam, entre si, reciprocamente, credores e devedores (art. 843º, nº 1).
É neste enquadramento, da reciprocidade de créditos, que o art. 89º, nº 1, do CPPT impõe que a Administração Tributária proceda à compensação entre os seus créditos e aqueles de que, em relação a ela, o executado seja credor.
Nada obstaria, por conseguinte, a que, no caso vertente, a Administração Tributária compensasse a dívida em cobrança com um reembolso que fosse devido ao executado. Mas que somente a ele face devido, face à necessária reciprocidade dos créditos.
Todavia, não é esse o caso.
Como se viu, o reembolso em causa integra o património comum do seu casal, sendo que o outro cônjuge, a ora Recorrida, não é executada nem devedora, razão por que nem esta podia ser compelida a saldar a dívida exequenda, nem o crédito de que comunga podia ser objecto compensação, pois, como refere Jorge Lopes de Sousa (Código de Procedimento e do Processo Tributário, Anotado e Comentado, Áreas Editora, 5ª ed., vol. I, anot. ao artigo 89º, pág. 634.), «(...) não se pode admitir que ocorra privação coerciva de um direito de crédito, como sucede nos casos de compensação forçada previstos no art. 89º, sem que sejam concedidas ao afectado por ela todas as possibilidades de defesa que são concedidas à generalidade dos executados fiscais.».
É um facto que o executado participa dessa comunhão patrimonial conjugal em que se integra o crédito, mas por isso mesmo é que é titular, tal como o seu cônjuge, de um direito único e uno sobre esse património, que não é divisível sequer em termos de quotas, ainda que ideais. Por isso, quando no art. 1730º do Código Civil «se prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista fixar a quota parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum», como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª ed., anotação ao art. 1730º, pág. 437.
Daí que a concreta e individualizada repartição dos bens comuns do casal só possa ser determinada em partilha subsequente à dissolução do casamento ou no âmbito de uma separação judicial de bens.
Porém, ao contrário do que defende o Ministério Público, ora Recorrente, no acto da compensação não há lugar à citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens, como acontece na penhora. Não só porque tal citação não está prevista na lei, como, em todo o caso, essa citação se revelaria aqui completamente inútil.
Com efeito, enquanto a penhora não produz um efeito ablativo da propriedade e terá de ser levantada no caso de ter recaído em bens que na sequência da separação fiquem a pertencer ao cônjuge não devedor, já a compensação determina, pela sua própria natureza, a extinção do crédito. Ora, na impossibilidade quer de fraccionar o crédito quer de o radicar na exclusiva esfera jurídica do executado, impõe-se concluir pela inadmissibilidade legal da compensação, e, por conseguinte, pela ilegalidade do acto de compensação reclamado.
Mas isto não significa, de modo nenhum, que a Administração Tributária não possa assegurar o pagamento da dívida exequenda através da meação do executado no património comum do seu casal - e, porventura, até por meio daquele crédito - visto que, estando embora impedida de compensar os créditos nos termos expostos, pode, contudo, proceder à penhora do crédito em causa e dar cumprimento ao que dispõe o art. 220º do CPPT, facultando, assim, ao cônjuge não devedor a salvaguarda da parte que lhe possa pertencer no património comum, e que, com a compensação efectuada, ficou totalmente indefeso, ao arrepio do que manda a lei.
É, assim, fora de dúvida que, não detendo a Administração Tributária qualquer crédito sobre a Recorrida, não podia, ad libitum, extinguir uma dívida da exclusiva responsabilidade do executado através de um crédito integrante do acervo patrimonial comum do casal.
E a ilegalidade deste acto determinaria a anulação total de acto e a devolução da totalidade do reembolso, no montante de € 925,90. Todavia, a Reclamante limitou-se a pedir a anulação parcial da compensação, isto é, a anulação circunscrita a metade do valor envolvido (€ 462,95), o que impõe a procedência à reclamação nos estritos termos do que foi peticionado.
Neste enquadramento, a sentença não merece qualquer censura, tendo de manter-se na ordem jurídica.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Março de 2014. - Dulce Neto (relatora) - Ascensão Lopes - Casimiro Gonçalves.