Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0124/17.5BEPRT
Data do Acordão:05/12/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULO ANTUNES
Descritores:IMPOSTO ESPECIAL DE JOGOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I - A “contrapartida anual” prevista no Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17/10, reconduz-se a uma prestação de natureza patrimonial.
II - O Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro (“Lei do Jogo”), bem como o Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17/10, não enfermam de inconstitucionalidade orgânica e/ou material, e por violação de vários princípios constitucionais.
Nº Convencional:JSTA000P27634
Nº do Documento:SA2202105120124/17
Data de Entrada:02/08/2021
Recorrente:A..................., SA
Recorrido 1:TURISMO DE PORTUGAL, I.P.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I. Relatório

I.1. A…………..., S.A., melhor sinalizada nos autos, vem interpor recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 27/10/2020, que julgou improcedente a impugnação que intentara contra as liquidações de Imposto Especial sobre o Jogo (IEJ) dos meses de setembro, outubro e novembro de 2016, nos montantes de € 1.111.925,73, € 1.148.909,33 e € 989.440,30, respetivamente, referentes à concessão da zona de jogo da Póvoa de Varzim.

I.2. Aduziu alegações que rematou com o seguinte quadro conclusivo:
“1ª) A presente impugnação tem por objecto liquidações do Imposto de Jogo;
2ª) A circunstância de a actividade de jogo exercida pela ora recorrente ser feita ao abrigo de um contrato de concessão celebrado com o Estado, não retira a natureza de imposto ao... Imposto de Jogo;
3ª) O imposto de jogo não possui base contratual – como assinala a doutrina, o regime tributário da actividade do jogo é um regime exclusivamente legal;
4ª) Aliás, a recorrente, na petição inicial da impugnação, não contesta a validade do contrato de concessão, nem a validade de qualquer cláusula de tal contrato;
5ª) A recorrente contesta a legalidade de liquidações do imposto de jogo por este, tal como definido e estruturado no Decreto-Lei nº 422/89, de 2/12 (Lei do Jogo), violar os princípios constitucionais da legalidade, capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real e da igualdade;
6ª) A recorrente contesta, também, a legalidade de liquidações do Imposto de Jogo por não estarem devidamente fundamentadas e por violarem o disposto na Lei do Jogo;
7ª) Tendo em conta a clássica definição de tributo –“prestação patrimonial estabelecida por lei a favor de uma entidade que tem a seu cargo o exercício de funções públicas, com o fim imediato de obter meios destinados ao seu financiamento”, é indiscutível que o imposto de jogo, cujas liquidações se impugnaram, é um tributo e, além disso, dentro da classificação dos tributos, é um imposto;
8ª) A existência de um contrato de concessão não altera a natureza do tributo em questão, não havendo aqui, como assinalada na doutrina, qualquer “lei contrato”, ou qualquer “tributo contratual”;
9ª) As liquidações de Imposto de Jogo aqui impugnadas, são ilegais por terem como fundamento legal o Decreto-Lei nº 422/89, de 2/12, sendo que tal diploma, na parte fiscal, é organicamente inconstitucional por dizer respeito a matéria da competência da Assembleia da República e a lei de autorização legislativa não indicar os critérios mínimos orientadores da autorização;
10ª) As liquidações impugnadas são, também, ilegais, porque o referido Decreto-Lei nº 422/89, é inconstitucional quanto a uma outra vertente do princípio da legalidade;
11ª) Na verdade, o referido diploma atribuiu à autoridade administrativa a competência para fixar, para a tributação sobre as máquinas de jogo, um capital em giro, que constitui a incidência real do imposto;
12ª) Ora, o princípio da legalidade, na sua vertente de reserva de lei, é violado através dessa deslegalização, ao atribuir-se à autoridade administrativa a competência para fixar um elemento essencial do imposto;
13ª) As impugnadas liquidações são, também ilegais, por violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva e do rendimento real;
14ª) É que o imposto do jogo incide sobre o chamado “capital em giro” dos jogos, sem qualquer relação, nem com a receita bruta obtida pela recorrente nem, muito menos, com o lucro;
15ª) O imposto de jogo incide sobre verdadeiras e autênticas presunções inilidíveis de matéria colectável, violando o artº 104º, nº 2 da Constituição;
16ª) As características próprias do Imposto de Jogo, não permite afastar a sua sujeição aos princípios constitucionais da capacidade contributiva e do rendimento real;
17ª) A circunstância de o Imposto de Jogo incidir sobre o “capital em giro”, não justifica que a fixação dessa matéria tributável seja feita com ignorância ou desprezo total por um mínimo de correspondência com a capacidade contributiva e o rendimento real da recorrente;
18ª) A Lei do Jogo é, também, inconstitucional, por violação do princípio constitucional da igualdade, ao fixar taxas de imposto diferentes para as diversas concessões da actividade de jogo e, portanto, para os diversos contribuintes que se dedicam a essa actividade, sendo certo que, essa diferenciação entre os diversos contribuintes não resulta dos contratos de concessão, mas sim da Lei do Jogo;
19ª) As liquidações impugnadas são ilegais por insuficiente fundamentação quanto à fixação, pelo Turismo de Portugal, do “capital em giro inicial”, já que as deliberações das Comissões de Jogos não indicam os concretos critérios que estiveram na base da concreta fixação, para cada concreta máquina, do capital em giro inicial;
20ª) As liquidações impugnadas são também ilegais por esse capital em giro inicial ter sido fixado mensalmente, quando a Lei do Jogo estabelece uma fixação anual;
21ª) As liquidações impugnadas são, ainda, ilegais, porque o Turismo de Portugal, em violação frontal da subalínea b) da alínea c) do artº 87º da Lei do Jogo, ter fixado o “capital em giro inicial” sem tomar em consideração as características das diversas máquinas de jogo e das circunstâncias concretas verificadas na sua utilização;
22ª) Assim, a douta sentença recorrida fez, salvo o devido respeito, uma errada interpretação das normas e princípios aplicáveis.
Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e anulando-se as liquidações impugnadas, como é de Justiça.
Mais requer, por estarem presentes os requisitos contidos no artº 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais, a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça que venha a ser considerada devida.”

I.3. O recorrido Instituto do Turismo de Portugal, I.P. formulou contra-alegações que concluiu nos termos que se seguem:
1. O imposto especial de jogo não é um imposto geral sobre o rendimento, é um imposto especial com características de extrafiscalidade, que tem uma história, que só pode ser verdadeiramente compreendido quando analisado de forma integral e sistematicamente, continuando a ser válidas as razões que estiveram na sua criação e que é aplicável a um leque restrito de contribuintes, 7 concessionárias de zonas de jogo.

2. O contrato de concessão em causa nestes autos foi celebrado em 29 de dezembro de 1988, quando estava em vigor o Decreto-Lei n.º 48 912, de 18 de março de 1969, que continha o regime legal de exploração de jogos de fortuna ou azar, incluindo o regime tributário que enformava o contrato. O Governo em 1989, ao aprovar o novo regime que disciplina a exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos (Decreto-Lei 422/89) fê-lo acautelando a defesa dos direitos constituídos e das legítimas expetativas das atuais concessionárias da exploração de jogos de fortuna ou azar. Por esta razão a recorrente e demais concessionárias não se opuseram ao referido diploma nem o contestaram e inclusivamente declararam 11 anos mais tarde, em 2001, aquando da revisão dos contratos, aceitar expressamente todas as obrigações que do mesmo constam.

3. A recorrente ignora as especificidades na regulação pelo Estado da exploração dos jogos de fortuna ou azar, que estão bem patentes na legislação que trouxe esses jogos para o campo da legalidade e, em especial, no regime fiscal introduzido e que se mantém fiel à sua estrutura desde o primeiro momento (1927) em que o Estado decidiu regular uma atividade contra a qual nada podiam já as disposições repressivas.

4. A especialidade do imposto e as suas características de extrafiscalidade, implicam uma cautela por parte do intérprete e aplicador da lei, uma vez que não lhe são aplicáveis, integralmente, os princípios da “Constituição fiscal”, como são os da igualdade tributária e da capacidade contributiva.

5. O imposto especial de jogo é um imposto substitutivo de qualquer outra tributação, geral ou local, relativo à atividade específica de exploração dos jogos de fortuna ou azar, ao qual não podem ser aplicadas, sem mais, as regras de um imposto geral sobre o rendimento.

6. Esta técnica de tributação excecional ao contrário da tributação instituída para generalidade das empresas, não assenta sobre o lucro apurado, o rendimento real ou líquido da exploração, o que se justifica pela especialidade da atividade de jogo. Ao contrário da atividade da generalidade das empresas que é incentivada pelo Estado, sobre a atividade do jogo incide um forte juízo de censura moral não pretendendo o Estado incentivar a mesma. A regulação do jogo impôs-se como uma inevitabilidade para o Estado que não quis ser parte interessada nos lucros da atividade, recusando lucrar com o infortúnio e a desgraça alheia.

7. Inexiste qualquer violação do princípio da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real, uma vez que o n.º 2 do art.º 104.º da CRP, prevê que a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real, encontrando-se perfeitamente explicadas as razões pelas quais o Estado optou por tributar as concessionárias pelo valor do capital em giro inicial e pelas receitas brutas, sendo que a recorrente não alega factos que coloquem em causa a sua capacidade contributiva.

8. Não há qualquer violação do princípio da igualdade quando o legislador aplica taxas mais baixas nas áreas menos desenvolvidas turisticamente e mais altas nas que apresentem um maior desenvolvimento, desde logo porque cada concessionária se situa, em exclusivo, numa dessas áreas, tendo, por isso, o Estado de criar e desenvolver de forma diferente as diferentes áreas turísticas, o que faz todo o sentido também face à consignação de receita constante do n.º 3 do artigo 84.º da lei do jogo.

9. Não existe qualquer ilegalidade na fixação do capital em giro inicial para as máquinas, sendo que a recorrente nunca colocou em causa o seu método de fixação e valor.

10. O capital em giro inicial mensal, que corresponde a uma decomposição do capital em giro inicial anual, é fixado com base nos registos contabilísticos das máquinas que a recorrente tem à exploração e que, por isso, refletem as características e as circunstâncias da sua exploração.

11. A especialidade e especificidade do imposto de jogo e o facto de o mesmo ser aplicável apenas a sete concessionárias levou a que o legislador previsse a sua liquidação nos termos especiais previstos na lei do jogo, tendo a recorrente (i) prévio conhecimento da base de incidência do imposto (ii) conhecimento das respetivas taxas de imposto, (iii) conhecimento das bancas e das máquinas que colocou à exploração naqueles meses, e (iv) acesso ao sistema informático onde inseriu os valores da sua receita e de onde também resulta o cálculo aritmético para encontrar o imposto que é devido.

12. A circunstância de a aqui recorrente sempre ter concorrido para a formação das notas de liquidação do imposto e ter prévio acesso a toda a informação, permite-lhe conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela administração para a determinação da liquidação. Conhecendo a recorrente as razões factuais e jurídicas, a sua garantia de defesa não foi colocada em causa, pelo que inexiste falta de fundamentação.

13. Inexiste qualquer inconstitucionalidade orgânica ou material do Decreto-Lei n.º 422/89. A recorrente omite na sua alegação de recurso que o Governo, quando reviu a legislação relativa à atividade do jogo, honrou os compromissos contratuais assumidos pelo Estado Português aquando da celebração dos contratos, não inovando, isto é, limitando-se a retomar e a reproduzir o que já constava de textos legais anteriores.

14. Por último, também não existe qualquer violação do princípio da legalidade tributária por o capital em giro inicial das máquinas automáticas ser fixado por ato administrativo, pois tal não implica qualquer ofensa dos princípios constitucionais ou violação dos artigos 103.º n.º 2 e 165.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

15. Não compete ao Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos fixar ou definir as grandezas brutas, mas apenas determiná-las, uma vez que se encontra vinculado na fixação do capital em giro inicial das máquinas em termos em tudo idênticos aos que se verificam relativamente aos jogos bancados, ou seja, no respeito pelos valores contabilísticos de receita apurada indicados pela concessionária, que mantém, nos termos da lei e à semelhança dos jogos bancados, o controlo sobre as máquinas que coloca ou não à exploração, assim dominando e controlando a receita e o imposto a pagar.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Excelências Colendos Juízes Conselheiros a quanto alegado, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, mantida a sentença recorrida, assim se fazendo a costumada Justiça.

I.4. O recurso foi admitido e remetidos os autos ao S.T.A., a exm.ª magistrada do Ministério Público (M.P.) emitiu parecer no sentido da incompetência do S.T.A. em razão da hierarquia para conhecer do recurso e, caso assim não se entenda, dever negar-se provimento ao recurso de acordo com jurisprudência desse Tribunal que cita.

No que se refere à dita incompetência, invoca o seguinte:

“De acordo com o disposto nos art.ºs 26.º b) e 38.º a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos (ETAF) e 280º n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o STA é competente para conhecer dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância se apenas estiver em causa matéria de direito.

Ora, com o respeito devido, é nosso entendimento que o presente recurso jurisdicional não vem fundado, exclusivamente, em matéria de direito razão por que se verifica a excepção de incompetência do Tribunal, em razão da hierarquia, sendo que “o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria” – cf. art.ºs 13.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) e 16.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Na verdade, ao que se nos afigura, com base nos fundamentos do recurso e de acordo com as conclusões da alegação, a recorrente pretende ver discutidas e reapreciadas questões de facto como sejam as de que “o imposto do jogo incide sobre o chamado “capital em giro” dos jogos, sem qualquer relação, nem com a receita bruta obtida pela recorrente nem, muito menos, com o lucro – cf. 14ª conclusão da alegação da recorrente; na 17ª conclusão da recorrente refere-se que o apuramento da matéria tributável é feita com ignorância ou desprezo total por um mínimo de correspondência com a capacidade contributiva e o rendimento real da recorrente; a existência de taxas de imposto diferentes para as diversas concessões da actividade de jogo como alegado na 18ª conclusão da recorrente; a alegada insuficiente fundamentação das liquidações (cf. 19.ª conclusão da recorrente), o facto alegado na 20.ª conclusão da recorrente, de que o capital em giro inicial foi fixado mensalmente, quando a Lei do Jogo estabelece uma fixação anual e a circunstância de o Turismo de Portugal, ter fixado o “capital em giro inicial” sem tomar em consideração as características das diversas máquinas de jogo e das circunstâncias concretas verificadas na sua utilização (cf. 21.ª conclusão da alegação da recorrente); Ora, se bem interpretamos a alegação da recorrente, a resposta às questões mencionadas não se retiram da matéria de facto dada como provada na Sentença recorrida, devendo concluir-se que outros factos deveriam ter sido apurados e tidos como assentes. Como se escreveu no Acórdão do STA proferido no processo nº 0738/09 (disponível em www.dgsi.pt) “foram esquecidos” factos tidos por relevantes, quer porque a prova produzida foi insuficiente, quer ainda porque se diverge nas ilações de facto que se devem retirar dos mesmos.

Ora, como resulta das conclusões supra mencionadas, a recorrente, salvo melhor opinião, também, sindica matéria de facto e se assim é, o STA é incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso, sendo competente para o efeito o Tribunal Central Administrativo norte (TCAN), para onde deverão ser remetidos os autos, após trânsito do Acórdão que venha a ser produzido.”

I.5. Notificado o dito parecer para efeitos de contraditório, veio o recorrido Instituto do Turismo de Portugal, I.P. a pronunciar-se ainda nos seguintes termos:

1. No seu Douto Parecer, defende a Ilustre Magistrada do Ministério Público (“MP”) que «como resulta das conclusões supra mencionadas, a recorrente, salvo melhor opinião, também, sindica matéria de facto e se assim é, o STA é incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso, sendo competente para o efeito o Tribunal Central Administrativo norte (TCAN), para onde deverão ser remetidos os autos, após trânsito do Acórdão que venha a ser produzido.»
2. Para fundamentar a sua posição, sustenta o MP que as conclusões n.ºs 14, 17, 18, 19 e 20 importam a apreciação de matéria de facto, fazendo ainda alusão ao Acórdão proferido por este Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0738/09, o qual não tem qualquer correspondência factual com os presentes autos de recurso, porquanto, ao contrário do que sucede no caso sub judice, conforme melhor se evidenciará infra, naquele processo a Recorrente identifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados na Sentença recorrida.
3. Salvaguardado o devido respeito, não pode proceder a presente exceção de incompetência deste Supremo Tribunal Administrativo em razão da hierarquia para conhecer do mérito dos presentes autos de recurso, tal como invocada pelo MP, por a mesma ser manifestamente infundada.
4. Ao abrigo da jurisprudência firmada por este Supremo Tribunal Administrativo, entende o Recorrido que «o critério jurídico para destrinçar se estamos perante uma questão de direito ou uma questão de facto, passa por saber se o recorrente faz apelo, nos fundamentos do recurso substanciados nas conclusões, apenas a normas ou princípios jurídicos que tenham sido na sentença recorrida supostamente violados na sua determinação, interpretação ou aplicação.» (Ac. do STA, de 14/10/2020, proferido no Processo n.º 0827/14.6BELRA)
5. Sendo certo que um recurso não versa exclusivamente sobre matéria de direito se o Recorrente «questionar matéria factual, manifestando divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à factualidade provada na decisão recorrida» (Ac. do STA de 09/10/2019, proferido no Processo nº 02501/15.7BESNT.), quer porque os factos levados ao probatório não foram dados como provados, ou foram ignorados ou valorados de forma insuficiente.
6. Ora, ao abrigo da jurisprudência citada, entende o Recorrido que o recurso sub judice – tal como delimitado pela Recorrente -, versa, apenas, sobre questões de direito, senão vejamos:
7. As alegações de recurso da Recorrente podem ser resumidas nos seguintes termos:
Capítulo I – “Enquadramento”
- Enquadramento legal da concessão de jogo da qual a Recorrente é concessionária (parágrafos 1.º a 8.º das alegações
- Resumo das ilegalidades imputadas às liquidações de Imposto Especial de Jogo impugnadas, referentes aos meses de setembro, outubro e novembro de 2016, em sede de impugnação judicial (parágrafo 9.º).
Capítulo II – “Da concessão, do imposto do jogo e da contrapartida”
- Enquadramento das liquidações de IEJ como obrigação legal (Decreto-Lei n.º 422/89) e não contratual (contrato de concessão), e conclusão de que o parâmetro de validade do imposto tem de ser aferido com base nos princípios constitucionais (parágrafos 11.º a 24.º das alegações).
Capítulo III – “Da violação do princípio da legalidade”
- Infirmação da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 422/89, por violação do princípio da legalidade, no segmento de reserva de lei formal, por a autorização legislativa conferida pela Lei n.º 14/89 ser “amplamente genérica” (parágrafo 25.º a 34.º)
- Infirmação da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 422/89, por violação do princípio da legalidade, no segmento de reserva da lei material, por os elementos essenciais do imposto, onde se inclui a definição do conceito de capital em giro inicial, terem sido objeto de deslegalização (parágrafos 35.º a 43.º).
Capítulo IV – “Da violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real”
- Infirmação da violação dos princípios da tributação pelo rendimento real e do princípio da proporcionalidade por a tributação do jogo ter por base presunções de matéria coletável (parágrafos 44.º a 54.º).
Capítulo V – “Da violação do princípio da igualdade”
- Infirmação da violação do princípio da igualdade por a Lei do jogo estabelecer diferentes taxas de imposto para as diferentes concessões de jogo (parágrafos 55.º a 58.º).
Capítulo VI – “Da Ilegalidade das liquidações”
- Alegação de ilegalidade das liquidações por falta de fundamentação e por a emissão da liquidação de imposto ser mensal e não anual (parágrafos 59.º a 66.º).
8. Do que antecede resulta que os Capítulos I e II das alegações de recurso são capítulos meramente introdutórios ou de enquadramento, nos capítulos II a V, a Recorrente sustenta a ilegalidade das liquidações de IEJ impugnadas apenas e tão só com fundamento na violação de princípios constitucionais e, por fim, no Capítulo VI, sustenta a ilegalidade dessas liquidações com fundamento no vício de falta de fundamentação e violação de lei por as liquidações em causa serem mensais e não anuais.
9. Se é certo que são as conclusões que definem o objeto do recurso, não pode o MP ignorar que qualquer dúvida sobre o âmbito ou natureza das questões cuja pronúncia cabe ao Tribunal ad quem (tal como definida nas conclusões) terá de ser solucionada dentro dos limites da própria fundamentação do recurso (alegação).
10. Só nesse contexto seria possível ao MP concluir que as conclusões 14.º, 17.º e 18.º contendem com a alegada ilegalidade das liquidações de imposto especial de jogo impugnadas com fundamento em violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, da tributação pelo lucro real e da igualdade, e não com matéria factual,
11. E, que a Recorrente, ao longo de toda a sua alegação/conclusões, não identifica qualquer segmento da Sentença objeto de recurso com a qual discorda, não identificando qualquer facto dado como provado ou não provado pelo Tribunal de 1.ª instância que deva ser reapreciado pelo Tribunal ad quem, nem tampouco densifica os fundamentos que devessem ser valorados por este Tribunal, por forma a julgar, de forma diferente, a matéria factual dada como provada ou não provada em 1.ª instância, designadamente no que respeita ao alegado vício de falta de fundamentação e de ilegalidade das liquidações por serem mensais, e não anuais (conclusões 19.º e 20.º).
12. Aliás, enquadrando-se os presentes autos de recurso numa estratégia de litigância que vem sendo seguida pela Recorrente há vários anos, e tendo as alegações de recurso da Recorrente sido reproduzidas, com alterações muito pontuais, em dezenas de processos judiciais, é possível afirmar-se que o facto de o Recorrente não identificar quaisquer concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados pelo Tribunal a quo, ou de não identificar os meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diferente sobre determinado ponto da matéria de facto, não é sinónimo de défice do ónus a cargo do Recorrente, mas simplesmente sinónimo de que a Recorrente não tinha intenção de impugnar a matéria de facto assente na Sentença sob recurso, e como tal não o fez,
13. Não se podendo admitir que o MP possa, enquanto guardião da legalidade, exceder os limites da sua pronúncia, conferindo aos presentes autos de recurso uma amplitude que não lhe foi conferida pela Recorrente.
14. Nestes termos, não poderá proceder a exceção de incompetência do Supremo Tribunal Administrativo, em razão da hierarquia, para apreciar o mérito do presente recurso, na medida em que não existe qualquer questão relativa à matéria de facto que lhe tenha sido submetida, em sede de alegação de recurso,
15. Devendo, a final, este Douto Tribunal, julgando-se competente para a apreciação do presente recurso, julgá-lo improcedente em conformidade com a jurisprudência uniforme que vem sendo sufragada desde o Acórdão de 5 de dezembro de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 02224/13.1BEPRT - 01457/15, em formação alargada a todos os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Douto Supremo Tribunal Administrativo.”

I. 6. É objeto de recurso o decidido quanto a toda a matéria apreciada, de inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 422/89, por violação dos art.ºs 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), bem como que por violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real e da igualdade.
Por outro lado, é posto ainda em causa o decidido quanto às liquidações se encontrarem devidamente fundamentadas, bem como ter sido quanto ao disposto no art.º 87.º, n.º 1, alínea c), subalínea b), do referido Decreto-Lei n.º 422/89.
No entanto, cumpre apreciar e decidir, antes de mais, a questão da incompetência do S.T.A. em razão da hierarquia, de acordo com o disposto nos artigos 16.º do C.P.P.T., e 13.º do C.P.T.A., subsidiariamente aplicável.
E haverá ainda que decidir o requerido a final pelo recorrente quanto à dispensa de pagamento de taxa de justiça.

I.7. E é decidir em conferência, com dispensa de vistos, por motivos de celeridade, e considerando que os exm.ºs Conselheiros adjuntos têm acesso aos autos através do SITAF.
II. Fundamentação.
II.1. De facto.
Com relevância para a decisão da causa, a sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
A) A Impugnante é concessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar, na zona de jogo da Póvoa de Varzim – cfr. contrato de concessão outorgado em 14/12/2001, publicado no Diário da República, III Série, n.º 27, de 01/02/2002.
B) Pela Deliberação n.º 23/2011/CJ, datada de 11/03/2011, a Comissão de Jogos do Turismo de Portugal, I.P. determinou que se procedesse a uma avaliação do capital em giro inicial, com uma periodicidade mensal (nos primeiros três dias de cada mês) e ao longo do ano, para efeitos tributários, das máquinas de jogo, promovendo-se, sempre que necessário, ao seu ajustamento, notificando os respetivos concessionários, previamente à sua aplicação – cfr. fls. 143 e 144 do suporte físico do processo de impugnação, cujo teor se dá por reproduzido.
C) Em 31/08/2016, o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ) notificou a Impugnante de que por despacho de 23/08/2016, da Vice-Presidente do Turismo de Portugal, I.P., foi fixado para todas as máquinas do Casino da Póvoa de Varzim, durante o mês de setembro de 2016, o capital em giro inicial de € 733,00, com início no dia 1 de setembro (inclusive) – cfr. fls. 13 do processo administrativo (PA) apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
D) Em 01/10/2016, o “SRIJ” notificou a Impugnante de que por despacho de 30/09/2016, do Diretor do Departamento de Controlo da Atividade de Jogo, foi fixado em € 742,00 o capital que deve considerar-se, para efeitos tributários, como capital em giro inicial, com efeitos a partir de 1 de outubro (inclusive) – cfr. fls. 37 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
E) Pelo ofício com a referência SAI/2016/12263, de 05/10/2016, o Casino da Póvoa de Varzim foi notificado da liquidação de IEJ a pagar pela Impugnante (€ 1 111 925,73), referente ao mês de setembro de 2016 – cfr. fls. 6 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
F) O imposto mencionado na alínea antecedente foi pago pela Impugnante em 17/10/2016 – cfr. fls. 1 a 5 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
G) Em 31/10/2016, o “SRIJ” notificou a Impugnante de que por despacho dessa data, da Vice-Presidente do Turismo de Portugal, I.P., foi fixado para todas as máquinas do Casino da Póvoa de Varzim, durante o mês de novembro de 2016, o capital em giro inicial de € 649,00, com início no dia 1 de novembro (inclusive) – cfr. fls. 61 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
H) Pelo ofício com a referência SAI/2016/13747, de 08/11/2016, o Casino da Póvoa de Varzim foi notificado da liquidação de IEJ a pagar pela Impugnante (€ 1 148 909,33), referente ao mês de outubro de 2016 – cfr. fls. 30 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
I) O imposto mencionado na alínea antecedente foi pago pela Impugnante em 15/11/2016 – cfr. fls. 27 a 29 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
J) Pelo ofício com a referência ENT/2016/26692, de 03/12/2016, o Casino da Póvoa de Varzim foi notificado da liquidação de IEJ a pagar pela Impugnante (€ 989 440,30), referente ao mês de novembro de 2016 – cfr. fls. 54 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
L) O imposto mencionado na alínea antecedente foi pago pela Impugnante em 15/12/2016 – cfr. fls. 51 a 53 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
M) A presente impugnação judicial foi deduzida em 16/01/2017 – cfr. fls. 1 a 24 e 80 do suporte físico do processo de impugnação.
*
Não foram dados como provados outros factos.

II.2. De direito.
Da incompetência do S.T.A. em razão da hierarquia:
O recorrente nas conclusões que apresentou sob os n.ºs 14.º, e 17.º a 21.º, em relação com inconstitucionalidades e ilegalidades que invoca, refere que as liquidações não se encontram em relação com o capital em giro inicial, nem com a receita bruta, aludindo ainda a deliberações em que não são indicados os indícios ou critérios utilizados para fixar os valores de capital em giro inicial por cada máquina, bem como ainda terem sido fixados valores mensalmente.
Contudo, com tais afirmações não é posta propriamente em causa a matéria de facto fixada, mas levar a decidir pelas inconstitucionalidades que invoca, em relação com a capacidade contributiva, rendimento real e igualdade, cujos princípios pretende que sejam apreciados e tidos por violados, bem como ainda fundar a insuficiência de fundamentação que continua a invocar verificar-se, o que é de aferir face à matéria de facto dada como provada.
Aliás, quanto às ditas deliberações não são especificadas quais foram, sendo que das liquidações consta já terem as mesmas sido efetuadas mensalmente, conforme notificações efetuadas, dadas também já por provadas.
É certo que o S.T.A. tem já decidido quanto à delimitação da sua competência em razão da hierarquia, da dos Tribunais Centrais Administrativos, que o recurso não tem exclusivamente por objeto matéria de direito, não só quando o recorrente pede a alteração da matéria de facto fixada na sentença recorrida, como ainda quando invoca, como fundamento da sua pretensão, factos que não têm suporte na decisão recorrida –cfr., acórdão do S.T.A. de 5-7-2012, proferido no proc. 053/12, acessível em www.dgsi.pt e Jorge Lopes de Sousa em Código de Procedimento e Processo Tributário, Tomo I, 6.ª ed. Áreas Ed., 2012, a pág. 226, que alude a razões programáticas.

Tal não é de considerar no caso em análise, em que, em resumo, o recorrente nas conclusões a que se refere o M.P., invoca apenas matéria de direito relativamente a matéria de facto já fixada, não concretizada propriamente matéria de facto nova.

Assim, e de acordo com o disposto nos arts. 26.º b) do E.T.A.F. e 230.º n.º 1 do C.P.P.T., é competente para as demais questões o S.T.A..

Das questões de mérito:

Sustenta-se o decidido na sentença recorrida no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do S.T.A., de 5-12-2018, no processo n.º 02224/13.1BEPRT (1457/15), acessível em www.dgsi.pt, e proferido em julgamento ampliado, realizado ao abrigo do disposto no art. 148.º do C.P.T.A., o qual conheceu das seguintes questões, semelhantes às que resultam ora para apreciação:

«1- Ilegalidade do acto de liquidação impugnado por violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, do rendimento real e da proporcionalidade;

2- Ilegalidade do acto de liquidação por o Decreto-Lei n.º 422/89 violar o princípio constitucional da legalidade, na sua vertente de reserva de lei material;

3- Ilegalidade do acto de liquidação porque a Lei do Jogo é inconstitucional, por violação do princípio constitucional da igualdade;

4- Ilegalidade do acto de liquidação por falta de fundamentação;

5- Ilegalidade do acto de liquidação por o capital em giro inicial ter sido fixado mensalmente, quando a Lei do Jogo estabelece uma fixação anual;

6- Ilegalidade do acto de liquidação por o “capital em giro inicial” ter sido fixado sem serem tidas em consideração as características das diversas máquinas de jogo e as circunstâncias concretas verificadas na sua utilização».

É certo que, conforme referido na sentença recorrida, a questão da inconstitucionalidade orgânica não foi aí apreciada autonomamente, mas em relação com o princípio da igualdade, sendo de concluir por a mesma não se verificar.

O decidido nesse acórdão do Pleno foi reafirmado posteriormente por outros do S.T.A., o que ocorreu mais recentemente, pelos proferidos, nos processos n.ºs 0574/18.0BESNT e 0510/19.6BESNT, ambos com data 8-11-2020, e já no corrente ano nos de 13-1-2021, nos processos n.ºs 0121/19.1BEPRT e 01722/17.2BEPRT, todos acessíveis também em www.dgsi.pt.

E, porque concordamos com o decidido nos anteriores referidos acórdãos, para além de, conforme já referido na sentença recorrida, face do disposto no art. 8.º, n.º 3, do Código Civil, se nos impor respeitar a orientação jurisprudencial estabelecida, cumpre julgar não provido o recurso e confirmar a sentença proferida, remetendo para a fundamentação desses acórdãos do S.T.A., ao abrigo do n.º 5 do art. 663.º do C.P.C..

Dispensamos a junção de cópia desses acórdãos, em face da indicação efetuada quanto ao local informatizado em que estão acessíveis.

Da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça:

Uma vez que a presente decisão foi proferida em grande parte por remissão para os acima referidos acórdãos do S.T.A., o que preenche o requisito de “menor complexidade” para os efeitos do n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais, decidimos dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Com efeito, face ao valor indicado das impugnações, o montante da taxa de justiça devida seria manifestamente desproporcionado, face ao concreto serviço prestado nos presentes autos, pondo em causa a relação sinalagmática que a taxa pressupõe.

III. DECISÃO:

Nos termos expostos, os juízes Conselheiros da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente-art. 527.º,n.º1 do C.P.C.-, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Lisboa, 12 de maio de 2021. - Paulo José Rodrigues Antunes (relator) – Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.