Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0393/11.4BELLE
Data do Acordão:01/26/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P28841
Nº do Documento:SA2202201260393/11
Data de Entrada:10/25/2021
Recorrente:A............... E OUTROS
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:



A…………. e B…………, nestes autos Recorrentes e neles devidamente identificados, ora notificados do douto Acórdão proferido por este Tribunal Central, e com ele não se podendo conformar, vêm nos termos do artigo 26, al. h) do ETAF e do art. 150º do CPTA, interpor recurso excepcional de Revista, por se encontrar em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental e porque a admissão do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Alegaram, tendo concluído:
I- Recorre-se do douto aresto do Tribunal Central Administrativo Sul, que apesar de reconhecer vício por falta de audição de testemunhas arroladas pela defesa em sede de audição de interessado, diz que tal vício configura apenas uma mera irregularidade nenhuma nulidade ou anulabilidade.
II- Aqui reside a questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental; o que por sua vez sempre justifica a admissão deste recurso por ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. A questão da audição do interessado, como parte fundamental do seu direito de defesa é de importância extraordinária no exercício da defesa dos cidadãos ante a Administração.
III- Os recorrentes em audição prévia apresentaram defesa; defesa que integrava exposição, junção de documentos e pedido de audição de testemunhas. Só nessa integralidade e na apreciação e execução global dessa defesa, a Administração asseguraria a defesa e audição integrais a que os recorrentes têm direito.
IV- A Administração ignorou ostensivamente essa defesa e audição; ou seja banalizou esse direito dos recorrentes, incumprindo-o ao não se posicionar sobre o mesmo nem sobre ele feito qualquer referência na decisão.
V- O direito de participação consagrado no art. 267.º n.º 5 da Constituição é autêntico direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente consagrados; e não pode ser considerado letra morta.
VI- A interpretação que os serviços de inspecção fiscal fazem do artigo 60.º da LGT e art. 6º RCPIT, olvidado o art. 45º do CPPT, na medida em que toma decisão administrativa sem ouvir as testemunhas, sem apreciar os documentos apresentados e sem sequer fundamentar a não realização dessas diligências, é claramente inconstitucional ao colidir com o art. 267.º e 32.º n.º 10 da CRP, ao não assegurar os direitos de audiência e defesa. Inconstitucionalidade que se invocou aquando da arguição da nulidade e que ora se reitera para todos os efeitos legais.
VII- Não entenderam assim a AT, a 1ª Instância, e agora o TCAS, ao decidir como decidiu – que a não audição de testemunhas de defesa não gerava nulidade –, cometendo o TCAS ele próprio a nulidade invocada.
VIII- Veja-se, num caso em tudo similar ao presente, a conclusão tirada no Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 06-02-2019 nos autos 02740/15.0BELRS, da 2ª Secção, em que foi relatora a Srª Drª Isabel Marques da Silva, que entendemos totalmente aplicável ao caso aqui em análise.
IX- Daí que não possam os Recorrentes conformar-se com a douta conclusão que o Tribunal Central Administrativo a quo retira da sua douta interpretação jurídica, ao entender irrelevantes mais diligências probatórias, mesmo as requeridas pela defesa. Tal conclusão confere ao direito de audição, se assim for entendido, um carácter meramente formal, vazio de sentido.
X- Nem se diga, como se diz no Acórdão do Tribunal “a quo”, que a audição das testemunhas sempre seriam um acto irrelevante, uma vez que a prova ali a produzir era estritamente documental. Não é assim até porque os aqui Recorrentes invocaram desde o princípio nulidade pela falta do elemento subjectivo, ou seja, a apreciação da culpa pela falta de liquidação do imposto (conclusões IX e X) do recurso apresentado junto do Tribunal “a quo”. E estas testemunhas, eram fundamentais para se poder provar, ou não, essa matéria, além de outras questões.
XI- Ora, o Tribunal “a quo”, veio entender, em futurologia, que a audição dessas testemunhas sempre seriam desnecessárias; e depois, decide pela não nulidade quanto à falta de culpa (elemento subjectivo) invocado pelos Recorrentes, nulidade que sempre estaria dependente da audição de testemunhas arroladas pela defesa.
XII- Cometeu assim, o Tribunal “a quo” ele próprio nulidade invocada desde o início (art. 60.º da LGT. 45º do CPPT e 60.º RCPIT). E ainda a inconstitucionalidade invocada desde o início, por violação do n.º 10, do artigo 32.º e artigo 267.º da CRP, ao não assegurar ao Recorrentes os direitos de audiência e defesa que aquelas regras constitucionais impõem, inconstitucionalidade que aqui se deixa novamente invocada para todos os legais efeitos.
XIII- Justifica-se assim face à relevância da questão e a que o recurso pode ajudar à melhor aplicação do direito, a Revista excepcional, cf. art. 150º, nº 1 do CPTA.
XIV- O Tribunal “a quo” violou ainda da lei substantiva e da lei processual (todas aquelas normas do Código do Procedimento Administrativo, do Código do Processo Civil, e ainda as constitucionais que acima vimos aludindo e para as quais remetemos e aqui damos por reproduzidas), o que igualmente justifica esta Revista nos termos do art. 150º, nº 2 do CPTA.
XV- Sobre esta matéria vejam-se ainda os Acórdãos da Relação do Porto (Colectânea de Jurisprudência Tomo II, pág 233, ano 2002); o Acórdão da Relação de Évora (Colectânea de Jurisprudência, Tomo II, pág 308, ano 1992; ou o Acórdão da Relação de Évora (Colectânea de Jurisprudência Tomo V, pág 277 ano 1998); e ainda o Assento 1/2003 de 25.01; que todos que vão no mesmo sentido.
XVI- Deve assim ser declarada a nulidade invocada, por falta de audição integral e de respeito pela defesa apresentada pelos recorrentes, com a consequente anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente (cfr. o n.º 3 do artigo 63.º do RGIT). Devendo revogar-se a sentença recorrida e julgando verificada nulidade insanável do processo de contraordenação tributário, determinar-se a remessa dos autos ao Serviço de Finanças para eventual suprimento da nulidade. O que se requer.
XVII- Os Recorrentes igualmente discordam da douta decisão recorrida, porquanto a mesma considera devidos os valores de IVA apurados na Inspecção Tributária, por, segundo o Tribunal a quo, não caber isenção quanto aos recorrentes.
XVIII- Tais valores, não são devidos pelos recorrentes porquanto resulta da jurisprudência do Tribunal Judicial da União Europeia que os termos utilizados para as isenções previstas no art. 132º da Sexta Directiva são de interpretação estrita; mas tal interpretação dever fazer-se em conformidade com os objectivos prosseguidos pelas referidas isenções; e deve desse modo respeitar as exigências do princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA.
XIX- Dessa jurisprudência do TJUE resulta também relativamente ao conceito de organismos reconhecidos de carácter social pelo Estado – Membro em causa, à luz do art. 132º, nº 1 al. g) da Sexta Directiva, que este conceito é suficientemente amplo para incluir pessoas singulares e entidades privadas que prosseguem ou não fins lucrativos e não pode prever condições materialmente diferentes para pessoas ou entidades que prossigam fins lucrativos e para as que os não prossigam.
XX- Dessa jurisprudência resulta ainda que o princípio da neutralidade fiscal se opõe a que mercadorias ou prestações de serviços semelhantes que estão em concorrência entre si, sejam tratadas de maneira diferente do ponto de vista do IVA; e ainda que a cobrança do IVA seja tratado com diferenciação generalizada entre transacções lícitas e ilícitas.
XXI- Também resulta da Jurisprudência do TJUE que os serviços prestados e não incluídos no sistema da Segurança Social (IPSS), mas serviços semelhantes, também devem ser, por analogia, isentos de IVA. Foi assim violado ao art. 132º da Sexta Directiva.
XXII- Devendo também aqui e quanto a isto revogar-se a douta decisão do TCAS, e substituir a mesma por outra que declara não ser devido pelos Recorrentes o IVA apurado.
Nestes termos e nos melhores de direito, deverá revogar-se a douta decisão do TCAS, e substituir a mesma por outra que declara não ser devido pelos Recorrentes o IVA apurado.
Sem prescindir
Deverá a referida nulidade ser procedente e em consequência revogar a decisão recorrida e assim, anular a decisão administrativa de liquidação oficiosa do IVA, determinando-se a remessa dos autos ao serviço de Finanças para eventual suprimento da nulidade.

Não foram produzidas contra-alegações.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto levada ao probatório da decisão recorrida.

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.

Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto como recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 150º do CPTA, porém, no âmbito dos processos judiciais tributários existe norma própria que regula tal tipo de recurso, artigo 285º do CPPT que é essencialmente idêntico àquele artigo 150º, pelo que, será ao abrigo do disposto nesta norma especifica que será apreciado o presente recurso.
Importa, agora, proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.
Dispõe o artigo 285.º do CPPT, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:
1 - Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
2 - A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.
3 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.
4- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
5- Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.
6- A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.
E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.
Como claramente resulta do disposto no artigo 285º, n.º 3 do CPPT, neste recurso de revista, apenas é permitido ao Supremo Tribunal Administrativo aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não devendo o recurso servir para conhecer, em exclusivo, de nulidades da decisão recorrida ou de questões novas anteriormente não estritas questões de inconstitucionalidade normativa, que podem apreciadas pelas instâncias.
Igualmente não pode servir o recurso de revista para apreciar discutir-se em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.

Lidas atentamente as conclusões do recurso que nos vem dirigido, surpreende-se que o que os recorrentes pretendem é tão-somente lançar mão de uma terceira via de recurso, colocando ao Supremo Tribunal as mesmas questões que já haviam sido colocadas às instâncias.
Na verdade, a questão da falta de audição das testemunhas arroladas, tal como os recorrentes a desenham no presente recurso, cfr. conclusões I a XVI, parece prender-se não com o acto tributário de liquidação do imposto em falta, mas antes com uma preterição de instrução de um processo de contraordenação.
Efectivamente os acórdãos invocados naquelas conclusões respeitam todos a processos contraordenacionais, pelo que, a falta de audição prévia ocorrida em processo contraordenacional não pode ser apreciada no âmbito deste recurso, uma vez que nesse tipo de processos não se segue a tramitação dos recursos previstos no CPPT.
Por outro lado, a falta de audição prévia (inexistência ou deficiência) no âmbito do procedimento tributário não conduz à nulidade do acto de liquidação, mas antes à sua anulabilidade, como bem se refere no acórdão recorrido, relembramos que os presentes autos se tratam de uma impugnação judicial em que vem pedida a anulação de liquidações adicionais respeitantes a IVA.
Acresce, ainda, que para a liquidação oficiosa do imposto é irrelevante aferir da culpa ou negligência do contribuinte, a liquidação deve ser efectuada sempre que se verifique a falta de entrega de imposto ao Estado.
De todos os modos se dirá, que o julgamento feito pelo TCA Sul relativamente a esta questão, face aos contornos concretos da situação, não se mostra claramente desajustado, na verdade a falta de audição prévia em procedimento tributário só é geradora da anulabilidade do acto de liquidação quando falte em absoluto, isto é, quando efectivamente não ocorra ou a entidade competente para decidir a ignore em absoluto, não foi o que aconteceu no caso concreto, cfr. facto D) da matéria assente, uma vez que a entidade decisora ponderou os argumentos apresentados pelos recorrentes (se o fez bem ou mal já não se reconduz violação do direito de audição prévia).
Assim, nesta parte o recurso não pode ser admitido.

Quanto às conclusões XVII e seguintes do presente recurso, apenas cumpre dizer que a decisão recorrida não deu provimento à pretensão dos recorrentes face à matéria de facto que se julgou provada e, essencialmente, face àquela que se deu como não provada, ou seja, ao facto de não se ter provado que as entidades competentes portuguesas tenham reconhecido a actividade do Impugnante ou da ........... como de assistência social e acolhimento familiar.
Na verdade, o tribunal recorrido analisou todas as questões que lhe foram colocadas, e fê-lo de forma profunda e suficientemente fundamentada, não resultando que o decidido no acórdão recorrido mereça, ainda que de forma perfunctória, um sentimento de repulsa ou cause estranheza ao leitor.
Na verdade, o agora alegado nada acresce ao já ali decidido uma vez que também ali se ponderou as regras próprias da União sobre a matéria do IVA.
Não pode, assim, também neste segmento, o recurso ser admitido.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Supremo Tribunal Administrativo, Secção do Contencioso Tributário, que compõem a formação a que alude o artigo 285º, n.º 6 do CPPT, em não admitir o presente recurso de revista.
Custas do incidente pelos recorrentes.
D.n.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2022. – Aragão Seia (relator) – Isabel Marques da Silva – Francisco Rothes.