Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0176/11.1BEFUN
Data do Acordão:01/12/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IMPOSTO ESPECIAL DE CONSUMO
TABACO
INTRODUÇÃO NO CONSUMO
LIMITES
QUANTIFICAÇÃO
DIREITO COMUNITÁRIO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P28750
Nº do Documento:SA2202201120176/11
Data de Entrada:12/03/2019
Recorrente:A........., S.A. SUCURSAL EM PORTUGAL
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

A………., S.A. (SUCURSAL EM PORTUGAL), atualmente denominada ………….., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva ………., com sede no Edifício …………, Praceta …………, 2894-………, Alcochete, recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que julgou improcedente a impugnação judicial da liquidação adicional de imposto especial sobre o consumo de tabaco a que alude o impresso de liquidação n.º 2011/19962, de 15 de junho de 2011, no valor de € 4.607,69.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Notificada da sua admissão, a Recorrente apresentou alegações, que condensou nas seguintes conclusões: «(…)

A. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Funchal, com data de 24 de junho de 2016, que veio julgar improcedente, por não provada, a impugnação da liquidação adicional de imposto especial sobre o consumo de tabaco (IT), no valor de € 4.607,69 acrescida de € 1,80 do impresso de liquidação, determinada ao abrigo do art. 106º nº 1, 2 e 7 do Código dos Impostos Especiais do Consumo (CIEC), na redação em vigor entre 21 de Julho de 2010 e 31 de Dezembro de 2013.

B. A Recorrente entende que a decisão em causa, salvo o devido respeito, padece de erro na interpretação e aplicação de normas constantes da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, da Diretiva 2011/64/UE, de 21 de junho e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (em particular as referentes à liberdade de circulação de mercadorias), propugnando uma interpretação do artigo 106º CIEC em clara violação de normas do Direito da União Europeia citadas.

C. A legislação Portuguesa em matéria de imposto sobre o tabaco impõe a operadores económicos como a Recorrente um duplo limite à comercialização de tabaco: o “período de condicionamento” previsto no artigo 106º do CIEC e a proibição de comercialização do tabaco (“proibição de comercialização”), constante da Portaria 1295/2007, de 1 de outubro e do disposto no artigo 110º do CIEC.

D. O sistema descrito no parágrafo precedente leva a que seja imposta, por via administrativa, uma autêntica planificação e programação da atividade económica do operador, ao impor limites máximos à quantidade de tabaco que pode ser introduzida no consumo num determinado período e um limite com um prazo artificial de validade para comercialização do produto no mercado (através da aposição de uma estampilha fiscal), transformando o que o direito comunitário representa como uma decisão livre dos operadores económicos num ato subordinado à programação financeira do Estado Português.

E. A Diretiva 2008/118/CE do Conselho, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo estabelece, entre outros objetivos, o de “garantir o estabelecimento e funcionamento do mercado interno”, motivo pelo qual dispõe que “importa manter harmonizadas as condições de exigibilidade dos impostos especiais de consumo” (cf. Considerando 2º do Preâmbulo da Diretiva).

F. É entendimento pacífico da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que dentro de um sistema harmonizado de impostos, os Estados-Membros não podem impor mais restrições do que aquelas permitidas pelas Diretivas.

G. À luz dos princípios constantes da Diretiva 2008/118/CE e da jurisprudência do TJUE, é evidente que a limitação imposta pelo artigo 106º do CIEC e as medidas tomadas ao abrigo do regime descrito nos parágrafos precedentes - das quais constitui um exemplo claro a decisão impugnada - são contrárias ao regime da Diretiva 2008/118/CE, por criarem condições de diferenciação entre o mercado dos produtos de tabaco manufaturado português e dos restantes países comunitários.

H. Ao impor quantidades máximas de introdução no consumo a legislação portuguesa viola o disposto nos artigos 7º e 9º da Diretiva 2008/118/CE na medida em que impede o agente de introduzir no consumo, quando entender, as quantidades que pretende vender, o que determina que o pagamento do imposto não seja feito quando o agente decide introduzir no consumo o produto, mas sim quando, por força das restrições quantitativas, o produto é efetivamente colocado no consumo ou ainda, quando exista ultrapassagem dos limites, lhe seja imposto o pagamento do adicional de imposto, como no caso dos presentes autos.

I. Nos termos do disposto no preâmbulo da Diretiva n.º 2011/64/UE do Conselho, relativa à estrutura e taxas dos impostos especiais sobre o consumo de tabacos manufaturados, os objetivos fundamentais deste diploma são Estabelecer uma União Económica em que “exista uma concorrência sã” e que “apresente características análogas às de um mercado interno”; que, no entanto, “no que se refere ao setor dos tabacos manufaturados, a realização deste objetivo pressupõe que a aplicação, nos Estados-membros, dos impostos que incidem sobre o consumo dos produtos deste setor não falseie as condições de concorrência e não crie obstáculos à livre circulação na União” (considerando 3º do Preâmbulo) e garantir que a concorrência das diferentes categorias de tabacos manufaturados pertencentes a um mesmo grupo não seja falseada em consequência da tributação e que, concomitantemente, se concretize a abertura dos mercados nacionais dos Estados-membros (considerando 9º do Preâmbulo).

J. O CIEC estabelece limites legais às introduções no consumo de produtos de tabaco manufaturado, apenas permitindo que, em situações justificadas, a Administração Tributária autorize os operadores económicos a ultrapassarem tais limites, o que não sucedeu no caso vertente (apesar do pedido efetuado nesse sentido). Se a isto se somar o limite temporal à venda dos produtos no mercado (“proibição de comercialização”) temos implementado em Portugal um sistema que cria artificialmente, quer a montante, quer a jusante, condicionalismos à liberdade de circulação de mercadorias, em violação do disposto no artigo 34º do TFUE (sendo o mesmo insuscetível de justificação ao abrigo do art. 36.º TFUE e/ou da jurisprudência comunitária que resulta da sua interpretação).

K. Os motivos invocados pela República Portuguesa para justificar as limitações legais criadas (combate ao comércio ilícito de tabaco e garantia de receita fiscal) não são aptos para fundamentar o entorse criado, o que implicaria sempre uma violação do princípio da proporcionalidade, como bem nota a Comissão Europeia na ação intentada em 12 de março de 2015 contra a República Portuguesa (Processo C-126/15).

L. O artigo 267.º TFUE cumpre a função necessária para a harmonização comunitária ao permitir (e em certos casos impor) que se leve ao TJUE questões relativas à interpretação dos atos de direito europeu. Tal reenvio deve sempre acontecer quando um tribunal nacional se vê confrontado com uma situação de interpretação de uma norma comunitária cuja resolução se torne necessária para o julgamento do caso sub judicio – como sucede no caso dos presentes autos, tal como resulta de toda a alegação precedente – devendo ainda ter natureza obrigatória sempre que o tribunal nacional seja a última instância de recurso ordinário.

M. Na medida em que nos presentes autos apenas estão em causa questões contraditórias relativas à aplicação do direito comunitário, o presente Tribunal deverá utilizar o mecanismo do reenvio prejudicial para que o TJUE possa clarificar se, como a aqui Recorrente defende, normas como as constantes do artigo 106º CIEC, números 1, 2 e 7 com a redação em vigor à data dos factos violam ou não o disposto nos artigos 7º e 9º, da Diretiva n.º 2008/118/CE do Conselho, nos Considerandos (3) e (9) da Diretiva n.º 2011/64/UE do Conselho, no art. 28º e 34º do TFUE e o princípio da proporcionalidade, o que desde já se requer com caráter obrigatório, uma vez que o TCAS é a última instância de recurso no presente caso.

N. As normas contidas no artigo 106º, n.º 1, 2 e 7 do CIEC são, pois, ilegais e inconstitucionais (inconstitucionalidade indireta), pois violam o disposto nos artigos 7º e 9º, da Diretiva n.º 2008/118/CE do Conselho, nos Considerandos (3) e (9) da Diretiva n.º 2011/64/UE do Conselho, nos arts. 28º e 34º do TFUE e nos artigos 8.º, n.º 2 a 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

O. Os Tribunais nacionais não poderão aplicar in casu o disposto no artigo 106º, n.ºs 1, 2 e 7 do CIEC, nem tão-pouco qualquer norma punitiva associada a estas normas, atendendo ao facto de lhes estar vedado - como dispõem os artigos 204.º da CRP e 1.º, n.º 2 do ETAF - a aplicação de normas direta ou indiretamente inconstitucionais.».

Pediu fosse concedido provimento ao recurso e fosse revogada a sentença recorrida.

A Recorrida apresentou contra-alegações, que resumiu nas seguintes conclusões:

1. Nestes autos discute-se a decisão de liquidação de €4607,69 de Imposto sobre o Tabaco (IST), efectuada pela Alfândega do Funchal por a Recorrente ter introduzindo no consumo cigarros, não respeitando o limite quantitativo mensal fixado, para os meses de setembro, outubro novembro e dezembro de 2010, conforme determina o art. 106° do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo DL n° 73/2010, de 21 de junho, que transpôs para a ordem jurídica interna portuguesa a Diretiva n° 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revogou a Diretiva n° 92/12/CEE, do Conselho, de 25 de fevereiro.

2. A Recorrente não respeitou o limite mensal de 1.644.005 cigarros fixado para o período de condicionamento de setembro a dezembro de 2010, o que justificou a liquidação de €4607,69 de Imposto sobre o Tabaco, conforme determina o n° 7 do art° 106° do CIEC.

3. A introdução no consumo de produtos sujeitos a impostos especiais não se confunde com a sua comercialização/venda ou consumo efetivo do produto, conforme se depreende do CIEC, em particular nos seus artigos 8°, 9° e 10°.

4. O art° 106° do CIEC específica as regras de introdução no consumo para o período que decorre de setembro a dezembro de cada ano, sendo que neste período, o operador económico deve respeitar os limites que lhe são fixados em função desse condicionamento, sob pena de lhe ser liquidado imposto à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento, quanto às quantidades que excedam o limite, conforme determina o n° 7.

5. No período de janeiro a agosto de cada ano, cada operador económico pode introduzir no consumo toda quantidade de cigarros sem qualquer limitação quantitativa, pelo que não corresponde à verdade que o regime do art° 106° não permita que a introdução no consumo cresça mais de 10% ao ano.

6. A média mensal aplicável para os meses de setembro a dezembro reflete as introduções no consumo verificadas entre 1 de setembro do ano anterior até 31 de agosto do ano subsequente, acrescida de 10%.

7. E são os operadores económicos que, no exercício da sua atividade, decidem quais as suas opções em matéria comercial e de gestão.

8. A especificidade legal para o período de setembro a dezembro visa assegurar o regular funcionamento do mercado e a sã concorrência entre operadores económicos, de modo a evitar as distorções provocadas pela conduta dos operadores económicos que durante os meses que antecedem o aumento das taxas do imposto, resultante da aprovação da Lei do Orçamento do Estado para o ano seguinte, antecipam a introdução no consumo de cigarros nesses meses do ano, com vista à acumulação de stocks de cigarros, de forma a beneficiar de taxas mais baixas, comercializando os cigarros no ano seguinte, quando já está em vigor uma taxa mais elevada decorrente da entrada em vigor do Orçamento do Estado.

9. Conduta que prejudica os operadores económicos que introduzem os cigarros no consumo em função das suas necessidades, não acumulando stocks excedentários para o ano seguinte, e que provoca elevados prejuízos para a receita fiscal resultantes dessas introduções no consumo antecipadas.

10. O regime aplica-se a todos os operadores económicos que pretendam introduzir no consumo no mercado português cigarros durante os meses de setembro a dezembro.

11. Conclui-se que estamos perante um quadro legal adequado, necessário e equilibrado face aos interesses que se pretende salvaguardar, que não põe em causa o respeito do Direito da União Europeia.

12. O Art° 106° do CIEC não viola o art° 34° do TFUE porquanto não consubstancia nenhuma restrição quantitativa ou medida de efeito equivalente que possa impedir a livre circulação de mercadorias entre os Estados membros.

13. Também não configura qualquer violação da Diretiva n° 2008/118/CE e da Diretiva n° 2011/64/EU, pois a legislação nacional continua referir que o imposto especial de consumo é exigível no momento da introdução no consumo em conformidade com os arts. 7.° e 9° da Diretiva 2008/118/CE.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto daquele Tribunal, teve vista dos autos e lavrou douto parecer, no sentido da improcedência do recurso.

Por decisão sumária da Ex.ma Relatora, o Tribunal Central Administrativo Sul julgou-se incompetente em razão da hierarquia e para conhecer do recurso e ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.

Neste Tribunal, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto remeteu para o parecer já elaborado e promoveu o prosseguimento dos autos.

Foram dispensados os vistos legais, pelo que cumpre decidir.


◇◇◇

2. Da factualidade relevante

No Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal foram dados como provados os seguintes factos: «(…)

A) Em 15-09-2010 a A……….., S.A (Sucursal em Portugal) (impugnante) apresentou junto da Alfândega do Funchal declaração inicial das quantidades introduzidas no consumo de 1 de Setembro de 2009 a 31 de Agosto de 2010, para efeitos do disposto no n° 4 do art° 106° do CIEC (fls 3 a 6 do PA);

B) O limite quantitativo fixado para o período de condicionamento de 01-09-­2010 31-12-2010 foi de 1644005 cigarros (1494550 + (1494550 x 50%), nos termos dos n°s 1 e 2 do art° 106° do CIEC, conforme foi notificada a impugnante a 22-09-2010 (fls 10, do PA);

C) Em 18-01-2011 a impugnante informou a Alfandega do Funchal, para efeitos do n° 6 do art° 106° do CIEC, que de Setembro a Dezembro de 2010 tinha introduzido no consumo 21935000 cigarros (igual a 1096750 maços) (fls 16 a 19 do PA);

D) Em 18-11-2010 a impugnante solicitou uma autorização para os meses de Setembro a Dezembro de 2010 (fls 46 a 50, do PA);

E) Por despacho de 07-01-2011 o pedido referido no ponto anterior foi indeferido por ter sido ultrapassado os limites fixados e os fundamentos invocados não constituírem os requisitos exigidos pela lei: alteração brusca e limitada no tempo (fls 70 a 73, do PA);

F) Em 28-01-20111 a impugnante apresentou recurso hierárquico que foi indeferido (fls 78 a 96, do PA);

G) Foi efectuada a liquidação de imposto referente à introdução no consumo de cigarros no período do condicionamento (Setembro, Outubro e Novembro) previsto no art° 106° n° 1 do CIEC, em valores superiores ao limite estabelecido no n° 2, no montante de €4.607,69, acrescido de 1,80 do impresso de liquidação;».


◇◇

3. Da questão prévia: reenvio prejudicial

Na parte final das doutas alegações e na alínea “M.” das conclusões respectivas é suscitada a questão prévia de saber se este tribunal deve ordenar a suspensão da instância para submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia as questões de interpretação de disposições comunitárias suscitadas no recurso.

Resulta do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia [doravante “TFUE”] que o órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno é obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia, a título prejudicial, as questões sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

No presente recurso vêm suscitadas questões de interpretação de disposições do TFUE e de duas diretivas comunitárias.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Administrativo intervém nos autos como última instância de recurso, pelo que o reenvio prejudicial é, em princípio, obrigatório.

No entanto, de acordo com o Acórdão do Tribunal Europeu de 6 de Outubro de 1982, tirado no caso “CILFIT” a obrigação de requerer uma decisão prejudicial não existe se a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal, se o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado sobre a questão a reenviar ou se não existirem dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente («teoria do acto claro»).

No caso, a Recorrente suscita duas questões de interpretação de disposições comunitárias, mas o Tribunal de Justiça já se pronunciou quanto a uma delas, ao menos em parte, pelo que importa aferir se os termos em que se pronunciou removeram todos as dúvidas interpretativas suscitadas pela parte ou fornecem com clareza todos os elementos interpretativos em termos tão claros e perentórios que não sobre nenhuma dúvida razoável quanto à solução que lhe deva ser dada.

Na essência, o que está em causa nos autos é saber se um ato de liquidação a posteriori de imposto sobre o tabaco é ilegal.

Essa liquidação tem por base a diferença entre o valor da taxa aplicável em 2010 e 2011 (quanto ao elemento específico) na Região Autónoma da Madeira.

A Alfândega do Funchal calculou o imposto devido com referência à taxa aplicável em 2011 porque estava em causa a introdução no consumo de cigarros que excederam os limites quantitativos estabelecidos no n.º 2 do artigo 106.º do CIEC (para o último quadrimestre de 2010) e o n.º 7 do mesmo dispositivo manda aplicar, nestes casos, a taxa em vigor à data da apresentação da declaração de apuramento (que ocorre invariavelmente depois do período de condicionamento, ou seja, no ano seguinte – ver o n.º 6 do mesmo artigo 106.º).

A Recorrente não põe em causa que excedeu os limites quantitativos que lhe eram aplicáveis no período de condicionamento nem o cálculo das diferenças apuradas pela Administração.

O que a Recorrente põe em causa é conformidade do próprio artigo 106.º do CIEC com a legislação comunitária.

No seu entendimento, o regime legal inserido nos n.ºs 1, 2 e 7 do CIEC viola, além do mais, o disposto nos artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, que fixam as condições gerais de exigibilidade dos impostos especiais sobre o consumo.

Porque desse regime deriva que «o pagamento do imposto não seja feito quando o agente decide introduzir no consumo o produto mas sim quando», como sucede no caso dos autos «lhe seja imposto o pagamento adicional do imposto» [ver a conclusão “H.”].

Assim sendo, a questão a decidir por aqui é a de saber se as condições de exigibilidade e a taxa de imposto especial de consumo a aplicar em conformidade com o disposto nos artigos 7.º e 9.º daquela Diretiva são (necessariamente) aquelas que vigoram na data em que é efetuada a introdução no consumo.

O Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se sobre questão algo equivalente a propósito do artigo 27.º da Portaria n.º 1295/2007. Fê-lo no acórdão de 29 de junho de 2017, no processo C-126/15, onde consignou que, embora o direito da União determine o momento em que o imposto especial sobre o consumo se torna exigível, remete quanto à fixação das condições de exigibilidade e das taxas de imposto especial sobre o consumo, para o direito dos Estados-Membros.

Sucede que, naquele caso, estava em causa um regime legal que não tinha por efeito exigir o imposto devido em data diferente da da introdução no consumo. Porque do referido regime resultava que, quando fosse ultrapassado o termo do prazo para comercialização e venda ao público, os operadores podiam «efetuar uma nova introdução no consumo» dos produtos em causa, procedendo à aposição de uma nova estampilha fiscal [ver o § 57.º].

Ora, não é esse o caso do artigo 106.º, n.º 7, do CIEC. Porque, neste caso, os produtos são introduzidos no consumo e são comercializados até ao fim do ano civil, mas é exigida a diferença de imposto correspondente à taxa em vigor no início do ano seguinte, ou seja, na data em que a Administração é informada das quantidades totais de cigarros efetivamente introduzidas no consumo durante o período de condicionamento.

Pelo que os elementos interpretativos fornecidos no processo C-126/15 não permitem resolver todas as dúvidas de conformidade do regime nacional em causa com a referida Diretiva.

No mais, a Recorrente coloca a questão de saber se os limites legais à introdução no consumo de produtos de tabaco manufaturado introduzidos pelas normas contidas no artigo 106.º, nos 1, 2 e 7 do CIEC com constituem restrições quantitativas à importação, expressamente proibidas pelo artigo 34.º do TFUE e insuscetíveis de justificação ao abrigo do seu artigo 36.º.

Nesta parte, a Recorrente alega que uma medida que vincule os operadores económicos às introduções no consumo realizadas no ano anterior, acrescidas de 10%, constitui um entrave à importação das quantidades adequadas à satisfação da procura e fecha o mercado a novos produtores, funcionando, por isso como uma restrição quantitativa à importação. O que, no seu entendimento, afronta aquele dispositivo legal.

Subjacente à alegação da Recorrente parece estar o entendimento de que o regime especial de introdução no consumo de cigarros previsto no artigo 106.º citado tem por efeito impedir ou dificultar a entrada no mercado nacional de cigarros provenientes de outros Estados-Membros.

Embora da sua alegação só possa retirar-se, em rigor, que este regime dificulta a entrada no mercado de produtos novos (de marcas novas de tabaco), qualquer que seja a sua origem, parece que o que se pretende dizer é que essa dificuldade se reflete sobretudo em produtos provenientes de outros Estados-Membros, porque esses produtos serão, tendencialmente, menos conhecidos no mercado interno.

Em todo o caso, parece retirar-se da referência aos considerandos (3) e (9) da Diretiva 2011/64/EU, do Conselho, de 21 de junho de 2011 [ver a conclusão “I.”] que a Recorrente também entende que a proibição e restrições quantitativas à exportação também funciona como um meio de garantir uma concorrência sã entre os diversos operadores no mercado interno, ainda que não funcione, especificamente, como um meio de restringir a introdução no mercado interno de produtos oriundos de outros Estados-Membros.

Assim, porque também não se conhece qualquer decisão do Tribunal de Justiça sobre estas questões, também por aqui se encontra justificado o reenvio prejudicial.

A decisão de colocar as questões prejudiciais ao Tribunal de reenvio importa a suspensão da instância neste processo até que as mesmas sejam decididas – artigos 276.º, nº 1, al. c), e 279.º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil.

O que, a final, se decidirá.


◇◇◇

4. Do pedido de reenvio prejudicial ao TJUE

Da factualidade dada como assente em primeira instância e dos elementos disponíveis nos autos e de que o Supremo Tribunal Administrativo pode oficiosamente conhecer resulta que o sujeito passivo era um depositário autorizado pela autoridade aduaneira a operar na Região Autónoma da Madeira introduzindo no consumo cigarros.

O CIEC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho, sujeita a introdução no consumo de cigarros a regras de condicionamento aplicáveis no período que medeia entre 1 de Setembro e 31 de dezembro de cada ano, do seguinte teor: durante esse período, as introduções no consumo efetuadas mensalmente não podem exceder a quantidade média mensal de cigarros introduzida no consumo pelo mesmo operador económico ao longo dos 12 meses imediatamente anteriores, acrescida de um fator de majoração de 10% - artigo 106.º, n.ºs 1 e 2.

Para os efeitos do controlo da observância destas regras, cada operador económico deve apresentar à estância aduaneira competente, até ao dia 15 de Setembro de cada ano, uma declaração inicial contendo a indicação da respetiva média mensal e a determinação do limite quantitativo que lhe é aplicável – n.º 4 do artigo 106.º.

Durante o mês e janeiro do ano seguinte, cada operador económico deve ainda apresentar à estância aduaneira competente uma declaração de apuramento, contendo as quantidades totais de cigarros efetivamente introduzidas no consumo durante aquele período – n.º 6 do mesmo dispositivo legal.

A Autoridade Aduaneira procede, então, ao confronto entre os elementos fornecidos através dessas declarações e, se verificar que as quantidades de cigarros efetivamente introduzidas no consumo excederam o limite quantitativo aplicável ao operador económico, sujeita o excesso ao pagamento do imposto à taxa em vigor na data da apresentação da declaração, ou seja, em janeiro do ano seguinte ao da introdução no consumo – n.º 7 do mesmo dispositivo legal.

Conforme referido pela Entidade demandada nos autos, este regime visa evitar que os operadores económicos antecipem a introdução no consumo de cigarros durante os últimos meses do ano para evitar os aumentos das taxas de imposto introduzidos na Lei do Orçamento do Estado do ano seguinte.

No caso, a Autoridade Aduaneira verificou que a quantidade de cigarros que a Recorrente poderia introduzir no consumo no período de condicionamento que mediou entre 1 de Setembro de 2010 e 31 de dezembro do mesmo ano era de 1.644.005 cigarros/mês – alínea B) dos factos provados.

A Autoridade Aduaneira também verificou que, no mesmo período, a Recorrente introduziu no consumo 21.935.000 cigarros – alínea c) dos factos provados.

Em consequência, ao abrigo do citado artigo 106.º, n.º 7, do CIEC, procedeu à liquidação do imposto tendo por base as quantidades de cigarros que excederam o limite quantitativo desse período e a taxa aplicável à data da apresentação da declaração de apuramento (que era superior à taxa aplicável em 2010).

O litígio centra-se na (des)conformidade com a legislação comunitária deste dispositivo legal que, à data, tinha a seguinte redação:


Artigo 106.º

Regras especiais de introdução no consumo


1 - A introdução no consumo de cigarros está sujeita a regras de condicionamento aplicáveis no período que medeia entre o dia 1 de Setembro e o dia 31 de Dezembro de cada ano civil.

2 - Durante o período referido no número anterior, as introduções no consumo de cigarros, efectuadas mensalmente, por cada operador económico, não podem exceder os limites quantitativos, decorrentes da aplicação de um factor de majoração de 10 % à quantidade média mensal de cigarros introduzidos no consumo ao longo dos 12 meses imediatamente anteriores.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, o cálculo da média mensal tem por base a quantidade total das introduções no consumo de cigarros, não isentos, efectuadas entre o dia 1 de Setembro do ano anterior e o dia 31 de Agosto do ano subsequente.

4 - Cada operador económico deve apresentar à estância aduaneira competente, até ao dia 15 de Setembro de cada ano, uma declaração inicial contendo a indicação da respectiva média mensal e a determinação do consequente limite quantitativo que lhe é aplicável no período de condicionamento.

5 - Em casos excepcionais, devidamente fundamentados na alteração brusca e limitada no tempo do volume de vendas, pode ser autorizada a não observância daqueles limites quantitativos, não obstante não serem os mesmos considerados para efeitos do cálculo da média mensal para o ano seguinte.

6 - Findo o período de condicionamento e o mais tardar até ao final do mês de Janeiro de cada ano, o operador económico deve apresentar à estância aduaneira competente uma declaração de apuramento contendo a indicação das quantidades totais de cigarros efetivamente introduzidas no consumo durante o período de condicionamento.

7 - As quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo referido no n.º 4 ficam sujeitas ao pagamento do imposto à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento quando tal excesso seja comprovado pelo confronto dos seus elementos com os processados pela administração, sem prejuízo do procedimento por infracção a que houver lugar.

8 - As regras previstas no presente artigo são individualmente aplicáveis ao continente, à Região Autónoma dos Açores e à Região Autónoma da Madeira, devendo as obrigações previstas nos números anteriores ser cumpridas junto da estância aduaneira onde são processadas as respectivas introduções no consumo.

Por um lado, a Recorrente entende que a aplicação de limites quantitativos à introdução no consumo funciona como restrição quantitativa à importação, na medida em que dificulta a introdução no consumo das marcas menos conhecidas em períodos de maior procura e que, tendencialmente, serão as marcas de produtos provenientes de outras Estados-Membros.

O que, no seu entendimento, prejudica as regras da sã concorrência entre os operadores dos diferentes Estados-Membros e contraria o disposto no atual artigo 34.º do TFUE (a que correspondia o artigo 28.º do TCE).

Por outro lado, a Recorrente entende que a liquidação do imposto à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento contraria as regras relativas à exigibilidade dos impostos especiais sobre o consumo, introduzidas pelos artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008.

Se bem interpretamos, porque delas deriva que as condições de exigibilidade e a taxa a aplicar são as vigentes na data em que o tabaco foi introduzido no consumo.

Impõe-se, assim, a este Supremo Tribunal Administrativo, em cumprimento do disposto nos artigos 19.º, n.º 3, alínea b) do Tratado da União Europeia e 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, proceder ao reenvio prejudicial do caso em apreço para o TJUE, para que este esclareça as seguintes questões:

1.ª- Os limites quantitativos à introdução no consumo impostos pelo artigo 106.º do CIEC, na medida em que tenham por efeito condicionar os operadores, no último quadrimestre de cada ano, a introduzir no mercado as quantidades que não excedam as equivalentes à quantidade média mensal de cigarros introduzidos no consumo ao longo dos 12 meses imediatamente anteriores, podem constituir restrições quantitativas à importação ou medidas de efeito equivalente, para os efeitos do disposto no artigo 34.º do TFUE?

2.ª- A sujeição das quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo de introdução no consumo a que alude o n.º 2 do artigo 106.º do CIEC à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento, nos termos do n.º 7 do mesmo dispositivo legal, contraria as regras relativas à exigibilidade dos impostos especiais sobre o consumo, introduzidas pelos artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008?


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5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em suspender a instância até à pronúncia do TJUE e ordenar a passagem de carta, a dirigir pela Secretaria deste Supremo Tribunal à daquele Tribunal, com pedido de decisão prejudicial, acompanhada do translado do processo, incluindo cópias da petição inicial, da sentença recorrida, das alegações de recurso e de todas as peças processuais posteriores.

Não são devidas custas.

D.n.

Lisboa, 12 de janeiro de 2022. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.