Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:076/10
Data do Acordão:09/09/2010
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:PAIS BORGES
Descritores:COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS
PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS
TAXA DE ALCOOLEMIA
FUNCIONÁRIO
MUNICÍPIO
USURPAÇÃO DE PODER
DESVIO DE PODER
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO
Sumário:I - O vício de usurpação de poderes traduz-se na prática, por um órgão da Administração, de um acto que decide uma questão cuja apreciação está reservada aos tribunais ou ao poder legislativo, consistindo pois numa forma de incompetência agravada por falta de atribuições.
II - Não enferma de tal vício a deliberação da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) que, independentemente da fundamentação expendida, apreciou e decidiu o pedido de autorização de tratamento de dados pessoais relativos à realização de testes de alcoolémia pelos trabalhadores de um Município, nos termos de Regulamento Interno submetido à sua apreciação, tomando a decisão de não autorizar o tratamento desses dados pessoais no uso dos poderes e atribuições que a lei lhe confere (arts. 2º da Lei nº 43/04, de 18 de Agosto, e 21º a 23º da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro).
III - O vício de desvio de poder pressupõe uma discrepância entre o fim legal e o fim real efectivamente prosseguido pela Administração, traduzindo-se no exercício de um poder discricionário por um motivo determinante que não condiz com o fim visado pela lei ao conferi-lo.
IV - O princípio da proporcionalidade impõe à Administração a prossecução do fim legal em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar, adoptando, de entre as medidas necessárias e adequadas à prossecução desse fim, aquelas que se afigurem menos intrusivas e que impliquem menos sacrifícios ou perturbações à posição jurídica dos administrados.
V - Na dogmática jurídico-administrativa, o erro sobre os pressupostos de facto consiste na errada percepção da realidade por parte da autoridade administrativa, isto é, na divergência entre a realidade e a percepção que dela dá conta a decisão administrativa, de modo a que esta decisão tenha considerado e valorado juridicamente factos desconformes com a realidade.
Nº Convencional:JSTA00066567
Nº do Documento:SA120100909076
Data de Entrada:03/02/2010
Recorrente:MUNICÍPIO DO PORTO
Recorrido 1:COMIS NAC DE PROTECÇÃO DE DADOS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA NORTE DE 2009/10/09.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
DIR ADM GER.
Área Temática 2:DIR CONST - DIR FUND.
Legislação Nacional:L 67/98 DE 1998/10/26 ART7 ART22 ART23 ART28 N1 A.
L 43/2004 DE 2004/08/18 ART2.
CONST97 ART18 N2 ART266 N1.
CPA91 ART5.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC73/08 DE 2008/11/13.; AC STA PROC1187/06 DE 2007/09/26.; AC TC 306/03 DE 2003/06/25.; AC STA DE 1993/03/30 IN BMJ N425 PAG390.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E OUTRO CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA 4ED V1 PAG468 E 3ED PAG922 PAG924.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
(Relatório)
I. O MUNICÍPIO DO PORTO intentou no TCA Norte acção administrativa especial contra a COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS (CNPD), peticionando a anulação da deliberação da Ré, de 28.04.2008, que não autorizou o tratamento de dados pessoais relativo à realização de testes de alcoolémia nos termos do Regulamento interno submetido à sua apreciação, bem como a condenação da Ré à prática do acto devido – autorização do tratamento de dados referentes aos aludidos testes de alcoolémia, nos termos constantes do dito Regulamento interno.
Por acórdão daquele Tribunal, de 09.10.2009 (fls. 157 e segs.), foi a acção julgada totalmente improcedente e, em consequência, absolvida a Ré do pedido.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cuja alegação o recorrente formula as seguintes conclusões:
1. O Recorrente tem um entendimento distinto do douto Acórdão Recorrido, sendo que a questão jurídica da autorização do tratamento de dados do álcool pelo Município do Porto se afigura como revestindo da maior pertinência e relevância jurídica e social, nomeadamente na interpretação da Lei 67/98 de 26 de Outubro e de normas referentes à legalidade e discricionariedade da actuação da Recorrida, de forma a que se estabeleça, com nitidez, os limites que balizam um poder de discricionariedade assumido pela mesma.
2. A relevância jurídica e social da presente demanda manifesta-se ainda no facto de o Regulamento do Álcool do Recorrente se destinar à universalidade dos seus funcionários, os quais exercem diariamente funções de natureza pública e na prossecução de interesses públicos, pelo que o bom desempenho dos mesmos afecta, de uma forma directa, toda a comunidade;
3. A admissão do presente recurso revela-se também claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nomeadamente a Lei 67/98, de 26 de Outubro, nos termos do n.º 1 do artigo 150.º do Código do Processo dos Tribunais Administrativos.
4. A Recorrida viola claramente o seu quadro de atribuições e competências, extravasando o seu conteúdo, ao analisar e tecer considerações sobre o conteúdo de um Regulamento Municipal, afastando-se da questão fulcral que se prende e restringe ao tratamento de dados.
5. Os dados relativos ao consumo de álcool por um funcionário público, no exercício de funções, não podem ser considerados como da vida privada, uma vez que não se trata da ingestão de bebidas alcoólicas no recato privado dos trabalhadores, mas da prestação de actividade sob o efeito das mesmas, no local e tempo de trabalho, sob a direcção da Autora e ao serviço do interesse público e da comunidade. Nem tão pouco devem ser vistas, para este efeito, como dados de saúde, uma vez que o Recorrente não procede a uma avaliação clínica do funcionário com vista a determinar uma patologia. Aquilo que o Recorrente pretende é antes diminuir a incidência dos problemas profissionais ligados ao álcool, de onde podem derivar danos irreparáveis, quer para o próprio trabalhador, quer para qualquer terceiro.
6. A Recorrida, na ponderação do caso em apreço, descurou por completo os interesses públicos envolvidos, bem como dos próprios trabalhadores, permitindo antes que se atribuísse um verdadeiro direito a exercer funções públicas e relacionando-se com a comunidade em geral, num pleno estado de embriaguez.
7. A Recorrida, para além de não fazer uma análise casuística cuidada, estranhamente, tratou o caso como um dos já anteriormente analisados pela mesma, de modo a conseguir subsumir o caso que o Município do Porto lhe apresentou não à Lei, mas a um dos textos decisórios antes proferidos, estabelecendo ainda, estranhamente, comparações com regras rodoviárias.
8. De facto, não são só as actividades tidas, de acordo com o senso comum, como perigosas que apresentam susceptibilidade de representar um risco que, por isso, legitime a proibição de consumo excessivo de álcool. Ora, esse tipo de actividades já é gerador de risco, pela sua própria natureza. Cabe pois ao Município pugnar pela diminuição do risco associado, não só a esta mas a todos os tipos de actividades, passando naturalmente por não permitir que um funcionário público, por exemplo um jardineiro, um lixeiro, um contabilista, se encontre embriagado durante o exercício de funções públicas, onde, directamente, estão envolvidos os interesses da comunidade em geral.
9. O Regulamento Interno elaborado pelo Recorrente estabelece regras universais e não discriminatórias, de modo a que se não pudesse retirar do Regulamento de que para uns se reconhece o direito a trabalhar embriagado e de que para outros se proíbe e sanciona.
10. Na análise de uma autorização para o tratamento de dados relativos ao álcool, a CNPD tem necessariamente de atender ao sacrifício das partes envolvidas, não descurando os interesses da comunidade quando está em causa o exercício de funções públicas. Nem mesmo os interesses dos próprios trabalhadores foram atendidos, na medida em que com a não autorização se está a propiciar inúmeros acidentes de trabalho, quando se deve dar antes primazia a uma atitude preventiva.
11. Numa análise de um Regulamento tão importante como o tratamento de dados do álcool, não se pode ser leviano ao ponto dar uma resposta automática e "standarizada", chegando ao extremo de a CNPD se debruçar sobre elementos que não existem, tal como o tratamento de dados relativos a estupefacientes.
12. O conceito de risco de acidentes de trabalho não pode viver do senso comum, do impressionismo fácil dos sentidos, mas de uma análise técnica rigorosa. Mas mesmo começando pelo senso comum, parece claro que o risco acrescerá numa relação directa com o consumo do álcool. De facto, não há qualquer nota de haver um especial problema de falta de protecção de dados pessoais em Portugal; mas há seguramente um problema muito sério de acidentes de trabalho!
13. A CNPD tem uma natural e inevitável dificuldade em se mover no domínio da prevenção de riscos laborais; tal como os serviços de Segurança no Trabalho da Autoridade para as Condições de Trabalho teriam dificuldade em se pronunciar sobre "dados pessoais". Ora, por esse factor cabe-lhe um especial dever de ponderação.
14. A CNPD incorre no vício de usurpação de poderes, desvio de poderes, violação do princípio da igualdade, violação do principio da legalidade, violação do princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, violação do princípio da proporcionalidade e vício do erro sobre os pressupostos.
II. Contra-alegou a entidade demandada, concluindo do seguinte modo:
1. A CNPD, ao decidir como o fez, não cometeu qualquer usurpação de poder, pois não se pronunciou sobre a legalidade do regulamento, e sim sobre a recusa de autorização a certo tratamento de dados pessoais.
2. A Deliberação em causa não foi tomada com qualquer desvio de poder, já que teve em vista a finalidade precípua proposta constitucionalmente e legalmente à CNPD, qual seja a da protecção de dados pessoais.
3. Não é exacto assacar a essa decisão o vício de ausência de apoio legal, já que ela se fundou expressamente nos artigos 7.°, n.ºs 1 e 2 e 28.°, n.º 1, al. a) da Lei n.º 67/98.
4. Ao admitir o controlo de alcoolemia apenas em relação a certas categorias de trabalhadores, a CNPD não ofendeu o princípio da igualdade, pois este se satisfaz com o tratamento adequadamente diverso de situações objectivamente diferentes entre si.
5. A Deliberação n.º 162/2008 faz uma justa ponderação do interesse público e dos interesses e direitos dos trabalhadores, enquanto cidadãos, e por isso titulares de dados pessoais (sensíveis, no caso presente).
6. A decisão recorrida revela-se proporcionada, não implicando um sacrifício de dados pessoais desmesurado em relação aos interesses públicos em jogo.
7. Não se vislumbra na motivação da Deliberação n.º 162/2008 qualquer erro sobre os pressupostos.
III. Notificada para os efeitos do disposto no art. 146º, nº 1 do CPTA, a Exma magistrada do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“A decisão que é objecto do presente recurso é o acórdão do TCA Norte que julgou improcedente a acção administrativa especial intentada pelo Município do Porto contra a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) em que era impugnada a deliberação n° 162/2008 desta entidade, que decidiu não autorizar o tratamento de dados pessoais relativo à realização de testes de alcoolémia nos termos do Regulamento interno submetido à sua apreciação.
No ataque dirigido ao acórdão recorrido o recorrente vem reafirmar os vícios já anteriormente invocados.
Não cremos que o recurso deva proceder.
Retoma o recorrente a alegação de que a deliberação impugnada sofre de vício de usurpação de poder, traduzido na prática, por parte da recorrida, de um acto da competência dos tribunais.
Não tem razão.
A CNPD não apreciou o Regulamento em geral, ou qualquer das suas normas, em ordem a declarar a sua ilegalidade, o que apenas estava dentro das atribuições dos tribunais (cfr artº 4°, alínea b), do ETAF e artº 72° do CPTA); o que essa entidade fez foi não autorizar o tratamento de dados pessoais previsto no Regulamento em questão, dentro das atribuições estabelecidas no artº 22°, n° 1, considerado o disposto no artº 7°, ambos da Lei n° 67/98, de 26.10.
E foi só sobre o pedido de autorização de tratamento de determinados dados pessoais, relativos ao consumo de álcool, que a Comissão decidiu; já constituem meras considerações, integrantes da fundamentação, referências como a que é feita relativamente à taxa de alcoolémia de 0,5%.
Improcede, assim, essa alegação.
Vejamos os restantes vícios.
A propósito da violação do princípio da legalidade diz o recorrente que a CNPD, para além de não fazer uma análise casuística cuidada, tratou o caso como um dos já anteriormente analisados pela mesma, de modo a conseguir subsumir o caso não à Lei mas a um dos textos decisórios antes proferidos.
Não é assim.
Muito embora a CNPD, na sua deliberação, tenha remetido para decisão sua tomada anteriormente, fê-lo para ilustrar a posição que vem assumindo quanto ao tratamento detalhado de eventuais exames (vg. Regulares) sobre consumo de drogas ou álcool para a generalidade dos trabalhadores. Não deixa a CNPD de subsumir o caso concreto à Lei.
Segundo a CNPD a realização de testes de alcoolémia tem a ver com dados pessoais sensíveis visto permitirem a realização de perfis de comportamento das pessoas em questão, inserindo-se tais informações na noção de "vida privada", na acepção do n° 1 do art° 7° da Lei n° 67/98, de 26.10, constituindo, além disso, dados de saúde.
Assentando no facto de estarem em causa dados sensíveis – de saúde, da vida privada – considera, além do mais, admissível que um tratamento deste tipo possa reportar-se a certas categorias muito específicas de trabalhadores, v.g. motoristas, ou outras que exijam elevada perícia ou que envolvam riscos consideráveis para os próprios ou para terceiros, já não a sua adopção como procedimento generalizado a todos os trabalhadores da Câmara.
Funda a decisão de não autorizar o tratamento de dados relativo ao Regulamento em questão no disposto no n° 1, alínea a) e no n° 2 do citado art° 7°.
Conclui-se, assim, pela improcedência da matéria alegada também nesta parte, atenta a perspectiva da própria alegação.
De resto, também não vemos que na parte restante, quanto à violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da prossecução do interesse público, bem como quanto ao desvio de poder possa proceder a alegação.
A propósito do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, consagrado no art° 26° da CRP, Gomes Canotilho e Vital Moreira, reconhecendo, embora, a dificuldade em demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar, que goza de reserva de intimidade, e o domínio mais ou menos aberto à publicidade, defendem que o critério constitucional deve arrancar dos conceitos de "privacidade" (nº 1, in fine) e "dignidade humana" (nº 2), de modo a definir-se um conceito de esfera privada de cada pessoa, culturalmente adequado à vida contemporânea – cfr Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, art°s 1° a 107°, 2007, p. 468.
Adiantam aí estes autores:
O âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deverá delimitar-se com base num conceito de vida privada que tenha em conta a referência civilizacional sob três aspectos: (1) o respeito dos comportamentos, (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação. Estas dimensões devem ser convocadas para eventuais "renúncias" à protecção da intimidade da vida privada (ex.: caso Big-Brother).
A protecção de intimidade da vida privada assume expressões ou dimensões relevantíssimas no âmbito das relações jurídico-laborais. A protecção dos direitos de personalidade dos trabalhadores (cfr Cód. Trab., artºs 17º e ss.) impõe que o eventual acesso das entidades patronais a informações relativas à vida privada do trabalhador (saúde, estado de gravidez) deve obedecer a um procedimento justo de recolha dessas informações (ex.: através de um médico sujeito ao dever de sigilo e à observância estrita do princípio da proibição do excesso (as informações necessárias, adequadas e proporcionais) para o exercício de determinada actividade (cfr ac. TC n° 306/03).
Não restarão dúvidas de que neste caso estamos perante a recolha de informações relativas à vida privada dos trabalhadores da Câmara Municipal do Porto, que, à luz do art° 7° da Lei n° 67/98, integra o tratamento de dados sensíveis. Com efeito, tal como ponderou a Comissão, a realização de testes de alcoolémia, tal como prevê o Regulamento em causa, permite a elaboração de perfis de comportamento e informação sobre o estado de saúde do examinado.
Vejamos o fim pretendido pelo Regulamento: Como se pode ler na respectiva nota preambular, pretende-se com o presente Regulamento melhorar o bem-estar e a segurança dos trabalhadores da autarquia, através de medidas adequadas à legislação em vigor, sendo que o consumo inoportuno de bebidas alcoólicas diminui a qualidade e produtividade desejadas ao reduzir a aptidão funcional, sujeitando todos os trabalhadores a riscos inaceitáveis; acrescenta-se que com a aplicação do presente Regulamento pretende-se reduzir a incidência dos problemas ligados ao álcool e a adopção de estilos de vida mais saudáveis, através da implementação de uma atitude preventiva.
Em conformidade com o art° 18°, n° 2, da CRP, as restrições aos direitos liberdades e garantias devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos.
O acórdão do Tribunal Constitucional n° 306/03, de 2003.06.25, em sede de fiscalização preventiva (art° 17°, n° 2, segundo segmento, do Código do Trabalho aprovado pelo Decreto da Assembleia da República n° 51/IX O citado art° 17°, sob a epígrafe "Protecção de dados pessoais", dispunha no n° 2: "O empregador não pode exigir ao candidato a emprego ou ao trabalhador que preste informações relativas à sua saúde ou estado de gravidez, salvo quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade profissional o justifiquem e seja fornecida por escrito a respectiva fundamentação".), considerou inconstitucional o pedido de informações por parte do empregador relativas à saúde ou ao estado de gravidez, ainda que "particulares exigências inerentes à natureza da actividade profissional o justifiquem", uma vez que se autorizava uma excessiva intromissão na esfera privada do trabalhador ou do candidato ao emprego, com violação das disposições conjugadas dos art°s 26°, n° 1 e 18°, n° 2, da CRP, dado não ser esse o meio menos intrusivo para saber se o trabalhador está ou não apto para o emprego.
Ora, neste caso, tal como entendeu a Comissão, admite-se que um tratamento deste tipo possa reportar-se a determinadas categorias de trabalhadores, por exemplo motoristas, ou outras, que exijam elevada perícia ou que envolvam riscos consideráveis para os próprios ou para terceiros; já não, generalizadamente, a todos os trabalhadores da Câmara.
Com efeito, estando-se perante a compressão de um direito fundamental, será desadequado sujeitar a globalidade dos trabalhadores à possibilidade de realização de testes de alcoolémia, fazendo o tratamento dos respectivos dados, se o fim de prevenir problemas decorrentes do respectivo consumo for atingido através de medidas incidentes sobre certas categorias cujo consumo envolve maiores riscos para terceiros e para os próprios.
Temos universos distintos de trabalhadores, que merecem, como tal, atitudes diferentes por parte da Administração.
Não vemos, pois, que o entendimento da Comissão viole os princípios da proporcionalidade e da igualdade.
Como não foi violado o princípio da prossecução do interesse público. A prossecução do interesse público tem aqui como limite a protecção de direitos e interesses constitucionalmente protegidos dos cidadãos.
Improcede igualmente a alegação respeitante ao invocado vício de desvio de poder.
Constitui atribuição da CNPD, nos termos do art° 22°, n° 1, da Lei 67/98, de 26.10, "controlar e fiscalizar o cumprimento das disposições legais e regulamentares em matéria de protecção de dados pessoais, em rigoroso respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades e garantias consagradas na Constituição e na lei". É em nome da prossecução deste fim que são conferidos à CNPD os poderes previstos no art° 23°, nomeadamente na alínea b) do n° 1.
Na fundamentação da decisão tomada pode ler-se, além do mais, o seguinte:
Admite-se que um tratamento deste tipo possa reportar-se a certas categorias muito específicas de trabalhadores v.g. motoristas – ou outras que exijam elevada perícia ou que envolvam riscos consideráveis para os próprios ou para terceiros.
Estão em causa, (.. .), dados sensíveis – de saúde; da vida privada –, ao contrário do que na declaração de notificação se refere.
Inexistindo norma legal permissiva, não é legítimo obrigar os trabalhadores a realizar estes testes, quer em função de resultados dum sorteio, quer por decisão de superior hierárquico.
Também cabe ponderar que, se a taxa de 0,5% constitui limite adequado para a condução automóvel na via pública, ela surge inadequada e excessiva em relação a actividades que envolvam menores riscos.
Por seu turno, os poderes de supremacia próprios da hierarquia administrativa não podem, ao invés do que se pretende, constituir fundamento bastante para a obrigatoriedade de sujeição aos testes em questão.
Estando em causa direitos fundamentais – à liberdade, à reserva da vida privada – só por efeito de decisão judicial ou lei formal uma tal limitação ou constrangimento poderia aceitar-se.
Além disso, a maior probabilidade de sujeição a teste em relação a quem tenha já excedido o limite de alcoolémia previsto acaba por envolver discriminação quanto a essas pessoas.
Acresce que, representando os resultados dos testes dados de saúde, estes não poderiam, enquanto tais, ser comunicados a autoridades administrativas (mas apenas a profissionais vinculados pelo segredo médico) – e muito menos fundamentar decisões destas no sentido da abertura de processos disciplinares.
Note-se, enfim, que mesmo que se reduzisse o fundamento de legitimidade deste tratamento ao consentimento, tornando integralmente facultativo o sistema, ainda assim não se poderia entender verificado o requisito previsto no n° 2 do artº 7º da Lei n° 67/98.
É que tal consentimento, para relevar, tem de ser livre e esclarecido.
E sempre se poderia duvidar da autêntica liberdade de um consentimento destes, prestado por trabalhadores, tendo em conta a relação de subordinação própria do vínculo laboral.
Do que se acaba de transcrever não é possível extrair que o fim visado pela decisão impugnada divirja do fim estabelecido na lei.
Por outro lado, o recorrente não demonstrou que a CNPD, com a mencionada não autorização, pretendesse atingir um objectivo diverso do legalmente estabelecido, ou seja, a protecção de dados pessoais, em respeito pelas liberdades e garantias consagradas na Constituição e na lei. E era sobre ele que recaía esse ónus (art° 342°, n° 1, do CC).
Assim, nesta parte, improcede igualmente a alegação.
Quanto ao invocado erro nos pressupostos, aderimos às considerações feitas pelo acórdão, cuja bondade não é posta em causa pela alegação.
Em razão do exposto, concluímos que o acórdão recorrido, que julgou improcedente a acção, deverá ser mantido, devendo, assim, ser negado provimento ao recurso jurisdicional.”
*
Colhidos os vistos dos Exmos Adjuntos, vêm os autos à conferência para decisão.
( Fundamentação )
OS FACTOS
Ao abrigo do disposto no art. 713º, nº 6 do CPCivil, e porque sobre ela não foi suscitada qualquer controvérsia, considera-se reproduzida a matéria de facto fixada na decisão impugnada.
O DIREITO
O objecto do presente recurso jurisdicional é o acórdão do TCA Norte que julgou totalmente improcedente a acção administrativa especial intentada pelo Município do Porto contra a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), na qual o Autor peticiona a anulação da deliberação desta entidade, de 28.04.2008, que não autorizou o tratamento de dados pessoais relativo à realização de testes de alcoolémia aos funcionários do Município, nos termos do Regulamento interno submetido à sua apreciação, e a condenação da entidade demandada à prática de acto devido – autorização do referido tratamento de dados pessoais nos termos do Regulamento citado.
O recorrente reedita nesta impugnação jurisdicional, agora sob a veste de erros de julgamento, os mesmos vícios que imputou, em sede contenciosa, à deliberação impugnada.
Vejamos da consistência da sua alegação.
1. A matéria contida nas três primeiras conclusões não revestem qualquer interesse para a presente impugnação, uma vez que se reconduzem à invocada verificação dos pressupostos de admissão do recurso de revista, previstos no art. 150º do CPTA, tipo de recurso que aqui não está em causa.
São pois perfeitamente irrelevantes, dispensando qualquer apreciação.
2. No mais, começa o recorrente por alegar que, ao invés do decidido, a deliberação impugnada incorre em vício de usurpação de poder, uma vez que a entidade recorrida teria violado o seu quadro de atribuições e competências, invadindo a competência dos tribunais, ao “analisar e tecer considerações sobre o conteúdo de um Regulamento Municipal, afastando-se da questão fulcral que se prende e restringe ao tratamento de dados”.
Não lhe assiste qualquer razão.
O vício de usurpação de poderes traduz-se na prática, por um órgão da Administração, de um acto que decide uma questão cuja apreciação está reservada aos tribunais ou ao poder legislativo, consistindo pois numa forma de incompetência agravada por falta de atribuições (cfr. jurisprudência e doutrina citada no acórdão recorrido).
Ora, no caso dos autos, a demandada CNPD tomou a decisão impugnada, de não autorizar o tratamento de dados pessoais relativos à realização de testes de alcoolémia aos funcionários do Município do Porto, configurado no Regulamento submetido à sua apreciação, no uso dos poderes e atribuições que a lei lhe confere (arts. 2º da Lei nº 43/04, de 18 de Agosto, e 21º a 23º da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro).
O acórdão sob recurso afirma, a esse propósito:
“É que do facto de a CNPD ter decidido ou concluído decisoriamente não autorizar “... o tratamento de dados pessoais relativos à realização de testes de alcoolémia notificado pela CMP e configurado nos termos do Regulamento correspondente...” não se pode sustentar e de seguida concluir que a mesma tenha entrado na análise e pronúncia quanto ao “Regulamento Interno sobre Prevenção e Controlo do Consumo de Bebidas Alcoólicas” aprovado pela edilidade portuense, pois o único segmento decisório vinculante prende-se com a não autorização do pedido de tratamento de dados pessoais formulado, surgindo a alusão ao Regulamento em referência por efeito da sua junção como anexo ao pedido de autorização de tratamento de dados e que serviu para a sua global leitura, interpretação e integração.
O acto em causa dimanou de autoridade no exercício das atribuições e competências que a lei lhe confere, concretamente as de autorizar ou não os tratamentos de dados pessoais, traduzindo-se na prolação de decisão em matéria administrativa pelo que não se antolha, deste modo, que uma tal actuação configure invasão da esfera de atribuições do poder judicial.”
Ou seja, é patente que a entidade demandada, no exercício das suas atribuições legais, aliás referidas com detalhe no próprio texto da deliberação, apenas apreciou e decidiu o pedido de autorização de tratamento de dados pessoais relativos à realização de testes ao consumo de álcool pelos trabalhadores do Município Autor, ora recorrente.
Tudo o mais, designadamente as invocadas referências à taxa de alcoolémia de 0,5%, ou ao tratamento de dados relativos a estupefacientes, são, como bem refere a Exma Procuradora-Geral Adjunta, meras considerações integrantes da fundamentação da decisão administrativa, em nada indiciando, e muito menos corporizando, a usurpação de funções judiciais.
Improcede, assim, esta alegação.
3. Alega também o recorrente que a deliberação impugnada, contrariamente ao decidido, enferma do vício de desvio de poder.
Também aqui carece de razão.
Esta forma de invalidade pressupõe uma discrepância entre o fim legal e o fim real efectivamente prosseguido pela Administração, traduzindo-se “no exercício de um poder discricionário por um motivo principalmente determinante que não condiga com o fim que a lei visou ao conferir tal poder...” (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, pág. 394).
A jurisprudência do STA tem admitido a existência de duas modalidades de desvio de poder: uma resultante de erro de interpretação da norma que define o fim para cuja realização é conferido o poder discricionário (erro de interpretação do fim legal); outra, consequente da intenção de preterir o interesse público visado em benefício de um interesse particular ou de outro interesse público (desvio doloso) – cfr. Ac. STA de 30.03.1993, BMJ 425-390, e respectivas anotações.
Interessa pois reter, em síntese, o quadro legal pertinente à actividade da recorrida CNPD.
A Lei nº 67/98, de 26 de Outubro – Lei da Protecção de Dados Pessoais – transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Directiva nº 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24.10.1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre circulação desses dados.
Prescreve esta Lei no seu art. 7º:
Tratamento de dados sensíveis
1 — É proibido o tratamento de dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos.
2 — Mediante disposição legal ou autorização da CNPD, pode ser permitido o tratamento dos dados referidos no número anterior quando por motivos de interesse público importante esse tratamento for indispensável ao exercício das atribuições legais ou estatutárias do seu responsável, ou quando o titular dos dados tiver dado o seu consentimento expresso para esse tratamento, em ambos os casos com garantias de não discriminação e com as medidas de segurança previstas no artigo 15.º
(...)
Prescreve, por sua vez, o art. 22º:
Atribuições
1 — A CNPD é a autoridade nacional que tem como atribuição controlar e fiscalizar o cumprimento das disposições legais e regulamentares em matéria de protecção de dados pessoais, em rigoroso respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades e garantias consagradas na Constituição e na lei.
2 — A CNPD deve ser consultada sobre quaisquer disposições legais, bem como sobre instrumentos jurídicos em preparação em instituições comunitárias ou internacionais, relativos ao tratamento de dados pessoais.
3 — A CNPD dispõe:
a) De poderes de investigação e de inquérito, podendo aceder aos dados objecto de tratamento e recolher todas as informações necessárias ao desempenho das suas funções de controlo;
b) De poderes de autoridade, designadamente o de ordenar o bloqueio, apagamento ou destruição dos dados, bem como o de proibir, temporária ou definitivamente, o tratamento de dados pessoais, ainda que incluídos em redes abertas de transmissão de dados a partir de servidores situados em território português;
c) Do poder de emitir pareceres prévios ao tratamento de dados pessoais, assegurando a sua publicitação.
4 — Em caso de reiterado não cumprimento das disposições legais em matéria de dados pessoais, a CNPD pode advertir ou censurar publicamente o responsável pelo tratamento, bem como suscitar a questão, de acordo com as respectivas competências, à Assembleia da República, ao Governo ou a outros órgãos ou autoridades.
(...)
E o art. 23º prescreve:
Competências
1 — Compete em especial à CNPD:
a) Emitir parecer sobre disposições legais, bem como sobre instrumentos jurídicos em preparação em instituições comunitárias e internacionais, relativos ao tratamento de dados pessoais;
b) Autorizar ou registar, consoante os casos, os tratamentos de dados pessoais;
c) Autorizar excepcionalmente a utilização de dados pessoais para finalidades não determinantes da recolha, com respeito pelos princípios definidos no artigo 5.º;
d) Autorizar, nos casos previstos no artigo 9.º, a interconexão de tratamentos automatizados de dados pessoais;
e) Autorizar a transferência de dados pessoais nos casos previstos no artigo 20.º;
f) Fixar o tempo da conservação dos dados pessoais em função da finalidade, podendo emitir directivas para determinados sectores de actividade;
g) Fazer assegurar o direito de acesso à informação, bem como do exercício do direito de rectificação e actualização;
h) Autorizar a fixação de custos ou de periodicidade para o exercício do direito de acesso, bem como fixar os prazos máximos de cumprimento, em cada sector de actividade, das obrigações que, por força dos artigos 11º a 13º, incumbem aos responsáveis pelo tratamento de dados pessoais;
i) Dar seguimento ao pedido efectuado por qualquer pessoa, ou por associação que a represente, para protecção dos seus direitos e liberdades no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e informá-la do resultado;
j) Efectuar, a pedido de qualquer pessoa, a verificação de licitude de um tratamento de dados, sempre que esse tratamento esteja sujeito a restrições de acesso ou de informação, e informá-la da realização da verificação;
k) Apreciar as reclamações, queixas ou petições dos particulares;
l) Dispensar a execução de medidas de segurança, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 15.º, podendo emitir directivas para determinados sectores de actividade;
m) Assegurar a representação junto de instâncias comuns de controlo e em reuniões comunitárias e internacionais de entidades independentes de controlo da protecção de dados pessoais, bem como participar em reuniões internacionais no âmbito das suas competências, designadamente exercer funções de representação e fiscalização no âmbito dos sistemas Schengen e Europol, nos termos das disposições aplicáveis;
n) Deliberar sobre a aplicação de coimas;
o) Promover e apreciar códigos de conduta;
p) Promover a divulgação e esclarecimento dos direitos relativos à protecção de dados e dar publicidade periódica à sua actividade, nomeadamente através da publicação de um relatório anual;
q) Exercer outras competências legalmente previstas.
2 — (...)
3 — No exercício das suas funções, a CNPD profere decisões com força obrigatória, passíveis de reclamação e de recurso para o Tribunal Central Administrativo.
4 — (...)
Por seu turno, a Lei nº 43/2004, de 18 de Agosto – Lei de organização e funcionamento da Comissão Nacional de Protecção de Dados – prescreve no seu art. 2º:
Natureza, atribuições e competências
A CNPD é uma entidade administrativa independente, com poderes de autoridade, que funciona junto da Assembleia da República, com as atribuições e competências definidas na lei.
Referenciado este quadro legal, importa igualmente reter alguns trechos da fundamentação da decisão impugnada, em ordem a inferir da consonância do fim por ela visado com o fim legal determinante.
Afirma-se na decisão:
Admite-se que um tratamento deste tipo possa reportar-se a certas categorias muito específicas de trabalhadores, v.g. motoristas – ou outras que exijam elevada perícia ou que envolvam riscos consideráveis para os próprios ou para terceiros.
Estão em causa (...) dados sensíveis – de saúde, da vida privada –, ao contrário do que na declaração de notificação se refere.
Inexistindo norma legal permissiva, não é legítimo obrigar os trabalhadores a realizar estes testes, quer em função de resultados dum sorteio, quer por decisão de superior hierárquico.
(...)
Acresce que, representando os resultados dos testes dados de saúde, estes não poderiam, enquanto tais, ser comunicados a autoridades administrativas (mas apenas a profissionais vinculados pelo segredo médico) – e muito menos fundamentar decisões destas no sentido da abertura de processos disciplinares.
Note-se, enfim, que mesmo que se reduzisse o fundamento de legitimidade deste tratamento ao consentimento, tornando integralmente facultativo o sistema, ainda assim não se poderia entender verificado o requisito previsto no nº 2 do art. 7º da Lei nº 67/98.
É que tal consentimento, para relevar, tem de ser livre e esclarecido.
E sempre se poderia duvidar da autêntica liberdade de um consentimento destes, prestado por trabalhadores, tendo em conta a relação de subordinação própria do vínculo laboral.
Ora, não vemos que possa minimamente sustentar-se o alegado desvio de poder, não se vislumbrando qualquer divergência entre o fim legal (protecção de dados pessoais sensíveis) e o fim prosseguido pela decisão administrativa, proferida à luz dos normativos acima transcritos, e dentro das suas atribuições e competências legais.
Como bem decidiu o aresto sob censura, “não se descortina, desde logo, em que medida é que ocorre o pretenso desvio de poder já que, da alegação do A. e factualidade apurada, não deriva a existência duma discrepância entre o fim legal prescrito e imposto pela lei e o fim real ou fim efectivamente prosseguido pela CNPD na tomada da deliberação em crise.”.
Improcede pois, igualmente, a respectiva alegação.
4. Alega ainda o recorrente a violação, por parte da deliberação em causa, do princípio da legalidade, afirmando nas conclusões 7ª e 8ª que a recorrida CNPD, para além de não fazer uma análise casuística cuidada, tratou o caso mecanicamente como um dos já anteriormente analisados, de modo a subsumir o tratamento do caso, não à lei, mas sim a um texto decisório anteriormente proferido.
É uma alegação sem o mínimo fundamento.
Como se deixou já referido, a CNPD fundamentou expressa e detalhadamente a sua deliberação de não autorizar a pretensão do A., ora recorrente, no texto da lei, que cita (cfr. ponto IV da decisão – “Deliberação Final” e ponto V – “Conclusão”).
E faz realmente apelo, na respectiva fundamentação, a deliberações anteriores daquela Comissão, como referência do entendimento da CNPD em anteriores decisões sobre a matéria em causa, e designadamente sobre a interpretação dos pertinentes preceitos legais, para de seguida efectuar a apreciação do caso concreto que lhe é sujeito.
Naturalmente que o concretiza em função do entendimento e interpretação que a mesma Comissão vem fazendo do regime decorrente dos arts. 7º e 28º, nº 1, al. a) da Lei nº 67/98, entendimento que a mesma cita ao longo da deliberação impugnada, e que traduz a posição da Comissão em tal matéria.
Como bem se afirma no acórdão sob impugnação, “o uso de remissão para posição anterior tomada pela mesma autoridade em caso diverso na fundamentação de decisão administrativa não inquina esta de ilegalidade, mormente de infracção ao princípio em análise quando, como é o caso vertente, em tal remissão se acolhe e reitera sobre a mesma matéria em crise entendimento estribado em quadro normativo do qual faz apelo e que, inclusive, veio a ser invocado expressamente no segmento decisório da deliberação ora impugnada e que está subjacente ou é mesmo parcialmente referido na “apreciação do caso concreto.”.
Improcede também esta alegação.
5. Alega ainda o recorrente que, contrariamente ao decidido, a deliberação impugnada viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, afirmando que essa igualdade só é efectivamente prosseguida com a sujeição de todos os funcionários do Município (e não só alguns, como admite a deliberação) ao dever de realização dos testes de alcoolémia, inexistindo assim qualquer desproporção do regime regulamentar definido pelo A.
E que viola igualmente o princípio da prossecução do interesse público.
O recorrente carece mais uma vez de razão.
Antes do mais, e como bem sublinha a Exma Procuradora-Geral Adjunta, não restam dúvidas de que estamos perante a recolha de informações relativas à vida privada dos trabalhadores do Município do Porto [segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, pág. 468, não sendo fácil “demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar, que goza de reserva de intimidade, e o domínio mais ou menos aberto à publicidade (...), o critério constitucional deve talvez arrancar dos conceitos de «privacidade» (nº 1, in fine) e «dignidade humana» (nº 2), de modo a definir-se um conceito de esfera privada de cada pessoa, culturalmente adequado à vida contemporânea”].
E também se afigura evidente que estamos na presença de dados relativos à saúde dos cidadãos, sendo manifesto que a dependência do álcool é tida, em termos de patologia, como uma doença, ou seja, como uma falta ou perturbação de saúde.
E, sendo assim, essas informações reportam-se, sem sombra de dúvida, ao tratamento de dados sensíveis, pois que, como salienta a Comissão, a realização de testes de alcoolémia nos termos propostos no Regulamento em causa “permite a elaboração de perfis de comportamento e informação sobre o estado de saúde do examinado”.
O art. 18º, nº 2 da CRP prescreve que as restrições aos direitos liberdades e garantias devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos.
A esse propósito, o Tribunal Constitucional tem considerado inconstitucional a recolha de informações, por parte do empregador, relativas à saúde ou ao estado de gravidez dos seus trabalhadores, ainda que “particulares exigências inerentes à natureza da actividade profissional o justifiquem”, com o fundamento de se tratar de um meio “excessivamente intrusivo” consubstanciando uma excessiva intromissão na esfera privada do trabalhador ou do candidato ao emprego, violando, pois, os arts. 26º, nº 1 e 28º, nº 2 da Constituição (cfr. Ac. TC nº 306/03, de 25.06.2003).
No caso em apreço, e a propósito da sua decisão de não autorização, a Comissão ponderou que um tratamento de dados desse tipo possa ser admissível quando reportado a determinadas categorias de funcionários (citando como exemplo a de motoristas ou outras), que exigem particular e elevada perícia de desempenho e envolvem, pela sua própria natureza, riscos consideráveis para os próprios funcionários e para terceiros.
E que já assim não será quando reportado, generalizadamente, a todos os trabalhadores do Município. Isto, como refere o Ministério Público, pela simples razão de que, estando perante a compressão de um direito fundamental, “será desadequado sujeitar a globalidade dos trabalhadores à possibilidade de realização de testes de alcoolémia, fazendo o tratamento dos respectivos dados, se o fim de prevenir problemas decorrentes do respectivo consumo for atingido através de medidas incidentes sobre certas categorias cujo consumo envolve maiores riscos para terceiros e para os próprios”, estando assim perante situações distintas merecedoras de tratamento igualmente distinto por parte da Administração.
Como este STA tem reiteradamente considerado, em consonância com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, “o princípio da igualdade traduz-se numa proibição do arbítrio, impondo, na consideração das suas dimensões igualizante e diferenciante, um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes” (Acs. de 13.11.2008 – Rec. 73/08 e de 26.09.2007 – Rec. 1.187/06).
E por essa mesma razão, como bem se decidiu, a sujeição indiscriminada e generalizada de todos os funcionários do recorrente aos referidos testes de alcoolémia, para efeito de tratamento de dados, afrontaria igualmente – ela sim – o princípio da proporcionalidade, que impõe à Administração a prossecução do fim legal em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar, “segundo o princípio da justa medida, adoptando, dentre as medidas necessárias e adequadas para atingir esses fins e prosseguir esses interesses, aquelas que impliquem menos gravames, sacrifícios ou perturbações à posição jurídica dos administrados” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. Revista, pág. 924).
Não se vê, assim, que a impugnada decisão da CNPD tenha violado os aludidos princípios da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos arts. 5º do CPA e 266º da CRP.
Quanto ao princípio da prossecução do interesse público, é por demais evidente, por tudo o que se expôs relativamente à natureza da informação pretendida para efeito de tratamento de dados, que a deliberação impugnada o não violou.
Na verdade, a norma do art. 266º, nº 1 da CRP (“A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”) estabelece dois limites substanciais à actividade administrativa: (a) um limite positivo, expresso na obrigatoriedade de prossecução do interesse público; (b) e um interesse negativo, traduzido no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
E, quanto a este último, salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra cit., pág. 922, que “a prossecução do interesse público não pode justificar o sacrifício abusivo dos direitos dos cidadãos; por isso, o respeito destes é um limite da actividade administrativa”.
Aliás, afigura-se absurda e de extremo despropósito o teor da afirmação contida na conclusão 6ª da alegação do recorrente, segundo a qual a recorrida CNPD teria descurado por completo o interesse público envolvido, “permitindo antes que se atribuísse um verdadeiro direito a exercer funções públicas... num pleno estado de embriaguez”.
O recorrente parece lavrar numa tremenda confusão a respeito da actividade da Comissão Nacional de Protecção de Dados, pois o que aqui está em causa não é concordar ou discordar do uso de bebidas alcoólicas em serviço, por parte dos trabalhadores do Município do Porto, ou de quem quer que seja.
O que está obviamente em causa é a legalidade do tratamento de dados pessoais relativos à realização de testes de alcoolémia a esses trabalhadores, tal como está configurado no Regulamento Interno sujeito à apreciação da CNPD.
O que se discute é, tão só, a conformação legal e constitucional do tratamento dos ditos dados pessoais de forma generalizada, conforme o previsto no dito Regulamento, em termos que permitem a elaboração de perfis de comportamento e informação sobre o estado de saúde dos examinados.
E essa conformação é, como vimos, insubsistente.
Improcede, assim, a respectiva alegação.
6. Por fim, alega o recorrente que a deliberação em causa enferma de erro nos pressupostos, porquanto a recorrida CNPD teria tratado o Regulamento sujeito à sua apreciação como reportado a uma “fiscalização do consumo de estupefacientes” e considerado o Município Autor “como uma empresa”, o que não corresponde à realidade.
Nenhuma razão lhe assiste.
Na dogmática jurídico-administrativa, o erro sobre os pressupostos de facto consiste na errada percepção da realidade por parte da autoridade administrativa, isto é, na divergência entre a realidade e a percepção que dela dá conta a decisão administrativa, de modo a que esta decisão tenha considerado e valorado juridicamente factos desconformes com a realidade.
Ora, é por demais evidente que a decisão administrativa impugnada não incorre, como bem se decidiu, nesse vício de valoração indevida de factos desconformes com a realidade.
Afirma-se, a tal propósito, no acórdão recorrido:
“(...) Com efeito, desde logo mostra-se deslocada a referência e a imputação feita pelo A. à deliberação impugnada de que a R. terá tratado o pedido de autorização como reportando-se a uma "fiscalização do consumo de estupefacientes". É certo que na fundamentação daquela deliberação, e no âmbito duma citação de anterior entendimento firmado pela CNPD no seu parecer no processo n.º 2461/03, se faz referência a teste relativo ao "consumo de drogas" e "toxicodependência". Todavia, como clara e inequivocamente se revela de toda a demais fundamentação e decisão vertida na deliberação em causa, do que nela se cuidou foi do efectivo pedido de autorização de tratamento de dados relativos à prevenção e controlo do consumo de álcool que havia sido formulado pelo A. [cfr. ponto III-B) Quanto ao fundo, ponto IV-A) Pedido, ponto IV-C) 2 Apreciação do caso concreto e ponto V) -Conclusões].
Aliás, o segmento decisório final fala por si "...nos termos dos artigos 7.º, n.ºs 1 e 2, e 28.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 67/98, a CNPD não autoriza o tratamento de dados pessoais relativo à realização de testes de alcoolémia notificado pela CMP ..." (sublinhado e evidenciado nossos).
De igual modo não se descortina que a CNPD na deliberação que tomou tenha considerado o A. como se tratando duma mera "empresa" e que por efeito de tal pressuposto haja decidido nos termos em que o fez. Depreende-se, até dos seus próprios termos que o entendimento e a decisão da CNPD nesta sede é independente da qualificação e natureza público ou privado do requerente [pode ler-se a dado passo o seguinte no texto da deliberação "... reiterou-se a posição normalmente assumida pela Comissão no tocante ao controlo da alcoolemia de trabalhadores, tanto do sector público como do privado ..." - pág. 01].
Não deriva dos termos daquela decisão que tal caracterização ou qualificação haja ocorrido em termos daquilo que aquela expressão significa e implica em sede do direito vigente no nosso ordenamento e que, tendo-o sido, isso tenha contribuído ou conduzido a diverso entendimento daquele que a mesma firmou quanto ao pedido de autorização formulado pelo A. neste caso. Da simples referência e utilização da palavra "empresa" ao longo do texto da decisão (cfr. página 5 da deliberação) não resulta que aquele uso, no demais contexto e fundamentação da deliberação, tenha tido qualquer conotação ou implicação significativa à luz do conceito jurídico aceite no nosso ordenamento jurídico, nem que a mesma se mostre dotada da significância que o A. pretende extrair em termos invalidatórios do acto aqui impugnado.”
Nenhuma censura nos merece esta decisão que, sem necessidade de outras considerações, inteiramente se confirma.
Improcede pois, igualmente, esta alegação.
( Decisão )
Com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 UC.
Lisboa, 9 de Setembro de 2010. – Luís Pais Borges (relator) – José Manuel da Silva Santos Botelho – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho.