Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02431/09.1BELSB
Data do Acordão:10/15/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
ACTO DE GESTÃO PRIVADA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
VEÍCULO DO ESTADO
Sumário:I - A circulação na via pública de um veículo do Estado é um ato de gestão privada, por se processar de forma idêntica à dos outros utentes da estrada, com submissão às normas de direito privado constantes do Código da Estrada.
II - Não obsta a tal conclusão o facto de o veículo do Estado em causa, afecto à P.S.P., circular com uma finalidade de interesse público, já que, por regra, todos os veículos do Estado circulam na via pública por razões de interesse público.
III - Também não afasta aquela conclusão a circunstância de o dito veículo circular em marcha de urgência, assinalada por sinais luminosos, por se dirigir para o DIC (Departamento de Investigação Criminal) a fim de aí realizar diligências urgentes, pois que a marcha de urgência dos veículos na via pública é também regulada por normas de direito privado (art. 64º do Código da Estrada) tendo em vista situações de circulação de urgência ou de emergência de veículos públicos ou privados.
IV - Só não será assim nos casos excecionais em que a circulação do veículo do Estado não seja meramente instrumental de uma finalidade de interesse público e se insira, ela mesmo, na realização de uma função pública (como, v.g., em ações de perseguição policial ou de manobras militares na via pública), em que essa circulação não se encontra sujeita aos mesmos direitos e deveres dos particulares.
V - Assim, a responsabilidade extracontratual do Estado consequente da circulação do aludido veículo da P.S.P. é regulada pelas normas de direito privado constantes do Código Civil e não pelas normas constantes, à altura do acidente, do DL 48.051, de 21/11/1967.
Nº Convencional:JSTA000P26526
Nº do Documento:SA12020101502431/09
Data de Entrada:06/23/2020
Recorrente:A...............
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. A……….., agente da PSP, intentou, no TAC de Lisboa, contra o “Estado Português” e B……….. (este, também agente da PSP), ação administrativa peticionando a condenação dos Réus a pagarem ao Autor a quantia indemnizatória de 119.000€, acrescida de juros moratórios, em decorrência das lesões por si sofridas por acidente de viação, ocorrido em 2/10/2003, sendo o Autor transportado no banco traseiro do veículo policial acidentado, propriedade do 1º Réu, conduzido, na altura, pelo 2º Réu, em deslocação em serviço de urgência (cfr. p.i. a fls. 1 e segs. SITAF).

2. O TAC de Lisboa, por sentença de 3/6/2016 (cfr. fls. 597 e segs. SITAF), absolveu os Réus dos pedidos uma vez que considerou inaplicável ao caso o regime da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão privada (constante, designadamente, dos arts. 483 nº 1, 501º, 503º e 504º do Código Civil); e, considerando aplicável ao caso o regime de responsabilidade extracontratual do Estado por atos de gestão pública, constante, à altura dos factos, do DL 48.051 de 21/11/1967, entendeu que os Réus deveriam ser absolvidos dos pedidos, nos termos do art. 2º nº 1 desse diploma, uma vez que não resultou comprovada a ilicitude da atuação do 2º Réu, agente da PSP condutor do veículo.

3. O Autor, inconformado com esta sentença, interpôs recurso de apelação para o TCAS, o qual, por Acórdão de 21/2/2019 (cfr. fls. 746 e segs. SITAF), negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.

4. Mantendo-se inconformado, agora com este Acórdão proferido pelo TCAS, veio o Autor interpor, ao abrigo do disposto no art. 150º do CPTA, o presente recurso jurisdicional de revista, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 824 e segs. SITAF):

«a) O presente recurso vem interposto do douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no dia 21 de Fevereiro, o qual confirmou a sentença proferida nos autos referenciados, que, julgando a acção improcedente, absolveu os Réus do pedido formulado sentença, o que veio a ser confirmado pelo Tribunal Central Administrativo Sul.
b) Em suma, entendeu o douto tribunal a quo que a condução do veículo da PSP em exercício de funções e com marcha de urgência assinalada traduz-se num acto de gestão pública do Estado, motivo pelo qual, não tendo sido provada a ilicitude da conduta do condutor em sede de processo crime, não há lugar à reparação dos danos causados ao Recorrente.
c) Conclusão mediante a qual é considerado que, apesar de amplamente demonstrados e provados os danos patrimoniais e não patrimoniais causados ao Recorrente, este não tem direito a ser ressarcido pelos mesmos.
d) Ora, esta é uma questão que tem sido amplamente discutida quer na doutrina e na jurisprudência, sendo certo que abundam acções judiciais similares com a presente, onde claramente se conclui que o lesado que não tenha concorrido com culpa para o evento, terá SEMPRE de ser ressarcido pela violação do seu direito à vida e à integridade física, direitos estes constitucionalmente protegidos.
e) Note-se que todos os dias milhares de veículos titulados pelo Estado circulam e são intervenientes em sinistros de onde saem lesados. Que esses veículos estão isentos de seguro de responsabilidade civil obrigatório e na maioria das vezes não têm.
f) Pelo que torna-se impreterível haver uma posição fundamentada deste douto tribunal, quer sobre a qualificação jurídica, quer sobre o contraponto entre a legislação e os direitos fundamentais dos cidadãos aqui violados. Urge clarificar estas situações, até porque todo este processo e a postura tomada pelos tribunais criam uma incerteza jurídica flagrante, que, a n/ ver não pode continuar.
g) S.m.o., há erro de julgamento tanto na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como na sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afeta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto, de um equívoco ou de uma inexata qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro.
h) Entendeu o douto tribunal administrativo de círculo de Lisboa que:”...Os artigos 501°, 503° e 504°, do CC, não são aplicáveis in casu, uma vez que não estamos no domínio de actividades de gestão privada mas de gestão pública, sendo antes aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado previsto no Decreto-Lei 48051 de 21/11/1967...” (pág. 21).”
i) E que, “Posto isto, vem provado que a viatura do Estado circulava em marcha de urgência, em serviço policial, o que equivale a que a classificação efectuada na sentença recorrida, ainda que sumariamente, se afigure acertada, devendo este evento — que também é "acidente“ — considerar-se como de gestão pública. “”Ou seja, em face do que vem provado, o despiste ocorreu no exercício das funções que estavam atribuídas ao condutor do dito carro do Estado e por causa desse exercício.
j) Relativamente à responsabilidade pelo risco, entendeu o douto tribunal a quo que “a responsabilidade derivada do despiste e que gerou danos ao ora Recorrente, não sendo fundada em facto ilícito, só poderá ser reclamada a título de responsabilidade pelo risco derivado da condução desse veículo. (...) E temos por nós que a sentença ajuizou devidamente, pois esta responsabilização do Recorrido pelo risco terá de improceder, porque não estamos perante uma actividade que possa ser qualificada como excepcionalmente perigosa.”
k) Ao contrário da maioria da doutrina e jurisprudência, a qual qualifica como actividade perigosa a actividade da polícia de segurança pública.
l) E bem assim, a qualificação do sinistro como um acto de gestão pública é manifestamente controverso, uma vez que o acidente decorreu apenas do acto de condução do 2.° R.
m) Também a nível constitucional, por um lado a par da responsabilidade funcional por atos ilícitos e culposos prevista no artigo 22.° CRP, a CRP prevê explicitamente outros institutos ressarcitórios densificadores do direito geral de reparação - art 62°, n° 1 CRP; art. 83.° CRP.
n) Por outro lado, o princípio do Estado de direito democrático contém inevitavelmente um princípio de reparação de danos causados pela atividade pública impositiva de sacrifícios especiais e graves, quanto à indemnização por danos resultantes de atividades de risco e quanto à compensação derivada da obrigação de se eliminarem outros resultados lesivos semelhantes.
o) O próprio n° 2 do art. 272, deste mesmo diploma legal, sublinha que “as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário“, qualquer violação a este limite constitucionalmente imposto, que cause lesão a um bem legalmente protegido, acarreta responsabilidade civil e o consequente dever de indemnizar.
p) Ao contrário, entendeu o tribunal a quo que não obstante todos os danos estarem devidamente provados, uma vez que não se deu por provada a ilicitude do condutor, não há lugar a indemnização.
q) Conclusão esta que não poderá ser aceitável, porque violadora dos princípios constitucionais já referidos, sendo certo que deixa uma clara incerteza e vazio legal quanto aos eventuais danos causados a pessoas singulares por factos lícitos ou ilícitos, desde que não fique provada a culpa do agente.
r) Ademais, da factualidade assente resulta (e nem pode resultar outra coisa) que houve culpa efectiva do condutor! Note-se que este, apesar de conhecer perfeitamente a via, e com condições climatéricas adversas, despistou-se invadindo a faixa de rodagem contrária onde embate com outro veículo!
s) Face a todo o supra exposto, resulta claro que ainda que se considerasse aceitável o enquadramento do sinistro ocorrido como um acto de gestão pública do estado, sempre falhou o douto tribunal por excluir sem mais, o direito ao Recorrente de ser ressarcido por todos os danos, por não considerar o exercício da actividade da Polícia de Segurança Pública uma actividade perigosa e concomitantemente, não ter resultado provado a culpa em sede de processo crime naquela data instaurado.
t) Isto porque a culpa para efeitos de acção punitiva penal não é nem pode ser a mesma que no caso sub judicio.
u) Posto isto, é n/ entendimento que o acto de condução do veículo in casu, sempre deveria ser qualificado como um acto de gestão privada do Estado.
v) S.m.o., uma interpretação de modo diverso conduzirá a inobservância do artigo 13º da CRP e, até, a violação das regras estabelecidas pelo Direito Comunitário, quanto à responsabilidade por actos dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes dos Estados-membros.
w) Como é consabido, são actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração, no exercício de um poder publico, ou seja, no exercício de uma função de direito, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coacção.
x) Em termos de gestão privada, o Estado intervém como um simples particular, despido do seu poder público, procedendo como qualquer outra pessoa, no uso de faculdades conferidas pelo direito privado.
y) No caso em apreço, o condutor circulava em via pública, estando sujeito à sinalização existente, normas, regulamentos, condições climatéricas e estado da via, agindo por conseguinte, despido do seu poder público, devendo por conseguinte ser este acto de condução do qual resultam os danos do ora Recorrente ser considerado um acto de gestão privada do Estado.
z) De harmonia com o disposto no art. 501° do CC, o Estado e demais pessoas colectivas públicas, quando haja danos causados a terceiros pelos seus órgãos, agentes ou representantes, no exercício de actividades de gestão privada, respondem civilmente por esses danos causados pelos comissários.
aa) Note-se que o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objetivamente antijurídico — violação de normas legais ou regulamentares, de princípios gerais ou de regras de ordem técnica e de prudência (ilicitude objectiva) -, exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (ilicitude subjectiva).
bb) E nos presentes autos, esses danos são elevados e demasiado graves e gritantes para que não mereçam a tutela do direito!
cc) Mesmo que assim não se entendesse, o que por mera hipótese de raciocínio académico se admite, a qualificação do acto como de gestão pública do Estado, tal como foi neste caso, sempre seria uma violação de todos os direitos constitucionais do Recorrente,
dd) Repare-se que a consideração de que não há, sem mais, direito à indemnização por parte do lesado, constitui uma clara violação do princípio da igualdade, já que, caso o acidente se tivesse verificado com um veículo de um qualquer ente privado essa obrigação estaria SEMPRE assegurada!
ee) Tratando-se de uma responsabilidade por factos lícitos, necessário se torna, pois, que o ato se venha a «revelar realmente injustificado» e lesivo, o que se verifica, isto é os danos ou encargos são diversos dos impostos à generalidade das pessoas e são insuscetíveis de constituir um risco normal decorrente da vida em coletividade, de acordo com o art° 9° do citado DL n° 48051.
ff) E no que concerne aos danos, estes encontram-se amplamente explanados ao longo dos presentes autos e na relação da factualidade dada como provada, que aqui se dá por reproduzida, dispensando-nos de a transcrever novamente.
gg) Ademais, é provável que o Recorrente tenha que ser sujeito a novas cirurgias em virtude do material implantado, e em consequência disso novos tratamentos, novos períodos de fisioterapia.
hh) Atendendo a posição do douto tribunal, será adequado concluirmos que o cidadão lesado por um acto de gestão pública ou privada do Estado tenha que suportar os danos causados à sua integridade física e ainda ter que suportar os tratamentos necessários para que possa continuar a ter uma vida minimamente digna?
jj) E por tudo quanto de expôs requer-se a V/a Exa. revogue a decisão recorrida, substituindo-a por uma que faça a tão costumada justiça!».

5. O Ministério Público, em representação do Réu “Estado”, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 855 e segs. SITAF) onde concluiu pela inadmissibilidade da revista ou, sendo a mesma admitida, pela sua improcedência.

6. O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão de 23/4/2020 proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 5 do art. 150º do CPTA (cfr. fls. 882 e segs. SITAF), nos seguintes termos:

«(…) 6. O «TAC/L» julgou totalmente improcedente a ação administrativa comum sub specie por entender que, estando em presença de atividade do Estado integrada na sua gestão pública e não na privada e que, como tal, seria aplicável o regime previsto DL n.° 48.051 e não os arts. 5O1.º, 503.° e 504.º do CC, o A. não logrou demonstrar a verificação dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual previstos naquele regime legal [cír. fls. 597/620].
7. O «TCA/S» manteve aquele juízo, negando provimento ao recurso.
8. O A., aqui ora recorrente, (…) sustentando que o regime legal que in casu seria aplicável é não o constante do DL n.° 48.051, mas, antes, o previsto no CC.
9. A definição do concreto regime substantivo de responsabilidade civil do Estado aplicável ao caso envolve análise de questões jurídicas de algum melindre e dificuldade e revela-se, também, como complexa, tendo reclamado a necessidade de emissão de várias pronúncias jurisprudenciais [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo de 22.03.1995 - Proc. n.º 036392, de 28.09.2000 - Proc. n.º 045960 (podendo ler-se neste último que o litígio não envolve normas de direito administrativo e de que a «relação jurídica emergente dessa culposa conduta não está submetida ao direito público mas ao direito privado» dado «no exercício de condução da viatura, o referido agente não aparece revestido do seu poder de autoridade, mas antes subordinado às mesmas regras legais aplicáveis à atividade análoga de um qualquer particular») e de 18.12.2002 - Proc. n.º 01263/02 (respeitante a atropelamento em cima do passeio de um peão por um veículo da PSP em serviço de perseguição de um ciclomotorista suspeito de tráfico de droga e em que se considerou, à luz da causa de pedir da ação, estar a situação em causa integrada na atividade policial e sujeita à responsabilidade civil do Estado por ato de gestão pública, não constituindo um mero acidente de viação a que se fizesse apelo à violação das regras da condução de veículos definidas no Código da Estrada); e, ainda, o Ac. do STJ de 19.10.1976 - Proc. n.º 066332], pronúncias estas que apontam, em face daquilo que foi o entendimento firmado pelas instâncias, para a necessidade da reanálise por parte deste Supremo com vista a uma melhor interpretação e aplicação do Direito (…)».

7. Colhidos os vistos, o processo vem submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

8. Constitui objeto do presente recurso aferir se o Acórdão do TCAS, de 21/2/2019, ora recorrido, ao ter negado provimento ao recurso de apelação do Autor, confirmando a sentença de 1ª instância do TACLx., assim julgando improcedente a ação administrativa intentada pelo Autor, laborou em erro de julgamento quanto ao regime legal aplicável ao caso – se, como julgado, o regime legal da responsabilidade extracontratual do Estado por atos de gestão pública (constante, à data dos factos, do DL 48.051, de 21/11/1967) ou se o regime legal da responsabilidade extracontratual do Estado por atos de gestão privada (constante do Código Civil, designadamente, dos seus arts. 498º, 501º, 503 e 504º).


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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

9. Resulta elencado na decisão recorrida como assente o seguinte quadro factual:

«A) No dia 2 de Outubro de 2003, pelas 15h45m, o Autor seguia como passageiro no banco traseiro
do veículo automóvel de matrícula ………, propriedade do Estado Português, afecto ao serviço da Polícia de Segurança Pública (P.S.P.) e, no momento, conduzido pelo ora Réu B…………...
B) Esta viatura seguia pela Rua ……………., no sentido Nascente - Poente.
C) Quando descrevia uma curva para a direita (junto ao posto da GNR - …………), o condutor, ora R., perdeu o controlo da direcção do veículo.
D) O veículo saiu da sua hemifaixa de rodagem quando descreveu a curva identificada na alínea C).
E) Despistando-se e invadindo a hemifaixa de rodagem destinada à circulação dos veículos em sentido contrário.
F) Tendo a viatura seguido em frente, invadindo a hemifaixa contrária, apesar de todas as tentativas do 2.° R para a imobilizar.
G) Onde foi colidir frontalmente contra o veículo de matrícula ……….., conduzido por ……………., que aí transitava.
H) No momento chovia e o pavimento encontrava-se escorregadio.
I) O 2.° R B………… conduzia o veículo automóvel com a matrícula ……….., em cumprimento de ordens dos seus superiores hierárquicos da P.S.P..
J) O veículo conduzido pelo 2.° R B………… circulava em marcha de urgência assinalada por sinais luminosos.
K) A marcha de urgência foi determinada superiormente, no decurso de um inquérito onde havia diligências a realizar de imediato, sob pena de perda de prova.
L) Na viatura, ao lado do condutor, seguia C…………., Agente da P.S.P..
M) O A. seguia no veículo por estar a ser conduzido à Divisão de Investigação Criminal de Alcântara.
N) O que havia sido determinado por ordem superior que fora comunicada via telefone, e cuja chamada foi atendida por C…………..
O) O A. resultou ferido de tal colisão, tendo sido de imediato transportado de urgência ao Hospital de São José, em Lisboa.
P) O Estado Português suportou a assistência médica de que o A. necessitou.
Q) As despesas com assistência e as remunerações perdidas pelo Autor, durante os períodos de incapacidade temporária, foram satisfeitas ou asseguradas pelo Comando da P.S. P..
R) O A. sentiu dores muito fortes no braço direito imediatamente depois da colisão referida em G).
S) Do acidente de viação de 2/10/2003 resultaram fracturas da extremidade inferior do úmero direito (supracondiliana e da epitróclea).
T) Tendo A. ficado internado para posterior intervenção cirúrgica de 2/10/2003 a 9/10/ 2003.
U) O que veio a suceder em 7 de Outubro de 2003, tendo sido realizada osteossíntese, com aplicação de placa e parafusos.
V) Na fase de consolidação das fracturas foi detectada neuropatia cubital.
W) Em finais de Janeiro 2004 ocorreu refractura ao nível da região supracondiliana do úmero direito.
X) O que determinou nova operação ao A., no Hospital de S. José, em 28/01/2004.
Y) Nesta operação, foi removido o material de osteossíntese previamente colocado, foi realizada neurólise do cubital a nível do cotovelo e osteossíntese da fractura com duas placas.
Z) A fractura evoluiu para pseudartrose.
AA) O que determinou nova operação no Hospital de Jesus, em que foram removidas as placas e efectuado encavilhamento do úmero com cavilha retrógrada ST-Pro.
BB) Persistiu a pseudartrose.
CC) O que causou uma limitação funcional do membro superior direito do A..
DD) O que determinou nova operação, em 08/08/2007, no Hospital de S. José.
EE) Tendo sido realizada remoção da cavilha, desbridamento do foco de pseudartrose e osteossíntese com placa “Numelock" com "locking screws" e com colocação, no foco de pseudartose, de auto-enxerto de osso esponjoso colhido da região posterior do osso ilíaco direito do A..
FF) Tendo-se obtido então a consolidação da fractura supracondiliana do úmero direito.
GG) Após esta ultima operação, seguiu-se a realização de um programa de fisioterapia.
HH) O A. apresenta rigidez do cotovelo direito com arco de flexão extensão de 75°.
II) O A sofreu encurtamento de cerca de cinco centímetros do braço direito.
JJ) Bem como atrofia muscular do braço e antebraço direito.
KK) E hipostesia de trajecto cubital no membro superior direito, a jusante da região do braço.
LL) Tendo ficado com uma cicatriz retráctil, deformante e escavada de toda a face posterior do cotovelo.
MM) O A. teve um período de incapacidade temporária geral total de 43 dias.
NN) O A. teve um período de incapacidade temporária geral parcial de 1417 dias.
OO) O A. teve um período de incapacidade temporária profissional total de 1460 dias.
PP) O A. sofreu dores intensas nos momentos do acidente.
QQ) E nos períodos que se seguiram às intervenções cirúrgicas, e respectivos períodos de reabilitação.
RR) O A. submeteu-se a programas de fisioterapia.
SS) Tratamentos esses que foram incómodos e dolorosos.
TT) E que o obrigaram a alterar a sua rotina diária.
UU) O A. viveu angustiado.
VV) O A. teve algum abalo psicológico, por ser dextro.
WW) O A. isolou-se mais do que era habitual antes do acidente.
XX) E, pela mesma causa, deixou de andar de mota e conduzir veículos.
YY) Na actualidade, o A. não se sente bem fisicamente na medida em que persistem a dificuldade de mobilização e de flexão e extensão total do cotovelo direito.
ZZ) O A. tem falta de sensibilidade do lado interno em todo o braço.
AAA) O A. tem diminuição de força do mesmo membro.
BBB) O A. tem dores, na zona do cotovelo, especialmente nas alturas de mudança climatérica.
CCC) O A. irá enfrentar no futuro despesas em consultas e exames médicos, bem como em tratamentos e medicamentos destinados a atenuar os sofrimentos que lhe ficaram das sequelas do acidente referido.
DDD) Ao A. é fixável em 5/7 o grau de "quantum doloris", correspondente ao sofrimento físico e psíquico vivido durante o período de incapacidade temporária.
EEE) Ficou afectado de uma incapacidade permanente geral em grau de 20%.
FFF) Deficiência esta que exige ao A. esforços acrescidos muito significativos para a realização das tarefas da sua actividade profissional.
GGG) O A. sofreu um prejuízo estético avaliado em grau de 5/7, correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da imagem em relação a si próprio e perante as outras pessoas.
HHH) E um prejuízo de afirmação pessoal - definido pela impossibilidade de intervenção em actividades de lazer e desportivas, próprias da idade - fixável em grau de 3/7.
III) No dia seguinte ao acidente, o Comandante da Esquadra de Investigação Criminal da 1.ª Divisão do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, participou ao superior hierárquico, a ocorrência do acidente de viação em questão.
JJJ) No dia 18/02/2004 o A. participou criminalmente do ora R. B…………...
KKK) Na sequência da participação referida na alínea anterior foi aberto inquérito, em 05/03/ 2004, a que foi atribuído o n.° 1905/04.5TDLSB.
LLL) No dia 29/04/2004 foi o A. notificado de que podia, querendo, deduzir pedido de indemnização, ou manifestar no processo, até ao encerramento do inquérito, o propósito de o fazer, podendo deduzir tal pedido até 10 dias depois de o arguido ser notificado do despacho de acusação ou, se não o houver, do despacho de pronúncia.
MMM) Em 31/03/2008 foi o ora R B………….. acusado da prática de um crime de ofensas corporais por negligência grave, atendendo à factualidade descrita em A) a G).
NNN) O A. foi notificado do despacho de acusação no dia 17/04/2008.
000) Em 23/04/2008, o A. apresentou nos Serviços do M.P. junto aos Juízos Criminais de Lisboa requerimento, no qual consta, com interesse, o seguinte:
«Como resulta do ponto 7. da referida douta acusação e dos relatórios do IML de fls. 164 a 168, a
situação clínica do ofendido ainda não se encontra definida.
3.° Não se conhecendo, em toda a sua extensão, os danos sofridos pelo ofendido.
(…) Desconhecendo, no momento, quais as sequelas permanentes que poderão vir a resultar, das lesões sofridas qual o seu grau, e que reflexo terão na sua capacidade de ganho.
6.° Dado que terá de se submeter a uma nova intervenção cirúrgica, pelo mesmo, pois tem material de osteossíntese que será necessário retirar.
7.° E só após tal, é que será possível, ser submetido a exame médico para avaliação completa dos danos, sequelas e respectivas quantificação para efeito do cálculo de eventual IPP.
Pelo exposto, e nos termos do previsto na al. d) do n.° 1 do art.° 72.° do CPP, o ofendido não tendo
elementos para o fazer agora, formularão o respectivo pedido cível em separado, no Tribunal Cível.»
PPP) Em 01/09/2008 foi proferida a sentença no processo-crime n.° 1905/04.5TDLSB (5.° Juízo Criminal de Lisboa), na qual se absolveu o ora R. B…………. da prática do crime que vinha acusado, aí se expendendo, com interesse, o seguinte:
«(...) Não se mostra preenchida a tipicidade subjectiva, na medida em que não se provou que o arguido não tenha observado o cuidado e a diligência que lhe eram exigíveis, no caso.
Não estão, pois, preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime, pelo que se conclui não ter o arguido, com a conduta descrita, incorrido na prática de um crime de ofensa à integridade física negligente...».
QQQ) 0 A. nasceu a 11.12.1980.
RRR) À data do acidente tinha 22 anos de idade.
SSS) O Autor exerce a sua profissão na carreira técnico-informática.
TTT) Auferia à data do acidente o salário mensal de €826,13.
UUU) E em Julho de 2008 auferia €1.055,00.
VVV) A presente acção deu entrada em Tribunal no dia 04/12/2009.

Factos não provados
Os que constam da decisão da matéria de facto de fls. 393 e seguintes, dos autos em suporte de papel.

Motivação da matéria de facto
A motivação da matéria de facto está expressa no despacho saneador e na decisão da matéria de facto».


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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

10. Como vimos, insurge-se o Autor, ora Recorrente, contra o entendimento das instâncias de ser aplicável ao caso dos autos o regime legal da responsabilidade civil extracontratual do Estado por atos de gestão pública, defendendo que, diversamente, o regime aplicável deverá ser o da responsabilidade extracontratual do Estado por atos de gestão privada. Mas ainda que se entendesse estar no âmbito da responsabilidade por atos de gestão pública - como diz que as instâncias mal julgaram -, sempre deveria, a seu ver, ser então aplicável o regime do art. 8º do DL 48.051 (responsabilidade por atividades excecionalmente perigosas).

11. A sentença do TAC de Lisboa, confirmada pelo Ac.TCAS ora recorrido, afastou a responsabilidade assacada aos Réus, por entender que não se verificava a ilicitude da conduta do 1º Réu (agente condutor do veículo em que seguia, como passageiro, o Autor), exigida no art. 2º do DL 48.051. Consequentemente, «não ficou provada a ilicitude da actuação do 2º R., pelo que não poderá ser o Estado Português responsabilizado».

E, não aderindo à tese do Autor, julgou aquela sentença que «os artigos 501º, 503º e 504º do CC não são aplicáveis in casu, uma vez que não estamos no domínio de actividades de gestão privada mas de gestão pública, sendo antes aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado previsto no Decreto-Lei 48051 de 21/11/1967».

E, conformando a situação no âmbito da responsabilidade por atos de gestão pública, afastou, também, a aplicabilidade do regime do art. 8º daquele DL 48.051 (responsabilidade por atividades excepcionalmente perigosas), por entender não ser o caso, pois que, ainda que aceitando que «o trabalho policial configure uma atividade perigosa», a mera condução de um veículo, no caso dos autos, mesmo que em serviço assinalado de urgência, não o é, como admite que serão os diferentes casos de “perseguição policial” («não estamos a falar de uma perseguição policial, mas de um acidente comum de trânsito»).

12. O Ac.TCAS recorrido confirmou, como se disse, este entendimento da 1ª instância, nestes termos:
«(…) vem provado que a viatura do Estado circulava em marcha de urgência, em serviço policial, o que equivale a que a classificação efectuada na sentença recorrida, ainda que sumariamente, se afigure acertada, devendo este evento – que também é “acidente” – considerar-se como de gestão pública. Ou seja, em face do que vem provado, o despiste ocorreu no exercício das funções que estavam atribuídas ao condutor do dito carro do Estado e por causa desse exercício. Isto é, ocorreu no exercício das funções policiais (…). Em síntese, nas circunstâncias acima referidas o acto de condução do veículo foi um acto de gestão pública. E não, portanto, um mero acidente de viação provocado por um carro propriedade do Estado Português, afecto ao serviço da Polícia de Segurança Pública. (…) Ora, atento o que ficou provado, não havendo ilicitude, não pode haver responsabilização (…)».

E, confirmando também o julgamento da 1ª instância, mais acrescentou:
«A responsabilidade objectiva prevista no art. 8º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21.11.1967, não se mostra aqui aplicável, na medida em que apenas previa o ressarcimento de danos decorrentes de actividades excepcionalmente perigosas, o que não foi o caso» (citando, a este propósito, os Acs. deste STA de 14/12/2005 (351/05) e de 12/2/2015 (1075/14).

13. É nosso entendimento, porém, que este julgamento das instâncias não é de subscrever, tendo razão o Autor quando advoga que a situação dos autos deve ser sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado por atos de gestão privada – com consequente aplicação das regras contidas nos arts. 498º, 501º, 503º e 504º do Código Civil.

A nosso ver, a tese seguida pelas instâncias enferma de um duplo erro:

- por um lado, as instâncias ativeram-se, erradamente, à finalidade da circulação do veículo policial em causa – deslocação urgente para recolha de prova numa investigação (atividade, esta, claramente de gestão pública) – e não ao meio utilizado para essa finalidade (a condução de um veículo, em estrada pública, sem traço de “gestão pública”);

- por outro lado, viram, também erradamente, na “urgência” da condução do veículo, aliás assinalada por sinais luminosos (cfr. ponto J) do probatório), a confirmação dessa condução como ato de gestão pública, em vez de a circunscrever a uma atividade submetida às regras de direito privado do Código da Estrada (ainda que específicas de uma condução “em emergência”), e não às regras do direito público.

14. Efetivamente, quanto àquele primeiro aspeto – e pondo de lado, num primeiro momento (a benefício de raciocínio), a questão da circulação com sinais luminosos de “urgência” -, a tese das instâncias parece esquecer que a finalidade do “interesse público”, que é sempre a finalidade da actuação dos funcionários do Estado em serviço (se não fosse para recolha de prova numa investigação, aquele veículo policial circularia sempre com outro objetivo de “interesse público”), pode ser prosseguida através de atos de gestão pública ou de atos de gestão privada: a finalidade (por natureza, sempre de “interesse público”) não se confunde, assim, com os meios através dos quais essa finalidade é prosseguida - umas vezes ao abrigo de normas de direito público (cujo responsabilidade se encontra adstrita ao regime legal da responsabilidade do Estrado por atos de gestão pública), outras vezes ao abrigo de normas de direito privado, incluindo as respeitantes à inerente responsabilidade (por atos de gestão privada).

Paradigmática, aliás, desta segunda hipótese é, precisamente, a situação da circulação dos veículos do Estado nas vias públicas. Ainda que todos circulem “no interesse público” (nem, por natureza, poderia ser de outro modo, salvo casos excecionais ou de circulação abusiva), a disciplina dessa circulação rege-se pelo direito privado – semelhantemente a qualquer outro veículo – e a responsabilidade resultante dessa circulação rege-se, também, pelas regras do direito privado, como também sucede com qualquer outro veículo.

15. Daqui resulta que o único elemento aparentemente perturbador do caso em análise é o facto de o veículo policial circular, aqui, “em marcha de urgência assinalada por sinais luminosos” (cfr. ponto J) do probatório).

E dizemos que é o único elemento perturbador pois que, se não fosse esta circunstância - circulação em marcha de urgência assinalada – nenhuma dúvida se colocaria quanto à aplicação, em termos exclusivos, das regras de direito privado (constantes do Código da Estrada e do Código Civil), quer quanto à circulação propriamente dita quer quanto à responsabilidade decorrente dessa circulação, como sucede relativamente a todos os veículos do Estado que, quotidianamente, circulam (ainda que sempre “no interesse público”) nas nossas estradas.

Ora, se a finalidade da circulação do veículo – no caso, a recolha de prova numa investigação - é irrelevante (uma vez que todos os veículos do Estado circulam, por definição, “no interesse público”, sem que isso afaste a aplicabilidade, à circulação, das normas legais de direito privado), será, então, que a circunstância de o veículo policial circular “em marcha de urgência assinalada por sinais luminosos” determina, por si, a aplicabilidade de normas de direito público (a essa circulação e à responsabilidade dela decorrente)?

16. Não cremos que assim seja.

Desde logo, a circulação do veículo do Estado, ainda que “em marcha de urgência assinalada por sinais luminosos” continua a reger-se pelas normas de direito privado previstas, para estes casos, no Código da Estrada (que é o diploma aplicável ao “trânsito nas vias do domínio público”, cfr. seu art. 2º nº 1). Assim, a única especificidade será, aqui, a aplicação das regras específicas, também elas previstas no Código da Estrada, designadamente no seu art. 64º, para as situações de “veículos que transitem em missão de polícia, de prestação de socorro, de segurança prisional ou de serviço urgente de interesse público assinalando adequadamente a sua marcha”, os quais podem “quando a sua missão o exigir”, nomeadamente, “deixar de observar as regras e os sinais de trânsito, mas devem respeitar as ordens dos agentes reguladores do trânsito”, “não podem, porém, em circunstância alguma, pôr em perigo os demais utentes da via, sendo, designadamente, obrigados a suspender a sua marcha: a) perante o sinal luminoso vermelho de regulação do trânsito, embora possam prosseguir, depois de tomadas as devidas precauções, sem esperar que a sinalização mude; b) perante o sinal de paragem obrigatória em cruzamento ou entroncamento”.

Estamos, pois, aqui, perante regras específicas, para casos específicos de “urgência”, que continuam a ser regidos pelo direito privado (no caso, pelo Código da Estrada) e que podem ser aplicadas a diversos tipos de veículos – policiais, de prestação de socorro, de segurança prisional ou de serviço urgente de interesse público; englobando, aliás, tanto veículos em prestação de socorro propriedade do Estado ou de entidades públicas, como veículos de propriedade privada, de entes coletivos ou, até, de particulares em missão de socorro de emergência (“caso os veículos não estejam equipados com os dispositivos referidos no número anterior, a marcha urgente pode ser assinalada: a) utilizando alternadamente os máximos com os médios; ou b) durante o dia, utilizando repetidamente os sinais sonoros” – cfr. art. 64º nº 4 do C. Estrada).

Mas, se assim é quanto às normas legais que regem essa circulação – que continuam a ser as normas de direito privado previstas para tais casos específicos no próprio Código da Estrada -, também as normas legais que regulam a responsabilidade extracontratual decorrente dessa circulação hão-de ser as normas de direito privado previstas no Código Civil, por estarmos perante uma “atividade-meio” de gestão privada (condução automóvel nas vias públicas), ainda que com uma finalidade, obviamente, de “interesse público”.

17. Note-se que situação completamente diferente da aqui ora em análise – de condução de um veículo policial como meio de deslocação ou transporte, ainda que “urgente” ou “em emergência” – é a daqueles casos em que a circulação de um veículo policial se efetua, já não com propósito de deslocação ou transporte (como qualquer outro veículo), mas como instrumento integrante da própria perseguição policial, munidos os agentes, nesta atuação, do inerente poder público para o efeito, em atividade exclusiva das forças policiais ou de segurança.

Nestes casos, sim, estaríamos não só perante uma atividade com finalidade de “interesse público” mas também prosseguida através de meios de gestão pública, regida por normas de direito público, quer quanto à atividade propriamente dita, quer quanto à responsabilidade dela decorrente.

Porém, não é este o caso da situação dos autos.

Aliás, a sentença do TAC de Lisboa entreviu bem esta diferença ao referir que, no caso dos autos, “não estamos a falar de uma perseguição policial, mas de um acidente comum de trânsito”.

Porém, expressou-a para afastar a aplicação do regime do art. 8º do DL 48.051 não deixando de aplicar o regime geral deste diploma no pressuposto – errado (e, já agora, incongruente com o seu entendimento de tratar-se de “um acidente comum de trânsito”) – de que a finalidade de “interesse público” da missão policial contaminava o regime decorrente da responsabilidade decorrente da instrumental circulação do veículo policial.

18. Como se referiu no Ac.STA de 7/10/1993 (32.058):
«(…) o Estado não prossegue o objectivo da segurança nacional através da circulação das viaturas militares nas vias públicas em condições idênticas àquelas em que se processa a circulação das viaturas particulares. (…) não vinha alegado que tal viatura [militar] se encontrasse, no momento do acidente, integrada em qualquer tipo de exercício militar eventualmente caracterizável como acto de gestão pública. O acto de circulação da viatura [militar] do Estado, nas circunstâncias em que ocorreu, apenas se destinava a permitir o exercício da função pública da segurança e não integrava, ela própria, a realização dessa função».

Ora, também, em termos paralelos, podemos dizer que, nas circunstâncias do presente caso, “o ato de circulação da viatura policial do Estado apenas se destinava a permitir o exercício da função pública (da investigação ou da justiça), e não integrava, ela própria, a realização dessa função”.


Veja-se, também, a propósito, o Ac.STA de 7/10/1993 (31.829):
«O acidente estradal provocado por veículo de ente público [ambulância] não representa um acto de gestão pública».

Ou o Ac.STA de 23/2/1995 (36.392):
«Em matéria de tráfego estradal e de acidentes de viação, a presença e a circulação de veículos do Estado em nada diferem das dos carros privados. Todos têm de seguir as mesmas regras técnicas, de obedecer aos mesmos regulamentos e de adoptar as mesmas precauções. Um motorista de viatura do Estado não tem de pautar-se, no exercício da condução, por normas de direito administrativo. Como qualquer piloto, tem de respeitar o estatuído no Código da Estrada e de manobrar com a perícia, a destreza e a prudência que se esperam de todos os utentes das vias públicas.
E as prioridades ou vantagens de que beneficie são as previstas na lei estradal».

Ora, também no presente caso, as “prioridades ou vantagens de que beneficiava” o veículo do Estado eram somente as derivadas da assinalada “marcha de emergência”, isto é, as previstas, para qualquer tipo de veículo “em marcha de socorro ou de emergência”, na própria lei estradal (cfr. art. 64º do Código da Estrada).

Veja-se, ainda a propósito, o Ac.STA de 25/3/1998 (42.971):
«(…) apesar de o referido agente da PSP conduzir um veículo do Réu Estado em serviço, isso de modo nenhum implica ou significa que a sua eventual culposa conduta enquanto condutor desse veículo, porventura geradora de um litígio, seja disciplinada por normas de direito administrativo. A relação jurídica emergente dessa culposa conduta não está submetida ao direito público mas sim ao direito privado. No exercício da condução da viatura o referido agente não aparece investido do seu poder de autoridade, mas antes subordinado às normas legais aplicáveis à actividade análoga de um qualquer particular».

19. Já, diferentemente, como dissemos, numa situação de perseguição policial em viatura policial, a circulação desta integrará, ela própria, a realização da função pública em causa (da segurança ou da justiça).

Assim foi julgado no Ac.STA de 18/12/2002 (1263/02):
«A acção proposta com fundamento em responsabilidade por danos decorrentes do atropelamento em cima do passeio de um peão por um veículo da Polícia de Segurança Pública em serviço de perseguição de um ciclomotorista suspeito de tráfico de droga, na qual não se faz apelo a violação das regras da condução de veículos do Código da Estrada, mas à actividade policial desenvolvida, ao seu risco próprio e à assunção da responsabilidade pelo Estado e assim seguiu e foi apreciada, não tem de ser considerada como acção por acidente de viação em actividade regulada pelo direito comum, cuja violação não faz parte da causa de pedir efectiva. (…) pelo que não é aplicável a jurisprudência invocada pelo EMMP que se reporta a situações em que as acções eram fundadas em acidente de viação e violação de regras de direito comum do Código da Estrada».

20. Resulta, pois, do exposto que, conforme defendido pelo Autor no presente recurso de revista, e contrariamente ao julgado pelas instâncias, ao acidente em questão nos presentes autos e à responsabilidade pelas suas consequências para o Autor, não é aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado (prevista, à data dos factos, no DL 48.051), mas sim as normas de direito privado constantes do Código Civil, designadamente dos seus arts. 483º, 501º, 503º e 504º, pelo que o Réu Estado responde, nestes casos, como comitente (art. 501º) e pelos danos provenientes dos riscos próprio do veículo (art. 503º), nomeadamente para as pessoas transportadas (art. 504º).

Isto, sem prejuízo de, estando-se em presença de um acidente simultaneamente de viação e de serviço, e resultando dos autos que o Autor/Recorrente já foi parcialmente ressarcido pelo Réu Estado à luz do regime dos acidentes de serviço (cfr. pontos P) e Q) do probatório), haver que considerar tal circunstância, uma vez que os regimes das inerentes responsabilidades são complementares mas não cumuláveis quanto a indemnização pelos mesmos danos.

21. Nestes termos, não podendo subsistir o Ac.TCAS recorrido, terá o mesmo que ser revogado, devendo os autos baixar ao TCAS para que a responsabilidade civil dos Réus seja julgada de acordo com o regime legal aplicável, constante das normas de direito privado do Código Civil.



*

IV – DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

- Conceder provimento ao presente recurso jurisdicional de revista deduzido pelo Autor/Recorrente A…………., revogar o Acórdão do TCAS recorrido, e ordenar a baixa dos autos ao TCAS para que a ação seja julgada, e a responsabilidade dos Réus apreciada, de acordo com o regime legal aplicável, constante das normas de direito privado do Código Civil, como explanado nos pontos 20 e 21.

Custas nas instâncias e neste S.T.A. a cargo do Réus/Recorridos.

D.N.

Lisboa, 15 de outubro de 2020 – Adriano Cunha (relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, aditado pelo art.3º do DL nº 20/2020, de 1/5, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Conselheiro Jorge Artur Madeira dos Santos e Conselheiro José Francisco Fonseca da Paz)