Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0540/10.3BELRS
Data do Acordão:06/09/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CPPT
Sumário:I - No contencioso tributário, o recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPTT visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, o que cumpre ao recorrente alegar e demonstrar (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).
II - Não é de admitir a revista se, contrariamente ao alegado, relativamente a uma questão, não há divergência entre o entendimento adoptado pelo acórdão recorrido e o recorrente e, relativamente à outra, não é patente que o acórdão tenha incorrido em erro de julgamento.
Nº Convencional:JSTA000P27838
Nº do Documento:SA2202106090540/10
Data de Entrada:09/28/2020
Recorrente:A............
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 540/10.3BELRS
Recorrente: A…………
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 O acima identificado, inconformado com o acórdão de 20 de Fevereiro de 2020 do Tribunal Central Administrativo Sul (Disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/7b838e64841cc5968025851f004d0a5c.) – que, concedendo parcial provimento ao recurso por ele interposto, revogou a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa na parte em que esta recusou apreciar da relevância da sentença penal absolutória no processo de oposição à execução fiscal e, procedendo a essa apreciação, julgou improcedente a invocação da falta de gerência de facto, enquanto pressuposto da responsabilidade subsidiária, assim como também manteve o julgamento de improcedência quanto à falta de culpa –, dele recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, mediante a invocação do disposto no art. 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentando com o requerimento de interposição do recurso a respectiva motivação, com conclusões do seguinte teor:

«a. Revestindo as questões em apreço nos autos uma relevância manifestamente prática, em atenção à susceptibilidade da questão controvertida de se expandir para além dos limites da situação singular, independentemente da sua relevância teórica, resultando da mesma a possibilidade de repetição da questão noutros casos e da necessidade de garantir a uniformização do direito pela instância de cúpula do sistema judicial tributário, verifica-se – à luz da interpretação que vem sendo firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo quanto a cada um dos requisitos legais previstos n.º 1 do artigo 285.º do CPPT, para a admissão do Recurso de Revista quanto a uma decisão de mérito emanada pelo Tribunal Central Administrativo – estarem reunidos os pressupostos para o conhecimento do mérito do presente Recurso de Revista;

b. Atendendo ao disposto no artigo 624.º do CPC que confere valor probatório legal extraprocessual à decisão penal absolutória, verifica-se que considerando a factualidade dada como provada na decisão penal absolutória, era à Autoridade Tributária a quem caberia a prova de que o Recorrente havia exercido a gerência de facto da sociedade, nos termos do artigo 74.º da LGT e do artigo 342.º do Código Civil, não podendo prevalecer a presunção de culpa (a favor da Autoridade Tributária) a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT, concluindo-se que “as instâncias [trataram] a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema”, verificando-se, assim, estar preenchido o segundo requisito a que alude a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 285.º do CPPT (necessidade de garantir a melhor aplicação do direito) para efeito de admissão do Recurso de Revista;

c. No presente recurso discute-se uma questão que não é de natureza meramente casuística, sendo previsível que a sua solução tenha, ou possa vir a ter, repercussões noutras situações, dada a sua abrangência, que de facto é extensível a todas as situações em que se verifica a existência de uma decisão penal absolutória em que foi reconhecido o não exercício da gerência de facto e em que a Autoridade Tributária reverteu a dívida fiscal contra o gerente de direito com base na presunção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT, estando, portanto, verificado o requisito da relevância social fundamental da referida questão a que alude a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 285.º do CPPT, pelo que, estando preenchidos, in casu, os pressupostos legais para a admissão do presente Recurso de Revista, deverá o mesmo ser admitido por Vossas Excelências;

d. Nos termos dos artigos 619.º e 621.º do CPC, a sentença transitada em julgado passa a ter força obrigatória dentro e fora do processo, constituindo caso julgado (material) nos termos em que julga, o qual abrange não só a parte final da sentença como também os fundamentos ou motivos da decisão “necessário(s) para interpretar o verdadeiro sentido da decisão e o seu exacto conteúdo”, respeitantes a pontos susceptíveis de serem objecto de processo autónomo e que constituem antecedente lógico, necessário e indispensável da decisão;

e. A autoridade do caso julgado de uma decisão estender-se-á a outros casos, designadamente quanto aos chamados fundamentos lógico-jurídicos indispensáveis à decisão ou a questões que sejam consideradas antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado, concluindo-se, assim, que dado que a sentença penal, tal como a sentença judicial, também adquire força obrigatória dentro e fora do processo e faz caso julgado material, em virtude do disposto nos artigos 619.º e 621.º do CPC;

f. O artigo 624.º do CPC não pode ser interpretado nos termos efectuados pelo Tribunal recorrido, porquanto, considerando que na decisão penal absolutória o Tribunal criminal considerou como provado que “A………… foi gerente de facto e de direito da 1.ª arguida desde 1991 até Setembro de 2001, altura em que faleceu um dos seus filhos; após essa data, esteve cerca de seis anos sem exercer a gerência, posteriormente administração, de facto da sociedade arguida” (cfr. ponto b) da matéria de facto dada como provada), caberia à Autoridade Tributária a prova de que o ali Arguido, aqui Recorrente, havia exercido a gerência de facto da sociedade;

g. Do despacho de reversão nenhuma prova é efectuada quanto à efectiva gerência de facto por parte do Recorrente, na medida em que a reversão operou contra o Recorrente atendendo à presunção de culpa (a favor da Autoridade Tributária) a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT, constatando-se, assim, que o órgão de execução fiscal, na qualidade de autor da execução instaurada contra o Recorrente, não efectuou a prova de que o mesmo exerceu a gerência de facto;

h. Qualquer outro entendimento implicaria uma violação da presunção de inocência, enquanto princípio fundamental do direito português, porquanto o Recorrente seria deixado à mercê de uma decisão que viola ofensivamente outros princípios de relevo: o princípio do Estado de direito, o princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima, o princípio da descoberta da verdade material e, bem assim, o princípio da justiça material, como, aliás, entendeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que no caso MELO TADEU C. PORTUGAL, condenou o Estado Português por violação do n.º 2 do artigo 6.º da Convenção dos Direitos do Homem (presunção de inocência);

i. Constatando-se que a Autoridade Tributária nada alegou quanto à efectiva gerência de facto do Recorrente, não podia o Tribunal recorrido substituir-se à Autoridade Tributária e considerar como provado uma alegação que não foi efectuada por parte daquela entidade, na medida em que não obstante no contencioso tributário vigore o princípio do inquisitório (e da investigação) – segundo o qual o tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer (cfr. artigo 99.º da LGT e artigo 13.º do CPPT) –, o princípio do inquisitório tem de ser conjugado com o princípio do pedido e com o ónus de alegação dos factos, condições de eficácia do processo;

j. O Tribunal recorrido estava sujeito ao princípio do dispositivo de alegação das causas de pedir e do pedido, constituindo causa de pedir o facto ou factos concretos que servem ao efeito jurídico pretendido e que, no caso em análise, são os factos subsumíveis a qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT (quanto ao Oponente) e a prova de que o sujeito passivo praticou os actos de gerência (quanto à Autoridade Tributária, atendendo à decisão penal absolutória);

k. Não podendo a Autoridade Tributária aproveitar da presunção de culpa a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT – por força da decisão penal absolutória –, caberia à Autoridade Tributária, nos termos do artigo 74.º da LGT e do artigo 342.º do Código Civil provar os factos que sustentam a sua posição (i.e., que o Recorrente exerceu a gerência de facto, o que manifestamente não ocorreu no caso em apreço), pelo que não tendo a Autoridade Tributária efectuado a prova que lhe competia, a decisão teria forçosamente de ser contra a parte a quem o facto aproveita (cfr. 414.º do CPC, aplicável por força da alínea e) do artigo 2.º do CPPT).

Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente Recurso de Revista ser admitido, sendo conhecido do seu mérito e, em consequência, ser dado como procedente, por provado, sendo anulado o Acórdão recorrido, por ilegal, e substituído por outro que julgue totalmente procedente a Impugnação Judicial apresentada pelo Recorrente».

1.2 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no qual considerou que a revista não deve ser admitida. Isto, após tecer diversos considerandos em torno dos requisitos da admissibilidade deste recurso e da interpretação que a jurisprudência lhes tem, com a seguinte fundamentação: «[…]

No caso em análise verifica-se que questões suscitadas pelo Recorrente reconduzem-se à invocação de erro de julgamento de direito e de facto da decisão recorrida.
Entendemos, salvo melhor juízo, que o Recorrente não demonstra o preenchimento dos pressupostos da admissibilidade do recurso de revista.Com efeito.
As questões suscitadas não se mostram de elevada complexidade, exigindo a aplicação e concatenação de diversos regimes legais, princípios e institutos jurídicos, antes se apresentando com um grau de dificuldade comum.
Também não revestem as questões suscitadas uma especial relevância social ou indício de interesse comunitário significativo que extravase os limites do caso concreto e a sua singularidade.
Acresce que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o que não é claramente o caso dos autos.
Por outro lado, o douto Acórdão recorrido justificou a sua decisão de forma clara e convincente com um discurso lógico e coerente de acordo com a matéria levada ao probatório e a sua subsunção às normas jurídicas aplicáveis, não aparentando padecer de erros lógicos ou jurídicos manifestos que reclamem a necessidade de admissão da revista para melhor aplicação do direito, não se impondo, salvo melhor juízo, a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como condição para dissipar dúvidas sobre o quadro legal que regula a situação em apreço».

1.4 Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do n.º 6 do art. 285.º do CPPT.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art. 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido.


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cf. art. 285.º, n.º 1, do CPPT).
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.2.1.2 Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista [cf. art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicáveis].

2.2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a referir que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (Cf., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.2.1 O ora Recorrente deduziu oposição a uma execução fiscal que, instaurada contra uma sociedade, reverteu contra ele, por a AT ter considerado que estavam verificados os pressupostos da sua responsabilização, a título subsidiário e ao abrigo do disposto no art. 24.º, n.º 1, alínea b), da Lei Geral Tributária (LGT) pelas dívidas exequendas.
Embora na petição inicial não tenha posto em causa a sua condição de gerente de facto no período relevante para a sua responsabilização – mas tão-só i) a impossibilidade de reversão das dívidas provenientes de coimas, por intransmissibilidade e por insusceptibilidade da sua cobrança em execução fiscal, e ii) a falta de culpa pela falta ou insuficiência do património da sociedade originária devedora –, o Opoente, antes de proferida a sentença pelo Tribunal Tributário de Lisboa, veio requerer a junção aos autos de cópia da sentença judicial que o absolveu da prática do crime de abuso de confiança fiscal e que deu como provado que ele «foi gerente de facto e de direito da 1.ª arguida desde 1991 até Setembro de 2001, altura em que faleceu um dos seus filhos; após essa data, esteve cerca de seis anos sem exercer a gerência, posteriormente administração, de facto da sociedade».
Em sede de alegações pré-sentenciais, o Oponente (ora Recorrente) veio pedir que o Tribunal Tributário de Lisboa, ao abrigo do princípio do inquisitório, considerasse também que ele não exerceu de facto a gerência da sociedade originária devedora no período relevante, o que considerou resultar provado, não só da referida sentença penal absolutória, mas também do depoimento das testemunhas inquiridas no processo. Isto, sem prejuízo de considerar que conseguiu afastar a presunção de culpa que sobre si recaía nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 24.º da LGT.
O Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa julgou a oposição procedente no que respeita às dívidas provenientes de coimas e improcedente no demais; quanto à invocada ilegitimidade por não exercício da gerência de facto, considerou que tal fundamento não podia ser atendido, por não ter sido oportunamente invocado, salientando que os factos que poderiam integrar o não exercício da gerência de facto não podiam ter-se como supervenientes e até contrariam o invocado na petição inicial, onde se assume o exercício escrupuloso dos deveres de gerência e que tais factos também se não referem a fundamento do conhecimento oficioso. Mais considerou que o Recorrente não conseguiu ilidir a presunção de culpa que sobre ele recaía, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 24.º da LGT.

2.2.2.2 O Recorrente recorreu dessa sentença para o Tribunal Central Administrativo Sul e este, bem ou mal, não nos cumpre agora apreciar, entendeu que «a invocação da falta de exercício da gerência de facto, no período referido, com base na sentença penal transitada em julgado, constitui facto superveniente em relação ao oponente, cuja invocação constitui o tribunal recorrido no dever de cognição, ao invés do que foi decidido pelo tribunal recorrido» e, assim, que o Tribunal Tributário de Lisboa «incorreu em erro de julgamento, ao não ter dirimido a questão da falta de exercício da gerência de facto, com base na sentença penal transitada em julgado».
Em consonância com esse juízo – que, reiteramos, está subtraído à nossa reapreciação –, o Tribunal Central Administrativo Sul passou a conhecer da questão da falta de gerência de facto, para concluir, depois de analisar o disposto no art. 624.º, n.º 1, do CPC, que deste normativo «extrai-se presunção ilidível quanto «aos factos que [na sentença] tenham sido dados como inexistentes ou não praticados pelo arguido, invertendo o ónus da prova» e que, «[n]o caso, dos elementos coligidos nos autos, resulta comprovado que, no período de Julho de 2002 a Agosto de 2006, o oponente exerceu a gerência da sociedade devedora originária (alínea S). Pelo que a presunção legal da inexistência de actos de gestão praticados pelo oponente não só não se confirma, como foi revertida». Recorde-se que na referida alínea S) dos factos provados se deu como assente o seguinte «No período de Julho de 2002 a Agosto de 2006, o oponente exerceu a gerência da sociedade devedora originária – depoimento das testemunhas do oponente, […], advogada da empresa, de 2003 a 2006 e […], Técnico Oficial de Contas da empresa, de 2003 a 2005. A primeira declarou que o oponente assinava todos os actos relativos à empresa e que o mesmo privilegiou o pagamento de salários. O segundo declarou que o oponente recebia remuneração como gerente da sociedade devedora originária no período em causa, bem como reunia com ele com vista à elaboração da contabilidade e apresentação da modelo 22. Mais referiu que com a venda da actividade mais rentável da empresa (“outsorcing”) à B…………, os proveitos decaíram, de forma significativa. Decisão tomada pelo oponente. Ambas as testemunhas referiram o período de falecimento do filho do oponente, em que o mesmo se terá retirado, mas que tal não impediu de assinar a documentação em causa». Por isso, julgou improcedente a invocada falta de gerência de facto por parte do opoente.
Seguidamente, considerou também que o Tribunal Tributário de Lisboa fez correcto julgamento quanto ao fundamento respeitante à culpa do Opoente.

2.2.2.3 Vem agora o Recorrente recorrer desse acórdão para este Supremo Tribunal Administrativo ao abrigo do disposto no art. 285.º do CPPT. As questões que pretende sejam apreciadas nesta sede vêm por ele delimitadas nos seguintes termos: «Atendendo ao disposto no artigo 624.º do CPC que confere valor probatório legal extraprocessual à decisão penal absolutória, verifica-se que considerando a factualidade dada como provada na decisão penal absolutória, era à Autoridade Tributária a quem caberia a prova de que o Recorrente havia exercido a gerência de facto da sociedade, nos termos do artigo 74.º da LGT e do artigo 342.º do Código Civil, não podendo prevalecer a presunção de culpa (a favor da Autoridade Tributária) a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT». Mais considera o Recorrente que essa prova da gerência de facto, a cargo da AT, deveria ter sido feita no despacho de reversão, o que não aconteceu «na medida em que a reversão operou contra o Recorrente atendendo à presunção de culpa (a favor da Autoridade Tributária) a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT», pelo que deve concluir-se que «o órgão de execução fiscal, na qualidade de autor da execução instaurada contra o Recorrente, não efectuou a prova de que o mesmo exerceu a gerência de facto» pois, porque a AT «nada alegou quanto à efectiva gerência de facto do Recorrente, não podia o Tribunal recorrido substituir-se à Autoridade Tributária e considerar como provado uma alegação que não foi efectuada por parte daquela entidade».
Ou seja, se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões (Essa interpretação constituiu uma tarefa que nos suscitou alguma dificuldade, na medida em que das conclusões d. e e. parece decorrer que o Recorrente também consideraria que os fundamentos fácticos da sentença penal absolutória transitada em julgado se impõem, por força do caso julgado, no processo de oposição à execução fiscal. No entanto, esses considerandos parecem-nos ultrapassados pelos termos em que foi enunciada a questão sujeita a este Supremo Tribunal em sede de revista, qual seja a de saber se, «[a]tendendo ao disposto no artigo 624.º do CPC que confere valor probatório legal extraprocessual à decisão penal absolutória, verifica-se que considerando a factualidade dada como provada na decisão penal absolutória, era à Autoridade Tributária a quem caberia a prova de que o Recorrente havia exercido a gerência de facto da sociedade, nos termos do artigo 74.º da LGT e do artigo 342.º do Código Civil»; ou seja, o Recorrente admite expressamente que podia ser efectuada em sede de oposição à execução fiscal prova da gerência de facto, a qual competiria à AT.), o Recorrente sustenta i) que, por força do valor probatório extraprocessual que a lei (art. 624.º do CPC) confere à decisão penal absolutória, competia à AT a prova de que o Recorrente exerceu a gerência de facto no período relevante para a sua responsabilização, a título subsidiário, pelas dívidas exequendas e ii) que a AT não estava em condições de fazer essa prova porque no despacho de reversão «nada alegou quanto à efectiva gerência de facto do Recorrente» e o Tribunal não podia «substituir-se à Autoridade Tributária e considerar como provado uma alegação que não foi efectuada por parte daquela entidade».
Em ordem a demonstrar os requisitos de admissibilidade da revista quanto a essas questões, invocou a necessidade de garantir a melhor aplicação do direito, alegando que «as instâncias [trataram] a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema», bem como invocou a relevância social fundamental, mediante a alegação da «possibilidade de repetição da questão noutros casos» e da «necessidade de garantir a uniformização do direito pela instância de cúpula do sistema judicial tributário», pois a «questão que não é de natureza meramente casuística, sendo previsível que a sua solução tenha, ou possa vir a ter, repercussões noutras situações, dada a sua abrangência, que de facto é extensível a todas as situações em que se verifica a existência de uma decisão penal absolutória em que foi reconhecido o não exercício da gerência de facto e em que a Autoridade Tributária reverteu a dívida fiscal contra o gerente de direito com base na presunção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT».

2.2.2.4 Salvo o devido respeito, a primeira questão não tem razão de ser: o Tribunal Central Administrativo Sul não deixou de reconhecer valor probatório em sede do presente processo de oposição à execução fiscal à decisão penal absolutória. Tanto assim, que no acórdão recorrido ficou escrito: «Estatui o artigo 624.º, n.º 1, do CPC, que «A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário». Do normativo em presença extrai-se presunção ilidível quanto «aos factos que [na sentença] tenham sido dados como inexistentes ou não praticados pelo arguido, invertendo o ónus da prova» (7) [(7) José Lebre de Freitas et aliud, CPC anotado, Vol. 2.º, 2008, p. 727]».
Ou seja, o acórdão recorrido reconheceu (Aliás, ao arrepio da jurisprudência deste Supremo Tribunal, que tem vindo a afirmar que «a lei não atribui relevância em processo de oposição fiscal ao caso julgado absolutório formado em processo penal», sem prejuízo de consubstanciar um elemento de prova, a valorar pelo tribunal tributário «de acordo com o princípio da livre apreciação da prova», nos termos do disposto no n.º 5 do art. 607.º do CPC, aplicável subsidiariamente.
Vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 16 de Fevereiro de 2005, proferido no processo com o n.º 08/05, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/f63b2b772eb3746f80256fb600369fc6;
- de 8 de Outubro de 2014, proferido no processo com o n.º 1930/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/1dfb448d8899d9f980257d6d0048ff84.) que a sentença penal absolutória produzia efeitos no processo de oposição à execução fiscal, ao abrigo do disposto no art. 624.º, n.º 1, do CPC, traduzindo-se esse reconhecimento na inversão do ónus da prova quanto aos factos que naquela sentença foram dados como provados.
Daí resulta que o acórdão entendeu que a sentença penal constituía presunção no processo tributário de que o ora Recorrente não exercera funções de facto como gerente da sociedade originária devedora desde Setembro de 2001, presunção essa susceptível de ser ilidida por prova em contrário, como o foi no caso sub judice (ficou dito no acórdão recorrido: «No caso, dos elementos coligidos nos autos, resulta comprovado que, no período de Julho de 2002 a Agosto de 2006, o oponente exerceu a gerência da sociedade devedora originária (alínea S). Pelo que a presunção legal da inexistência de actos de gestão praticados pelo oponente não só não se confirma, como foi revertida»).
Nessa medida, inexiste qualquer divergência entre a tese do Recorrente – que sustenta que recai sobre a AT o ónus de demonstrar a gerência de facto – e aquela que foi adoptada no acórdão recorrido, o que, por si só, determina a não admissão do recurso de revista quanto a esta questão.
Aliás, a questão nem sequer assume relevância de maior, na medida em que o regime da responsabilidade subsidiária tem sempre subjacente o exercício efectivo de funções por parte do gestor, sendo que cabe à AT a sua demonstração, qualquer que seja a alínea do n.º 1 do art. 24.º da LGT em que venha a enquadrar aquela responsabilidade, sendo que desde há muito a jurisprudência deste Supremo Tribunal afastou o entendimento de que se podia presumir a gerência de facto da gestão de direito (Cf. o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Fevereiro de 2007, proferido no processo com o n.º 1132/06, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/95ea45b1b46109a88025729d005875f5.). Ou seja, o ónus da prova da gerência de facto sempre recai sobre a AT.
Questão diferente é a de saber se foi ou não feita prova da gerência de facto, como considerou o acórdão recorrido, ou se, como sustenta o Recorrente, tal prova poderia sequer ser efectuada, porque «no despacho de reversão nenhuma prova é efectuada quanto à efectiva gerência de facto por parte do Recorrente».

2.2.2.5 Quanto esta última questão, também suscitada pelo Recorrente no presente recurso, diremos, desde logo, que ela não foi apreciada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, o que, sem mais, obstaria à sua reapreciação por este Supremo Tribunal.
Para além disso, desde há muito é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que «[a] fundamentação formal do despacho de reversão basta-se com a alegação dos pressupostos e com a referência à extensão temporal da responsabilidade subsidiária que está a ser efectivada (n.º 4 do art. 23.º da LGT) não se impondo, porém, que dele constem os factos concretos nos quais a AT fundamenta a alegação relativa ao exercício efectivo das funções do gerente revertido» (Cf. o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Outubro de 2013, proferido no processo com o n.º 458/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/8f855dd77352f28b80257c0e003dc342.), considerando-se que não será necessário «que do despacho de reversão constem os factos concretamente identificados nos quais a Administração tributária fundamenta a sua convicção relativa ao efectivo exercício de funções, pois que em causa não está uma acusação em matéria sancionatória e persistindo dúvida acerca do efectivo exercício de funções o “non liquet” não poderá deixar de ser valorado contra a Administração fiscal, que invoca o direito a responsabilizar o gerente, pois que inexiste presunção legal no sentido de que o gerente de direito exerça de facto as suas funções, daí que não possa seriamente defender-se que a não invocação no despacho de reversão de tais factos possa comprometer a defesa do responsável subsidiário».
Ou seja, também quanto a esta questão não estão verificados os requisitos da admissibilidade da revista.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - No contencioso tributário, o recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPTT visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, o que cumpre ao recorrente alegar e demonstrar (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).

II - Não é de admitir a revista se, contrariamente ao alegado, relativamente a uma questão, não há divergência entre o entendimento adoptado pelo acórdão recorrido e o recorrente e, relativamente à outra, não é patente que o acórdão tenha incorrido em erro de julgamento.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.

Custas pelo Recorrente.


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Assinado digitalmente pelo relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente acórdão os Conselheiros que integram a formação de julgamento.

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Lisboa, 9 de Junho de 2021. – Francisco Rothes (relator) – Isabel Marques da Silva – Aragão Seia.