Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01289/16
Data do Acordão:02/22/2018
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:ACORDO ORTOGRÁFICO
RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:I - Podendo a função política materializar-se em disposições normativas, designadamente legislativas, é importante nelas identificar, para efeitos de controlo judicial, o que ainda é decisão política e o que já é concretização normativa da mesma.
II - Deve considerar-se que preceitos, como os impugnados nos presentes autos, que antecipam a entrada em vigor do AO (entrada em vigor previamente balizada em termos temporais) para determinados destinatários e para certas situações possuem natureza normativa.
Nº Convencional:JSTA00070553
Nº do Documento:SAP2018022201289
Data de Entrada:10/18/2017
Recorrente:A... E OUTROS
Recorrido 1:ESTADO, CONSELHO DE MINISTROS E OUTROS
Votação:MAIORIA COM 3 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:AC SECÇÃO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL
Legislação Nacional:CPTA ART4 N1 A N2 B ART21 N1.
RCM N8/2011.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:



I – Relatório

1. A……………….. e Outros, devidamente identificados nos autos, vêm interpor recurso para o Pleno desta Secção do STA do acórdão proferido em 1.ª instância pela 1.ª Secção deste STA, em 29.06.17, acórdão através do qual: a) se declarou “a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido de declaração de ilegalidade de norma com força obrigatória geral da RCM n.º 8/2011, absolvendo os réus da instância, quanto a este pedido”; b) se declarou o STA “incompetente em razão da hierarquia para conhecer do outro pedido”; c) (…); e d) se declarou a remessa dos autos ao TCA de Lisboa, “após o trânsito do presente acórdão” (cfr. fls. 350).

Na acção por si interposta (acção popular administrativa de impugnação de normas), os ora recorrentes formularam, entre outros (que não serão transcritos porque irrelevantes para efeitos da decisão a adoptar no presente recurso), o seguinte pedido: “Deve a presente acção ser julgada procedente e, em consequência, declaradas ilegais, com força obrigatória geral, as normas dos n.os 3 e 1 da RCM, no que se refere à imposição aos alunos do sistema educativo público, no âmbito da Administração Pública directa, do AO90, bem como as normas regulamentares constantes das notas informativas do Ministério da Educação de Fevereiro e Setembro de 2012, calendarizando a aplicação ao sistema educativo público, ao abrigo do art. 73.º, n.º 1, do CPTA; (…)” (cfr. fl. 17).

2. Os recorrentes terminam as suas alegações formulando as seguintes conclusões (cfr. fls. 367v.-371):

1.ª A RCM n.º 8/2011 foi aprovada ao abrigo da competência administrativa do Governo do art. 199.º, g), da Constituição, que inequivocamente invoca como base habilitante.

2.ª Incorre o acórdão recorrido em grave contradição ao afirmar que, apesar de baseado no art. 199.º, g) da Constituição, a RCM n.º 8/2011 e as "Notas Informativas" do Ministério da Educação (ME) não têm natureza administrativa, mas política.

3.ª Viola de igual modo o acórdão recorrido a Constituição ao desconsiderar a letra e o sentido do art. 199.º, g).

4.ª Não deve confundir-se a função política, ao abrigo da qual foi assinado o Tratado do AO90 e o 2.º Protocolo Modificativo, com a muito diversa função administrativa, ao abrigo da qual emitiu o Governo a RCM n.º 8/2011 e as "Notas Informativas" do ME nesta acção visadas.

5.ª Na dúvida sobre a natureza administrativa ou política das normas em questão, o art. 199.º, g), da CRP, invocado pelo Governo, indicia claramente a sua natureza administrativa.

6.ª O entendimento, manifestado no acórdão recorrido, contraria, de forma injustificada e com grande espanto, como se houvesse arbitrariamente dois pesos e duas medidas, jurisprudência constante deste colendo Supremo Tribunal, em particular o acórdão de 26.VI.2014 (Teresa de Sousa), proc n.º 500/2014, o acórdão de 10.III.2016 (José Veloso), proc n.º 897/2014, o despacho saneador de 14.IX.2015 (José Veloso), proc n.º 897.

7.ª O elenco de actos políticos insindicáveis deve ser restringido e excepcional, em face dos princípios do Estado de Direito e da tutela jurisdicional efectiva, do direito de impugnação jurisdicional de normas administrativas, do âmbito de a jurisdição administrativa se ater a "relações administrativas", do princípio do Estado de Direito, postergados no acórdão recorrido, sem razão bastante nem fundamentada.

8.ª Nem as normas dos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011, aqui impugnadas, nem as "Notas Informativas" do ME são actos respeitantes à política externa (que tão-pouco é desenvolvida por normas da Administração Pública), nem actos auxiliares de Direito Constitucional, categorias a que a doutrina e a jurisprudência dominantes têm circunscrito os actos da função política.

9.ª As normas nesta acção impugnadas dos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011 e das "Notas Informativas" do ME têm, consequentemente, natureza administrativa.

10.ª As normas dos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011 no que se refere à imposição do AO90 aos alunos do sistema educativo público, no âmbito da Administração Pública directa, bem como as normas constantes das "Notas Informativas" do ME, de Fevereiro e Setembro de 2012, são gerais, abstractas e constantes de regulamentos administrativos, quadrando na inequívoca definição legal constante do art. 135.º do CPA.

11.ª Cada uma das referidas normas produziu e produz os seus efeitos directamente na esfera jurídica dos destinatários (bastando que os mesmos preencham em concreto os requisitos fixados nas normas em causa), impondo condutas específicas, sem necessidade de qualquer acto mediador, devendo, por conseguinte, ser qualificadas de normas imediatamente operativas.

12.ª As referidas normas inovaram na ordem jurídica, impondo a aplicação do AO90 na administração pública directa desconcentrada escolar e aos alunos que a mesma frequenta antes do período de transição.

13.ª São, assim, as referidas normas regulamentos administrativos independentes, nos termos e para o efeito do art. 136º, n.º 3, do CPA.

14.ª As normas impugnadas ao inovarem na ordem jurídica (em relação ao prazo de transição) de forma autónoma em relação ao próprio Tratado do AO90 e 2.º Protocolo Modificativo, à Resolução da AR n.º 35/2008 e ao Decreto Presidencial n.º 52/2008 que o aprovaram e ratificaram, são autonomamente sindicáveis em juízo perante a jurisdição administrativa, nos termos do art. 73.º, n.º 1, do CPTA.

15.ª O entendimento contrário deste colendo Tribunal contraria o disposto em várias normas da Constituição, enfermando de inconstitucionalidades materiais, por interpretação incorrecta dos arts. 4.º, n.º 3. a), do ETAF e 73.º, n.º 1. do CPTA, devida a violação flagrante do direito de acção popular administrativa que assiste aos Recorrentes, do princípio da tutela jurisdicional plena e efectiva dos direitos dos particulares, do princípio da legalidade na vertente de precedência de lei, da regra da precedência de lei em sentido formal no que à emissão de regulamentos administrativos concerne, do âmbito da jurisdição administrativa, bem como do princípio do Estado de Direito; o que desde já invocam.

16.ª O Supremo Tribunal Administrativo é competente em razão da hierarquia em relação ao pedido de declaração de ilegalidade das "Notas Informativas" do ME, uma vez que, verificando-se cumulação legal de pedidos (artigo 4.º, n.º 1, a), e n.º 2, b), e 21.º, n.º 1, do CPTA), quando a competência para a apreciação de qualquer dos pedidos pertença a um tribunal superior, é este também competente para conhecer dos demais pedidos. Assim o imporiam sempre, de resto, razões de lógica economia processual.

17.ª A RCM n.º 8/2011 bem como as "Notas Informativas" do ME cuja declaração de ilegalidade se pede são ilegais pelos motivos que se sintetizam:
(i) Não se encontrando em vigor o AO90 porque não foi objecto das necessárias ratificações por unanimidade dos Estados Contraentes (artigo 3.º), nem se encontrando em vigor o 2.º Protocolo Modificativo, que, alterando substancialmente a versão originária do AO (mudando a regra da unanimidade para a das 3 ratificações e postergando a propalada uniformidade ortográfica), não foi também objecto de novas ratificações, a RCM n.º 8/2011 nunca poderia eficazmente revogar a anterior ortografia derivada do Decreto n.º 35.228, de 1945, com as alterações constantes do Decreto-Lei n.º 32/73, que transpôs a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira na ordem jurídica interna – o Decreto n.º 35.228 continua consequentemente em vigor, sendo ilegal a hierarquicamente inferior RCM n.º 8/2011, nela compreendidas as normas impugnadas dos n. os 3 e 1;
(ii) A RCM n.º 8/2011, que assume a inequívoca qualificação de regulamento administrativo, não pode ter por fonte directa um tratado internacional, esteja ou não esse tratado em vigor – in casu, não está, agravando o vício em questão –, depondo claramente nesse sentido o princípio da precedência de lei perante os regulamentos, firmemente fundado no artigo 112.º/7, 1.ª prt., da CRP, segundo devem os regulamentos "indicar expressamente as leis que visam regulamentar", e no artigo 136º/1 e 2 do CPA segundo o qual "A emissão de regulamentos depende sempre de lei habilitante" e "Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar", tendo essa lei de o ser em sentido formal (no sentido em que o termo lei é usado nos 1, 2, 3, 5 e 8 do artigo 112.º/7 da CRP), que não um tratado – assim, a RCM n.º 8/2011, nela compreendidas as normas impugnadas dos n.os 3 e 1, ainda que fosse um regulamento executivo ou dependente – o que se admite por hipótese de raciocínio – seria sempre nula no seu todo por ilegalidade (em sentido amplo e estrito) orgânica e formal;
(iii) Ainda que se entendesse admissível poder um tratado ser fonte directa de um regulamento sem necessidade de lei prévia formal – o que se admite por hipótese académica –, jamais pode ser o mesmo admitido em casos em que haja reserva de competência da AR, o que, tratando-se de direitos, liberdades e garantias – o direito à língua, o direito a escrever –, é o caso desta RCM n.º 8/2011;
(iv) Por outro lado, ainda que se entendesse admissível poder um tratado ser fonte directa de um regulamento sem necessidade de lei prévia formal – o que se admite por hipótese académica –, a verdade é que nem o AO90 nem o 2.º Protocolo Modificativo nem o Decreto Presidencial n.º 52/2008 definiram a competência objectiva (matéria) e subjectiva (órgão competente) para a emissão de um regulamento independente, conforme expressamente exigido pelo artigo 112.º/7 da CRP e pelo artigo 136.º/2 do CPA e 9.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98 – assim, por violação dos artigos 112.º/7 da CRP e 136.º/2 do CPA padece a RCM n.º 8/2011, nela compreendidas as normas impugnadas dos n.os 3 e 1, de ilegalidade orgânica e formal;
(v) Os n.os 1, 2, 3, 4 e 6 da RCM n.º 8/2011 contêm matéria inovadora mesmo em relação ao AO90 e ao 2.º Protocolo Modificativo que nunca previram prazos de transição – assim, carente de base habilitante, são também por este motivo a RCM n.º 8/2011 e as referidas normas orgânica e formalmente ilegais;
(vi) Porque a RCM n.º 8/2011 carece de base habilitante também não indica correctamente a respectiva base, conforme o dever de indicação da lei habilitante (artigos 112.º/7 da CRP e pelo artigo 136.º/1 e 2 do CPA e 9.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98) cuja preterição gera ilegalidade orgânica e formal.
(vii) Ainda que não se entenda a RCM n.º 8/2011 formal e organicamente ilegal, ela jamais poderia ser um regulamento independente (damos por reproduzidas as razões expostas no artigo 48.º da petição inicial), pois, nessa hipótese, o tratado do AO90 teria de ter previsto e fixado a competência objectiva e subjectiva para a emissão do regulamento, o que não sucedeu nos termos do disposto nos artigos 112.º/7 da CRP e pelo artigo 136.º/1 e 2 do CPA e 9.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98 – também por esta via é a RCM n.º 8/2011 orgânica e formalmente ilegal.
(viii) Ainda que assim não se entenda, a RCM n.º 8/2011 nunca poderia ter como base habilitante o artigo 199.º, g), da CRP, como a mesma invoca, pois os artigos 112.º/7 da CRP e pelo artigo 136.º/1 e 2 do CPA e 9.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98 obrigam claramente à procedência de lei em sentido formal, o que é ainda a confirmado pelos trabalhos preparatórios da CRP (artigo 55.º da petição inicial) e pelo facto de a matéria em questão caber na reserva de competência da AR – desta forma é a RCM n.º 8/2011, nela compreendidas as normas impugnadas dos n.os 3 e 1, orgânica e formalmente ilegal;
(ix) Uma vez que é um regulamento independente por conter matéria inovadora, a RCM deveria ter assumido a forma de decreto regulamentar (artigo 112.º/6 da CRP), o que não fez – por este motivo é a RCM n.º 8/2011 nela compreendidas as normas dos n.os 3 e 1, formalmente ilegal;
(x) Tendo o Governo aprovado a RCM n.º 8/2011 no dia 9 de Dezembro de 2010, antecipando o termo do período de transição – admitindo, por hipótese académica que o AO90 estaria em vigor –, restringindo direitos legalmente protegidos, deveres e sujeições sem ouvir os cidadãos, violou o direito de participação dos cidadãos nos assuntos políticos do país nos termos do disposto nos artigos 48.º/1 e 267.º/1 e 5 da CRP, e o princípio da participação dos particulares na formação de decisões dos órgãos da Administração Pública que lhes digam respeito nos termos do disposto nos artigos 8.º do CPA 1991 e 12.º do CPA 2015 – por esse motivo, é a RCM n.º 8/2011, nela compreendidas as normas impugnadas dos n. os 1 e 3, ilegal por vício de forma ou procedimento;
(xi) Tendo sido a RCM n.º 8/2011 aprovada sem consulta da Academia das Ciências de Lisboa, nos termos do disposto nos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 5/78, de 12 de Janeiro, é a mesma ilegal por vício de forma ou procedimento;
(xii) O n.º 3 conjugado com o n.º 1 da RCM n.º 8/2011 enferma igualmente de ilegalidades específicas, designadamente:
a. Uma vez que através da imposição do AO90 aos alunos do ensino público restringem direitos, liberdades e garantias – a liberdade de expressão escrita, o direito à língua, a garantia institucional da proibição de dirigismo estatal na cultura e na educação (artigos 43.º/2 da CRP e 13.º/2 da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) –, são os n.os 3 e 1 da RCM n.º 8/2011 materialmente inconstitucionais;
b. Uma vez que coarcta a liberdade dos alunos de aprender de forma consciente e crítica (artigo 43.º/1 da CRP) e o direito ao ensino (artigos 73.º/1 da CRP e 2.º/1 da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), aprovada pela Lei n.º 46/86), são os n.os 3 e 1 da RCM n.º 8/2011 materialmente inconstitucionais e ilegais;
c. Uma vez que violam a garantia da proibição de dirigismo estatal na cultura consagrados nos artigos 43.º/2 da CRP e 2.º/3, a), da LBSE, são os n.os 3 e 1 da RCM n.º 8/2011 materialmente inconstitucionais e ilegais;
d. Porque viola a prevalência dos pais na educação dos filhos contra o disposto nos artigos 26.º/3 da DUDH, ex vi art. 16/2 da CRP, e 36.º/5 da CRP, bem como 1877.º, 1878.º, n.º 1, e 1885.º, n.º 1, do Código Civil, são os n.os 3 e 1 da RCM n.º 8/2011 materialmente inconstitucionais e ilegais;
e. Porque legisla sobre a língua portuguesa (artigo 11.º/3), que é um limite material da própria Constituição, implícito e simultaneamente expresso pelo artigo 288º, d), da CRP, são os n. os 3 e 1 da RCM n.º 8/2011, assim como o seria sempre o próprio AO90, materialmente inconstitucionais;
f. Porque viola o direito à identidade cultural e o valor objectivo do património cultural imaterial da língua portuguesa, previstos no artigo 8.º/1 e 2, c), da CRP, 29.º/1 da CDC e 7.º, a) e 3.º, a), da LBSE, são os n. os 3 e 1 da RCM n.º 8/2011 materialmente inconstitucionais e ilegais;
g. Porque viola o princípio da boa fé na vertente da confiança legítima no que concerne à estabilidade ortográfica (artigos 6.º do CPA 1991 e 10.º/2 do CPA 2015), são os n. os 3 e 1 da RCM n.º 8/2011 materialmente inconstitucionais e ilegais.

Nestes termos e nos demais de Direito, com o douto suprimento de V. Exas.,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se, em consequência, o acórdão de absolvição dos Réus da instância por incompetência do Supremo Tribunal Administrativo em razão da matéria e da hierarquia, devendo a presente acção prosseguir até final, com a devida apreciação de mérito da causa,
Julgando a acção procedente e, em consequência, declaradas ilegais, com força obrigatória geral, as normas dos n.os 3 e 1, da RCM n.º 8/2011, no que se refere à imposição do AO90 aos alunos do sistema educativo público, no âmbito da Administração Pública directa, bem como as normas regulamentares constantes das "Notas Informativas" do ME de Fevereiro e Setembro de 2012, calendarizando a aplicação ao sistema educativo público, ao abrigo do art. 73.º, n.º 1, do CPTA.
Pois assim o impõem o Direito e a Justiça”.

3. O recorrido Ministério da Educação (ME) termina as suas contra-alegações formulando as seguintes conclusões (cfr. fls. 394-396):

“37.° Por todo o expendido, é de concluir que os instrumentos jurídicos que os Autores, ora Recorridos, procuraram impugnar se baseiam em opções políticas tomadas pelo Governo e, nessa medida, são inimpugnáveis.

38.º A Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de janeiro, mais não é do que a implementação dos procedimentos para a promoção da aplicação do Acordo Ortográfico em território Português, na prossecução da política externa e cultural do Estado.

39.º Esta Resolução traduz uma opção política quanto é criação das condições tidas por convenientes no que concerne à divulgação das regras do Acordo Ortográfico, não possuindo qualquer norma administrativa externa e, como tal, é insindicável pelos Tribunais Administrativos (alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF).

40.º As Notas Informativas do Ministério da Educação traduzem-se na execução do estabelecido no n.º 3 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de janeiro, tratando-se de meros atos de publicitação e de divulgação.

41.º Não existem quaisquer vícios passíveis de assacar aos aludidos instrumentos geradores de nulidade, ou sequer anulabilidade, de forma a ser declarada a respetiva inconstitucionalidade.

42.º Não ocorre qualquer lesão ou sequer é posto em perigo qualquer direito, liberdade ou garantia, os quais não se mostram minimamente densificados pelos Recorridos com vista a alcançar o fim visado por estes.

43.º Assim, por todos os factos e argumentos trazidos aos autos pelo Ministério da Educação, ora Recorrido, verifica-se não estarem reunidas as condições para que se declare a procedência do presente recurso, motivo pelo qual deve o mesmo ser julgado improcedente.

42.º Nesta medida, o Acórdão-recorrido ora posto em crise, deverá ser mantido, por legal, pois, como ficou demonstrado, o aludido Acórdão procedeu a um correto enquadramento jurídico, não padecendo de quaisquer vícios.

Nestes termos e nos mais de Direito, que mui doutamente serão supridos por V/Exas, deverá ser proferida decisão que conclua pela improcedências do recurso, por não provado, com todas as consequências legais, como é de

JUSTIÇA!


4. O recorrido Estado, representado pelo Ministério Público, termina as suas contra-alegações formulando as seguintes conclusões (cfr. fls. 401-403):

“1. Subjacente à impugnação dos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/11 e das subsequentes "Notas Informativas" do Ministério da Educação está o evidente propósito de tornar impraticável o AO/90, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto;

2. Esse acordo, celebrado em 1990, com o objectivo de criar uma ortografia unificada a ser usada por todos os países de língua oficial portuguesa, é, no entanto, acto que emana do exercício da função política e não do exercício da função administrativa, comportando relevância jurídica nacional e internacional;

3. Ao contrário da função administrativa, a função política não tem uma vocação de projecção, ainda que mediata, nos membros da colectividade; e, mesmo na parte em que assume uma tal vocação, ela visa a realização de escolhas que respeitam a interesses colectivos essenciais, que depois virão a enformar as leis e que a função administrativa deve respeitar (Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, in "Direito Administrativo Geral", tomo I, p. 40);

4. O exercício da actividade política, concretizando os ditames constitucionais, tem em vista a prossecução das finalidades e dos interesses fundamentais da comunidade em que se inscreve;

5. Como decorre da alínea f) do art. 9.º da CRP e bem salienta o douto acórdão recorrido, constitui tarefa fundamental do Estado, entre outras, a defesa do uso e a promoção da difusão internacional da língua portuguesa «pelo que, a adesão do Estado Português juntamente como outros Estados ao AO90 assim como a Resolução da Assembleia da República que o aprovou para ratificação e o Decreto da Presidente da República que o ratificou, são actos que traduzem uma opção fundamental do Estado sobre a definição e prossecução da harmonização ortográfica da língua portuguesa, ou seja, a materialização de uma política da língua enquanto eixo fundamental do desenvolvimento cultura, económico e social dos Portugueses».

6. E a natureza desses actos, cuja configuração assenta numa determinada opção política, é atributo que impregna da mesma natureza o questionado RCM n.º 8/2011, mormente as normas dos seus n.os 1 e 3, que se limitam a antecipar a entrada em vigor do AO90, não sendo decisivo nem sequer essencial para a caracterização da natureza e substância desse acto o facto de nele se mencionar como fundamento habilitante o disposto na al. g) do art. 199.º da CRP;

7. A RCM n.º 8/11, com efeito, nada inova quanto às opções constantes do AO90, limitando-se a antecipar a sua entrada em vigor, concretizando uma opção, também ela política, sobre o momento adequado para a implementação desse Acordo, tendo em vista o interesse que lhe está subjacente e que encontra assento constitucional na apontada alínea f) do art. 9º da CRP;

8. Tal acto é, pois, ao invés do que pretendem sustentar os ora Recorrentes, um acto que emerge do exercício da função política e não do exercício da função administrativa e, assim sendo, está o conhecimento da legalidade de tal acto e das disposições que o conformam excluído do âmbito da jurisdição administrativa, nos termos da al. a), do n.º 3 do art. 4.º do ETAF;

9. Consequentemente, não merece censura a decisão que, reconhecendo essa exclusão, declarou a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido de declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de normas da RCM n.º 8/2011, absolvendo os réus da instância, quanto a esse pedido;

10. Igualmente não merece censura o douto Acórdão recorrido quanto à questão da competência deste Supremo Tribunal, em razão da hierarquia, para apreciar o pedido de declaração de ilegalidade das "Notas Informativas" do Ministério da Educação;

11. É que tais actos foram praticados por órgãos do Ministério da Educação e no contencioso administrativo a competência para os pedidos formulados em 1.º grau de jurisdição é determinado pela autoria das acções ou omissões que constituem o objecto do processo, não constando o autor do acto do elenco das entidades taxativamente enumeradas no art. 24.º, n.º 1, alínea a) do ETAF;

12. É certo que o art. 21.º, n.º 1 do CPTA estabelece que nas situações de cumulação em que a competência para a apreciação de qualquer dos pedidos pertença a um tribunal superior, este também é competente para conhecer dos demais pedidos;

13. Contudo, no caso vertente, o que decidiu o douto acórdão recorrido foi que este STA era incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido de declaração de ilegalidade de norma com força obrigatória geral da RCM n.º 8/2011 e não sendo competente para conhecer desse pedido também não lhe assiste a competência para conhecer o pedido de declaração de ilegalidade das "Notas Informativas" do Ministério da Educação.

14. A competência para conhecer deste pedido só existiria se o tribunal superior fosse originariamente competente, nos termos da norma citada, para conhecer daquele primeiro pedido;

15. No caso, a norma do art. 21.º, n.º 1 do CPTA não tem aplicação;

16. Mas, mesmo este Supremo Tribunal fosse competente para conhecer dos pedidos formulados, ainda assim nunca o réu Estado poderia deixar de ser absolvido da instância, por procedência da excepção da ilegitimidade passiva que invocou no seu articulado de defesa;

17. Com efeito, as normas da RCM n.º 8/2011 cuja ilegalidade, com força obrigatória geral, se pede seja declarada, foram emitidas pela Presidência do Conselho de Ministros, provindo as aludidas "Notas Informativas" do Ministério da Educação;

18. Ora, estando em causa acções ou omissões de órgãos integrados em ministério ou secretaria regional, a legitimidade passiva terá que ser assegurada, não pelo Estado mas pelo ministério ou secretaria regional, a cujos órgãos sejam imputáveis os actos praticados ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos, incluindo-se no conceito de ministério, para os efeitos em causa, a Presidência do Conselho de Ministros, «que poderá servir como centro de imputação de actos e comportamentos, designadamente do Conselho de Ministros, do Primeiro-Ministro e dos membros do Governo na dependência directa do Primeiro-Ministro» - cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in "Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos", 2005, p. 71 e 71 e Acórdão deste STA de 26.06.2014, in proc. n.º 0500/14.

Nesta conformidade, negando-se provimento ao presente recurso, deverá ser mantido o douto Acórdão recorrido ou, caso assim se não entenda, seja o Estado absolvido da instância, por procedência da excepção da ilegitimidade passiva que invocou na sua Contestação”.

5. A recorrida Presidência de Conselho de Ministros (PCM) termina as suas contra-alegações formulando as seguintes conclusões (cfr. fls. 421):

“O douto acórdão da 1ª Seção do Supremo Tribunal Administrativo (em subseção), datado de 29 de junho de 2017, que julgou o Supremo Tribunal Administrativo incompetente, em razão da matéria, para conhecer do mérito da ação, deve ser confirmado e mantido porquanto procedeu a uma adequada aplicação do direito ao caso concreto, já que as disposições impugnadas partilham da natureza política do ato que visam dinamizar, ou seja, o Acordo Ortográfico de 1990.

Termos em que deve o presente recurso jurisdicional ser julgado improcedente porque os recorrentes não lograram informar o raciocínio decisório subjacente ao acórdão impugnado”.


6. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

1. De facto:

A matéria de facto pertinente é a que consta da decisão recorrida, a qual se dá aqui como reproduzida nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 6 do artigo 663.º do CPC, aplicável ex vi dos artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA.

2. De direito:

2.1. Nos presentes autos, os recorrentes peticionaram especificamente, a final, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral das normas constantes dos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011, no que concerne à imposição do AO90 aos alunos do sistema educativo público e no âmbito da Administração Pública directa, e, bem assim, a declaração de ilegalidade das normas regulamentares constantes das notas informativas do Ministério da Educação de Fevereiro e Setembro de 2012, calendarizando a aplicação ao sistema educativo público, ao abrigo do art. 73.º, n.º 1, do CPTA; (…)”. Vale isto por dizer, de um lado, que não peticionaram a declaração de ilegalidade de toda a RCM, mas apenas daqueles dois preceitos. E, de outro lado, e agora quanto ao fundo, insurgem-se basicamente, mas não apenas, contra a ‘antecipação’ da aplicação do AO90 aos destinatários dos referidos preceitos. Este STA, na decisão proferida em 1.ª instância – a decisão de que recorre – declarou a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria para “conhecer do pedido de declaração de ilegalidade de norma com força obrigatória geral da RCM n.º 8/2011, absolvendo os réus da instância, quanto a este pedido”; e, ainda, declarou o STA incompetente em razão da hierarquia para conhecer do pedido relativo à ilegalidade das ‘Notas Informativas’ do ME; em consonância, e quanto a este pedido, determinou a remessa dos autos ao TAC de Lisboa após o trânsito do acórdão. Os ora recorrentes, como visto, entendem que a decisão recorrida errou quanto a ambas as questões de incompetência: nem a jurisdição administrativa é incompetente em razão da matéria, uma vez que as normas impugnadas não são actos políticos; nem o STA é incompetente em razão da hierarquia para conhecer do segundo pedido, haja em vista que, “verificando-se cumulação legal de pedidos (artigo 4.º, n.º 1, a), e n.º 2, b), e 21.º, n.º 1, do CPTA), quando a competência para a apreciação de qualquer dos pedidos pertença a um tribunal superior, é este também competente para conhecer dos demais pedidos” (conclusão 16.º das alegações).
Vejamos.

2.2. Comecemos pelos preceitos da RCM n.º 8/2011 que foram impugnados.

Como foi já antecipado, ao insurgirem-se especificamente contra as normas constantes dos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011, os ora recorrentes estão a questionar, em primeira linha, a alegada ‘antecipação’ da aplicação do AO90 a determinados grupos de destinatários e a determinados âmbitos da realidade social. Segundo eles, as normas impugnadas, ao determinar esta ‘antecipação’, inovaram na ordem jurídica em relação ao prazo de transição (cfr. conclusão 14.º das alegações). Vejamos.

A Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 16.05.08 (Aprova o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, adoptado na V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada em São Tomé em 26 e 27 de Julho de 2004), estabelece, no n.º 2 do artigo 2.º, (Declaração) que “No prazo limite de seis anos após o depósito do instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a ortografia constante de novos actos, normas, orientações, documentos ou de bens referidos no número anterior ou que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou de qualquer outra forma de modificação, independentemente do seu suporte, deve conformar-se às disposições do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”. Já no n.º 3 do mesmo dispositivo estabelece que “O Estado Português adoptará as medidas adequadas a salvaguardar uma transição sem rupturas, nomeadamente no que se refere ao sistema educativo em geral e, em particular, ao ensino da língua portuguesa, com incidência no currículo nacional, programas e orientações curriculares e pedagógicas”.
O Decreto Presidencial de 21.07.08, que ratifica o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa acima mencionado, reitera, no essencial, o disposto na resolução da AR. Assim, no n.º 2 do artigo 2.º (Declaração), dispõe o seguinte: “No prazo limite de seis anos após o depósito do instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a ortografia constante de novos actos, normas, orientações, documentos ou de bens referidos no número anterior ou que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou de qualquer outra forma de modificação, independentemente do seu suporte, deve conformar -se às disposições do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”. O n.º 3 do mesmo preceito dispõe do seguinte modo: “O Estado Português adoptará as medidas adequadas a salvaguardar uma transição sem rupturas, nomeadamente no que se refere ao sistema educativo em geral e, em particular, ao ensino da língua portuguesa, com incidência no currículo nacional, programas e orientações curriculares e pedagógicas”.

Decorre do exposto que apenas foi fixado um limite temporal máximo para a aplicação do AO90 (“No prazo limite de seis anos após o depósito do instrumento de ratificação”) e é sugerida ou aconselhada “uma transição sem rupturas, nomeadamente no que se refere ao sistema educativo em geral e, em particular, ao ensino da língua portuguesa, com incidência no currículo nacional, programas e orientações curriculares e pedagógicas”. Infere-se ainda do exposto, pois é algo de lógico, que o AO90 se aplica em todo o território nacional e a toda a população. Através dos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011, como se viu, o Governo determinou “que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto, em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação”, e “que o Acordo Ortográfico é aplicável ao sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012, bem como aos respectivos manuais escolares a adoptar para esse ano lectivo e seguintes, cabendo ao membro do Governo responsável pela área da educação definir um calendário e programa específicos de implementação, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.

Uma vez feita esta análise, desde já se diga que, ainda que a RCM n.º 8/2011 possa ser considerada um regulamento (independente ou não), tal não obsta a que algumas das suas disposições possam ser tidas como expressando uma mera opção política (tal como um decreto-lei do Governo pode conter actos administrativos, tal como os despachos e portarias podem ser ou não de natureza normativa ou conter disposições administrativas e normativas, tal como as leis da AR podem ser individuais e concretas). E, de certa forma, é esta a ideia que transparece, porventura de forma não muito cristalina, do acórdão recorrido. É certo que ao subscrever in totum os fundamentos constantes do acórdão do STA de 11.05.17, Proc. n.º 590/16, a decisão recorrida se vincula a eles, mas, e é o que interessa no presente recurso, a mesma decisão visa sempre e apenas as disposições impugnadas, quais sejam, os n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011.

Além disso, deve entender-se que a decisão de ‘antecipar’ não é totalmente inovatória, na medida em que consubstancia uma concretização de uma decisão que, de forma genérica, estabelecia determinado balizamento temporal para efeitos de aplicação do AO90. Com efeito, estava já previsto um limite temporal máximo intransponível. Ou seja, em qualquer altura poderia determinar-se a aplicação do AO90, desde que não se ultrapassasse o tal limite temporal máximo (os seis anos após o depósito do instrumento de ratificação). Daqui decorre que a definição em concreto de uma determinada data, definição que, in casu, não era totalmente livre, pois enquadrada juridicamente, não goza daquela liberdade (que, em boa verdade, não é absoluta) típica dos actos de indirizzo politico, como manifestamente o foi a decisão de estabelecer novas regras de ortografia para a língua portuguesa, questão de forte implicação política.

Por último, cumpre reter que os actos que são expressão imediata e concreta da função de orientação e direcção políticas não estão, por regra, definidos em lei, e nem na CRP, cabendo à doutrina e à jurisprudência a tarefa, árdua, de os identificar. Mas, por melhor que seja o doutrinador e a definição que propõe, a sua palavra não vale como lei, e será sempre ao julgador que caberá a última palavra (a não ser, obviamente, que o legislador, o constituinte ou o ordinário, imponha um determinado conceito de ‘acto político’). A missão do julgador será, então, a de casuisticamente identificar os comummente conhecidos como ‘actos políticos’, devendo ter em conta a necessidade de usar esta faculdade com parcimónia, uma vez que este tipo de actos se caracteriza, regra geral, pela sua insindicabilidade, com todos os inconvenientes que daqui decorrem para a tutela de direitos e interesses de terceiros.

Tudo isto dito, e não obstante se reconhecer que esta é uma daquelas zonas de fronteira em que é difícil estabelecer com nitidez a linha entre o que ainda é expressão imediata da função de orientação e direcção políticas do executivo, inspirada e moldada por motivos políticos e destinada a perseguir finalidades políticas, e o que já é concretização normativa dessa função e das decisões em que se materializa, ainda assim, como se dizia, julgamos ser a decisão de ‘antecipação’ já uma concretização normativa, no sentido de regulamentação, da decisão política tomada a montante relativamente à adopção do novo acordo ortográfico e à sua aplicação num determinado prazo máximo. Tal como normativa é a natureza de tudo o que está disposto nos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011

Assim sendo, não andou bem o acórdão recorrido ao declarar a jurisdição administrativa incompetente ratione materiae para conhecer da ilegalidade dos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011.

2.3. Analisemos agora a pretensão do recorrente no que se refere às ‘Notas Informativas’ do ME.

A decisão recorrida declarou-se incompetente em razão da hierarquia para conhecer da sua alegada ilegalidade, uma vez que foram emanadas pelo Ministério da Educação. Os recorrentes ripostaram invocando os artigos 4.º, n.º 1, a), e n.º 2, b), e 21.º, n.º 1, do CPTA, mais concretamente, que “verificando-se cumulação legal de pedidos (…), quando a competência para a apreciação de qualquer dos pedidos pertença a um tribunal superior, é este também competente para conhecer dos demais pedidos” (conclusão 16.ª das alegações).
Vejamos.
Embora não o diga expressamente, porventura por o considerar uma decorrência lógica da decisão anterior (a incompetência ratione materiae para conhecer do pedido relativamente aos n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011), a decisão recorrida considerou-se incompetente em razão da hierarquia para conhecer da ilegalidade das ‘Notas Informativas’. Seja como for, não estando habilitado a conhecer do pedido relativamente aos n.os 1 e 3, tudo se passa como este STA fosse confrontado com apenas um pedido, sendo certo que, quanto à questão nele visada, este Supremo Tribunal não o pode conhecer em 1.ª instância. Deste modo, a decisão recorrida foi coerente ao declarar a incompetência em razão da hierarquia e, em consonância, ao determinar a remessa dos autos ao TAC de Lisboa, “após o trânsito do presente acórdão”. Sucede que, ao considerar-se, como agora se faz, que os n.os 1 e 3 da RCM n.º 8/2011 são actos de natureza regulamentar, há que dar razão aos recorrentes, julgando este Supremo Tribunal hierarquicamente competente para apreciar a ilegalidade das ‘Notas Informativas’.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso, e, consequentemente, em ordenar a baixa dos autos à Secção para que se conheça do pedido.



Custas pelos recorridos.

Lisboa, 22 de fevereiro de 2018. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – António Bento São Pedro – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – José Augusto Araújo Veloso – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (vencido de acordo com o voto junto) – Jorge Artur Madeira dos Santos (vencido, nos termos da declaração que junto) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (subscrevendo voto de vencido Cons. M. Santos).


VOTO DE VENCIDO

Se bem virmos o que os Requerentes, de facto, querem é paralisar a aplicação do AO/90, pretensão que seria alcançada se este Tribunal determinasse a suspensão da eficácia no, todo ou em parte, da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 visto dela resultar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, "o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, … em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação.”
Ou seja, a verdadeira pretensão dos Requerentes é a de, no concreto, tornarem impraticável a decisão do Governo que ordena a aplicação do AO/90 a todos os serviços e organismos do Estado a partir do dia 1/01/2012. Com efeito, paralisada aquela determinação governamental a não aplicação do AO/90 estava alcançada uma vez que a grafia que, a partir daquela data, iria ser usada em todos os documentos, actos e comunicações, exames, etc. dos organismos e serviços dependentes da Administração Pública seria a que vinha sendo usada antes da assinatura daquele Acordo.
Se assim é, isto é, se a verdadeira pretensão dos Requerentes é a paralisação da aplicação do AO/90 em Portugal a primeira interrogação a que temos de responder é a de saber se cabe dentro dos poderes legislativamente atribuídos aos Tribunais a competência para satisfazer essa pretensão, ou seja, se a lei lhes atribui competência para suspender a eficácia das normas que se traduzem na aplicação daquele Acordo ao território português. O que passa por saber a natureza de tais normas.

2. A controvertida Resolução começa por afirmar que "a protecção, a valorização e o ensino da língua portuguesa, bem como a sua defesa e promoção da difusão internacional, são tarefas fundamentais do Estado, consagradas na Constituição” e que a prossecução desses objectivos era um desígnio do Governo que passava pela “adopção de uma política da língua, unificada e eficaz, como eixo fundamental do desenvolvimento cultural, económico e social dos Portugueses”. Por essa razão competia ao Governo “criar instrumentos e adoptar medidas que assegurem a unidade da língua portuguesa e a sua universalização, nomeadamente através do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e da promoção da sua aplicação." E mais adiante a citada decisão assinala que o AO/90 visou dois objectivos claros: em primeiro lugar, “reforçar o papel da língua portuguesa como língua de comunicação internacional”, o que era particularmente relevante não só para a "criação de oportunidades e a exploração do seu potencial económico, cujo valor é consensualmente reconhecido" como para "a expansão e afirmação da língua através da consolidação do seu papel como meio de comunicação e difusão do conhecimento, como suporte de discurso científico, como expressão literária, cultural e artística e, ainda, para o estreitamento dos laços culturais; por outro lado, visava a harmonização ortográfica nos países da CPLP o que era "fundamental para que os cerca de 250 milhões de falantes, presentes em comunidades portuguesas no estrangeiro, nos países de língua oficial portuguesa ou, ainda, integrados no crescente número de pessoas que procuram a língua portuguesa por outras razões, possam comunicar utilizando uma grafia comum. "
Se assim era e se a utilização da nova grafia estava "a ser gradualmente introduzida nos hábitos quotidianos dos Portugueses", designadamente pelos órgãos de comunicação social que têm "vindo a contribuir, numa base quotidiana e de forma progressiva e natural, para a familiarização da população com as novas regras ortográficas" impunha-se que Governo promovesse a aplicação do citado Acordo ao território português definindo "atempadamente os procedimentos a adoptar.”
E daí a aprovação da Resolução ora em causa.

Ou seja, as normas cuja eficácia os Requerentes querem ver paralisada visam dar corpo a uma componente essencial da política externa e cultural do Estado, qual seja a defesa da língua portuguesa e a sua promoção em todos os territórios onde a mesma constitui língua oficial, multiplicando as potencialidades do seu uso e do facto de ser falada por muitos milhões de cidadãos nas diversas partes do mundo. Desígnio esse que foi sublinhado no Tratado livremente assinado por Portugal e pelos Estados que foram sujeitos à colonização portuguesa e que, por esse facto, têm o português como língua oficial.
Tratado que foi aprovado pela Assembleia da República e ratificado pelo Sr. Presidente da República.
O que significa que tais normas, porque se destinam a implementar a execução desse Tratado e, nessa medida, se integram no exercício de uma das mais importantes funções da política externa do Estado Português, têm uma claríssima índole política a qual não pode ser posta em causa pelo facto das mesmas constarem de um diploma que, juridicamente, tem uma natureza mais próxima de um regulamento do que de uma lei. Por essa razão não se pode afirmar que a sua publicação tenha sido feita unicamente a coberto de disposições de direito administrativo e, nessa medida, não se pode ter como certo que as mesmas possam ser judicialmente impugnadas a coberto do que se dispõe no art.º 72.º do CPTA.
Com efeito, constituindo a função política não só a definição e prossecução do interesse geral como a escolha das opções destinadas à melhoria e desenvolvimento desse interesse e revestindo a função administrativa, que se encontra a jusante daquela função, a natureza executiva e complementar da mesma e que se materializa pela prática de actos administrativos dirigidos a produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta (art.º 120.° do CPA), não se pode duvidar de que as apontadas normas têm natureza política e não a natureza de actos administrativos (Vd., exemplificativamente, M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., vol. I.. pg.s 8 a 10, S. Correia, Noções de Direito Administrativo pg.s 29/30 e F. Amaral Curso de Direito Administrativo, Vol. I, pg 45, e Acórdão deste STA de 22/04/93 (rec. n.º 29.790), de 9/06/1994, (rec. n.º 33.975), de 5/03/98 (rec. n.º 43.438) e de 9/05/2001 (rec.28775).).
Ademais, se tais normas mais não fazem do que concretizar os termos de um Tratado assinado pelo Estado Português sem nada acrescentar ou alterar ao que este havia acordado, ou seja, se as mesmas são destituídas de qualquer novidade que as torne susceptíveis de poderem ser individualmente impugnadas não se pode admitir a sua impugnação judicial (art.º 72.º do CPTA). De resto, tais normas têm carácter geral, aplicam-se a todos os organismos e serviços do Estado não se vendo nelas qualquer indicação que restrinja a sua aplicação a um caso concreto e circunscrito.
Finalmente, ainda se dirá que não cabe aos Tribunais apreciar a oportunidade das decisões cuja eficácia se pretende suspender já que não lhes cabe apreciar se e quando é que um Tratado internacional deve ser implementado e de que forma essa implementação deve ser feita. Tanto mais quanto é certo que a decisão ora em causa constitui expressão imediata da função de orientação e direcção política do executivo.
Deste modo, e porque está excluída da jurisdição administrativa a apreciação dos actos praticados no exercício da função política (art.º 4.º/2/a) do ETAF) não só este Supremo Tribunal é materialmente incompetente para apreciar a pedido formulado nestes autos como as normas suspendendas são judicialmente insindicáveis.
Daí que tivesse negado provimento ao recurso.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2018.
Alberto Acácio de Sá Costa Reis


VOTO DE VENCIDO


A genérica decisão estadual de acolher regras de ortografia é inequivocamente política.
Ora, nada impede que as decisões do mesmo tipo - que particularizem aquela decisão genérica - sejam da mesma índole; pois pode suceder que a escolha política, sumamente enunciada «in initio», se prolongue, sem se desnaturar, noutras definições segmentadas ou parcelares.
As coisas seriam outras se as opções posteriores estivessem constrangidas pela decisão política inicial - hipótese que francamente as aproximaria da actividade subordinada típica da Administração. Mas isso não ocorreu «in casu», pois o Conselho de Ministros era livre de editar, ou não, a RCM. Pelo que a liberdade soberana que ele exercitou ao editá-Ia correspondeu, mais uma vez, à opção política de instituir, na prática, e de disseminar, na sociedade, o AO90.
Deste modo, confirmaria o acórdão recorrido, tanto no ponto sobredito, como no outro - de que a posição vencedora, aliás, se não afasta.

Jorge Artur Madeira dos Santos