Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01973/02
Data do Acordão:03/26/2003
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:BAETA DE QUEIROZ
Descritores:IRC.
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL.
ANULAÇÃO PARCIAL.
ACTO DE LIQUIDAÇÃO.
FIXAÇÃO DA MATÉRIA COLECTÁVEL.
MÉTODOS INDICIÁRIOS.
Sumário:I - O acto tributário de liquidação é divisível e, consequentemente, pode ser só parcialmente anulado pelos tribunais, no respectivo processo de impugnação.
II - Deve, porém, anular-se totalmente o acto, se o vício judicialmente reconhecido resulta de, na fixação da matéria colectável por métodos indiciários, a Administração Fiscal ter presumido uma margem de lucro que o Tribunal entendeu excessiva, ou insuficientemente demonstrada, pois não cabe aos tribunais, substituindo-se à Administração, escolher a margem de lucro ajustada ao caso e proceder à correspondente liquidação.
Nº Convencional:JSTA00059044
Nº do Documento:SA22003032601973
Data de Entrada:12/11/2002
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC SECÇÃO DO CA DO TCA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - IRC.
DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL.
Legislação Nacional:CPC96 ART661 N1.
CPT91 ART121 ART145.
LGT98 ART100.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC24101 DE 1999/09/22.
Aditamento:
Texto Integral: 1.1. A FAZENDA PÚBLICA recorre do acórdão do Tribunal Central Administrativo que, revogando a sentença proferida pelo Mmº. Juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Setúbal, julgou procedente a impugnação da liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) relativo ao exercício do ano de 1991 deduzida por A...., com sede em ..., Gondomar.
Formula as seguintes conclusões:
“1.
O objecto do recurso é APENAS fixar uma margem de lucro.
2.
A impugnante aceitou expressamente que essa margem de lugar deveria ser fixada num mínimo de 2,53% e num máximo de 6,11%.
3.
A recorrente nunca pôs em causa neste recurso o método de apuramento da matéria tributável discordando apenas da quantificação”.
4.
A AF fixou-a em 15%, a semelhança do que tinha acontecido em relação aos anos de 1997 e 1998, em sede de “Comissão Distrital de Revisão de Setúbal”,
5.
E fundamentou esta margem devidamente, conforme consta das alíneas e), f), g), h), i), j), e l) da descrição dos factos dados como provados.
6.
A impugnante, conforme se provou nos autos, (alínea d) da relação dos factos provados) “desde o ano de 1987, inclusive, que deixou de organizar a sua contabilidade para efeitos fiscais, não obstante continuar a exercer normalmente a sua actividade”
7.
O Tribunal ao anular a liquidação, para além de fazer errada interpretação dos factos, e, por isso, errada aplicação da lei (arts. 81º do CPT e 51º e 52º do CIRC) vai além do pedido e excede as suas competências ofendendo, igualmente, o disposto no art. 661º nº 1 do CPC.
8.
Fez, assim, o MD Acórdão, recorrido, errada interpretação do pedido, dos factos e errada aplicação da lei (art. 51º e 52º do CIRC e 81º do CPT e ainda e sobretudo do art. 661, nº 1 do CPC, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que mantenha a liquidação efectuada".
1.2. A recorrida contra-alega, concluindo deste modo:
Recorre a Fazenda Pública fundamentalmente com base no argumento de que os Ilustres Desembargadores extrapolaram em relação ao pedido formulado pela então recorrente A..., que se havia limitado a questionar o quantum da margem de lucro fixada, e de que teria havido errónea interpretação da matéria de facto.
Não lhe assiste contudo razão.
Desde já em relação ao último aspecto acima referido o mesmo tem, nesta sede, de se manter intocado porquanto o STA não sindica em matéria de facto.
Por outro lado e quanto ao aspecto do Tribunal Central Administrativo ter actuado “ultra vel petitum” é que não se pode concordar.
É que os factos relevantes para a decisão que importava levar ao probatório, e que o Ilustre Juiz de Direito da 1ª Instância se omitiu de fazer, afiguravam-se mesmo relevantes.
E afiguravam-se porquanto a Comissão de Revisão entrou em contradição argumentativa clara ao estabelecer uma margem de lucro como plausível de 15% e depois diz que tal margem só poderia ser atingida no caso de construção em zona de forte valorização, no caso de os terrenos terem sido adquiridos há muitos anos e terem sofrido forte valorização, no caso de existência de encargos reduzidos mercê por exemplo de autofinanciamento e ainda no caso de grande eficiência organizacional e capacidade técnica do pessoal da empresa.
Ou seja estipula-se uma margem de lucro que depois se diz só em circunstâncias excepcionais podia ser atingida.
Tal alocução faz inquinar o acto tributário de falta de fundamentação adequada, falta de fundamentação essa que afecta o acto tributário no seu todo e não só parcialmente.
Ou seja denunciado o vicio pela então recorrente não se encontravam os Ilustres Desembargadores vinculados à conclusão a daí extrair.
É esta pelo menos a boa doutrina que emana dos Acórdãos nº 4654/2001 de 4/12/01 do Tribunal Central Administrativo, publicado em Boletim de Ciência e Técnica Fiscal nº 404 a pgs. 260 e ss. e do Acórdão nº 6166/01 de 19/3/02 publicado em Antologia de Acórdãos do STA e do TCA ano 5 nº 2º pgs. 309 e ss., de onde se retiram situações em que os recorrentes discutiam o quantum mas em que os Tribunais de recurso anulavam integralmente as liquidações, tudo isto pondo em destaque o principio do inquisitório vigente em processo tributário e não do mero dispositivo como vigente no processo civil.
Não se poderá também obnubilar a redacção do artº 121 do C.P.T. vigente à altura, e antes da sua alteração em 1995, em que se dizia que se da prova produzida resultasse a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário deverá o acto tributário ser anulado. Deste modo e atentos os elementos carreados para os autos pela própria Administração Fiscal, e completados pelos carreados pela impugnante designadamente os indicadores económicos invocados, conduziram necessariamente a fundada dúvida e logo à anulação integral do acto de liquidação, como prescrevia aquela redacção do art 121 do C.P.T., e não meramente parcial.
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o Douto suprimento do omitido, não deverá o recurso apresentado pela Fazenda Pública merecer provimento, mantendo-se o Mui Douto Acórdão proferido pela Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo (...)”.
1.3. O Exmº. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal é de parecer que o recurso não merece provimento: o Tribunal não sindica o imputado erro na fixação dos factos da causa, e não houve condenação para além do pedido, que é, na impugnação judicial, a anulação do acto impugnado.
1.4. O processo tem os vistos dos Exmºs. Adjuntos.
2. A matéria de facto vem assim fixada:
“1)
A impugnante exerce a actividade de construção de prédios para revenda;
2)
Faz parte do “...”, agrupamento de empresas sem forma jurídica, com carácter familiar;
3)
Os sócios da impugnante são ... e seus pais ... e ...;
4)
A impugnante desde o ano de 1987, inclusive, que deixou de organizar a sua contabilidade para efeitos fiscais, não obstante continuar a exercer normalmente a sua actividade em 1991;
5)
A impugnante celebrou, no exercício em análise, escrituras de compra e venda das fracções autónomas dos prédios que construiu por valores inferiores aos que efectivamente recebeu;
6)
Essencialmente por estes motivos (mencionados em 4 e 5) a Administração Fiscal no exercício de 1991 apurou o lucro tributável por métodos indiciários;
7)
Para o efeito, considerou um desvio médio percentual entre os valores reais das vendas e os valores declarados nas escrituras celebradas pela impugnante de 18,556%, obtendo deste modo a quantia de Esc. 430.304.930$00;
8)
A este valor (referido em 7) acrescentou ainda Esc. 3.413.753$00 de rendas de prédios e Esc. 2.267.365$00 de juros de vendas a prestações;
9)
Considerando uma margem de lucro líquido de 15% no exercício em análise, a Administração Fiscal calculou em Esc. 729.197.076$00 os custos presumidos;
10)
E assim obteve a Administração Fiscal um lucro tributável da impugnante, no exercício de 1991, de Esc. 134.362.955$00.
11)
Inconformada com este resultado, a impugnante reclamou para a Comissão Distrital de Revisão, que indeferiu na totalidade o pedido.
12)
Relativamente ao exercício de 1991, a Administração Fiscal liquidou adicionalmente à impugnante Esc. 56.313.549$00, com data limite para o pagamento em 10/02/95.
13)
Esta impugnação foi instaurada em 11/05/95.
14)
No relatório elaborado pelos Serviços de Fiscalização Tributária em relação à situação da impugnante quanto ao IRC do exercício em análise e que determinou a tributação referida em supra 6, consta, com interesse, o seguinte:
“(...)
2.4 Custos
Propõe-se, para efeitos da determinação dos custos presumidos, a consideração da margem de lucro líquido de l 5%, idêntica à fixada em sede da Comissão Distrital de Revisão de Setúbal (art. 84º CPT) relativamente aos exercícios de l987 e 1988 a esta firma A....
Temos, assim:
Custos presumidos = vendas presumidas x (100%-15%)
vendas presumidas x 85%
ou seja,
Custos presumidos = 857.878.913$00 x 85%
= 729.197.076$00
2.5. Lucro Tributável.
PROVEITOS
Vendas/produtos
(ponto 2.3.1.6)............. 857.878.913$00
Rendas/prédios
(ponto 2.3.2. l)................ 3.413.753$00
Juros vendas/prestações
(ponto 2.3.2.2............... ...2.267.355$00
total
863.560.031$00
CUSTOS
729.197.076$00
LUCRO TRIBUTÁVEL PROPOSTO PELA FISCALIZAÇÃO 134.362.955$00
(cfr. fls. 268/277, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
15)
Na reclamação apresentada para a Comissão de Revisão a impugnante questiona, além do mais, a margem de lucro líquido de 15% fixada para o exercício em análise, não tendo havido na reunião acordo dos vogais quanto a esse aspecto, conforme resulta do teor dos seus laudos documentados a fls. 77/78 e 79/81, lendo-se no laudo do vogal do contribuinte o seguinte:
“(...)
4) - Discordo igualmente da percentagem de 15% utilizada para, a partir das vendas determinar os inerentes custos, pelas seguintes ordens de razões:
a)- a reclamante não dispõe de pessoal afecto à produção, desenvolvendo a sua actividade por recurso totalmente a subcontratos, com a natural repercussão sobre a sua margem de lucro;
b) - a reclamante trabalha essencialmente com capitais alheios, como o comprovam as hipotecas sobre os seus edifícios, facto que o agente fiscalizador facilmente poderia ter comprovado, o que inexplicavelmente não fez, facto que fez com que a reclamante incorresse em elevados encargos financeiros;
c) - não compreendo qual a lógica da aplicação da percentagem em questão, 15%, já que o agente fiscalizador não fundamenta minimamente a sua utilização, e menos compreendo a sua utilização uniforme aos outros exercícios em questão, sabendo-se que há variações em função das obras em curso, prazos de vendas e condições de mercado;
d)- por último, tendo consultado publicações várias, donde constam rácios de rentabilidade do sector da construção civil, referidas na competente reclamação, não encontrei em nenhuma delas margens de lucro líquido superiores a 5%.».
16)
Na falta de acordo dos vogais, o Presidente da Comissão de Revisão decidiu a reclamação nos termos que constam do doc. de fls. 82/83, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e onde consta, com interesse, o seguinte:
«2. A margem de lucro proposta pela Fiscalização de 15% foi aplicada já por esta Comissão aos exercícios de 1987 e 1988 face à inexistência de elementos mais concretos, que também nesta reunião não foram apresentados pelo representante do contribuinte.
3. O valor aplicado de 15% encontra-se justificado no relatório do exame à escrita, consistindo no cálculo do desvio médio entre os valores dos contratos promessa e os correspondentes valores das escrituras e foi obtido a partir das diferenças obtidas em todos os contratos encontrados na busca efectuada aos escritórios da empresa, pelo que a amostra se pode considerar não enviesada.»
17)
Em 1991 as empresas de construção de prédios para revenda só podiam atingir uma margem de lucro líquido de 15% sobre as vendas se beneficiassem de determinadas circunstâncias específicas, como é o da construção em zonas de forte valorização, de os terrenos terem sido adquiridos há muitos anos e terem sofrido forte valorização, de existência de encargos reduzidos mercê, por exemplo, de autofinanciamentos e, ainda, de grande eficiência organizacional e capacidade técnica do pessoal da empresa (cfr. prova pericial produzida a fls. 129 e segs. - resposta ao quesito 3º)”.
3.1. A ora recorrida impugnou a liquidação de IRC relativo ao exercício do ano de 1991, que tomou por base um volume de matéria colectável a que a Administração Fiscal chegou por métodos indiciários, presumindo uma margem de lucro líquido de 15%.
Improcedeu a impugnação na 1ª instância, mas melhor sorte teve no TCA, que concedeu provimento ao recurso jurisdicional interposto pela impugnante, revogando a sentença que julgara a causa em 1º grau, e anulando a liquidação.
Fundou-se, para assim decidir, em que “a liquidação impugnada sofre de ilegalidade, por violação das regras de determinação da matéria colectável ao nível do critério de quantificação utilizado, por injustificada consideração de uma margem de lucro de 15%, a implicar a total anulação dessa liquidação (...)”.
Insurge-se a ora recorrente Fazenda Pública, porque entende que o objecto de recurso para o TCA era, apenas, fixar uma margem de lucro, em substituição da de 15%, pretendendo a impugnante que tal margem se deve situar entre 2,53% e 6,11%, não havendo, por isso, lugar à anulação in totum da liquidação, mas só à anulação parcial. Do modo como agiu, o TCA excedeu a sua competência, ofendendo o disposto no artigo 661º nº 1 do Código de Processo Civil, ou seja, indo além do pedido.
O Exmº. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal não dá o seu apoio à tese da recorrente, entendendo que o acto tributário não é divisível, impondo-se, por isso, a anulação total da liquidação, tal qual foi decretado.
3.2. A verdade, porém, é que o acto tributário de liquidação, saldando-se no apuramento do imposto devido pelo sujeito passivo, é divisível “tanto por natureza como na própria expressão legal, pelo que é sempre susceptível de anulação parcial” – cfr. o acórdão de 22 de Setembro de 1999 no recurso nº 24101, aliás, citado pelo Exmº. Procurador-Geral Adjunto. É asserção outras muitas vezes ditada por este Tribunal. E resulta das disposições dos artigos 145º do Código de Processo Tributário (CPT) e 100º da Lei Geral Tributária (LGT).
Ou seja, se o juiz reconhecer que o acto tributário está inquinado de ilegalidade que só em parte o invalida, deve anulá-lo só nessa parte, deixando-o subsistente, no segmento em que nenhuma ilegalidade o fira.
Tal não é, todavia, possível em todos os casos.
Quando, como aqui acontece, a Administração Fiscal tenha calculado a matéria colectável por métodos presuntivos, supondo uma determinada margem de lucro, e o juiz concluir pela inexistência de razões bastantes para a opção por essa margem de lucro, ficando, por isso, na “dúvida quanto à quantificação efectuada”, não lhe resta senão anular totalmente a liquidação. É, de resto, o que resulta do disposto no artigo 121º do Código de Processo Tributário: “sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência ou quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado”.
É que, num caso como este, o juiz não fica a saber e, consequentemente, não pode definir (mesmo admitindo que tanto lhe é permitido) qual a margem de lucro correcta. Nada mais faz senão dizer que é excessiva – ou insuficientemente demonstrada – a margem utilizada pela Administração. E, portanto, tem que anular o acto, para que a Administração volte a calcular a matéria colectável (presumindo, se assim o entender, uma margem de lucro mas, desta vez, alicerçada em fundamentos mais sólidos), procedendo à liquidação a partir daquela a que então chegue. Ao juiz não compete, em nenhum caso, substituir-se à Administração no apuramento da matéria colectável e na elaboração da sequente liquidação.
Nem se diga, como a recorrente Fazenda Pública, que “o objecto do recurso é APENAS fixar uma margem de lucro”. O processo de impugnação judicial dos actos tributários de liquidação tem por objecto a anulação total ou parcial desses actos, e não a fixação da matéria colectável. E a verdade é que, na petição inicial da impugnação, a impugnante pedira a anulação total da liquidação, e só subsidiariamente a parcial da liquidação. É certo que, no recurso, delimitou a discussão “à questão (...) da determinação de uma margem de lucro líquido de 15% que lhe foi aplicada”, e pedia a revogação da sentença “na parte que estabelece uma margem de lucro líquido que extravase os 2,53% ou, subsidiariamente, os 6,11%”. Mas nem por isso se podia entender que competia ao Tribunal, apreciando o objecto do recurso, estabelecer qual era a margem de lucro adequada ao caso. O que lhe cabia era verificar se a sentença impugnada, ao aceitar como boa a margem de lucro de 15%, enfermava ou não dos vícios que lhe eram assacados, ditando a sua sorte – confirmação, anulação ou revogação. E, revogando-a, como, no caso, sucedeu, importava ditar a procedência ou improcedência da impugnação judicial.
Foi o que fez o TCA, que, deste modo, não condenou nem em mais nem em coisa diversa do que lhe era pedido, não merecendo a sua decisão o reparo da recorrente.
4. Termos em que acordam, em conferência, os juizes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, em negar provimento ao recurso, confirmando o aresto impugnado.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Março de 2003.
Baeta de Queiroz – Relator – Mendes Pimentel – Fonseca Limão