Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01437/14.3BELRS 0304/18
Data do Acordão:03/20/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:AUDIÇÃO PRÉVIA
FALTA
PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ACTO
Sumário:Se a administração tributária não dá adequado cumprimento ao direito de audição, tal facto determina a anulação, por vício de forma, do despacho de reversão.
O mesmo só não seria anulável se a respetiva irregularidade pudesse degradar-se em formalidade não essencial, por força da aplicação do princípio do aproveitamento dos atos.
Mas, essa degradação só poderia ocorrer se, por recurso a um juízo de prognose póstuma, fosse seguro concluir que a realização da diligência de inquirição das testemunhas indicadas pelo revertido, não seria passível de aportar elementos novos, relevantes para a fundamentação da decisão a proferir.
Nº Convencional:JSTA000P24346
Nº do Documento:SA22019032001437/14
Data de Entrada:03/21/2018
Recorrente:AT AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A......
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A FAZENDA PÚBLICA, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Tributário de Lisboa (TTL) datada de 6 de Setembro de 2017, que julgou procedente a oposição deduzida ao processo de execução fiscal nº 3247201101220098, instaurado pelo Serviço de Finanças de Lisboa – 2 à sociedade B……….. Ldª, para cobrança coerciva de dívidas fiscais no valor global de € 1.525,11, relativas a IRC do exercício de 2007.

Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
A. A questão fulcral consiste em determinar se o acto de reversão é ilegal pelo facto de não se ter pronunciado sobre os elementos novos levados ao processo pelo potencial revertido na fase de audição prévia e quaisquer as consequências dessa ilegalidade.
B. Afigura-se, contudo, que, sendo o órgão da execução fiscal que promove o procedimento de reversão, no exercício das suas competências, é a este que cabe o juízo sobre a utilidade ou conveniência das diligências complementares requeridas pelo interessado.
C. Como sublinham Mário Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco de Amorim, in Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª ed., pág. 459, “o órgão instrutor é, porém — salvo violação de vínculos legais formais e recurso do acto final, o único a quem compete «julgar» da necessidade dessas diligências em termos de instrução do procedimento administrativo e da consistência da comprovação já existente sobre as questões (de facto e de direito) relevantes”.
D. Os autos revelam que o órgão da execução fiscal concedeu ao oponente o exercício efectivo do direito de audiência prévia, notificando-o do projecto de reversão, e que este, no exercício desse direito, não obstante a negação da sua responsabilidade, não justificava a utilidade da inquirição das testemunhas por si arroladas.
E. Acresce que, o direito do interessado na participação da formação do acto de que é destinatário só será verdadeiramente violado se através dessa participação houver a possibilidade, ainda que ténue, de o interessado vir a exercer influência, quer pelos esclarecimentos prestados, quer pelo chamamento da atenção de certos aspectos de facto e de direito, na decisão a proferir, no termo da instrução.
F. No caso dos autos, face à prova documental junta, que evidência acto de gerência de facto por parte do Oponente, a repetição da audição prévia, para efeitos de expurgação da falta cometida, imporia ao órgão de execução fiscal a prática de novo acto de reversão, de conteúdo igual ao do primeiro.
G. Com efeito, tratando-se de um vício no processo de formação do acto de reversão, o direito do oponente à execução do efeito repristinatório da anulação obriga o órgão de execução a retomar e repetir a formalidade no âmbito da qual foi praticada a reversão, mas não prejudica a eventualidade de o acto anulado poder ser renovado por outro com igual conteúdo.
H. Na verdade, o oponente não se limitou a apontar defeito da falta de audição prévia, pois, além desse vício formal, invocou a relação material de fundo, alegando que não é responsável subsidiário e arrolando as mesmas testemunhas indicadas em sede de direito de audição.
I. Tendo o Tribunal dispensado a sua inquirição em sede de oposição.
J. Pelo que, o acto de reversão não padece da ilegalidade que lhe vem assacada na sentença.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público notificado, pronunciou-se pela improcedência do recurso. Basicamente o Ministério Público entendeu que, “(…)é inequívoco que a administração tributária não deu adequado cumprimento ao direito de audição, facto que determina a anulação, por vício de forma, do despacho de reversão em causa.
Na verdade, o mesmo só não seria anulável se a respetiva irregularidade pudesse degradar-se em formalidade não essencial, por força da aplicação do princípio do aproveitamento dos atos.
Mas, essa degradação só poderia ocorrer se, por recurso a um juízo de prognose póstuma, fosse seguro concluir que a realização da diligência de inquirição das testemunhas indicadas pelo revertido, não seria passível de aportar elementos novos, relevantes para a fundamentação da decisão a proferir.
Todavia, não é esse o caso dos autos.(…)”.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
a) Em 27/12/2011, o serviço de finanças de Lisboa-2 instaurou o processo de execução fiscal n.° 3247201101220098 à sociedade B……….. Ldª, para cobrança coerciva de dívidas de IRC, relativas ao exercício de 2007, no valor global de € 1.525,11 (mil, quinhentos e vinte e cinco euros e onze cêntimos).
b) Em 28/02/2014, o oponente A…… foi notificado, na qualidade de devedor subsidiário da sociedade B………. Ld.ª, para o exercício de audição prévia em sede do procedimento de reversão das dívidas, identificadas na alínea antecedente, constando da referida notificação, além do mais que, o ora oponente poderia arrolar prova documental e testemunhal.
c) Em 17/03/2014, o oponente pronunciou-se em sede do seu direito de audição, invocando factualidade que, no seu entender, afastariam a sua responsabilidade subsidiária (não exercício, de facto, das funções de gerência da sociedade), arrolando prova testemunhal para comprovação da factualidade alegada.
d) O OEF não indeferiu expressamente a prova testemunhal, arrolada pelo oponente, nem se pronunciou sobre o seu requerimento de prova.
e) Por despacho, proferido a 21/04/2014 foi ordenada a reversão das dívidas do processo de execução em apreço contra o ora oponente, despacho que foi remetido ao oponente por ofício registado com aviso de recepção, mas que foi devolvido ao OEF, com a menção não reclamado.
f) Sem que o oponente tenha recepcionado o despacho de reversão e os seus fundamentos, foi ordenada a sua citação para os termos do processo de execução fiscal, a qual foi recepcionada em 07/05/2014, por terceiro.
g) O ora oponente assumiu nominalmente as funções de gerente da sociedade devedora originária em 07/11/2002, tendo-se mantido nessas funções nominais até 04/09/2013, data em que a sociedade ficou pendente de dissolução administrativa.
h) A presente oposição foi apresentada em 04/06/2014.
Nada mais se deu como provado.

Há agora que conhecer o recurso que nos vem dirigido.
E desde já se dirá tal como na sentença recorrida bem como no parecer emitido pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto que o recurso não poderá proceder.
Inconformada, veio a Fazenda Pública interpor o presente recurso jurisdicional da sentença proferida em 06/09/2017, pelo tribunal a quo, que julgou procedente a oposição, absolvendo o oponente, ora Recorrido, da instância executiva (assim, vide a sentença constante de fls. 53 a 60 e as alegações, juntas de fIs. 80 a 85 do processo em suporte físico, abreviadamente p. f.)
Insurge-se a Recorrente contra a sentença recorrida por, alegadamente, padecer de erros de julgamento na interpretação e aplicação do direito, sem que, todavia, especifique quais as concretas disposições legais pretensamente afrontadas, mas, de todo o modo, batendo-se pela aplicação do princípio do aproveitamento do ato sindicado, in casu o despacho de reversão das dívidas de IRC, no montante de €1.525,11, cobradas no âmbito do Processo de Execução Fiscal n.s 3247201101220098, instaurado contra a devedora originária B………..., L.da (vide as conclusão da motivação, ínsitas de fls. 83 in fine a 85 do p. f.)

A Lei Geral Tributária consagra, no seu artigo 60.°, o princípio de participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, consubstanciado no direito de audição prévia, anterior à verificação das situações prefiguradas nas alíneas a) a e) do seu n.º 1.
Este direito de audição do contribuinte constitui, assim, um corolário do direito de participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhes digam respeito, consagrado no artigo 267.°, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Aliás, esta concretização do princípio da participação foi consagrada na LGT em termos idênticos ao princípio do contraditório regulado no artigo 45.° do CPPT e aos princípios da participação e da audiência, proclamados, respetivamente, nos artigos 8.° e 100.° a 103º, todos do CPA de 1991, diploma que se encontrava em vigor à data da prolação do despacho de reversão em causa.
Sucede que a participação dos contribuintes pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, entre outras formas, pelo exercício do direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, conforme dispõe o artigo 60.°, n.º 1, alínea b), da LGT.
Acresce que a audição é dispensada se a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição for favorável ao contribuinte (v. o n.º 2 do citado preceito).
Em adição, os elementos novos suscitados na audição do contribuinte são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão, conforme estabelece o n.º 7 do mesmo artigo 60.º (sobre a interpretação deste preceito, cfr. o acórdão do STA, de 07/06/2017, tirado no processo 0354/15.
O que significa que o direito de participação não assume natureza meramente formal, ou seja, não se queda pelo simples cumprimento de uma obrigação legal de notificação do contribuinte a fim de se pronunciar sobre o projeto de decisão, mas, ao invés, reveste uma função conformadora da própria decisão a proferir pela administração tributária (neste sentido cfr. o acórdão de 19/04/2017, no Processo nº 01114/16).
Ademais, a falta de audição dos interessados, quando obrigatória, constitui um vício formal que se repercute na decisão final do procedimento, podendo conduzir à sua anulação.
E, em abono da tese da imperatividade do exercício do direito de audição e bem assim sobre as suas repercussões no âmbito do procedimento tributário, poderemos invocar, inter alias, o entendimento que emerge dos acórdãos de 19/04/2017, no processo n.º 01114/16, de 24/10/2007, no processo n.º 0429/07 e de 06/12/2006, no processo n.º 0496/06.
Todavia, importa acentuar que, pese embora o incumprimento e/ou a deficiente observância do direito de audição, a sua omissão não acarreta, inapelavelmente, a anulação do ato proferido.
É o que decorre do princípio do aproveitamento do ato que, à data do despacho de reversão em causa, era reconhecido e aplicado pela jurisprudência, mas que não se mostrava positivado, sendo que, atualmente, se encontra contemplado na norma do n.º 5 do artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07 de janeiro, que entrou em vigor em 08/04/2015.
Porém, o ato final só não será inválido se tal irregularidade conseguir degradar-se em formalidade não essencial (neste sentido, por todos, vide os atrás mencionados acórdãos de 24/10/2007, tirado no processo n.º 0429/07 e de 06/12/2006, no processo nº 0496/06).
Assim, esta manifestação do princípio do aproveitamento do ato não pode valer a todo e custo e sem limites.
Na verdade, há que chamar aqui à colação a jurisprudência emanada deste Supremo Tribunal, mormente no acórdão de 10/11/2010, no processo n.º 0671/10, nos termos da qual “( ... ) III - Não afastam a relevância do vício de violação do direito de audiência os factos de, depois de efetuadas as liquidações, o contribuinte ter tido oportunidade de as impugnar judicialmente e ter sido ouvido no âmbito da reclamação graciosa. IV - A preterição da formalidade que constitui o facto de não ter sido assegurado o exercício do direito de audiência só pode considerar-se não essencial se se demonstrar que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente”.
Com efeito, de acordo com o princípio do aproveitamento do ato, tal só ocorrerá se o interessado na prática do direito omitido não dispuser de qualquer elemento novo que pudesse ter influenciado a decisão que foi tomada com preterição desse direito.
Retornando agora à situação em apreço, diremos que é inequívoco que a administração tributária não deu adequado cumprimento ao direito de audição, facto que determina a anulação, por vício de forma, do despacho de reversão em causa.
Na verdade, o mesmo só não seria anulável se a respetiva irregularidade pudesse degradar-se em formalidade não essencial, por força da aplicação do princípio do aproveitamento dos atos.
Mas, essa degradação só poderia ocorrer se, por recurso a um juízo de prognose póstuma, fosse seguro concluir que a realização da diligência de inquirição das testemunhas indicadas pelo revertido, não seria passível de aportar elementos novos, relevantes para a fundamentação da decisão a proferir.
Todavia, não é esse o caso dos autos.
Com efeito, analisado o processado, torna-se imperativo concluir, sem grande esforço exegético, que, se acaso tivesse sido realizada a referida diligência, o Recorrido poderia ter carreado novos elementos probatórios, em ordem à fixação de matéria de facto com relevo para a tomada da decisão de reversão e, desse modo, contribuir para modelar a exata conformação desse despacho.
Assim, a irregular observância do direito de audição, por banda da Recorrente Fazenda Pública, constituiu a preterição de uma formalidade essencial e daí que não possa degradar-se em não essencial.
Nesta conformidade, na procedência desse vício procedimental que se projeta no - e contamina o - despacho de reversão, o recurso sub judice terá forçosamente de improceder.

Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
D.n.

Lisboa, 20 de Março de 2019. – Aragão Seia (relator) Dulce Neto – Pedro Delgado.