Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:05/11
Data do Acordão:09/22/2011
Tribunal:CONFLITOS
Relator:RUI BOTELHO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
ESTADO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE POR ACTO JUDICIAL
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:I - De acordo com o disposto no art. 4º, n.º 3, alínea a), do ETAF (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.2, alterada pela Lei n.º 10/D/2003, de 31.12) fica excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como as correspondentes acções de regresso”.
II - Esta norma tem ínsita a ideia de que cada jurisdição deve julgar as acções de indemnização fundadas nos erros judiciários por si cometidos.
III - O conceito de erro judiciário encontra-se definido no art. 13º, n.º 1, da Lei n.º 67/07, de 31.12, reportando-se, para além das sentenças penais condenatórias e da privação injustificada da liberdade, às “decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”.
IV - Os tribunais comuns são competentes para apreciarem uma acção com fundamento em responsabilidade civil extracontratual do Estado que tem “como causa de pedir, em matéria de ilicitude, actos praticados por Magistrados do M° P° e Judiciais, Órgãos de Policia Criminal, Inspecção Geral de Jogos, por terem ordenado e efectuado buscas e apreensão de bens, autorizadas pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal de Setúbal, nas instalações da B..., de que os Autores eram sócios e ainda nas suas residências”.
Nº Convencional:JSTA00067168
Nº do Documento:SAC2011092205
Data de Entrada:03/18/2011
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE SETÚBAL E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE ALMADA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO DE JURISDIÇÃO TAF ALMADA - VARA MISTA DE SETUBAL
Decisão:DECL COMPETENTE TRIBUNAL JUDICIAL
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB
Legislação Nacional:CONST97 ART211 N1 ART212 N3
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1 G H I N2 N3 A
LOFTJ03 ART 18 N1
CPC96 ART66
L 67/2007 DE 2007/12/31 ART13 N1
Jurisprudência Nacional:AC CONFLITOS PROC8/04 DE 2004/10/21
Referência a Doutrina:MARIO ESTEVES DE OLIVEIRA E OUTRO CODIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS ANOTADO VI PAG61
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
I Relatório
A Magistrada do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal veio pedir a resolução do conflito negativo de jurisdição - art. 115º do CPC - surgido entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada e a Vara Mista de Setúbal, tribunais que, por decisões transitadas em julgado, se declararam mutuamente incompetentes em razão da matéria para conhecerem da acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado intentada por A… e outros, resultante, tal como a configuraram os autores, de actos praticados por Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Órgãos de Polícia Criminal, Inspecção Geral de Jogos, no âmbito de um inquérito criminal.
Para o efeito alegou o seguinte:
A… e outros, intentaram no TAF de Almada acção administrativa comum, contra o Estado Português, através da qual pediam o pagamento de uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual
2° Este Tribunal, por decisão de 18/05/2010 entendeu que a acção tal como foi configurada pelos Autores tinha como causa de pedir, em matéria de ilicitude, actos praticados por Magistrados do M° P° e Judiciais, Órgãos de Policia Criminal, Inspecção Geral de Jogos, por terem ordenado e efectuado buscas e apreensão de bens, autorizadas pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal de Setúbal, nas instalações da B..., de que os Autores eram sócios e ainda nas suas residências.
3° Por isso, considerou que a relação jurídico-processual se reportava a actos praticados durante a investigação e no exercício de acção penal, com fundamento na ilicitude da acção de responsabilidade civil extra-contratual.
4º Assim, decidiu que o litígio não emergia de uma relação jurídica administrativa e fiscal, não sendo enquadrável na jurisdição administrativa, ao abrigo do art. 4°, n° 1 do ETAF e, por isso, o Tribunal era incompetente em razão da matéria para conhecer dos autos.
5º Em consequência, ordenou a sua remessa ao Tribunal Judicial de Setúbal.
6° Este Tribunal, por decisão de 15/10/2010, entendeu que a acção tinha dado entrada no dia 15/05/09, na vigência do ETAF de 2002, na redacção da Lei 13/02, de 19/02.
7º Nos termos do art. 1, n.º 1 e art. 4º, alínea g) do ETAF, compete aos Tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional, e da função legislativa.
8° Por isso, o Tribunal competente para apreciar o mérito pertence aos tribunais administrativos considerando-se, igualmente, incompetente em razão da matéria.
9° Ambas as decisões transitaram em julgado.
Requer-se, assim, a resolução do conflito negativo de jurisdição”.
Ambas as decisões transitaram em julgado. Para o Tribunal Judicial de Setúbal a competência dos tribunais administrativos filia-se no art. 4º, n.º 1, g) do ETAF. Para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada a competência dos tribunais comuns decorre da excepção contemplada no n.º 2, c), do mesmo preceito, por se tratar da impugnação de “Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas conclusões”.
O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer final:
“1. Para uma boa decisão deste conflito importava que fosse junta cópia certificada da petição inicial já que a “determinação da jurisdição competente para o conhecimento da acção interposta pelos autores tem de fazer-se face à causa de pedir e pedido e como os mesmos estão configurados por eles”.
2. De qualquer modo e para se não perder tempo pode fazer-se fé nos despachos em conflito. Tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal de Conflitos que no caso dos autos (acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ocorridos no domínio da actividade dos tribunais) a competência é dos Tribunais Judiciais. Por todos, veja-se o douto Ac. de 29.11.2006, conflito n° 3/5 e toda a jurisprudência que no mesmo é indicada. Com a devida vénia, passamos a transcrever uma parte no que ali se escreveu - “ Sendo certo que a questão da competência material para o julgamento de acções para efectivação da responsabilidade extracontratual por actos e omissões de órgãos ou agentes da administração judiciária, praticados no exercício das suas funções ou por causa delas, foi bastante discutida como se dá nota no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 12-05-1994, cuja doutrina se acabou de transcrever, hoje, é pacífico o entendimento jurisprudencial, na linha deste último aresto, de que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à específica função de julgar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa - (cfr. entre outros, além do supra transcrito aresto de 12-05-1994, os acórdãos deste Tribunal de Conflitos de 23-01-2001, Conflito n.° 294, e de 21-02-06, Conflito n.° 340, e, ainda, entre outros, os Acórdãos do STA de 13.02.1996, Proc. n.° 38.474, in AP DR de 31-8-98, 1095; de 15.10.98, Proc. n.° 36.811; de 12.10.2000, Proc. n.° 45.862, in AP UR de 12-2-2003, 7360; de 12.10.2000, Proc. n.° 46.313, in AP DR de 12-2-2003, 7378; e de 22-05- 2003, Proc. n.° 532/03)”.
3. Aliás, este entendimento também seguido no recente Ac. de 13.10.2011, conflito n° 13/10 já vinha no seguimento do decidido no Ac. de 23.1.2001 conflito n° 294 em cujo sumário se pode ler - “O critério para a repartição de competência entre tribunais administrativos e tribunais judiciais para conhecimento de acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ocorridos no domínio da actividade dos tribunais passa pela distinção entre os casos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (na sua função de julgar), hipótese em que serão competentes os tribunais judiciais, e os casos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (ou a este serviço globalmente considerado, quando não seja individualizável a responsabilidade de um concreto agente dessa administração-falta do serviço), no exercício de actividade estranha à função de julgar, hipótese em que serão competentes os tribunais administrativos”.
4. No fundo, a competência será dos tribunais judiciais quando a causa de pedir seja um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (ou seja, quando é instado a resolver uma questão de direito), será dos tribunais administrativos quando se reporte a um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária ou a um serviço globalmente considerado, a que é estranha a função de julgar.
Ora, no caso presente houve uma decisão de um juiz (JIC) que ordenou as buscas que deram origem à acção que está na base deste conflito de jurisdição. Assim, dúvidas não há que são os tribunais judiciais os competentes para conhecer da mesma e no seguimento da jurisprudência supra. E, em nosso entendimento, face ao disposto no n° 2, alínea c) do actual ETAF - “ Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de ... actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões” - parece também óbvio que serão os tribunais judiciais os competentes para o conhecimento da acção.
5. Como assim, somos de parecer que deve dirimir-se o presente conflito de jurisdição atribuindo-se a competência ao Tribunal Judicial de Setúbal”.
Na sequência deste parecer foi ordenada e junta aos autos certidão da petição inicial apresentada na acção.
Sem vistos, mas com distribuição prévia do projecto de acórdão, cumpre decidir.
II
1. É ponto assente que a competência (ou jurisdição) de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objectivos com ela prosseguidos (acórdão do Tribunal dos Conflitos de 21.10.04 proferido no Conflito 8/04). Estamos perante uma acção emergente de responsabilidade civil extracontratual proposta contra o Estado que tem na sua génese “como causa de pedir, em matéria de ilicitude, actos praticados por Magistrados do M° P° e Judiciais, Órgãos de Policia Criminal, Inspecção Geral de Jogos, por terem ordenado e efectuado buscas e apreensão de bens, autorizadas pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal de Setúbal, nas instalações da B..., de que os Autores eram sócios e ainda nas suas residências”. Em tais actos encontram-se despachos judiciais a ordenarem buscas na sede da empresa e residências dos sócios bem como escutas telefónicas. O pedido neles suportado inclui indemnizações pelos danos patrimoniais resultantes do encerramento da empresa, respeitantes a lucros cessantes, a danos não patrimoniais e juros. Culminando o inquérito em que tais actos foram praticados foi proferida uma acusação – pelos crimes de associação criminosa, fabrico, divulgação e transacção de material de jogo de fortuna e azar e de jogo fraudulento - que, todavia, conduziu à emissão de um despacho de não pronúncia, transitado em julgado.
2. De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 211º da CRP,(Idêntica redacção tem n.º 1 do art. 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13.1 e o art. 66º do CPC.) "Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais" e nos termos do art. 212º, n.º 3, (No mesmo sentido o art. 1º, n.º 1, do ETAF.) "Compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas". O conceito de relação jurídica administrativa é, assim, erigido, tanto pela Constituição como pela lei ordinária, como operador nuclear da repartição de jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais. Em matéria de responsabilidade civil extracontratual no âmbito da jurisdição administrativa, e, portanto, com específico relevo para resolução do presente conflito, dizem-nos as alíneas g), h) e i), do n.º 1 do art. 4º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.2, alterada pela Lei n.º 10/D/2003, de 31.12) competir aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto:
"g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público".
Sendo o n.º 1 a norma padrão, a que define as matérias que aos tribunais administrativos cabe apreciar, os n.ºs 2 e 3 identificam as excepções. O n.º 2 reporta-se exclusivamente aos “litígios que tenham por objecto a impugnação” de actos (alíneas a) e c)) ou decisões jurisdicionais (alínea b)). Como é bom de ver a acção em causa nos autos não visa a impugnação de qualquer acto ou decisão jurisdicional, traduzindo-se num simples pedido indemnizatório. Sublinhe-se que não estão em causa os próprios actos imputados às referidas entidades mas as suas consequências. A posição do TAF de Almada, com o fundamento invocado, não pode, pois, manter-se. O n.º 3 exclui as acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição (alínea a)), os actos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho Superior da Magistratura e do seu Presidente (alíneas b) e c)) e os litígios emergentes de contrato individual de trabalho em que uma das partes seja uma entidade pública (alínea d)).
A situação contemplada nos autos não cabe nas alíneas b) a d). Importa ver se caberá na alínea a), que tem ínsita a ideia de que cada jurisdição deve julgar as acções de indemnização fundadas nos erros judiciários por si cometidos – Esteves de Oliveira e outro, “Código de processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, I, 61 e ss. O conceito de erro judiciário, neste contexto, encontra-se definido no art. 13º, n.º 1, da Lei n.º 67/07, de 31.12 (“Aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”) reportando-se, para além das sentenças penais condenatórias e da privação injustificada da liberdade, às “decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”.
Vista a petição inicial verifica-se que os autores, para lá do inadequado funcionamento da máquina judicial, imputam a actos ilegais ou injustificados de um juiz de um tribunal comum (ao ordenar buscas e escutas telefónicas) a causa dos prejuízos que sofreram tendo de qualificar-se tais actos como “erro judiciário”, por corresponderem a uma apreciação indevida dos respectivos pressupostos de facto, sendo que, tais actos foram já erradicados nos termos do n.º 2 do referido preceito (“O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”).
IV Decisão
Tendo em consideração o disposto no art. 4º, n.º 3, alínea a), do ETAF, acordam em resolver o presente conflito atribuindo a competência para o conhecimento da acção aos tribunais comuns.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Setembro de 2011. – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho (relator) – João Moreira CamiloJorge Artur Madeira dos SantosJosé Vaz dos Santos CarvalhoAdérito da Conceição Salvador dos SantosAntónio da Silva Gonçalves.