Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0168/19.2BEAVR
Data do Acordão:07/11/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
VENDA
RESTITUIÇÃO
VALOR
Sumário:I - Se é certo que o produto da venda foi aplicado na satisfação de vários créditos tributários, sendo um deles da titularidade da Segurança Social, a partir do momento em que a AT reconheceu o direito àquela restituição, independentemente de recair sobre a Segurança Social a devolução da quantia que lhe foi entregue para satisfação do seu crédito, aquela obrigação de restituição à Recorrida impende sobre a Administração Tributária.
II - Tendo o produto da venda sido afeto ao pagamento de créditos exequendos, cuja cobrança estava a cargo da AT, recai sobre esta a obrigação da sua restituição, tanto mais que é da sua responsabilidade o facto de a execução fiscal ter prosseguido para a fase de pagamentos dos créditos, sem que tivesse sido concluída a fase da venda.
Nº Convencional:JSTA000P24805
Nº do Documento:SA2201907110168/19
Data de Entrada:06/05/2019
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A... S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


A Autoridade Tributária e Aduaneira recorre da sentença proferida pelo TAF de Aveiro, com data de 16.04.2019, que julgou procedente a presente reclamação de acto do OEF e determinou a …anulação do despacho reclamado, devendo a AT devolver à Reclamante o valor depositado aquando da adjudicação, subtraído dos valores entretanto pagos (correspondentes ao valor da CA e das custas do PEF), com as devidas consequências legais.

Alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1. Veio o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro a dar razão à Reclamante, considerando que a AT deve proceder à devolução à Reclamante dos valores depositados, no âmbito da venda que veio a ser anulada, essencialmente com fundamento no artigo 289.º n.º 1 do C.C., sendo este o único fundamento de direito a estribar a decisão.
2. Contudo, entende a Fazenda Pública que a sentença ora recorrida enferma de erro de julgamento, pois não valorou, como deveria, todos os circunstancialismos envolventes à situação em análise.
3. Atentos todos os factos com relevância para a causa, e dados como assentes na sentença recorrida, a) a AT após receber o valor do preço deu cumprimento a uma decisão judicial em sede de processo de graduação de créditos, ou seja, obedeceu aos termos de uma decisão judicial; b) depois de se confrontar com a causa de nulidade da venda em questão, prontamente a AT a reconheceu e declarou; c) nunca a AT questionou o direito da Reclamante à restituição do preço pago, procedendo à devolução dos valores que estavam na sua esfera e disponibilidade; e d) reiteradamente tentou, insistindo, junto do Instituto da Segurança Social para que esta procedesse de acordo com a declaração de nulidade da venda e acedesse à devolução dos valores que lhe foram entregues, tendo em vista a sua restituição à Reclamante.
4. Desta forma à AT apenas se pode imputar uma actuação qualificada de boa-fé ao longo de todos os acontecimentos que se relacionam com a venda executiva declarada nula, não lhe sendo por isso atribuível qualquer culpa.
5. E, por consequência, resultando inequívoca a boa-fé da AT no caso aqui em análise, deve ser invocado, integralmente, o que se dispõe no artigo 289.º do C.C., porque no seu n.º 3, ali se referindo que sendo aplicável às situações previstas no artigo 289.º do C.C. o preceituado no artigo 1269.º do mesmo código, directamente ou por analogia, então, a actuação da AT deveria, ao contrário do que (não) fez a sentença recorrida, ser enquadrada no n.º 2 do artigo 289.º.
6. É o que, julgamos, resulta de todos os factos expostos e dados assentes: averiguada e confirmada que está a boa-fé da AT ao longo de todo este tempo em todos os parâmetros da sua actuação no que respeita à venda declarada nula, a boa-fé assim aferida mostra-se apta a permitir o recurso por analogia, previsto no n.º 3 do artigo 289.º do C.C., à disciplina do artigo 1269.º do mesmo código.
7. Ou seja, atestada a boa-fé da AT, e se é determinado na sentença ora recorrida a sua obrigação em restituir com recurso a fundos próprios, vemos que tal não deverá ocorrer, antes sim e por aplicação daqueles n.º 2 e 3 do artigo 289.º resultará a sua desoneração da obrigação de proceder a qualquer restituição à reclamante porquanto, analogicamente, ao proceder à entrega dos valores em causa à Segurança Social no cumprimento de uma decisão judicial, não estando já por isso na sua (da AT) disponibilidade aquele concreto valor em causa, ficará o adquirente, leia-se, o receptor Segurança Social, obrigado em lugar daquela na medida do seu enriquecimento.
8. E nesta perspectiva, não nos parece correcta a posição assumida pelo tribunal a quo na sua decisão, pois depois de considerar que impende sobre a AT a obrigação de restituição à Reclamante com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do C.C., não valorou minimamente que fosse a circunstância da AT sempre ter pautado a sua actuação conforme ao princípio da boa-fé, em primeira linha aqui invocado mediante o artigo 1269.º C.C.,
9. daí não retirando o tribunal a quo qualquer consequência, a qual será a de que tendo a AT inequivocamente actuando de boa-fé, fica legalmente e por aplicação analógica dos n.º 2 e 3 do artigo 289.º por efeito do artigo 1269.º, todos do C.C., desobrigada do cumprimento da pretendida restituição.
10. E assim, apenas nos resta concluir que no caso em crise, aplicando os termos dos artigos 289.º, n.ºs 2 e 3, e 1269.º, ambos do C.C., a decisão da AT de indeferimento de restituição dos valores em crise não enferma de qualquer irregularidade.
11. Contudo, e como se verifica do raciocínio explanado na sentença de que se recorre, assim como da sua conclusão, não foi esse o entendimento do tribunal a quo.
12. O que não podemos aceitar, por se mostrar errada e desajustada a solução dada à questão, por deficiente aplicação do direito, em face do disposto nos artigos 289.º, n.ºs 2 e 3, e 1269.º, ambos do C.C.
13. Face ao supra exposto, defende a Fazenda Pública, salvo melhor entendimento, que a douta sentença sob recurso enferma de erro de julgamento quanto à aplicação do artigo 289.º do C.C., desvirtuando, assim, os verdadeiros sentidos e alcance da norma em apreço, mostrando-se evidente que não incorreu a administração tributária em qualquer irregularidade no âmbito do processo de execução fiscal identificado.
Nos termos vindos de expor e nos que V. Ex.as sempre mui doutamente poderão suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, substituir-se a douta decisão recorrida, quando declarou a anulação do acto de indeferimento de restituição de valores, por outra mais consentânea com o Direito e a Justiça, que declare improcedente a reclamação do acto do órgão de execução fiscal, pois que a douta sentença ora recorrida, a manter-se na ordem jurídica, revela uma inadequada interpretação e aplicação do disposto no regime sub judice.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Cumpre decidir

Porque não vem posta em causa a factualidade levada ao probatório, por razões de economia, dá-se a mesma aqui por reproduzida.

Há que tomar conhecimento do recurso que nos vem dirigido, para o que seguiremos de perto o parecer emitido pelo Magistrado do Ministério Público.
Este recurso vem interposto da sentença proferida pelo TAF de Aveiro, que julgou procedente a reclamação apresentada, ao abrigo do disposto no artigo 276º do CPPT, contra o ato de indeferimento de restituição do valor do preço pago relativo a venda declarada nula.
A Recorrente Fazenda Pública insurge-se, no essencial, contra o assim decidido, pugnando pela revogação da sentença, por «...se mostrar errada e desajustada a solução dada à questão, por deficiente aplicação do direito, em face do disposto nos artigos 289.º, n.ºs 2 e 3, e 1269.º, ambos do C.C.. ».
Considera a Recorrente que «resulta de todos os factos expostos e dados assentes: averiguada e confirmada que está a boa-fé da AT ao longo de todo este tempo em todos os parâmetros da sua actuação no que respeita à venda declarada nula, a boa-fé assim aferida mostra-se apta a permitir o recurso por analogia, previsto no n.º 3 do artigo 289.º do C.C., à disciplina do artigo 1269.º do mesmo código.(….) Ou seja, atestada a boa-fé da AT, e se é determinado na sentença ora recorrida a sua obrigação em restituir com recurso a fundos próprios, vemos que tal não deverá ocorrer, antes sim e por aplicação daqueles n.º 2 e 3 do artigo 289.º resultará a sua desoneração da obrigação de proceder a qualquer restituição à reclamante porquanto, analogicamente, ao proceder à entrega dos valores em causa à Segurança Social no cumprimento de uma decisão judicial, não estando já por isso na sua (da AT) disponibilidade aquele concreto valor em causa, ficará o adquirente, leia-se, o receptor Segurança Social, obrigado em lugar daquela na medida do seu enriquecimento».

Na decisão recorrida deu-se como assente que no âmbito da execução fiscal que correu termos no Serviço de Finanças da Feira 4 foi determinada a venda por negociação particular e adjudicado à recorrida um imóvel pelo preço de € 89.783,62 euros, valor este que foi pago e posteriormente aplicado, na sequência de graduação de créditos, na satisfação de crédito da Segurança Social, crédito de IMI e custas processuais.
Mais resulta que não tendo a negociação particular sido concluída com a realização de escritura pública, o imóvel terá sido objecto de venda em execução comum à Caixa Económica Montepio Geral, que registou a compra e posteriormente viu reconhecido o direito de propriedade sobre o referido imóvel. Na sequência desse reconhecimento a Recorrida apresentou junto do Serviço de Finanças da Feira um requerimento a pedir a restituição do montante pago, o qual lhe foi deferido, por se reconhecer a nulidade da venda realizada na execução fiscal.
Como tal valor apenas lhe foi devolvido em parte, por a Segurança Social não ter dado qualquer resposta à solicitação do Serviço de Finanças para devolução da quantia de € 84.058,61 euros que lhe foi atribuída para satisfação do seu crédito, a Recorrida apresentou ação administrativa especial, que foi convolada em requerimento dirigido ao órgão de execução fiscal, tendo a AT afastado qualquer responsabilidade pela falta de devolução de tal quantia, com as seguintes considerações:
«Nesta conformidade, parte do produto da venda em causa foi transferida para a Segurança Social, em cumprimento da sentença de verificação e graduação de créditos.
A AT não pode restituir uma quantia da qual não é titular e que não se encontra na sua disponibilidade, não se vislumbrando fundamento legal que legitime a AT a proceder à restituição requerida a partir de receitas próprias.
Conclui-se assim que não existe base legal para que a restituição em causa seja efectuada pela AT, uma vez que os respectivos valores foram oportunamente entregues à Segurança Social.”.
Para se decidir pela procedência da reclamação, o tribunal “a quo” fez as seguintes considerações: «a dificuldade em obter junto da Segurança Social os valores transferidos nunca poderia desonerar a AT de devolver, ela própria, tais valores à Reclamante.(…) a base legal que legitima a AT a satisfazer a restituição da quantia a partir de receitas próprias é, precisamente, a existência de uma venda declarada nula, sendo a própria lei que impõe a quem recebeu o valor em causa – a AT – a sua restituição (independentemente do destino que deu aos valores recebidos)».
Concluiu, assim, o tribunal “a quo” pela procedência da reclamação, determinando «...a anulação do despacho reclamado, devendo a AT devolver à Reclamante o valor depositado aquando da adjudicação, subtraído dos valores entretanto pagos (correspondentes ao valor da CA e das custas do PEF)».

A questão que vem suscitada pela Recorrente consiste em saber se a decisão recorrida padece do vício de erro de julgamento, por errónea interpretação e aplicação da lei, designadamente do disposto nos artigos 289.º, n.ºs 2 e 3 [(Efeitos da declaração de nulidade e da anulação) 1. Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. 2. Tendo alguma das partes alienado gratuitamente coisa que devesse restituir, e não podendo tornar-se efectiva contra o alienante a restituição do valor dela, fica o adquirente obrigado em lugar daquele, mas só na medida do seu enriquecimento. 3. É aplicável em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, directamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º e seguintes.] e 1269.º [(Perda ou deterioração da coisa) O possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa], ambos do Código Civil
Resulta da matéria de facto fixada na sentença recorrida que o imóvel foi, aparentemente, objecto de venda em duas ações executivas, tendo o Montepio Geral registado primeiro a aquisição e vendo posteriormente reconhecido judicialmente o seu direito de propriedade sobre o mesmo. Resulta igualmente da matéria de facto que o Serviço de Finanças da Feira 4 reconheceu à Recorrida o direito à restituição do montante pago, com base na nulidade da venda executiva, por vício de forma legalmente exigida, uma vez que nunca chegou a ser realizada a escritura pública que se impunha na modalidade de venda por negociação particular.
Resulta igualmente dos elementos documentais para os quais a sentença remete que, tendo sido pago o valor do preço oferecido por negociação particular – 18 milhões de escudos (€ 89.783,62 euros) -, o produto da venda foi afeto ao pagamento de créditos exequendos (aparentemente após decisão judicial de graduação de créditos) e custas do processo.
Ora, se é certo que o produto da venda foi aplicado na satisfação de vários créditos tributários, sendo um deles da titularidade da Segurança Social, a partir do momento em que a AT reconheceu o direito àquela restituição, independentemente de recair sobre a Segurança Social a devolução da quantia que lhe foi entregue para satisfação do seu crédito, aquela obrigação de restituição à Recorrida impende sobre a Administração Tributária, que reconheceu essa obrigação (no sentido de que pode recair sobre a AT, no caso da falta de entrega do bem adjudicado, a obrigação de restituição do preço, pronunciou-se o acórdão do STA de 29/04/2015, proc. 0698/14).
Por outro lado e como se deixou assinalado na sentença recorrida, tendo o produto da venda sido afeto ao pagamento de créditos exequendos, cuja cobrança estava a cargo da AT, recai sobre esta a obrigação da sua restituição, tanto mais que é da sua responsabilidade o facto de a execução fiscal ter prosseguido para a fase de pagamentos dos créditos, sem que tivesse sido concluída a fase da venda.
Assim, tal como se entendeu na sentença recorrida, o facto da titularidade do crédito que foi satisfeito com o produto da venda ser de outra entidade administrativa em nada altera aquela obrigação de restituição, que deve recair sobre a Administração Tributária, sem prejuízo desta exigir a devolução da quantia entregue à Segurança Social, uma vez que estamos perante duas entidades da pessoa coletiva Estado.
Carece, portanto, de fundamento a invocação do disposto nos artigos 289.º, n.ºs 2 e 3, e 1269.º, ambos do Código Civil, cujo regime não é transponível para a situação configurada nos autos.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
D.n.

Lisboa, 11 de Julho de 2019. – Aragão Seia (relator) – Ascensão Lopes – Isabel Marques da Silva.