Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0451/13.0BELRS
Data do Acordão:12/17/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO
Sumário:I - A unidade do sistema jurídico, que constitui o mais importante dos três factores hermenêuticos a que se refere o n.º 1 do art. 9.º do Código Civil e que decorre do princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica, não permite descortinar razão para que o regime da prescrição das contra-ordenações tributárias seja subtraído à regra geral consagrada no n.º 3 do art. 121.º do CP e no n.º 3 do art. 28.º do RGCO.
II - A regra do n.º 3 do art. 28.º do RGCO aplica-se ao procedimento contra-ordenacional tributário directamente, por força do n.º 3 do art. 33.º do RGIT, ou, pelo menos, subsidiariamente, ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT.
Nº Convencional:JSTA000P25354
Nº do Documento:SA2201912170451/13
Data de Entrada:09/30/2019
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A....., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de contra-ordenação com o n.º 451/13.0BELRS

1. RELATÓRIO

1.1 O Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Tributário de Lisboa recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão por que a Juíza daquele Tribunal, julgando procedente o recurso judicial da decisão administrativa de aplicação da coima em processo de contra-ordenação tributária deduzido pela sociedade acima identificada (adiante Arguida ou Recorrida), determinou o arquivamento dos autos com fundamento em prescrição do procedimento contra-ordenacional.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso, o Recorrente apresentou as respectivas alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A. A questão que nos propomos discutir contende com a aplicação a título subsidiário do limite prescricional previsto art. 28.º, n.º 3, do RGCO ao RGIT por via da alínea b), do seu art. 3.º para efeitos do procedimento contra-ordenacional, admissibilidade sobre a qual, sublinhe-se, temos fundadas reservas sobre a sua admissibilidade legal.

B. Analisada a sentença e demais acórdãos relativamente ao recurso à aplicação subsidiária do n.º 3 do art. 28.º, RGCO a sensação que fica, com todo o respeito por opinião diversa, é que basta a mera remissão imediata e automática para a alínea b), do art. 3.º do RGIT sem que a sua admissibilidade tenha sido escrutinada, como deveria (pelo menos não se mostra expresso), ponderando os vários elementos da interpretação, eventuais princípios do direito penal e processo penal que norteiam os regime das infracções tributárias; os eventuais motivos de prevenção geral ou especial que de algum modo pudessem suportar a posição sufragada (que não encontrámos), e bem assim, sem que tenha sido identificado um bem/interesse público suficientemente forte que sustentasse a limitação quase até à sua erosão dos efeitos desejados pelo legislador do RGIT quando enunciou todo um conjunto factos interruptivos e suspensivos do procedimento contra-ordenacional.

C. Na perspectiva histórica e sistemática da interpretação jurídica tendo esta norma como instrumento é possível afirmar que nunca houve por parte do legislador do RGIT a vontade em tutelar eventuais bens ou interesses para efeitos contra-ordenacionais porquanto tendo o Regime Geral da Contra-Ordenações sido aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/1982 de 27 de Outubro, entrando em vigor em momento anterior ao próprio Regime Geral das Infracções Tributárias que se viu aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (quase 20 anos depois) sabendo, como sabia, da existência dessa norma, entendeu, ainda assim, não a transpor para o próprio regime das infracções tributárias que criou de raiz.

D. Dir-se-á mais. Se, à semelhança do direito penal e do direito processual penal, o fim do direito contra-ordenacional e do seu procedimento visa a protecção de certos bens jurídicos e a contra-ordenação é o instrumento de realização dessa tutela, há que estabelecer uma correlação entre a contra-ordenação e a necessidade de prevenir a prática de futuros ilícitos de mera ordenação social, impondo-se que sejam ponderadas razões de prevenção geral e especial.

E. Diferentemente da prevenção especial que centra a sua atenção sobretudo na decisão (coima), na sua medida; nos seus efeitos, de que são seus corolários, nomeadamente, os regimes de dispensa e atenuação especial da coima, a suspensão provisória do processo, etc. … – o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional e a sua relação com o catálogo de factos suspensivos e interruptivos contendem objectivamente com a efectiva tutela contra-ordenacional dos bens que se visam proteger constituindo manifestações da própria prevenção geral.

F. A prossecução da tutela contra-ordenacional está subordinada ao princípio da legalidade e tem um fim último e imediato: o apuramento da responsabilidade contra-ordenacional decorrente da prática de um ilícito de mera ordenação social que não pode ser menosprezado nem colocado em crise.

G. É imperioso concluir que o recurso a este tipo de normas deve ser realizado de forma muito restrita pois que invariavelmente condicionam a efectivação da responsabilidade contra-ordenacional colocando em causa os efeitos desejados pelo legislador quando introduziu outros institutos como sejam a interrupção e a suspensão da prescrição, in casu, do procedimento contra-ordenacional

H. A própria justificação dada pelo tribunal de primeira instância quando afirma e entende que: “O objectivo da norma é estabelecer um prazo máximo findo o qual o procedimento contra-ordenacional já não pode ter lugar, apesar da ocorrência de eventos interruptivos” – revela um lapso intelectual clamoroso e, até, anacrónico, assente na ideia de que não obstante a componente ética que os caracteriza os preceitos normativos podem ter como única finalidade a mera limitação do efeito produzido por outra ou outras normas jurídicas.

I. Com efeito, não é a norma subsidiária (ou seja, a que supostamente está lá apenas para suprir uma lacuna) quem define ou determina o alcance do próprio regime legal. Por outro lado, do ponto de vista da interpretação jurídica, é legalmente insustentável no direito sancionatório reconhecer que há normas vigentes sem carga ético-normativa, sem princípios, bens jurídicos ou interesses que devam ser tutelados.

J. Sublinhe-se, aliás, que as normas previstas no art. 33.º e 69.º do RGIT visam também elas interesses e bens juridicamente tutelados. Pode-se até chegar à conclusão que aplicação de uma norma restringe ou amplia (por hipótese) o efeito de outra ou outras normas, mas não podemos afirmar que foi esse o objectivo. Quanto muito o que podemos é defender que há um princípio ou um interesse que se sobrepondo a outros normativamente tutelados limita os efeitos jurídicos destes últimos.

K. Doutro modo a conclusão formulada pelo tribunal a quo levar-nos-ia a pensar, ao arrepio do art. 9.º, n.º 3, do Código Civil que, na fixação do sentido e alcance da lei, afinal, o legislador do RGIT não consagrou a solução mais acertada nem soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

L. Nunca perdendo de vista o desejo não manifestado pelo legislador de transpor para o RGIT a norma extraída do n.º 3, do art. 28.º, RGCO, transposição que necessariamente se exigiria perante as prioritárias razões de efectiva tutela contra-ordenacional, impunha-se, por outro lado, que a mesma superasse no plano ontológico a própria justiça material que fundamenta a fixação de um determinado prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional e o elenco dos plurais e necessários factos suspensivos e interruptivos do procedimento contra-ordenacional.

M. Inexistindo por vontade do legislador nenhum interesse/bem jurídico/princípio que se sobreponha às razões que estão por detrás da instituição de um prazo prescricional do procedimento contra-ordenacional nem dos factos juridicamente relevantes para efeitos de suspensão ou interrupção desse prazo, o lapso intelectual que apontámos ao tribunal a quo afigura-se-nos como compreensível, pois que também ele, como nós, não logrou identificar nenhum valor jurídico que justificasse os demais princípios ou razões que norteiam os arts. 33.º e 69.º, ambos do RGIT, limitando-se a “ver” naquela norma um meio para limitar o efeito jurídico de normas que inclusivamente se mostram sistematicamente inseridas no próprio regime das infracções tributárias.

N. Existindo razões que justifiquem a necessidade dessa limitação, tal só será possível mediante opção legislativa, por aditamento ao próprio art. 33.º do RGIT. Doutro modo, histórica, teleológica e sistematicamente não é possível afirmar que fosse desejo do legislador, ou sentisse ele essa necessidade, de cumprir esse desiderato no seio do Regime das Infracções Tributárias.

O. A aplicação subsidiária do art. 28.º, n.º 3, do RGCO ao RGIT afigura-se-nos, pois, ilegal. Ao fazê-lo, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento violando, nomeadamente, no plano interpretativo o disposto no art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, e, no plano sancionatório os princípios da prossecução da acção contra-ordenacional e da legalidade, desrespeitando as regras de prevenção geral tuteladas pelos arts. 33.º e 69.º, ambos do RGIT.

P. Não podendo a sentença recorrida sustentar-se no fundamento jurídico que decorre da aplicação subsidiária do art. 28.º, n.º 3, do RGCO impõe-se a sua substituição por acórdão que julgando procedente o presente recurso mantenha na Ordem Jurídica a decisão administrativa de fixação da coima declarando como não prescrito o procedimento contra-ordenacional.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue como não verificada a prescrição do procedimento contra-ordenacional».

1.3 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

1.4 A Recorrida apresentou contra-alegações, com conclusões do seguinte teor:

«I- A Recorrida não pode deixar de ficar estupefacta com os fundamentos e conclusões do recurso perpetrado pela Recorrente, não concordando in totum com o mesmo.

II- A lei é clara e simples, refere o artigo 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que:
«São aplicáveis subsidiariamente:
a) Quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar;
b) Quanto às contra-ordenações e respectivo processamento, o regime geral do ilícito de mera ordenação social;
c) Quanto à responsabilidade civil, as disposições do Código Civil e legislação complementar;
d) Quanto à execução das coimas, as disposições do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

III- Pelo que não existem dúvidas que, uma vez que o Regime Geral das Infracções Tributárias nada refere quanto a suspensão e interrupção dos procedimentos contra-ordenacionais, é aplicável, quanto a tais figuras jurídicas, o Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social (RGIMOS).

IV- Pelo que merece total colhimento a sentença perpetrada pelo Tribunal a quo.

V- O RGIT, além de instituir um prazo geral de prescrição de cinco anos, estabelece, ainda, um prazo de prescrição especial, idêntico ao prazo de caducidade do direito a liquidação da prestação tributária para os casos em que a infracção depende dessa liquidação, como são, designadamente, os casos previstos nos artigos 114.º, 118.º e 119.º, n.º 1 do RGIT.

VI- O prazo está sujeito à ocorrência de eventos suspensivos e/ou interruptivos, no entanto, e não obstante a verificação dos mesmos, a prescrição do procedimento ocorrerá sempre que desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade, à luz do artigo 28.º, n.º 3, do RGIMOS.

VI- O objectivo da norma é estabelecer um prazo máximo findo o qual o procedimento contra-ordenacional já não pode ter lugar, apesar da ocorrência de eventos interruptivos, neste sentido, cfr. acórdão do TCA Sul de 04.02.2016, processo n.º 08304/14, disponível em www.dgsi.pt.

VII- No caso sub judice, considere-se que a coima em apreço, punida pelo artigo 114.º do RGIT, depende da liquidação do imposto em falta, seja no tipo de ilícito, seja na graduação, termos em que é aplicável o prazo de prescrição de 4 anos, equivalente ao prazo de caducidade do direito a liquidação, conforme se encontra disposto nos artigos 33.º, n.º 2 do RGIT e 45.º, n.º 1 da LGT).

VIII- A infracção ocorreu a 15 de Fevereiro de 2010.

IX- Verificou-se a causa de suspensão prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do RGIMOS, cujo prazo máximo legal a considerar é de 6 meses, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito.

X- É de concluir que o prazo de prescrição, acrescido de metade e do tempo de suspensão (correspondente a 6 anos e meio), contados desde a data de infracção, já decorreu, pelo que o procedimento contra-ordenacional se encontra prescrito nos presentes autos, desde 15 de Agosto de 2016.

XI- A prescrição do procedimento extingue a eventual responsabilidade da aqui Recorrida.

XII- Assim, resulta a saciedade que a sentença proferida pelo Tribunal a quo deverá manter-se in totum, com fundamento na prescrição do procedimento contra-ordenacional.

XIII- O recurso apresentado pela Recorrente mais não representa do que um encapotamento ou tentativa de desviar a atenção das entidades superiores de um problema muito grave, nomeadamente a inércia da Recorrente que levou à prescrição do procedimento contra-ordenacional.

XIV- A tese apresentada pela Recorrente não faz qualquer sentido lógico, pois a aplicação do RGIMOS implica um acréscimo ao prazo prescricional previsto no RGIT, nomeadamente através das figuras da interrupção e da suspensão, o que no caso em concreto implicaria a prescrição do procedimento num momento até anterior ao momento em que a prescrição do procedimento efectivamente ocorreu.

XV- Ou pretende a Recorrente referir que uma vez intentado o procedimento, o mesmo poderia correr ad aeternum? O que violaria os mais basilares princípios previstos na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o princípio da segurança jurídica e do direito à justiça.

XVI- Não pode a Recorrente recorrer ao argumento de que a prescrição dos procedimentos leva a uma violação dos fins das penas.

XVII- Primeiro porque a Recorrente não pode afirmar inequivocamente que prosseguimento do procedimento levaria a uma condenação da Recorrida.

XIX- Segundo se a própria Recorrente tivesse tomado as devidas diligências e realizado os seus actos com maior celeridade, não teria o procedimento prescrito.

XX- De onde resulta, à saciedade que embora se perceba o esforço hercúleo para justificar o injustificável, mais não resta do que se considerar como improcedente o recurso apresentado pela Recorrente por não provado e assim manter-se in totum a decisão perpetrada pelo Tribunal a quo».

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, a Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação: «[…]

A douta decisão recorrida mostra-se, quanto a nós, correcta. Fez correcta análise e interpretação dos factos e correcta se mostra a sua subsunção jurídica, mostrando-se devidamente fundamentada e apoiada em pertinente jurisprudência do TCA/S que a propósito cita, não sendo passível de quaisquer censuras.
Dos factos assentes no probatório chegou a completar-se o prazo normal de prescrição, face à conjugação do disposto nos artigos 114.º e 33.º, do RGIT e 27.º-A, n.º 1 al. c) e n.º 2 e 28.º, do RGCO, desde o início do prazo – 15.02.2010 – ressalvando o período de suspensão do prazo de prescrição do procedimento, até à data da decisão ora recorrida.
Prevendo as disposições legais supra citadas o mecanismo da prescrição do procedimento contra-ordenacional não se mostra necessário o recurso a outros mecanismos legais para interpretar o instituto da prescrição ou da suspensão, sendo que na douta decisão sob recurso foi feita a interpretação e aplicação legal adequada».

1.6 Colhidos os vistos dos Conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«1. Em 13.08.2012, foi instaurado, no Serviço de Finanças de Loures 1, contra a Recorrente, o processo de contra-ordenação n.º 1520201206076661, por falta de entrega de imposto exigível conjuntamente com a respectiva declaração periódica - cfr. fls. 3 dos autos;

2. Em 17.09.2012, no âmbito do processo a que se refere a alínea antecedente, foi proferido despacho de fixação de coima, no montante de € 13.547,96, acrescido de custas, no montante de € 76,50, pela prática da infracção cominada no artigo 114.º, n.º 2 e 26.º, n.º 4 do RGIT, cujo teor, na parte com interesse para a causa, aqui se transcreve:
Descrição Sumária dos Factos
Ao(À) arguido(a) foi levantado Auto de Notícia pelos seguintes factos: Art. 27.º, n.º 1, 41 CIVA – Falta de entrega de imposto exigível conjuntamente com a respectiva declaração periódica (T); Data de cumprimento da obrigação: 2011-09-22; Período de tributação 2009.12t. Data termo do cumprimento da obrigação: 2010-02-15; os quais se dão como provados. (…)
Normas Infringidas e Punitivas
(…)
Normas Infringidas: Art. 27.º, n.º 1, 41.º CIVA – Falta de entrega de Imposto exigível conjuntamente com a respectiva declaração periódica
Normas Punitivas: Art. 114.º, n.º 2 e 26.º, n.º 4, RGIT – Falta entrega de prestação tributária dentro do prazo
Período de Tributação: 200912 t
Data da infracção: 2010-02-15
Coima fixada: € 13.547,96 (…)
- cfr. fls. 16 e 17 dos autos;

3. Em 18.10.2012, o presente recurso foi apresentado junto do Serviço de Finanças - cfr. fls. 18 dos autos.

Nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

O Chefe do Serviço de Finanças de Loures 1 aplicou à sociedade ora Recorrente uma coima de € 13.547,96, imputando-lhe a prática de uma infracção prevista e punida pelos arts. 27.º, n.º 1, e 41.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), 114.º, n.º 2, e 26.º, n.º 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), por falta de entrega da prestação tributária – IVA do 4.º trimestre de 2009, do montante de € 61.581,67 –, que deveria ter sido entregue até 15 de Fevereiro de 2010 e o foi apenas em 22 de Setembro de 2011.
A Arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa de aplicação da coima, ao abrigo do disposto no art. 80.º do RGIT.
A Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa começou por apreciar a prescrição, tendo concluído pela verificação da mesma. Por isso, julgando procedente o recurso judicial, determinou o arquivamento dos autos e a extinção da responsabilidade da Arguida. Isto, em síntese, com a seguinte fundamentação: o prazo de prescrição é, no caso, de quatro anos, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 33.º do RGIT, conjugado com o n.º 1 do art. 45.º da Lei Geral Tributária (LGT); esse prazo fica sujeito às causas de suspensão e de interrupção previstas no art. 27.º-A e 28.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, bem como ao limite estabelecido pelo n.º 3 deste art. 28.º, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT; assim, sendo que no caso a infracção ocorreu em 15 de Fevereiro de 2010, descontado o prazo máximo de seis meses decorrente da pendência do recurso judicial da decisão de aplicação da coima, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do art. 27.º-A do RGCO, concluiu a Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa que «o prazo de prescrição, acrescido de metade e do tempo de suspensão (correspondente a 6 anos e meio), contados desde a data da infracção, já decorreu, pelo que o procedimento contra-ordenacional se encontra prescrito nos presentes autos desde 15.08.2016».
Inconformado, o Representante da Fazenda Pública recorre dessa decisão. Se bem interpretamos as alegações e respectivas conclusões, a sua discordância restringe-se à aplicação subsidiária do disposto no n.º 3 do art. 28.º do RGCO às contra-ordenações tributárias, não questionando que o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional é, no caso dos autos, de quatro anos, atento o disposto no n.º 2 do art. 33.º do RGIT e no n.º 2 do art. 45.º da LGT. Na verdade, porque é de considerar que a infracção em causa nos autos depende da liquidação do IVA (Sobre a noção de dependência para este efeito, vide o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 30 de Abril de 2019, proferido no processo com o n.º 679/11.8BEALM, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/382640f26e5f07c9802583f3004524fe, onde ficou dito: «deve entender-se que a infracção depende da liquidação sempre que a determinação do tipo de infracção ou da sanção que lhe é aplicável depende da prévia determinação do valor da prestação tributária devida». ), o prazo de prescrição, que nos termos do n.º 1 do art. 33.º do RGIT é de 5 anos, no caso, por força do n.º 2 do mesmo artigo ficou reduzido ao prazo de caducidade, ou seja, ao prazo de 4 anos fixado pelo n.º 1 do art. 45.º do LGT.
Assim, a questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a regra do n.º 3 do art. 28.º do RGCO, que estabelece que a prescrição do procedimento por contra-ordenação «tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade», é, ou não, aplicável às contra-ordenações tributárias, designadamente a título subsidiário, ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT.

2.2.2 DA APLICAÇÃO DO ART. 28.º, N.º 3, DO RGCO ÀS CONTRA-ORDENAÇÕES TRIBUTÁRIAS

A prescrição do procedimento contra-ordenacional é um instituto que se encontra previsto no art. 27.º do RGCO e, relativamente às contra-ordenações tributárias, no art. 33.º do RGIT. Em síntese, significa que o decurso do tempo extingue o procedimento contra-ordenacional; o Estado, por efeito do não exercício do direito de perseguir o agente de uma contra-ordenação em tempo considerado útil, perde esse direito.
Atenta a natureza do instituto e os fins que prossegue (Quanto à natureza jurídica da prescrição, vide MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Vislis Editores, 2011, 6.ª edição, nota 4 ao art. 27.º, pág. 251.), o legislador entendeu estipular causas de suspensão e de interrupção da prescrição do procedimento, as primeiras no art. 27.º-A e as segundas no art. 28.º, ambos do RGCO. No n.º 3 do art. 33.º do RGIT estabelece-se que as contra-ordenações tributárias ficam sujeitas, não só às causas de suspensão e de interrupção previstas na lei geral (leia-se, no RGCO), como também a causas de suspensão próprias. Como é sabido, a suspensão impede que o prazo da prescrição decorra enquanto se mantiver a causa que a determinou, sendo que, para efeitos da contagem da prescrição se soma o tempo decorrido antes da verificação da causa de suspensão ao tempo decorrido depois de essa causa ter cessado [cfr. art. 120.º, n.º 3, do Código Penal (CP)]; por seu turno, a interrupção anula o prazo prescricional decorrido até a verificação da causa que a determinou: o tempo entretanto decorrido fica sem efeito e conta-se novo prazo após cessar a causa de interrupção (art. 121.º, n.º 2, do CP).
O n.º 3 do art. 28.º do RGCO consagra, relativamente às contra-ordenações, uma regra que consta também do art. 121.º, n.º 3 do CP, relativamente aos crimes: «A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade». A teleologia desta norma é evidente: «[a] renovação do prazo de prescrição depois de cada interrupção conduziria a que pudesse eternizar-se a possibilidade de prosseguir processo de contra-ordenações contra o arguido» (Cfr. MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., nota 5 ao art. 28.º, pág. 271. ) e, assim, a que pudesse torpedear-se facilmente a razão que levou a consagrar o instituto da prescrição no regime do ilícito contra-ordenacional.
Sustenta a Recorrente que esta norma não logra aplicação em sede de contra-ordenações tributárias porque não foi transposta para o RGIT norma equivalente ao n.º 3 do art. 28.º do RGCO e porque não existe no RGIT caso omisso, que demande a aplicação subsidiária daquele norma ex vi da alínea b) do seu art. 3.º
Salvo o devido respeito, não é assim.
Desde logo, porque o n.º 3 do art. 33.º do RGIT, ao referir que «[o] prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos na lei geral», remete expressamente para o regime dos referidos arts. 27.º-A e 28.º do RGCO, onde estão previstas, respectivamente, a suspensão e a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação, bem como, no n.º 3 deste último artigo, o limite máximo da prescrição do procedimento. Ora, essa remissão para o regime da interrupção da lei geral não exceptua o n.º 3 do art. 28.º do RGCO – que visa obstar ao efeito que poderia advir de sucessivas causas de interrupção –, o que permite sustentar que a aplicação da regra nele prevista às contra-ordenações tributárias se faz por remissão directa do n.º 3 do art. 33.º do RGIT.
Mas, ainda que assim não fosse, essa regra sempre lograria aplicação subsidiária, nos termos da alínea b) do art. 3.º do RGIT, pois nada permite concluir que o legislador tenha pretendido excluir a sua aplicação às contra-ordenações tributárias.
Nem essa exclusão faria sentido. Na verdade, a prescrição é um instituto transversal a todo o direito sancionatório moderno. Por isso, não é aceitável a possibilidade de se proceder criminalmente e, por maioria de razão, contra-ordenacionalmente, a todo o tempo contra o agente da infracção.
Foi esse princípio da relevância do decurso do tempo sobre o direito do Estado de perseguir o infractor, não só em sede criminal como em sede contra-ordenacional, que levou a que, ainda antes da introdução do n.º 3 no art. 28.º do RGCO – que aconteceu através da Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro (ELI: https://data.dre.pt/eli/lei/109/2001/12/24/p/dre/pt/html.) –, o Supremo Tribunal de Justiça se tenha pronunciado no sentido da aplicação subsidiária da regra n.º 3 do art. 121.º do CP ao regime prescricional do procedimento de contra-ordenação, ex vi do art. 32.º do RGCO (Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2001, publicado no Diário da República, I Série, de 30 de Março de 2001, ELI: https://data.dre.pt/eli/jurisprud/6/2001/03/30/p/dre/pt/html, com sumário do seguinte teor:
«A regra n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal, que estatui a verificação da prescrição do procedimento quando, descontado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição, acrescido de metade, é aplicável, subsidiariamente, nos termos do artigo 32.º do regime geral das contra-ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro) ao regime prescricional do procedimento contra-ordenacional».).
Do mesmo modo, esse princípio sempre justificaria que também em sede de contra-ordenações tributárias se aplicasse subsidiariamente, nos termos da alínea b) do art. 3.º do RGIT, o disposto no n.º 3 do art. 28.º do RGCO (Neste sentido, JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracção Tributárias Anotado, 4.ª edição, 2010, nota 9 ao art. 33.º, pág. 327-328. ).
Note-se que, relativamente aos crimes tributários, o legislador também não transpôs para o RGIT norma idêntica ao n.º 3 do art. 121.º do CP e nunca vimos sustentado na doutrina ou na jurisprudência que o procedimento criminal por crimes tributários não ficasse sujeito à regra aí prevista, por aplicação subsidiária do CP ao abrigo da alínea a) do art. 3.º do RGIT, antes pelo contrário (Cfr. ISABEL MARQUES DA SILVA, Regime Geral das Infracção Tributárias, Almedina, 2010, 3.ª edição, págs. 117-118.).
A Recorrente sustenta que inexiste caso omisso, a justificar o recurso à aplicação supletiva do RGCO, mas, salvo o devido respeito, não diz, nem nós vislumbramos qual a razão justificativa da não aplicação da regra em causa às contra-ordenações tributárias: por que o legislador teria considerado que as contra-ordenações tributárias deveriam ficar excluídas duma regra que é transversal aos crimes e às contra-ordenações? Note-se que os próprios crimes, infracções de natureza mais grave do que as contra-ordenações tributárias, estão sujeitas a regra idêntica, prevista no já referido n.º 3 do art. 121.º do CP.
Assim, e não merecendo censura a contagem do prazo e do respectivo limite máximo efectuada pela Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa, não encontramos motivo para questionar o decidido em 1.ª instância.
Em conclusão, a unidade do sistema jurídico, que constitui o mais importante dos três factores hermenêuticos a que se refere o n.º 1 do art. 9.º do Código Civil e que decorre do princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica, não permite descortinar razão para que o regime da prescrição das contra-ordenações tributárias seja subtraído à regra geral consagrada no n.º 3 do art. 121.º do CP e no n.º 3 do art. 28.º do RGCO, sendo esta última norma legal, se não aplicada directamente, por força do n.º 3 do art. 33.º do RGIT, pelo menos aplicável subsidiariamente ao procedimento contra-ordenacional tributário, ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Sem custas (art. 66.º do RGIT e art. 94.º, n.º 3, do RGCO).

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Lisboa, 17 de Dezembro de 2019. - Francisco Rothes (relator) - Neves Leitão - Nuno Bastos.