Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01400/13.1BELRA 0375/18
Data do Acordão:02/17/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:REFORMA DE ACÓRDÃO
RELAÇÃO DE PREJUDICIALIDADE
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Sumário:Tendo sido decidido, em acção para o reconhecimento de direito em matéria tributária, que o sujeito passivo tinha direito a ser tributado pelo regime de contabilidade organizada em determinado ano e tendo essa decisão transitado em julgado, deve ser negado provimento ao recurso da decisão que julgou procedente a impugnação judicial da liquidação desse ano, suportada no enquadramento do sujeito passivo no regime simplificado da tributação.
Nº Convencional:JSTA000P27218
Nº do Documento:SA22021021701400/13
Data de Entrada:04/18/2018
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A………., com o número de identificação fiscal ……….., e B………., com o número de identificação fiscal ………, ambos com residência na Rua …….., n.º …….., ………, 2400-…….. Azoia, Leiria, tendo sido notificados do acórdão proferido em 1 de julho último, que concedeu provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública – que teve por objecto a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou procedente a impugnação judicial da decisão da Diretora de Serviços do IRS, que, no uso de competências subdelegadas, indeferiu o recurso hierárquico da decisão do Chefe da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Leiria que, no uso de delegação de competências, indeferiu a reclamação graciosa da liquidação de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares e juros compensatórios do ano de 2010, a que se reporta a demonstração da liquidação n.º 2012 00000088768, no valor global de € 26.166,80 – vieram requerer a reforma desse acórdão ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 616.º do Código de Processo Civil, por remissão do seu artigo 666.º, ambos aplicáveis a coberto da alínea e) do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Para o efeito, apresentaram alegações e formularam as seguintes conclusões:

A) - O douto acórdão proferido em 1 de julho corrente julgou procedente o recurso apresentado pela Fazenda Pública, tendo entendido que “o sujeito passivo que, vindo de um período de enquadramento no regime de contabilidade organizada por imposição legal, não opte pelo mesmo regime até ao fim do mês de março do ano seguinte aquele em que se verificaram os pressupostos substantivos de enquadramento no regime simplificado, fica automaticamente integrado neste regime, por ser o regime residual.”

B) - Douto acórdão proferido em 1 de julho corrente que, contudo, não se pronunciou sobre a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, no processo 752/15, já transitada em julgado em 7 de janeiro de 2020, tal como resulta da respetiva consulta pelo SITAF, a qual foi junta ao presente processo por requerimento de 1 de abril último.

C) - Douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, no processo 752/15, na qual foi reconhecido ao recorrido A.………. o direito em ser tributado, de acordo com as regras da contabilidade organizada, em sede de IRS, nos anos de 2010, 2011 e 2012.

D) - Douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, no processo 752/15 que, tendo em conta o sentido da decisão na mesma proferida, constitui um documento relevante em sede do presente recurso.

E) - Com efeito e relativamente ao enquadramento do recorrido A………, em sede de IRS no ano de 2010, foi proferida sentença, já transitada em julgado, segundo a qual, o mesmo tem direito a ser tributado pelo regime de contabilidade organizada.

F) - Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, no processo 752/15, transitada em julgado em 7 de janeiro de 2020, ou seja, antes de ter sido proferido o douto acórdão de 1 de julho corrente.

G) - Ora, dispõe o nº 3 do artigo 8º do Código Civil que os casos análogos devem ser tratados da mesma forma.

H) - Deste modo e resultando que a situação concreta e objetiva do recorrido A………, em sede de IRS de 2010, é substancialmente a mesma quer no processo 1400/13 quer no processo 752/15, embora no processo 1400/13 se discuta a liquidação do IRS de 2010 e no processo 752/15 se discuta o direito ao enquadramento no regime de contabilidade organizada, conclui-se que, no douto acórdão proferido em 1 de julho corrente, teria de ter sido apreciada a douta sentença proferida no processo 752/15, transitada em julgado em 7 de janeiro de 2020.

Pediu fosse admitido o pedido de reforma e fosse apreciado o sentido e alcance da douta sentença proferida no processo 752/15 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, transitada em julgado em 7 de janeiro de 2020.

A Fazenda Pública nada disse.

A Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos e pronunciou-se no sentido da improcedência do pedido de reforma, por carência de base legal.

Por determinação do relator, foi junta aos autos certidão da sentença proferida no processo n.º 752/15.3BELRA, com nota de trânsito em julgado.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir.

2. A reclamação foi deduzida ao abrigo do disposto no artigo 616.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.

Deste dispositivo legal decorre que qualquer das partes pode pedir a reforma da decisão do tribunal quando, por manifesto lapso do juiz, constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

Este dispositivo é aplicável aos acórdãos como deriva dos artigos 666.º e 685.º do mesmo Código.

O documento a que os Reclamantes se referem é a cópia de uma sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, tirada no processo n.º 752/15.3BELRA, apresentada nos autos já em fase de recurso e cujo teor o Supremo Tribunal Administrativo não apreciou e não ponderou no acórdão reclamado.

Os Reclamantes entendem que a apresentação deste documento implicava a prolação de decisão diversa da proferida no acórdão reclamado, porque este documento reproduz a decisão sobre um caso análogo e os casos análogos devem ser tratados da mesma forma – n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil.

Na interpretação que fazemos do preceito, o artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil não tem em vista o tratamento análogo de todos os casos por todos os tribunais, mas pelo mesmo tribunal. No nosso sistema de justiça, as decisões não constituem um «precedente» para os casos análogos e a levar em conta em todas as instâncias. E há meios processuais específicos para uniformizar entendimentos jurisprudenciais, cuja tarefa é confiada ao próprio Supremo Tribunal Administrativo.

Por isso, se a questão fosse apenas de analogia entre os casos tratados nos dois processos e de oposição entre as respectivas decisões, a reclamação estaria condenada ao indeferimento.

Só que não é disso que se trata verdadeiramente. A questão é bem mais profunda e, adiante-se desde já, escapou totalmente à análise do relator, no precedente acórdão.

Porque, no caso, existe conexão entre os objectos processuais.

As causas são conexas, designadamente, quando a resolução da questão jurídica suscitada a título principal numa delas constitua pressuposto necessário da decisão de mérito a proferir na outra.

Nos presentes autos foi impugnada uma liquidação do ano de 2010 com fundamento no facto de o Impugnante marido ter sido indevidamente enquadrado no regime simplificado de tributação em IRS.

No processo n.º 752/15.3BELRA, o mesmo sujeito passivo tinha instaurado uma acção para o reconhecimento do direito a ser enquadrado no regime de contabilidade organizada para os anos de 2010 a 2012.

As causas são conexas porque uma das questões principais no processo n.º 752/15.3BELRA (a de saber se o sujeito passivo devia ter sido enquadrado no regime simplificado, entre outros, no ano de 2010) era a mesma questão de que dependia a resolução da questão principal nos presentes autos (a de saber se a liquidação de IRS do ano de 2010 era ilegal).

E quando o julgamento uma questão fundamental suscitada num processo depende do julgamento de outra questão, suscitada a título principal noutro processo e no quadro a mesma relação jurídica forma-se uma relação de prejudicialidade entre os dois processos.

E quando se forma uma relação de prejudicialidade entre duas causas, a decisão transitada impõe-se como pressuposto material da nova decisão.

Nestes casos, o caso julgado opera positivamente sobre a segunda causa, visto que preclude a possibilidade de discutir o que já foi discutido e decidido na primeira causa. Ficando, assim, assente um elemento da respectiva causa de pedir.

Sobre este efeito positivo do caso julgado (efeito de vinculação ao decidido ao já decidido em causa conexa ou de prevalência da primeira decisão) costuma a doutrina referir-se sob a designação de «autoridade de caso julgado».

Na verdade, as decisões de mérito dos tribunais, uma vez transitadas, têm força obrigatória fora do processo: impedem que seja apreciada a mesma questão noutro processo («efeito negativo do caso julgado») e impõem a observância do decidido em decisões posteriores que com aquela apresentem uma certa conexão («efeito positivo do caso julgado»).

Obsta a um ato processual com o mesmo objecto (efeito processual) e impõe-se sobre o sentido de uma decisão posterior com objecto conexo (efeito material), impedindo que a mesma relação controvertida seja indagada noutro processo.

O que vale por dizer que a decisão de mérito que transita em julgado não é só processualmente indiscutível: é-o também no plano substantivo.

Sendo indiscutível que existe uma relação de prejudicialidade entre a pretensão ao reconhecimento do direito a ser enquadrado num certo regime de determinação do rendimento tributável em IRS, em determinado ano, e a pretensão à anulação da liquidação administrativa com fundamento no facto de ter sido enquadrado noutro regime, é seguro que a decisão dessa questão no processo n.º 752/15.3BELRA, uma vez transitada, obsta ao conhecimento da mesma questão, mesmo por um tribunal superior.

Por isso, os Reclamantes têm razão quando alegam que a junção daquele documento aos autos implicava a prolação de decisão diversa da proferida.

Tendo sido ali reconhecido, por sentença transitada em julgado entre as mesmas partes (do ponto de vista da sua qualificação jurídica), que o ali Autor (aqui Reclamante) tinha direito a ser tributado pelo regime de contabilidade organizada para efeitos de IRS no ano de 2010, «com as demais consequências legais», ficou precludida a possibilidade de o tribunal superior decidir em sentido diverso.

E como a decisão reclamada tem como pressuposto único o facto de o sujeito passivo ter sido automaticamente integrado no regime simplificado, essa decisão não pode deixar de ser reformada.



3. Conclusões


Tendo sido decidido, em acção para o reconhecimento de direito em matéria tributária, que o sujeito passivo tinha direito a ser tributado pelo regime de contabilidade organizada em determinado ano e tendo essa decisão transitado em julgado, deve ser negado provimento ao recurso da decisão que julgou procedente a impugnação judicial da liquidação desse ano, suportada no enquadramento do sujeito passivo no regime simplificado da tributação.



4. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em deferir a reclamação, reformar o acórdão reclamado e negar provimento ao recurso nele apreciado.

Custas do recurso pela Fazenda Pública.

D.n.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2021. – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Gustavo André Simões Lopes Courinha – Pedro Nuno Pinto Vergueiro.