Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0402/19.9BEMDL
Data do Acordão:07/13/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS
CONTRA-ORDENAÇÃO
NULIDADE
DECISÃO
Sumário:I - O tribunal do recurso não tem que conhecer da questão da conformidade das decisões administrativas com as alterações introduzidas pela Lei n.º 50/2015, de 8 de Junho, se a própria decisão recorrida não apreciou o mérito das decisões administrativas e essa questão não constitui fundamento da decisão recorrida nem importa ao julgamento do mérito do recurso;
II - Não são nulas – por violação do disposto na primeira parte da alínea b) e na segunda parte da alínea c), do n.º 1 do artigo 79.º do Regime Geral das Infrações Tributárias – as decisões de aplicação de coimas que não especifiquem, na descrição sumária dos factos, o modo como o não pagamento das taxas de portagem se concretizou e, na fixação da coima, o modo como foram ponderados, entre si, os factores a que a lei manda atender no artigo 27.º do mesmo diploma.
Nº Convencional:JSTA000P28015
Nº do Documento:SA2202107130402/19
Data de Entrada:01/18/2021
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela recorreu da decisão daquele Tribunal que julgou verificada a nulidade insuprível das decisões de aplicação de coimas fixadas nos procedimentos n.ºs 04852019060000033580, 04852019060000033601, 04852019060000033571, 04852019060000034047, 04852019060000034039, 04852019060000033644, 04852019060000033636, 04852019060000033628, 04852019060000033598, 04852019060000033610, e 04852019060000033563, todos do Serviço de Finanças de Bragança, nos valores de € 631,90, € 500,32, € 394,75, € 107,10, € 116,28, € 107,10, € 156,06, € 132,35, € 162,18, € 181,56 e € 110,16, respectivamente, no montante global de € 2.599,76, acrescido das custas de cada um desses processos.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou a respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões: «(…)

1.ª- A natureza, medida e a minúcia da “descrição sumária dos factos” e da “indicação dos elementos que contribuíram para a fixação da coima” prescritas pela disposição do art. 79º/1-b) e c) do RGIT) é algo que só no caso concreto se deve definir, em função da complexidade da matéria decidir, como é a presente situação em apreço, porque não se trata, neste caso, da formulação de um juízo de censura com elevada significação e densificação ético-social.

2.ª- A teleologia da norma em causa constitui-se na definição paramétrica da específica exigência da fundamentação, garantia do exercício dos direitos de defesa do arguido, clareza, objectividade e sindicabilidade geral da decisão referente aos elementos nela contidos necessários ao preenchimento do tipo de ilícito, do tipo de culpa, e aos critérios considerados para a determinação da medida concreta da sanção.

3.ª- Com a Lei 25/2006 foi criado um regime específico abrangente sancionatório a aplicar às transgressões ocorridas em matéria de infra-estruturas rodoviárias, onde seja devido o pagamento de taxas de portagem, sendo que o art. 5.º, nº 2 em causa, tutela o pagamento da taxa de portagem, sendo indiferente o modo como o não pagamento se concretizou, que também não releva quanto à coima aplicável ou à respectiva medida.

4.ª- Assim, afigura-se-nos suficientemente descritivo os factos considerados em cada decisão administrativa, na sua relevância típica objectiva e subjectiva, no detalhe do comportamento censurado, como especificamente as circunstâncias de modo tempo e lugar, em data, em hora, em identificação da via, do veículo utilizado, do local específico de entrada e de saída na utilização que efectuou, bem assim no valor da taxa omitida por tal utilização, e em que se traduziu a sua falta de pagamento, acrescendo, na imputação a tal título, de negligência, hoje entendido na linguagem corrente como omissão do dever cuidado que deveria ter sido adoptado, ou seja, do necessário pagamento em tempo que devia ter sido feito, e não o foi pelo visado.

5.ª- Deste modo, também não se nos afigura que tenha ocorrido situação de qualquer falta de requisito em qualquer uma das decisões administrativas de aplicação de coima, na indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação, nos termos da al. c) do nº 1 do artº 79.º, do RGIT, pois dali se inferem todos os elementos tidos para o efeito na fixação da coima concreta, ou seja, ponderando, a ausência de qualquer acto de ocultação, falta de benefício económico com a prática da conduta, frequente a prática de actos equivalentes, a negligência da sua conduta simples, inexistência de causa que excluísse a omissão de pagamento, condição económica baixa, terem já decorrido mais de 6 meses sobre a data da prática da infracção.

6.ª- E, finalmente, existindo decisões condenatórias, em que duas omissões de pagamento se reportam à mesma data, foram elas unificadas e consideradas como uma única contra-ordenação, mostra-se por isso respeitado escrupulosamente as alterações nos pressupostos e limites legais que decorrem do preceituado no nº 4 e 5 do artigo 7.º da Lei n.º 25/2006, na redacção conferida pelo art. 7º da Lei n.º 50/2015, ou seja, em termos de unificação legal das infracções permitida, respeitantes ao mesmo agente, no mesmo dia, através da utilização do mesmo veículo e que ocorram na mesma infra-estrutura rodoviária, entendendo-se como tal as verificadas em estrada cuja exploração está concessionada à mesma entidade.

7.ª- Numa conquista civilizacional aplaudida do direito ao contraditório e das mais amplas garantias de defesa, tal não pode servir para ofuscar uma cultura que se impõe igualmente de exigência e de rigor, de assunção das consequências dos factos praticados, de cidadania e de justiça, na distribuição por todos dos custos decorrentes da utilização das auto-estradas, censurando-se pretensões injustificadas de eximição ao seu pagamento em tempo devido, em prejuízo para os demais cidadãos cumpridores.».

Pediu fosse revogada a douta sentença proferida e fossem declaradas válidas as coimas aplicadas em sede de condenação administrativa, com as custas a cargo da arguida».

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (documento n.º 002471426).

Não foram apresentadas contra-alegações.

Recebidos os autos neste tribunal, foram os mesmos com vista ao Ministério Público.

A Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso, com a consequente anulação da sentença recorrida e devolução dos autos à 1ª instância para que seja proferida nova decisão com a base factual necessária.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir.




2. Na decisão recorrida foi apurado um único facto, com o seguinte teor:

«1. Dão-se aqui por reproduzidas as decisões da aplicação de coima impugnadas, datadas de 25/7/2019, e que consta de fls. 29 e ss, 42 e ss, 56 e ss, 70 e ss, 82 e ss, 94 e ss, 107 e ss, 119 e ss, 132 e ss, 148 e ss e 160 e ss, com o seguinte destaque para a de fls. 56 (com aspectos que, na essência e de relevante para a decisão, são comuns a todas elas):

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(…)
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(…)

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(…)”

3. Vem o presente recurso interposto da douta decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que, julgando verificada a nulidade insuprível das decisões administrativas recorridas por falta de descrição sumária dos factos e de indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação, anulou essas decisões.

Com o assim decidido não se conforma o Ministério Público, por entender que as decisões administrativas não padecem dos vícios que lhes são imputados.

A questão a apreciar e a decidir é, por isso a de saber se as decisões que aplicaram as coimas contêm a descrição sumária dos factos e a indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação – artigo 79.º, n.º 1, alíneas b) e c) do Regime Geral das Infrações Tributárias, em conjugação com a alínea d) do n.º 1 do seu artigo 63.º.

Quanto à «descrição sumária dos factos», o tribunal de primeira instância entendeu – se bem interpretamos – que não foram descritos quaisquer factos, porque o órgão decisor se limitou a remeter para o teor descritivo da norma («falta de pagamento da taxa de portagem»), sem descrever a factualidade que se lhe subsume, isto é, sem dizer, em concreto, que ocorreu transposição de uma barreira de portagem e descrever as circunstâncias em que tal sucedeu.

Quanto à «indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação», o tribunal de primeira instância terá entendido que o órgão decisor não se pode limitar a enunciar os elementos determinativos da coima através do preenchimento dos espaços de formulários já predefinidos, devendo também sopesar explicitamente esses elementos.

Ora, o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou sobre estas questões.

Quanto à «descrição sumária dos factos», firmou-se jurisprudência no sentido de que os factos que importa descrever sumariamente na decisão não são senão os factos essenciais que integram o tipo de ilícito em causa. E no sentido de que a norma em apreço – o artigo 5.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho – tutela o pagamento da taxa de portagem, sendo indiferente o modo como o não pagamento se concretizou. Que, por isso, também não constitui elemento essencial do tipo.

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 17/10/2018, tirado no processo n.º 01004/17.0BEPRT, «(…) bastando-se a lei como uma descrição sumária dos factos, afigura-se-nos que esta exigência se há-de considerar satisfeita quando, como no caso sub judice, o elemento essencial do tipo – a falta de pagamento da taxa de portagem pela circulação de veículo automóvel em infra-estruturas rodoviárias, designadamente auto-estradas e pontes – está descrito na decisão administrativa; e está, não apenas por referência à norma que prevê a contra-ordenação, o que não seria suficiente, mas mediante a descrição detalhada do comportamento: falta de pagamento de taxas de portagem referente ao veículo identificado pela respectiva matrícula e com referência aos trajectos expressamente indicados, com indicação dos locais, datas e horas a que se verificaram as infracções e aos montantes das respectivas taxas.».

E estas considerações são integralmente transponíveis para o caso dos autos. Razão porque, também aqui, importará concluir que as decisões de aplicação de coimas não padecem dessa nulidade.

Quanto à não indicação da ponderação dos elementos no artigo 27.º do Regime Geral das Infrações Tributárias na fixação da coima, firmou-se jurisprudência no sentido de que «O requisito da decisão administrativa de aplicação de coima “indicação dos elementos que contribuíram para a […] fixação” da coima [cfr. art. 79.º, n.º 1, alínea c), do RGIT] deve ter-se por cumprido se, embora de forma sintética e padronizada, refere os elementos que contribuíram para a fixação da coima (ponto III do sumário do mesmo acórdão)».

Assim, referindo-se na decisão de aplicação de coima que foram ponderados «a inexistência de atos de ocultação e de benefício económico para o agente, o carácter frequente da prática» (ou acidental),«o ter sido cometida por negligência simples, a situação económica e financeira baixa e terem decorrido mais de seis meses desde a prática da infracção», deve concluir-se que «dela constam os requisitos mínimos que a lei manda observar quanto ao dever de fundamentação da decisão».

Também estas considerações são integralmente transponíveis para o caso dos autos. Razão porque, também aqui, importará concluir que as decisões de aplicação de coimas não padecem dessa nulidade.

4. Na parte final da fundamentação da decisão recorrida, o tribunal de primeira instância refere que temos que ter em conta o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4/11/2015, proc. 01042/15, que transcreve abundantemente. Para concluir adiante que as decisões administrativas também não espelham a aplicação do regime instituído pela Lei n.º 51/2015, de 8 de junho.

E o Recorrente também não concorda com esta parte. Por entender que foram respeitadas escrupulosamente as alterações nos pressupostos e limites legais que decorrem do novo regime.

Deve observar-se antes de mais que, apesar de concluir que as decisões recorridas não se conformam com a Lei n.º 50/2015, de 8 de Junho, o M.mº Juiz a quo não extraiu quaisquer consequências dessa conclusão, visto que não foi com tal fundamento que decidiu. Manifestamente, por entender que a questão de saber se as decisões de aplicação das coimas padecem de falta de requisitos formais e devem ser anuladas está a montante da questão e saber se essas decisões violam a lei material e merecem ser revogadas.

Pelo que interpretamos este segmento da decisão como um obter dictum e não como um fundamento da decisão. Uma forma de dizer que, se não fosse de decidir o que se decidiu, se decidiria pela revogação das decisões com estoutro fundamento.

Ora, o que não integra os fundamentos da decisão recorrida não releva para a legalidade dessa decisão nem importa, por isso, apreciar no recurso dessa decisão.

Fica a questão e saber se o tribunal de recurso deveria, oficiosamente, apreciar a conformidade das decisões de aplicação das coimas com os comandos daquela Lei.

A esta questão respondemos negativamente. Porque isso equivaleria, no caso, não a apreciar as questões que o tribunal recorrido não apreciou por julgar prejudicado o seu conhecimento, mas a julgar o mérito das decisões administrativas pela primeira vez. E essa não é a função do tribunal de recurso.

De salientar que, no acórdão deste Supremo Tribunal de 4 de Novembro de 2015, tirado no processo n.º 1042/15, se conheceu oficiosamente da conformidade das decisões administrativas de aplicação das coimas à luz da referida Lei porque isso importava para o julgamento da questão de fundo naquele processo. Porque estava em causa saber se enfermava de erro de julgamento a decisão que anulou a decisão administrativa para que fosse organizado um único processo. E porque o julgamento dessa questão contendia com a nova redação do artigo 7.º daquela Lei e, em particular, com o aditamento dos seus números 4 e 5.

Ora, essa questão não se coloca nos autos. Não está aqui em causa nenhuma decisão equivalente à que foi ali apreciada e a questão de saber se as decisões administrativas se conformam com aquele comando legal não relevam para a apreciação da validade formal das decisões de aplicação das coimas. Saber quando é que estamos perante uma única infracção ou uma pluralidade delas, não releva do ponto de vista da forma, mas da substância. A tudo acrescendo que as circunstâncias dos autos nem sequer têm a ver com as do referido aresto, visto que, ao contrário do que ali sucedia, todas as decisões administrativas foram tomadas em momento muito posterior ao da entrada em vigor da nova Lei.

Razão porque decidimos não tomar conhecimento desta parte do recurso.

5. Conclusão

I. O tribunal do recurso não tem que conhecer da questão da conformidade das decisões administrativas com as alterações introduzidas pela Lei n.º 50/2015, de 8 de Junho, se a própria decisão recorrida não apreciou o mérito das decisões administrativas e essa questão não constitui fundamento da decisão recorrida nem importa ao julgamento do mérito do recurso;

II. Não são nulas – por violação do disposto na primeira parte da alínea b) e na segunda parte da alínea c), do n.º 1 do artigo 79.º do Regime Geral das Infrações Tributárias – as decisões de aplicação de coimas que não especifiquem, na descrição sumária dos factos, o modo como o não pagamento das taxas de portagem se concretizou e, na fixação da coima, o modo como foram ponderados, entre si, os factores a que a lei manda atender no artigo 27.º do mesmo diploma.




6. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em:

a) Não tomar conhecimento do recurso na parte referente às questões suscitadas nas conclusões 6.ª a 7.ª do recurso e a que alude o ponto 4 supra;

b) Conceder, no mais, provimento ao recurso jurisdicional, revogar a decisão recorrida e ordenar que os autos regressem ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, para ai prosseguirem com o conhecimento do recurso judicial, se a tal nada mais obstar.

Sem custas.

Lisboa, 13 de julho de 2021

Assinado digitalmente pelo Relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento.

Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Gustavo André Simões Lopes Courinha – Anabela Ferreira Alves e Russo.