Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01958/20.9BELSB
Data do Acordão:10/31/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS
LEGITIMIDADE ACTIVA
Sumário:Os partidos políticos não gozam de legitimidade activa para propor uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias em que se requer a revogação de norma que limita direitos e liberdades pessoais de que são titulares as pessoas em geral.
Nº Convencional:JSTA000P26663
Nº do Documento:SA12020103101958/20
Data de Entrada:10/29/2020
Recorrente:PARTIDO CHEGA
Recorrido 1:PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. Partido CHEGA, devidamente identificado nos autos e neles representado pelo seu Presidente A…………….., vem intentar, ao abrigo do artigo 109.º e ss. do CPTA, a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, sendo nela demandados a Presidência de Conselho de Ministros (PCM) e o Estado português.

Com a presente intimação, o requerente pretende que a mesma “seja considerada procedente, por provada e, em consequência” que a entidade Requerida seja “intimada a revogar as medidas adotadas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020, de 26 de Outubro, com efeito imediato, e que sejam tomadas todas as medidas necessárias para obstar à sua produção de efeitos”.

O A. identifica a limitação de vários direitos fundamentais cujo exercício em tempo útil se pretende proteger. Além do mais óbvio direito de deslocação ou circulação (art. 44.º da Constituição da República Portuguesa – CRP), são ainda dados como afectados pela alegada restrição da medida governamental a liberdade de culto (art. 41.º da CRP), o alegado direito à terceira idade (art. 72.º da CRP), o direito à família (art. 36.º, n.º 6), direito à integridade moral e física (art. 25.º), todos da CRP. Além destes direitos, alega-se que não foram respeitados o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP), o da universalidade (art. 12.º) e o da igualdade (art. 13.º), todos da CRP – cfr. alegações 43.ª e 44.ª

Para fundar a inconstitucionalidade da restrição em causa, o A. invoca fundamentalmente o seguinte:

i) violação dos artigos 18.º e 165.º da CRP, que atribuem a competência para restringir direitos, liberdades e garantias exclusivamente a lei da Assembleia da República (AR) e o decreto-lei autorizado do Governo;

ii) falta de fundamentação da medida restritiva no artigo 19.º da CRP (“Esta limitação ao direito constitucionalmente consagrado à livre circulação, não foi efetuado ao abrigo do art.º 19.º da Constituição da República” (alegação 41.ª);

iii) desproporcionalidade da medida restritiva, pois, desde logo, não se mostra adequada à prossecução do seu fim (evitar a propagação do coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19) dado que, por exemplo, “não há qualquer evidência, técnica e/ou científica, de que a deslocação dos cidadãos para visitar os cemitérios são deslocações que levam, necessariamente à propagação desta ou de outra qualquer outra doença” (alegação 15.ª) e porque a medida é aplicada igualmente a todos os concelhos ainda que a situação epidemiológica não seja idêntica em todos eles, ou seja, porque “o Estado trata de forma igual o que não tem comparação possível, no caso, tratar as zonas do país menos perigosas como se estas tivessem o mesmo grau de perigosidade que outras” (alegação 32.ª).

iv) violação do princípio da igualdade, em virtude de o Governo ter utilizado uma dualidade de critérios por comparação do que tem sido decidido em relação a outras situações;

v) apenas o estado de emergência, e não o estado de calamidade, pode comportar medidas restritivas que não sejam adoptadas por lei ou decreto-lei autorizado.

Na alegação 52.ª são enunciados os motivos que justificam a sua procedência:

1) As partes têm legitimidade, nos termos e para os efeitos da alínea b), do n.º 1 do art.º 10º, art.º 14º, todos da Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de Agosto e art.ºs 8-A e 9º do CPTA;
2) A atuação supra descrita por parte da entidade Requerida, sem ter sido decretado Estado de Sítio ou Estado de Emergência, é manifestamente inconstitucional;
3) Ao restringir a liberdade de circulação sem quaisquer critérios e sem comprovada adequação da medida ao fim a que se destina, viola vários direitos e princípios constitucionais;
4) De modo que urge intimar a entidade Requerida a fazer cessar imediatamente a medida aprovada pelo Conselho de Ministros na Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020, de 16 de Outubro;
5) Pois só assim será garantido o exercício em tempo útil do direito fundamental de liberdade de circulação, plasmado no art.º 44º da Constituição da República Portuguesa e respeitados o direito à dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade e proporcionalidade, nas suas três vertentes e, principalmente, a liberdade de culto prevista no art.º 41º da Constituição da República Portuguesa”.

2. A presente intimação foi apresentada no TAC de Lisboa o qual, por despacho de fls. 24 a 26 (paginação SITAF) se julgou absolutamente incompetente em razão da hierarquia para conhecer do pedido determinando, em consequência, a remessa dos autos para este STA.

3. Já neste STA, foi proferido despacho pela Relatora nos termos do artigo 109.º da CPTA, tendo-se decidido:

i) Absolver o Estado da instância, dado tratar-se parte ilegítima nos de acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 1, do CPTA;

ii) Aceitar a presente intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias e mandar citar a entidade demandada PCM/Conselho de Ministros (CM);

iii) No uso da faculdade que lhe é conferida pela al. a) do n.º 3 do artigo 110.º do CPTA, reduzir o prazo para a apresentação da resposta, tendo sido fixado um prazo de 24 horas.

- (cfr. fls. 35 - paginação SITAF)

4. Devidamente citada, a entidade demandada PCM/CM, veio a mesma apresentar resposta/contestação (a fls. 41 a 79 dos autos – paginação SITAF), na qual se defendeu por excepção e por impugnação. Relativamente à matéria exceptiva foram deduzidas três excepções: i) ilegitimidade activa do requerente da intimação, Partido CHEGA; ii) impossibilidade do pedido; e iii) impropriedade do meio processual. No que concerne à defesa por impugnação, a entidade demandada pugna pela sua absolvição da instância em virtude da procedência das excepções por si deduzidas.

5. Seguidamente, foi o A. notificado, em nome do princípio do contraditório (art. 3.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA) para responder, querendo, à matéria exceptiva, num prazo de 24h, tendo o mesmo prescindido desta sua faculdade.

6. Sem vistos, de acordo com o artigo 36.º, n.º 1, al. e), e n.º 2, do CPTA.

Cabe apreciar e decidir.

II – Fundamentação

7. A matéria de facto pertinente para a resolução da presente intimação é a que consta do Relatório.

8. Por motivos lógicos, começaremos a nossa apreciação pelo conhecimento das excepções deduzidas pela entidade demandada. Vejamos se lhe assiste razão.

A entidade demandada invoca, em primeiro lugar, a excepção dilatória de ilegitimidade activa do partido CHEGA à luz do artigo 9.º do CPTA. Sustenta esta excepção em vários argumentos:

1) Por [o A.] não ser titular dos direitos fundamentais invocados, argumento que pode ser sintetizado nas alegações 4.ª, 7.ª, 9.ª e 11.ª:

Na medida simples em que, estando em causa um processo especialmente vocacionado para a tutela de direitos fundamentais, a sua instauração depende necessariamente da alegação de o autor da intimação ser titular do direito fundamental cuja afetação esteja em causa.

(…)

Ora, na sua qualidade de partido político e, por conseguinte, de pessoa coletiva associativa de direito privado, fácil é concluir não ser - nem ontologicamente poder ser ― o ora requerente titular de nenhum dos direitos fundamentais cuja afetação constitui a base da presente intimação.

(…)

É que, de acordo com o artigo 12.º/2 da nossa Lei Fundamental, “as pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”.

(…)

Em suma: enquanto pessoa coletiva que é, o requerente não é, nem pode ontologicamente ser, titular de nenhum dos direitos fundamentais que vêm nestes autos alegados como base da sua pretensão intimatória”.

2) Por não poder agir ao abrigo do direito de ação popular, argumento que pode ser sintetizado nas alegações 13.ª, 14.ª, 15.ª, 16.ª, 17.ª, 19.ª, 20.ª e 21.ª:

Dir-se-ia, no entanto que, na qualidade de partido político, o requerente seria detentor de um qualquer outro título de legitimidade para a propositura desta intimação.

(…)

Poder-se-ia pensar, com efeito, estar a agir nestes autos o requerente na qualidade de autor popular, na defesa de interesses difusos da generalidade dos cidadãos portugueses.

(…)

Muito simplesmente, porém:
(i) De um lado, e em função da base subjetiva e individual que a suporta, a intimação para proteção de direitos liberdades e garantias não está sequer ao alcance de qualquer autor popular;
(ii) De outro, e em qualquer caso, nunca os direitos fundamentais alegados nos presentes autos podem ser de modo algum configurados como interesses difusos.

(…)

Com efeito, e para apelar uma vez mais à nossa mais autorizada doutrina, “estando em causa a titularidade de direitos, liberdades e garantias, enquanto posições jurídicas subjetivas, parece encontrar-se afastada a possibilidade de a intimação poder ser deduzida no âmbito do direito de ação popular” (M. AROSO DE ALMEIDA/C. A. FERNANDES CADILHA, Comentário, p. 894).

(…)

Ou seja: “esta é uma ação de caráter exclusivamente subjetivista”, sendo que “o âmbito da intimação é constituído por direitos estruturalmente individuais, de fruição particular, que não se confundem com direitos de fruição coletiva de bens inapropriáveis. Não há, pois, legitimidade popular para intentar pedidos de intimação(C. AMADO GOMES, ‘Pretexto’, pp. 410-411).

(…)

Mesmo que por hipótese se admitisse que uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pudesse ser requerida ao abrigo de legitimidade popular, inquestionável é então que na sua base não poderiam estar nunca bens de dimensão estritamente individual.

(…)

Ora, no caso dos autos, são apenas bens desse tipo os que estão na base da pretensão do requerente: direitos fundamentais de titularidade e exercício necessariamente individual, como já se viu (deslocação, culto, família, terceira idade, integridade moral e física, dignidade da pessoa humana).

(…)

Logo, e também por esta via, não pode o requerente ser considerado parte legítima ao abrigo de um suposto exercício do direito de ação popular.

3) Por não ter de direito de intervir judicialmente na defesa dos cidadãos, argumento que pode ser sintetizado nas alegações 25.ª, 26.ª, 27.ª, 29.ª, 30.ª, 34.ª, 35.ª, 36.ª:

Quer dizer: o requerente parece querer fundar a sua legitimidade ativa em disposições da Lei dos Partidos Políticos.

(…)

Mas é justamente a leitura atenta dessa Lei que confirma que, no ordenamento jurídico português, não assiste aos partidos políticos qualquer título de legitimidade para propor ações em juízo do tipo daquelas que constituem o objeto deste processo.

(…)

Pois que, de entre os fins específicos que a lei atribui a esta categoria de pessoas coletivas, não se conta, manifestamente, o de agir em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos através dos tribunais.

(…)

Sendo, portanto, organizações que atuam no contexto próprio da política e não da justiça.

(…)

O que é cabalmente demonstrado pelo facto de, no elenco de «direitos dos partidos políticos» constante do seu artigo 10.º (disposição invocada pelo requerente), a referida Lei não lhes atribuir qualquer direito de intervenção judicial em defesa dos cidadãos.

(…)

Só que, à luz da lei portuguesa, essa é uma faculdade que manifestamente não assiste aos partidos políticos ao contrário do que sucede, por exemplo, e no seu específico raio de atuação, com as associações sindicais (cfr., v.g., o artigo 443.º/1, d) do Código do Trabalho) ou com as organizações não governamentais de defesa do ambiente (cfr. o artigo 10.º da Lei n.º 35/98, de 18 de julho).

(…)

Já quanto aos partidos políticos, estes apenas podem intervir em juízo em defesa de interesses institucionais próprios, como sucede no domínio do contencioso eleitoral e das candidaturas (cfr., v.g., os artigos 33.º e 117.º/2 da Lei Eleitoral da Assembleia da República).

(…)

Razão pela qual uma vez mais fica confirmada a patente ilegitimidade processual ativa do requerente, a qual deve determinar sem mais a absolvição do requerido da instância”.

O A. baseia a sua legitimidade no artigo 10.º, n.º 1, al. b), e artigo 14.º da LO n.º 2/2003, de 22.08, e, ainda, artigos 8.º-A e 9.º do CPTA. Limitamo-nos, aqui, aos preceitos que constam da Lei dos Partidos Políticos.

Na alínea b), do n.º 1 do artigo 10.º dispõe-se do seguinte modo: “A acompanhar, fiscalizar e criticar a atividade dos órgãos do Estado, das Regiões Autónomas, das autarquias locais e das organizações internacionais de que Portugal seja parte”.

E no artigo 14.º dispõe-se do seguinte modo: “O reconhecimento, com atribuição da personalidade jurídica, e o início das atividades dos partidos políticos dependem de inscrição no registo existente no Tribunal Constitucional”.

Vejamos.

As normas do CPTA que regulam a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias não identificam de forma expressa quem tem legitimidade activa para a propor. Cabe, deste modo, convocar o princípio geral em matéria de legitimidade activa que consta do n.º 1 do artigo 9.º do CPTA. Segundo aí se prescreve, “Sem prejuízo do disposto no número seguinte e no capítulo II do título II, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”. Já o n.º 2 deste preceito dispõe no sentido de que “Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais”. Conjugando estas duas normas, resulta, por um lado, que esta ideia de ser parte da relação controvertida está intimamente associada à ideia da existência de um interesse pessoal; por outro lado, que em certas circunstâncias se prescinde desta ideia do interesse pessoal. Ora, além de uma situação, como aquela que é objecto dos presentes autos, em que um partido apresenta uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias como o direito de deslocação ou circulação, não fazer parte do elenco do n.º 2, o modo como está prevista a intimação e o seu específico propósito levam a crer que a legitimidade para a propor deve caber aos titulares dos direitos cuja tutela urgente se pretende obter com o recurso a esta acção. É certo que o facto de os direitos, liberdades e garantias serem posições jurídicas subjectivas não significa necessariamente que as pretensões relacionadas com a sua tutela apenas possam ser formuladas pelos respectivos titulares. Como fazem notar Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, este STA, no seu acórdão de 16.12.2010, Proc. n.º 788/10, já “admitiu a legitimidade ativa de uma associação sindical num caso em que estava em causa a propositura de uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias para a defesa do interesse na legalidade de um concurso de professores” (Mário Aroso de Almeida/Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2018, p. 893, nota 1803. Também Vieira de Andrade aceita “que se possa admitir a acção popular (que, como sabemos, também inclui a acção do MP), por exemplo, quando estejam em causa dimensões subjectivas dos direitos fundamentais em matéria de ambiente, desde que tal respeite a disponibilidade legítima dos direitos pelos seus titulares” (cfr. J.C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Coimbra, 2016, p. 256). Como se pode constatar, porém, esta ligeira abertura à possibilidade de se admitir a legitimidade activa a entidades que não sejam os titulares dos direitos cuja tutela urgente se requer cinge-se a situações que ainda cabem nas previsões do n.º 2 do artigo 9.º do CPTA, o que não é manifestamente o que sucede no caso dos autos. Retornando àqueles primeiros autores citados, a certa altura os mesmos afirmam: “Estando em causa a titularidade de direitos, liberdades e garantias, enquanto posições jurídicas subjetivas, parece encontrar-se afastada a possibilidade de a intimação poder ser deduzida no âmbito do direito de ação popular. Embora a ação popular se encontre igualmente prevista no n.º 2 do artigo 9.º como um princípio geral de legitimidade ativa (…), o certo é que se trata aí de uma forma de legitimidade ativa que é exercitada independentemente do interesse pessoal ou de uma relação específica com os bens ou interesses difusos que estejam em causa, pelo que não tem aplicação quando se pretenda utilizar uma via judicial para a defesa de situações individualizadas”. Em face de tudo isto, não se vê como possam os artigos 10.º, n.º 1, al. b), preceito genérico e vago, e o artigo 14.º da Lei dos Partidos Políticos possam contrariar a ideia de que o A. desta acção não tem legitimidade activa. Além do mais, sempre poderia causar alguma perplexidade admitir que um partido político tenha legitimidade para atacar com motivo em inconstitucionalidade uma determinada norma em sede de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias quando não a tem em sede de controlo da constitucionalidade das normas.

8. Em face de todo o exposto, e relembrando que apenas foi tratada a questão da falta de legitimidade activa do A., Partido CHEGA, para requerer a presente intimação, deve ser indeferida a sua pretensão, justamente, por lhe faltar essa legitimidade.
Ficamos, deste modo, dispensados, à luz do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, aqui aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA, de apreciar o terceiro argumento apresentado pela entidade demandada para sustentar a ilegitimidade activa do A. e, bem assim, de apreciar e decidir as restantes questões colocadas pelas partes.


III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em julgar procedente a excepção de ilegitimidade activa do requerente da presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias e, em consequência, em absolver da instância a entidade demandada nos termos do artigo 278.º, n.º 1, al. d), do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA.

Custas a cargo do A., sem prejuízo de poder beneficiar de isenção de custas nos termos do artigo 4.º do RCP.

Lisboa, 31.10.2020

A presente decisão foi adoptada por unanimidade pelas Senhoras Conselheiras Maria Benedita Urbano (Relatora), Suzana Tavares da Silva e Cristina Gallego dos Santos, e vai assinada apenas pela Relatora, com o assentimento (voto de conformidade) das Senhoras Conselheiras adjuntas, de harmonia com o disposto no artigo 15-A (Recolha de assinaturas dos juízes participantes em tribunal colectivo) do DL n.º 10-A/2020, de 13.03 – preceito introduzido pelo DL n.º 20/2020, de 01.05.

Em anexo declaração de voto da Senhora Conselheira Suzana Tavares da Silva

Declaração de voto

Voto a decisão, mas com uma fundamentação diferente. Entendo que, não tendo havido indeferimento liminar, a decisão deveria ser a absolvição do Requerido da instância por manifesta falta de pressupostos processuais que são de conhecimento oficioso ex vi do artigo 89.º do CPTA e 578.º do CPC. Vejamos.

O partido político Chega, pessoa colectiva n.º 515554420, veio interpor neste Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 109.º do CPTA uma intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias em que pede a “intimação da requerida Presidência do Conselho de Ministros” a revogar as medidas adoptadas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 89.º-A/2020, de 26 de Outubro, com fundamento na respectiva inconstitucionalidade orgânico-formal e material por violação desproporcionada do direito de liberdade de circulação, consagrado no artigo 44.º da CRP, sem a devida forma e habilitação legal.

O pedido, tal como formulado – “pedido de intimação do Governo para que revogue um acto normativo” com fundamento em inconstitucionalidade –, consubstancia um trasvestido pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas regulamentares do Governo com força obrigatória geral. Pedido que não pode sequer reconduzir-se a uma desaplicação em concreto. O Requerente, um partido político (pessoa colectiva), não reclama tutela do direito-liberdade de circulação por violação ou ameaça de violação daquele direito em qualquer dimensão que possa considerar-se expressão da sua actividade como pessoa colectiva ou sequer em defesa dos seus representantes que não sejam titulares de cargos políticos, antes reclama tutela para todos os cidadãos, o que determina que o seu pedido caia fora do âmbito da jurisdição deste tribunal, por, como dissemos, consubstanciar um pedido de nulidade das normas administrativas com fundamento em inconstitucionalidade com efeitos gerais.

Não obstante as dúvidas que se têm colocado relativamente à possibilidade de utilizar este meio processual de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias como via judicial para a obtenção de tutela judicial pelo Requerente que alega lesão ou ameaça de lesão daqueles direitos imediatamente resultantes de uma norma regulamentar (norma imediatamente operativa), e ao resultado que o deferimento de uma tal pretensão pode conduzir em decorrência da desaplicação da norma com efeitos limitados ao caso, continuamos a considerar (como no acórdão de 10 de Setembro de 2020, proc. 88/20.8BALSB) que esta é a única via pela qual é possível assegurar no ordenamento jurídico interno a tutela jurisdicional efectiva daquelas pretensões e o cumprimento do disposto no artigo 20.º, n.º 5 da CRP. E pode sempre dizer-se que uma tal decisão, ainda que com efeitos circunscritos ao caso, ou seja, da qual resulta, no estrito plano jurídico, a desaplicação da norma com efeitos circunscritos ao requerente e a manutenção em vigor da mesma na ordem jurídica, não pode (poder-dever), no quadro de um salutar funcionamento do princípio do Estado de Direito, deixar indiferente o autor da norma, nem os restantes destinatários da mesma, que podem, a partir dessa decisão, e dependendo do seu conteúdo, apelar ao direito de resistência (artigo 21.º da CRP).

O que é manifestamente improcedente por incompetência absoluta deste Supremo Tribunal Administrativo é um pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas (ainda que imediatamente operativas) com força obrigatória geral, desaplicação universal de normas com esse fundamento ou qualquer variante do mesmo, como era o caso aqui.

Também por essa razão estaria manifestamente arredada a acção popular como forma de legitimidade admissível de um pedido de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias que consubstanciasse a desaplicação com efeitos gerais de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.

Suzana Tavares da Silva