Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0919/10.0BELRS
Data do Acordão:12/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26926
Nº do Documento:SA2202012160919/10
Data de Entrada:11/13/2020
Recorrente:A............... E OUTROS
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


A……….. e B……….., Impugnantes nos autos à margem referenciados, notificados do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul (adiante “TCA Sul”), com data de 25.06.2020, no âmbito do processo à margem referenciado, que concedeu provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública da douta sentença do Tribunal Tributário de Lisboa (adiante “TT de Lisboa”), revogando-a, e não se conformando com tal decisão, vêm, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (adiante, “CPPT”), interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo (adiante “STA”), com fundamento em violação de lei substantiva, o qual deve ser admitido, por ser legal e tempestivo, em conformidade com o disposto no n.º 1, do artigo 638.º do Código de Processo Civil aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT.

Alegaram, tendo concluído:
A. O presente recurso de revista tem por objeto o Acórdão proferido pelo TCA Sul, notificado aos Recorrentes em 29.06.2020, que concedeu provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública da douta sentença proferida pelo TT de Lisboa, o qual julgou procedente a impugnação deduzida pelos Recorrentes contra a liquidação de IRS, referente ao ano de 2008 e anulou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, resultado da convolação da declaração de substituição, revogou esta douta sentença e julgou improcedente a impugnação deduzida;
B. Os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista, estabelecidos no artigo 285.º, do CPPT, encontram-se reunidos in casu, pelo que deve o mesmo ser admitido;
C. Em causa estão questões passíveis de se repetir num número indeterminado de casos futuros, o que torna a admissão da revista claramente necessária para a melhor aplicação do direito, nos termos do n.º 1, do artigo 285.º, do CPPT;
D. Por outro lado, as questões que os Recorrentes pretendem ver apreciadas em sede de revista revestem uma relevância social que lhes imprime a importância fundamental a que se reporta o n.º 1, do artigo 285.º, do CPPT, e que se assume como um dos pressupostos que justifica a admissibilidade do recurso de revista;
E. O presente recurso de revista afigura-se tempestivo, por ter sido interposto dentro do prazo de 30 dias previsto no n.º 1, do artigo 638.º do CPC aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT;
F. As questões que os Recorrentes colocam a este Supremo Tribunal são as seguintes:
1) Afigura-se admissível, à luz do ordenamento jurídico português e da unidade do sistema jurídico, (i) por um lado, exigir-se, para que se reconheçam efeitos fiscais a uma união de facto, a verificação de requisitos que não são exigidos pela lei civil, que é a que regula a caraterização e os efeitos das uniões de facto e, (ii) por outro, desatender jurisprudência consolidada em revista decidida na jurisdição civil que rejeitou a necessidade de determinado requisito para reconhecer quaisquer efeitos
jurídicos – incluindo naturalmente os fiscais – a uma união de facto?; e
2) Afigura-se admissível, à luz do ordenamento jurídico português, que a legalidade do ato tributário seja decidida com base em causa impeditiva da aplicação de determinado regime jurídico (no caso, dos unidos de facto em sede de IRS, nos termos do artigo 14.º do CIRS) distinta daquela que a AT invocou como base para a rejeição da aplicação desse mesmo regime jurídico e portanto como base do ato tributário contestado, sem que com isso o Tribunal se esteja a substituir à AT na fundamentação do ato tributário?
G. A primeira questão suscita-se porquanto, à luz do regime civil da união de facto – Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (para a qual remete a lei fiscal – artigo 14.º, n.º 1 do CIRS, em vigor à data dos factos) –, para que a união de facto possa produzir os seus efeitos jurídicos, é apenas necessário que os seus membros vivam em condições análogas à dos cônjuges há mais de dois anos;
H. Não decorre daquele regime a necessidade, para que a união de facto produza efeitos jurídicos, de o casamento anterior de um dos membros da união estar dissolvido há pelo menos dois anos contados da data em que se pretende a referida produção de efeitos;
I. Contudo, é com base na alegada exigência e não verificação deste requisito que decidiu o Tribunal a quo, com base em entendimento que sendo praeter legem e contrariando jurisprudência da jurisdição civil, sobre a mesma questão (i.e., da irrelevância do requisito temporal referente à dissolução de casamento anterior de um dos membros da união de facto para a produção de efeitos dessa união), resultando de revista decidida pelo STJ, pugna pela intervenção deste STA em sede de revista;
J. Por outro lado, o Acórdão recorrido decide com base em facto impeditivo da aplicação do regime da união de facto – a não dissolução de casamento anterior de um dos membros da união há pelo menos dois anos contados da data em que se pretende a produção de efeitos jurídicos –, distinto do facto impeditivo da aplicação do mesmo regime invocado pela AT para fundamentar o ato tributário sob discussão, o qual foi emanado exclusivamente com base no argumento de que a Recorrente B……… apenas viveria em habitação comum com o Recorrente A………… desde 16.09.2009, não se verificando por isso o disposto no artigo 14.º, n.º 2 do CIRS;
K. Importa, desde modo, apurar, para o que se impõe a pronúncia deste STA em revista, se ao fazê-lo, não se substituiu o Tribunal a quo à AT na fundamentação do ato tributário, em clara violação do princípio constitucionalmente consagrado da separação dos poderes.
Nestes termos e nos mais de Direito, se requer a V. Exas. se dignem admitir o presente recurso de revista e revogar o Acórdão recorrido, substituindo-o por outro que, com base na pronúncia acerca das questões supra identificadas, determine a anulação da liquidação de IRS, referente ao período de tributação de 2008, com as demais consequências legais.

Não foram produzidas contra-alegações.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto constante do acórdão recorrido.

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.

Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto e admitido como recurso de revista excepcional, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.

Dispõe o artigo 285.º do CPPT, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:
1 - Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
2 - A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.
3 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.
4- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
5- Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.
6- A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.
E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.
Pretendem os recorrentes que o Supremo Tribunal se pronuncie quanto a duas questões, a saber:
1) Afigura-se admissível, à luz do ordenamento jurídico português e da unidade do sistema jurídico, (i) por um lado, exigir-se, para que se reconheçam efeitos fiscais a uma união de facto, a verificação de requisitos que não são exigidos pela lei civil, que é a que regula a caraterização e os efeitos das uniões de facto e, (ii) por outro, desatender jurisprudência consolidada em revista decidida na jurisdição civil que rejeitou a necessidade de determinado requisito para reconhecer quaisquer efeitos
jurídicos – incluindo naturalmente os fiscais – a uma união de facto?; e
2) Afigura-se admissível, à luz do ordenamento jurídico português, que a legalidade do ato tributário seja decidida com base em causa impeditiva da aplicação de determinado regime jurídico (no caso, dos unidos de facto em sede de IRS, nos termos do artigo 14.º do CIRS) distinta daquela que a AT invocou como base para a rejeição da aplicação desse mesmo regime jurídico e portanto como base do ato tributário contestado, sem que com isso o Tribunal se esteja a substituir à AT na fundamentação do ato tributário?

Ambas as questões vêm colocadas porque o Tribunal Central Administrativo Sul, no seu acórdão recorrido, decidiu que ficou igualmente provado que o casamento mencionado em V) do probatório só foi dissolvido em fevereiro de 2007, o que, per se, impede a aplicação do regime em causa, atento o disposto na al. c) do art.º 2.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio e, bem assim, a remissão expressa constante do art.º 14.º, n.º 1, do CIRS para este regime … os Recorridos não podiam beneficiar do regime atinente aos unidos de facto, por força da não dissolução do casamento da Recorrida antes de 2007.

Quanto à segunda parte da primeira questão, desde já se observa que o recurso não pode ser admitido para a sua apreciação uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça não pertence à estrutura hierárquica dos Tribunais Administrativos e Fiscais, além de que, não possui competências legalmente atribuídas para se pronunciar sobre matérias fiscais e administrativas, pelo que, as suas decisões não têm que ser seguidas na jurisdição fiscal e administrativa, uma vez que se tratam de questões com contornos fáctico-jurídicos específicos.

Quanto à primeira parte da primeira questão, surpreende-se, no essencial, que os recorrentes colocam à apreciação deste Supremo Tribunal a questão de saber se o artigo 2º, al. c), conjugado com o artigo 1º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, obsta à aplicação do disposto no artigo 3º, al. d) e artigo 14º do CIRS.
Dito de outro modo, importa saber se os unidos de facto há mais de 2 anos, sem que o casamento anterior de um deles tenha sido dissolvido há mais de 2 anos os impede de aceder ao regime fiscal de tributação do rendimento previsto no artigo 14º do CIRS e no anteriormente referido artigo 3º, al. d).
Trata-se de questão não isenta de controvérsia, como bem referem os recorrentes, sendo mesmo uma questão que, no dizer do artigo 285º, n.º 1 do CPPT se reveste de importância fundamental pela sua relevância jurídica e social.
Efectivamente, tratando-se de uma questão que se reflecte, em ultima instância, nos direitos individuais e nos direitos conjuntos dos unidos de facto e na própria natureza da sua relação, a qual o legislador quis manifestamente equiparar, para determinados efeitos, aos casados, não pode este Supremo Tribunal deixar de se pronunciar sobre a mesma, adoptando uma solução que sirva de farol às instâncias, de modo a que as decisões sobre esta matéria respeitem os princípios da igualdade, justiça e proporcionalidade.
Assim, incumbe a este Supremo Tribunal responder à seguinte questão:
O direito a que se refere o artigo 3º, al. d) da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio e artigo 14º do CIRS, pertence ao conjunto de direitos ou benefícios, a atribuir em vida ou por morte, fundados na união de facto, que não podem ser atribuídos, quando o casamento não se encontre dissolvido há mais de 2 anos, cfr. artigos 1º, n.º 2 e 2º, al. c)?

Quanto à segunda questão.
Pretendem os recorrentes que o Supremo Tribunal esclareça se, no âmbito dos processos impugnatórios de actos tributários, v.g. liquidações de imposto, pode o julgador recusar a pretensão do interessado com base em causa impeditiva da aplicação de determinado regime jurídico (no caso, dos unidos de facto em sede de IRS, nos termos do artigo 14.º do CIRS) distinta daquela que a AT invocou como base para a rejeição da aplicação desse mesmo regime jurídico e, portanto, como base do ato tributário contestado.
Ou seja, o que se pretende saber é se pode o julgador recusar a anulação da liquidação impugnada com fundamento na não verificação de um dos pressupostos legais substantivos, quando esse pressuposto não foi verificado, nem serviu de fundamento à Administração Tributária e Aduaneira no momento da prática do acto impugnado.
Também esta questão é relevante uma vez que se prende com a possibilidade de, no âmbito dos processos impugnatórios, o julgador se certificar da verificação de todos os pressupostos legalmente previstos para o exercício do direito ainda que a ATA não o tenha feito.
No fundo, trata-se de saber em que medida os princípios da legalidade, da oficiosidade e da justa composição do litigio, se impõem ao Tribunal de modo a que, estando provada determinada factualidade concreta que afaste ab initio da esfera jurídica do interessado o direito a que se arroga, sem que a mesma tenha sido anteriormente debatida entre as partes, ainda assim o Tribunal (não) deve proferir uma decisão que conduza ao reconhecimento de um direito que viola as regras legais aplicáveis ao caso concreto.

Ambas as questões assumem assim um grande relevo, ainda que por razões diferentes, pelo que, se impõe a admissão do recurso para o conhecimento de ambas, independentemente da solução dada a cada uma delas.

Termos em que, face ao exposto, acorda-se em admitir o presente recurso de revista, por se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais.
Custas desta fase a final pela parte vencida.
D.n.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2020. – Aragão Seia (relator) – Isabel Marques da Silva – Francisco Rothes.