Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:069/19.4BEMDL
Data do Acordão:05/21/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:PERDA DE MANDATO
VANTAGEM PATRIMONIAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25934
Nº do Documento:SA120200521069/19
Data de Entrada:04/30/2020
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A................. (E OUTROS).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

1. RELATÓRIO

O Ministério Público, inconformado com a decisão proferida em 17 de Janeiro de 2020 [que concedeu provimento ao recurso interposto por B……… da decisão proferida pelo TAF de Mirandela, no âmbito da presente acção de perda de mandato, e que declarou a perda de mandato do ora recorrido], interpôs o presente recurso de revista.
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Apresentou, para o efeito, as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A – Incorre na sanção prevista no artigo 8.º, n.º 2, da Lei da Tutela Administrativa, aprovada pela Lei nº 27/96, de 1 de Agosto, que prevê que é aplicável a sanção da perda de mandato aos «… membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem», o vogal de uma Junta de Freguesia que é simultaneamente Vice-Presidente de um associação particular de solidariedade social e participa em cinco deliberações da Junta que atribuíram donativos patrimoniais a essa mesma associação.
B – A isso não obsta a circunstância de o visado possuir limitadas habilitações literárias (……….), pois tal não o impede de compreender o alcance dessa mesma ilegalidade, ou o facto de não se ter aproveitado desses donativos para seu próprio proveito pessoal, pois a culpa deve bastar-se com a participação consciente do autarca nesse verdadeiro procedimento defeituoso, pautado por um claro impedimento funcional, que por si só põe em causa de modo irremediável as garantias de transparência, de probidade e de imparcialidade que devem presidir à gestão da coisa pública, com clara violação, além do mais, do disposto no artigo 266º nº 2 da Constituição da República e de toda a legislação daí decorrente
C – Nem obsta à perda de mandato o facto de a instituição em causa ter uma actividade de interesse social na região em causa e ser até a única na sua área, pois a violação das garantias acima referidas é suficientemente grave, em termos de inobservância dos princípios do exercício e da actuação democráticos da administração - que visam garantir a conduta dos eleitos para cargos públicos no respeito pelos princípios resultantes da Constituição da República e das Leis - para se dever sobrepor aos eventuais fins sociais ou altruístas da associação, os quais, para todos os efeitos não devem ser prosseguidos com base em ilegalidades.
D – Ao revogar a decisão da primeira instância e ter declarado improcedente a acção de perda de mandato interposta pelo Ministério Público contra o autarca B……….., o Acórdão recorrido não aplicou, como devia, designadamente, o disposto no 8º, nº 2, da Lei da Tutela Administrativa, aprovada pela Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto bem assim como as regras que consagram a imparcialidade, probidade e transparência da actuação administrativa, previstas desde logo no artigo 266º nº 2 da Constituição da República.
E - Pelo que deve ser admitido o presente recurso de Revista, e revogada a decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo do Norte em 17 de Janeiro de 2020 e substituída por outra que considere a acção procedente relativamente ao autarca B………….., e declare a sua perda de mandato, nos termos constantes do pedido inicial.
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O recorrido não apresentou contra-alegações.
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O “recurso de revista” foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 5 do artº 150º do CPTA], proferido em 02 de Abril de 2020.
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Sem vistos, por não serem devidos.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. MATÉRIA DE FACTO
As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1) O Réu A…………, na sequência das eleições autárquicas para os quadriénios 2013-2017 e 2017-2021, após instalação da Assembleia de Freguesia de ………., Município de ………., em 19.10.2013 e 21.10.2017, foi investido como seu presidente (cfr. actas de instalação da Assembleia de Freguesia que integram o doc. 1 da p.i.).
2) O Réu B……………, na sequência das eleições autárquicas para os quadriénios 2013-2017 e 2017-2021, após instalação da Assembleia de Freguesia de …….., Município de …….., em 19.10.2013 e 21.10.2017, foi eleito tesoureiro no executivo da Junta de Freguesia (cfr. actas 1/2003 e 5/2007 que integram o doc. 1 da p.i.).
3) Na Freguesia de ……….., ……, está sediada a Associação Particular de Solidariedade Social de ……… (APSS…….), constituída por escritura pública de 26.01.2007 (cfr. escritura pública que integra o doc. 2 da p.i.).
4) Os estatutos da associação referida no ponto anterior têm o seguinte teor parcial:
Artigo 1.º
A associação que se denominará abreviadamente por “Associação de Solidariedade Social de …………” é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, com sede em ……….., concelho de ……..
(…)
Art. 38.º
Compete ao presidente da Direção:
a) Superintender na administração orientando e fiscalizando os respetivos serviços;
b) Convocar e presidir às reuniões da Direção, dirigindo os respetivos trabalhos;
c) Representar a Associação em juízo ou fora dele;
d) Assinar e rubricar os termos de abertura e encerramento e rubricar o livro de atas da Direção;
e) Despachar os assuntos normais de expediente e outros que careçam de solução urgente, sujeitando estes à confirmação da Direção na primeira reunião seguinte.
Art. 39.º
Compete ao vice-presidente coadjuvar o presidente no exercício das suas atribuições e substituí-lo, nas suas ausências e impedimentos.”
(cfr. estatutos e respectivas alterações que integram o doc. 2 da p.i.).
5) O 1º Réu foi Presidente da Direção da associação referida no ponto 3, desde a sua constituição até 28.11.2018 (cfr. acta nº 1 que integra o doc. 2 da p.i. e documento junto a fls. 318 dos autos).
6) O 2º Réu é Vice-Presidente da Direcção da associação referida no ponto 3 desde 08.02.2014 (cfr. actas 1/2014, 1/2019 e 2/2019 que integram o doc. 2 da p.i.).
7) Na sessão ordinária de 29.06.2013 da Assembleia de Freguesia de …………, o 1º Réu, no âmbito das suas funções de Presidente, participou na discussão e votou favoravelmente, naquela sua qualidade, entre outras deliberações, no sentido de conceder um donativo de EUR 5.000,00 para a associação referida no ponto 3 (cfr. acta 2/2013 que integra o doc. 1 da p.i.).
8) Na reunião de 02.01.2015 da Junta de Freguesia de …………, o 2º Réu, na qualidade de vogal, participou na discussão e votou favoravelmente no sentido de conceder uma ajuda financeira de EUR 1.308,79 à associação referida no ponto 3 (cfr. acta 1/2015 que integra o doc. 1 da p.i.).
9) Na sessão ordinária de 26.12.2015 da Assembleia de Freguesia de ………, o 1º Réu, no âmbito das suas funções de Presidente, participou na discussão e votou favoravelmente, naquela sua qualidade, entre outras deliberações, no sentido de conceder um donativo de EUR 20.000,00 para a associação referida no ponto 3 (cfr. acta nº 5 que integra o doc. 1 da p.i.).
10) A deliberação referida no ponto anterior foi proposta pela Junta de Freguesia, conforme deliberado por unanimidade em reunião de 19.12.2015, tendo o 2º Réu, na qualidade de vogal, participado na discussão e votado favoravelmente (cfr. acta 13/2015 que integra o doc. 1 da p.i.).
11) Na reunião de 09.09.2017 da Junta de Freguesia de ………., o 2º Réu, na qualidade de vogal, participou na discussão e votou favoravelmente no sentido de conceder um donativo de EUR 2.000,00 à associação referida no ponto 3 (cfr. acta 10/2017 que integra doc. 1 da p.i.).
12) Na reunião de 05.02.2018 da Junta de Freguesia de ……….., o 2º Réu, na qualidade de vogal, participou na discussão e votou favoravelmente no sentido de conceder um donativo de EUR 1.400,00 à associação referida no ponto 3 (cfr. acta 2/2018 que integra doc. 1 da p.i.).
13) Na reunião de 09.03.2018 da Junta de Freguesia de ………., o 2º Réu, na qualidade de vogal, participou na discussão e votou favoravelmente no sentido de conceder um donativo de EUR 150,00 à associação referida no ponto 3 (cfr. acta 3/2018 que integra doc. 1 da p.i.).
14) As deliberações referidas nos pontos 10 a 13 foram aprovadas por unanimidade (cfr. actas 13/2015, 10/2017, 02/2018, 3/2018 que integram o doc. 1 da p.i.).
15) Em 22.12.2018, o Réu A………. requereu ao Presidente da Junta de Freguesia de …………. a demissão do cargo de Presidente da Mesa de Assembleia Geral da Freguesia de …………, por não estarem reunidas as condições necessárias para a continuação do mandato (cfr. requerimento a fls. 319 dos autos).
16) Em 29.12.2018, reuniu em sessão ordinária a Assembleia de Freguesia de ………., tendo esta procedido à substituição do 1.º Réu enquanto respetivo membro (cfr. acta a fls. 326 e 327 dos autos).
17) O 1º Réu é …………. de profissão.
18) O 2º Réu tem como habilitações literárias … ………….
19) A associação referida no ponto 3 foi criada com vista à construção de um lar de 3ª idade, desempenhando um papel social relevante em face da desertificação da freguesia e da população idosa aí existente.
20) A criação da associação referida no ponto 3 do probatório consistiu num projecto bem visto e querido pela generalidade da comunidade de ………..
21) Actualmente, a associação referida no ponto 3 do probatório mantém e gere um lar de terceira idade, em que residem cerca de ………. utentes.
22) A associação referida no ponto 3 do probatório é a única instituição de solidariedade social existente na freguesia.
23) Ao longo de todo o período referido no ponto 5 do probatório, o 1º Réu teve um papel preponderante na criação e desenvolvimento da atividade da associação referida no ponto 3 do probatório.”
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2.2. O DIREITO.
A presente acção de perda de mandato foi intentada pelo Ministério Público contra A……… e B………….., face à participação destes em procedimento administrativo relativamente ao qual se verificava impedimento legal, com vista ao favorecimento de terceiros.
O TAF de Mirandela julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e em consequência, absolveu o 1º Réu do pedido e condenou o 2º Réu, determinando a respectiva perda de mandato como membro da Junta de Freguesia de ………. entendendo o TAF, em síntese, que se mostram preenchidos os pressupostos enunciados no artigo 8º, nº 2 da Lei nº 27/96, de 1/08, concretamente (i) a intervenção funcional em procedimento com impedimento legal e (ii) a existência de uma vantagem patrimonial para si ou para outrem, na medida em que:
- O réu “participou, na qualidade de vogal da Junta de Freguesia de ………., em várias deliberações em que este órgão, ou propunha à Assembleia de Freguesia, ou deliberava directamente atribuir donativos à APSS…… (cfr. pontos 8 e 10 a 13), quando exercia as funções de vice-presidente dessa mesma associação (cfr. ponto 6 do probatório)”;
- Com tal comportamento o réu visou a atribuição de uma vantagem patrimonial à APSS……, sendo indiferente que com a atribuição de tal vantagem se vise a prossecução do interesse público.
Todavia, esta decisão veio a ser revogada por acórdão do TCA Norte, no qual se consignou:
«O ora recorrente, na qualidade de vogal, participou nas reuniões da Assembleia de Freguesia de ……… realizadas em 26/12/2015 e da Junta de Freguesia de ………… realizadas em 2/01/2015, 19/12/2015, 9/09/2017, 5/02/2018 e 9/03/2018, tendo participado na discussão e votado favoravelmente a atribuição de donativos à Associação Particular de Solidariedade Social de …….. (APSS…….), da qual é Vice-Presidente, nos seguintes montantes: € 1.308,79, € 20.000,00, € 2.000,00, € 1.400,00 e € 150,00.
Será este comportamento sancionável com a perda de mandato nos termos do disposto no artigo 8º, n.º 2 da Lei 27/96?
A questão que aqui se coloca, tendo presente a posição defendida pelo recorrente, é a de saber se está preenchido o requisito da existência de “intenção de obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem”.
Como supra referimos, o decretamento da perda de mandato pressupõe a formulação de um forte juízo de censura da actuação do autarca, o que ocorre quando o mesmo agiu com culpa grave ou negligência grosseira.
“Efectivamente, só um grau de culpa relativamente elevado sustenta a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo.
Como se disse no ac. de 21.3.96, rec. 39 678, a aplicação de tal medida (perda de mandato) só se justifica relativamente a quem, “tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções não observou as regras de isenção e desinteresse (a imparcialidade) e de independência exigíveis a quem deve estar ao serviço do bem comum”, a quem “violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso”. (Ac. TC 25/92.)”.
Ora, não cremos que no caso seja possível formular esse juízo de culpa elevado.
A entidade beneficiária dos donativos é uma instituição particular de solidariedade social, sendo a única existente na Freguesia de ………….. A mesma foi criada com vista à construção de um lar de 3.ª idade, finalidade essa que foi alcançada, pois actualmente a APSS…….. mantém e gere um lar no qual residem cerca de ……… utentes.
Pese embora o fim de interesse público para o qual foram concedidos os donativos não permita, por si só, afastar o requisito do artigo 8º, nº 2 da Lei nº 27/96, o certo é que não pode tal circunstância deixar de ser valorada, designadamente em sede de apreciação da culpa. Uma coisa é a atribuição de subsídios ou de donativos para fins exclusivamente privados, outra, bem diversa, é fazê-lo a entidades que prosseguem fins de interesse público. E que no caso são bem relevantes, pois, como é do conhecimento público, o interior do país e em especial o nordeste transmontano é uma região cada vez mais desertificada, com uma população maioritariamente envelhecida, muitas vezes abandonada à sua sorte e que carece de cuidados e atenção especial.
Os donativos foram, assim, concedidos à única instituição que na freguesia de ………. prossegue fins de solidariedade social, pelo que não houve preterição de qualquer outro possível beneficiário dos mesmos.
Acresce que, não resulta do probatório que o recorrente tenha beneficiado pessoalmente da sua conduta.
Por fim, não podemos deixar de ponderar, na análise do juízo de culpa que importa fazer, que estamos perante uma pessoa com baixo nível de habilitações (concluiu … …….), o que, aliado ao facto de se tratar de donativos concedidos a uma instituição que prossegue fins sociais relevantes, torna perfeitamente plausível a conclusão de que o ora recorrente terá actuado sem que tenha tomado consciência de que estava impedido de o fazer e até convicto da bondade e da legalidade da decisão.
Ficou, assim, por demonstrar que o fundamento legal que justificou a perda do mandato é imputável ao recorrente a título de culpa grave.
Do mesmo modo e pelas razões vindas de referir, consideramos inexistir adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção.
Concluímos, assim, que não se mostram reunidos os requisitos para que seja decretada a perda de mandato por parte do recorrente».
“(…).
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Vejamos agora a argumentação do recorrente no presente recurso de revista, importando desde já atentar na legislação a ter em consideração:
Dispõe o artigo 7º da Lei nº 27/96, de 1/08 - que estabelece o regime jurídico da tutela administrativa a que ficam sujeitas as autarquias locais e entidades equiparadas, bem como o respectivo regime sancionatório - que “A prática, por acção ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais ou no da gestão de entidades equiparadas pode determinar, nos termos previstos na presente lei, a perda do respectivo mandato, se tiverem sido praticadas individualmente por membros de órgãos (…)”.
A indicação dessas ilegalidades encontra-se prevista no artigo 8º do mesmo diploma, nos seguintes termos:
“1 - Incorrem em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos ou das entidades equiparadas que:
(…)
2 - Incorrem, igualmente, em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem.
3 - Constitui ainda causa de perda de mandato a verificação, em momento posterior ao da eleição, de prática, por acção ou omissão, em mandato imediatamente anterior, dos factos referidos na alínea d) do nº 1 e no nº 2 do presente artigo”.
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Considerando tal normativo, e considerando-se preenchidos os requisitos (i) da existência de intervenção do eleito em procedimento administrativo, em acto ou contrato, (ii) a verificação de um impedimento legal a tal intervenção, falta saber se também se mostra preenchida a (iii) intenção de obter de vantagem patrimonial para si ou para outrem, que é a única questão em discussão neste recurso, ou seja, da intencionalidade do ora recorrente em obter vantagem patrimonial para si ou para outrem.
Com efeito, nos presentes autos, não está em causa a matéria de facto constante dos mesmos, designadamente a vertida nos pontos 8, 10 a 14, de onde resulta que o ora recorrido, na qualidade de vogal, participou nas reuniões da Assembleia de Freguesia de …………, realizadas em 02.01.2015, 19.12.2015, 09.09.2017, 05.02.2018 e 09.03.2018, tendo participado igualmente na discussão e votado favoravelmente a atribuição de donativos à Associação Particular de Solidariedade Social de ……….. (APSS……), da qual é Vice-Presidente, nos seguintes montantes: 1.308,79€, 20.000,00€, 2.000,00€, 1.400,00€ e 150,00€.
Mostra-se, pois, assente que o ora recorrido participou em procedimento administrativo relativamente ao qual se verificava um impedimento legal.

Assim, a questão em dissídio prende-se em apurar se esta intervenção é ou não sancionável com a perda de mandato, nos termos do disposto no artº 8º, nº 2 da Lei nº 27/96 de 1 de Agosto (Regime jurídico da tutela administrativa) ou seja, se se mostra preenchido o requisito de “intenção de obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem”.

Quanto ao preenchimento deste requisito, há jurisprudência bastante, produzida por este Supremo Tribunal Administrativo, no sentido de que a intenção tem de ser antijurídica e culposa.

Como resulta do acórdão do STA de 22/04/2004 (Proc. nº 0248/04 in «www.dgsi.pt/jsta»), que reitera jurisprudência anterior de outras decisões deste Tribunal (cfr. Acs. de 18/05/1995 - Proc. n.º 37472, de 12/05/1995 - Proc. nº 36434, de 18/03/2003 - Proc. nº 0369/03) “… a perda de mandato tem carácter sancionatório o que implica a necessidade de ter em conta os princípios do direito Disciplinar e Penal (cfr. art. 10º da Lei 27/96). Ou, como se entendeu … “dada a gravidade da sanção de perda de mandato que a lei comina para determinados comportamentos, importa não só determinar se esses comportamentos estão objectivamente tipificados na lei, mas ainda se se verifica o elemento subjetivo que justifique um juízo de censura proporcional à medida sancionatória que só será de aplicar quando, ponderados os factores objectivos e subjetivos relevantes, se conclua pela indignidade do requerido para a permanência no exercício das suas funções (…)”.
Também no Ac. deste STA de 09/01/2002 (Proc. nº 048349 in «www.dgsi.pt/jsta») se diz que “… só um grau de culpa relativamente elevado sustentarão a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo.
E como se disse no Ac. de 21.3.96, rec. 39.678, a aplicação de tal medida (perda de mandato) só se justifica relativamente a quem, “tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções não observou as regras de isenção e desinteresse (a imparcialidade) e de independência exigíveis a quem deve estar ao serviço do bem comum”, a quem “violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso” (Ac. TC 25/92) …”.
Noutro acórdão deste STA de 18/03/2003 (Proc. nº 0369/03 in «www.dgsi.pt/jsta») e no mesmo sentido, consignou-se “… a lei fala da obtenção de vantagem patrimonial, com uma conotação ou valoração negativa em termos de poder desencadear a grave sanção de perda de mandato, apenas pode querer significar que o eleito local, por via de atuação decorrente do exercício das suas funções ou por causa delas, vise obter uma situação de favor, de primazia ou de privilégio geradora de desigualdade em relação outros concretos ou eventuais concorrentes que pudessem prestar o mesmo serviço em condições iguais ou mais favoráveis. Ou ainda quando intervenha em qualquer ato ou contrato favorecendo, em termos patrimoniais, a sua própria posição ou a de terceiro.
Vale isto dizer (na linha, aliás, do decidido nos Acs. de 03.04.97, rec. 41784 e de 21.03.96, rec. 39678) que só relevam, no âmbito do tipo legal do art. 8º, nº 2 do Lei 27/96, os proveitos económicos que o autarca vise obter ilicitamente, exercendo as suas funções para fins que a lei proíbe ou diversos dos legalmente previstos.
A preterição dos princípios consignados no artº 4º, nº 2, designadamente, nas alíneas d) e e), da Lei 29/87, de 30.06, apenas determina a perda de mandato se os comportamentos ali referidos puderem ser subsumidos àquela norma sancionadora do art. 8º, nº 2 da Lei 27/96 …”
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E é tendo em conta a gravidade da sanção e das suas consequências que a jurisprudência tem afirmado que, exceptuados os casos em que o dolo é legalmente exigível na configuração da infracção, a perda do mandato só pode ser decretada quando o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal.
Tudo, porque, como já se referiu, a perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito só deve ser decretada quando houver uma relação de adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção visto que, se assim não for, será de questionar a constitucionalidade das normas que permitam declarações de perda de mandato fundadas em lapsos mínimos e, portanto, destituídas de razoabilidade (Acórdão de 20/12/2007 (rec. 908/07).
Deste modo, e muito embora seja certo que a perda de mandato pode ser decretada sem que haja dolo na conduta do agente também o é que a aplicação dessa sanção só encontra justificação quando "a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira). Na verdade, atendendo: (i) à natureza sancionatória da medida da perda de mandato, (ii) à intrínseca gravidade desta medida, equivalente às penas disciplinares expulsivas, com potencialidade destrutiva de uma carreira politica, iii) a que a conduta dos titulares de cargos políticos electivos é periodicamente apreciada pelo universo dos respectivos eleitores, há que concluir que a aplicação de tal medida só se justifica a quem tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções «violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso» (cfr. Acórdão STA de 21/03/96).
Violaria o princípio da proporcionalidade das medidas sancionatórias que restrinjam direitos políticos aplicar uma tal sanção a incumprimentos veniais» (Acórdão de 11/03/99, rec. 44.576).
E, porque assim é, entende-se que, nos casos de violação da norma que proíbe ao autarca de intervir em procedimento onde possa obter vantagem patrimonial, essa violação só é determinante da perda do mandato quando se mostre que ele tinha interesse directo, pessoal e relevante nessa intervenção e que esse interesse o impedia de actuar de forma rigorosa, isenta e imparcial na defesa do interesse público posto a seu cargo, acrescentando-se que essa intervenção tem de estar associada a culpa grave visto que “só um grau de culpa relativamente elevado sustentará a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo” - (Acórdão de 9/01/2002, rec. 48.349).
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Atentemos no caso sub judice:
O Acórdão recorrido, como já se referiu, atendendo à matéria de facto dada como provada, decidiu que não era possível formular em relação ao ora recorrido um juízo de culpa elevado, tendo em conta, em síntese, a natureza e os fins da instituição de solidariedade social em causa, beneficiária dos donativos atribuídos, bem como, o facto de não ter havido preterição de qualquer outra instituição na zona e, ainda o facto de o recorrido não ter beneficiado pessoalmente com a sua conduta; mais se consignou, no que ao item da intensidade da culpa diz respeito, que o recorrido tem um baixo nível de habilitações escolares (……..) e que o mesmo terá actuado sem que tenha tomado consciência de que estava impedido de o fazer e até convicto da bondade e da legalidade da decisão, assim tendo concluído pelo não preenchimento do requisito da culpa e da adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção respectiva.
Cremos, todavia, que o assim decidido não se poderá manter.
Com efeito, temos como assente que o réu/recorrido participou na qualidade de vogal da Junta de freguesia de …………, em várias deliberações em que este órgão, ou propunha à Assembleia de freguesia, ou deliberava directamente atribuir donativos à APSS……… – cfr. pontos 8,10 a 13 da factualidade provada- quando exercia as funções de vice-presidente dessa mesma associação – cfr. ponto 6 da factualidade provada.
Naturalmente que este comportamento [diga-se de passagem que o recorrido sempre poderia ter-se declarado impedido e desta forma não ter participado] visou a atribuição de uma vantagem patrimonial à referida associação, independentemente de tal atribuição ter visado ou não a prossecução do interesse público.
Por outro lado, não pode servir de justificação a escolaridade do recorrido, pois a mesma não o impediu de exercer as funções de vice-presidente da APSS…, nem tão pouco de ter sido eleito vogal da Junta de freguesia de ……… e naquela instituição e neste órgão autárquico, participar activamente e tomar decisões.
Por outro lado, quem exerce estas funções, não pode alegar que somente se limita a assinar papéis, sob pena de, se assim for, não estar em condições para assumir e se manter nos respectivos cargos.
Acresce que a lei não impõe em relação a nenhum deles, um limite mínimo de habilitações escolares, nem considera, quem tenha um menor índice de habilitações, impedido de participar activamente em qualquer deliberação ou decisão.
Aliás, outro entendimento, nesta matéria seria grave do ponto de vista do princípio constitucionalmente previsto da igualdade.
E quanto ao facto do recorrido não ter tirado destes comportamentos qualquer vantagem pessoal para si próprio, tal facto é completamente indiferente, uma vez que essa vantagem patrimonial [que não se pode considerar insignificante no seu montante e a frequência com que ocorreu] resultou para um terceiro, ou seja para a instituição de que era Vice-presidente, em violação flagrante das regras da isenção e imparcialidade a que estava obrigado.
Com efeito, a lei basta-se com o facto de existir uma vantagem patrimonial intencional relativamente à qual se verifica um impedimento, uma vez que os princípios da isenção e imparcialidade ficam desde logo molestados [é também indiferente que eventualmente não tenha havidos outras instituições que não tenham ficado prejudicadas com a atribuição dos subsídios em relação àquela a quem foi atribuído].
Resulta do exposto, que no caso dos autos, não se vislumbram as causas que justifiquem o facto ou que excluam a culpa do agente, como previsto no artº 10º, nº 1 da Lei nº 27/96 de 01.08. mantendo-se a previsão do artº 8º, nº 2 da Lei da Tutela Administrativa.
Ao invés, o que se verifica é que o réu, ora recorrido, enquanto eleito local, participou nas deliberações em causa de forma livre e esclarecida, com consciência plena que estava a atribuir uma vantagem patrimonial a uma instituição de que era Vice-presidente, não se descortinando neste processo de participação e votação qualquer causa de exclusão de uma actuação ilícita
Deste modo, consideram-se verificados todos os requisitos previstos no nº 2 do artº 8º da Lei nº 27/96 de 01 de Agosto, concluindo-se pela procedência do recurso interposto e consequente procedência da acção no que ao recorrido diz respeito.
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DECISÃO
Atento o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e consequentemente julgar procedente a acção de perda de mandato relativamente ao réu/ora recorrido B……………………..

Custas a cargo do recorrido

Lisboa, 21 Maio de 2020. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – José Francisco Fonseca da Paz.