Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0297/18
Data do Acordão:04/12/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23167
Nº do Documento:SA1201804120297
Data de Entrada:03/16/2018
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:A............ - FUTEBOL SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO
A………… SAD (doravante A…………) recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), das decisões proferidos, em plenário, pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), no âmbito dos processos disciplinares n.ºs ……, ……, …… e ……, – onde foi punido pela prática das infracções p. e p. nos art.ºs 127.º, 186.º, n.º 1 e 187.º, nº 1, al.ªs a) e c), do Regulamento Disciplinar da FPF - pedindo a sua revogação.

Com parcial êxito já que o TAD revogou essa decisão na parte respeitante à aplicação das penas de multa.

A FPF recorreu para o TCA Sul e este negou provimento ao recurso.

É desse Aresto que a FPF recorre (art.º 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos se, in casu, tais requisitos se verificam.

2. Colhe-se na M. F. que foram instaurados quatro processos disciplinares contra o A………… por incidentes – rebentamento de petardos, deflagramento e arremesso de potes de fumo e de tochas incandescentes e exibição de tarjas com frases ofensivas - ocorridos em outros tantos jogos de futebol nas bancadas onde se encontravam os seus adeptos, dois deles no Estádio ......... (que originaram os processos n.ºs ……… e ………) e os outros dois nos estádios dos clubes visitados (que originaram os processos nºs ……… e ………).

O Conselho de Disciplina da FPF puniu o A………… com penas de multa pela prática de infracções disciplinares p. e p. nos art.ºs 127.º, 186.º, n.º 1 e 187.º, nº 1, al.ªs a) e c), do Regulamento Disciplinar daquela Federação.

O A………… recorreu para o TAD e este concedeu provimento ao recurso.
No tocante às infracções referenciadas nos processos ……… e ……… ponderou:
“O Tribunal entende …. que competia ao titular do poder disciplinar o ónus de fazer a prova da prática das condutas que preenchessem todos os elementos do tipo de ilícito previstos nos arts. 186°, n° 1 e 187°, n.º 1 al.ª. b) do RD e, consequentemente, consubstanciassem as correspondentes infracções - ou seja, para além de que o autor do comportamento censurado era sócio ou simpatizante do clube arguido, que este tinha violado (culposamente) os deveres a que legal ou regularmente estava obrigado, dessa forma tendo permitido ou facilitado as condutas previstas nas normas incriminatórias - pelo que não tendo o Conselho de Disciplina logrado fazer aquela prova, como corolário dos princípios da inocência do arguido e do in dubio pro reo, julga-se procedente o vício apontado às duas decisões em crise (processos n.ºs ……… e ………), revogando-se, por essa razão, as mesmas quanto às sanções impugnadas pela Demandante.
…..”

Relativamente ao processo ……… justificou a sua decisão do seguinte modo:
Em lado nenhum da decisão recorrida se motiva que, por exemplo, (i) a revista na entrada do estádio não foi correctamente efectuada ou sequer efectuada, (ii) que os stewards, colaboradores de uma empresa prestadora de serviços, não evidenciaram a atenção que lhes era exigida para assegurarem o decurso do jogo em segurança ou qualquer outra conduta que pudesse permitir evidenciar não ter a Demandante cumprido, por acção ou omissão, os deveres m vigilando a que se encontra obrigada.
E, também neste caso, não se afigura ao Tribunal a existência de elementos de prova suficientemente robustos que pudessem permitir o recurso a uma eventual presunção, “passando” para a Demandante o esforço de tentar desmontar a imputação que lhe era feita, comprovando ter cumprido os deveres que na lei e nos regulamentos sobre si impendem e, consequentemente, “aliviando” o esforço probatório que impende sobre o Conselho de Disciplina (cfr. art.º 7.º n.º 1 al.ª c), 8.º, n.º 1 al.ªs. b), m), 22.º n.º 1 al.ª d), 23,º n.º al.ª i), 25.º n.º 2 da Lei 52/2013 e art. 6° do Anexo VI do RCLPFP).”

No tocante ao processo ……… ajuizou o seguinte:
“Quanto à imputação de terem sido adeptos a rebentarem petardos, a deflagrarem potes de fumo, arremessarem tochas, moedas, bolas de cartolina, um isqueiro, duas garrafas de água, a exibirem tarjas e a cantarem dizeres insultuosos, entende o Tribunal que, à Iuz do que vem descrito no relatório do jogo, apelando-se, aqui sim com propriedade, à prova indirecta conjugada com as regras da experiência, a exibição das tarjas e os ditos cânticos foram da autoria de adeptos da Demandante.
Na realidade, neste caso, a verificação daquela autoria é a consequência para além de toda a dúvida razoável, daquele primeiro facto conhecido.
Por sua vez, o mesmo não se poderá concluir quanto aos restantes actos, pois, tal como sucedeu nos outros processos disciplinares, a Demandante não logrou trazer prova para os autos que permitisse tal conclusão, não sendo o relato que fez suficiente para permitir o recurso à presunção e, por essa razão, transferir para a Demandante o ónus da contraprova.
Na realidade, também, neste caso, podem ter sido adeptos do A………… - como podem não ter sido - a adoptar os comportamentos descritos, circunstância que seria fortemente indiciada pela referência, caso fosse o caso, a sinais identificadores daqueles adeptos - bancada exclusiva, GOA, camisolas ou bandeiras.
…..
Acresce ainda que não existe, portanto, nos autos evidência de comportamento culposo, mesmo sob a forma de negligência da Demandante, designadamente que, na revista dos adeptos ou na vigilância do seu comportamento dentro de estádio, tenha falhado algum meio ou dispositivo de segurança montados para evitar que aqueles comportamentos não viessem a ocorrer.”

Daí que o TAD tivesse decidido: “b) Julgar procedente o pedido de anulação das multas aplicadas nos processos disciplinares ………, ………, ……… e ………, ao abrigo dos artigos 127°, 186°, no 1 e 187.° n.ºs 1 alíneas a) e b) do RD, salvaguardando as infracções com as quais a Demandante, relativamente a cada um deles, se conformou, mantendo-se as sanções aplicadas pelo Conselho de Disciplina.” e “c) Negar provimento ao pedido de reconhecimento de isenção de custas formulado pela Demandada, com fundamento no despacho do Senhor Presidente do TAD proferido no Proc.º n° 2/2015.”

A FPF recorreu para o TCA Sul e este, manteve a decisão do TAD com fundamento no Parecer do M.P. onde se lê:
“7. No fundo, aquilo que está verdadeiramente em causa e como bem se depreende do teor da decisão proferida pelo Colégio Arbitral, tem a ver com a alegada falta de rigor jurídico apontada pelo citado Colégio à fundamentação das decisões proferidas ainda em sede dos órgãos de Justiça desportiva integrados na FPF;
8. Falta de rigor essa que incide, essencialmente, sobre a necessária descrição dos factos no sentido do preenchimento do tipo de ilícito cuja prática se imputa ao A…………;
9. É o caso, a título meramente indicativo, da ausência de rigor sobre a clara identificação dos adeptos do A………… no seguinte trecho:
“…a mera circunstância de a bancada na qual teve origem a deflagração do petardo estar afecta a adeptos do clube, sem sequer fazer menção à exclusividade dessa afectação, não permite concluir que o autor do lançamento tenha efectivamente sido um sócio ou simpatizante do mesmo. Trata-se de dois factos autónomos, em que, de forma alguma, o segundo é uma consequência directa do primeiro e único facto conhecido e provado...”.
10. Tal afirmação tem, necessariamente, consequências em sede de definição e apreciação da prova, como seja a necessidade de recurso à prova indirecta, o que, de todo, se mostra incompatível com a faculdade de recolha atempada dos necessários elementos probatórios pelo instrutor do processo;
11. Tanto mais que as punições em apreço, como bem se alcança dos Autos … foram assumidas com base no mero relatório do jogo, o qual, como bem referido na decisão sob recurso, se mostra, de algum modo, em evidente similitude jurídica com os Autos de Notícia …;
12. O que, em bom rigor, obrigaria, no limite, à aplicação de presunções judiciais, tudo por via do insuficiente corpo de prova;
13. Aliás, sobre esta matéria, salienta-se o segmento decisório constante de fls. 40 dos Autos e onde se pode ler:
«Significa isto que a acusação terá que descrever, em primeiro lugar, o que fez, ou deixou de fazer, o clube, por referência a concretos deveres (legais ou regulamentares) que identifica, e, em segundo, por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado dos sócios ou simpatizantes.
E serão esses os factos que o Conselho de Disciplina terá que dar como provados, ou não. Sendo certo que caberá à entidade promotora do procedimento disciplinar a prova de todos os elementos típicos (objectivo e subjectivo) do tipo de infracção, ou seja, de que o clube infringiu, com culpa, os deveres legais ou regulamentares, a que estava adstrito, que esse comportamento permitiu ou facilitou determinada conduta proibida, que esta ocorreu, e que a mesma foi realizada por sócios ou simpatizantes seus.»”

E no tocante à isenção de custas ponderou:
2.2.3.4 Ora, atendendo a que as normas de isenção de custas, designadamente as contidas no Regulamento das Custas Processuais, consubstanciam normas excepcionais, em que cada situação de isenção estará normativamente prevista de modo expresso, e que quer a Lei do TAD quer a Portaria n.º 301/2015, de 22/09, o regulamenta no que respeita à taxa de arbitragem e encargos do processo de arbitragem, não contêm qualquer previsão de situação de isenção de custas, tem que concluir-se que a Federação Portuguesa de Futebol não beneficiava de qualquer isenção das custas do processo arbitral (taxa de arbitragem), como propugnou.”

3. É deste Acórdão que a FPF recorre requerendo a apreciação das seguintes questões:
“i) A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorrectos dos seus adeptos por ocasião de jogos de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno.
ii) O acórdão proferido, salvo o devido respeito, limita-se a remeter a sua fundamentação para um parecer do Ministério Público – que se considera inadmissível – e, por sua vez, tal parecer do Ministério Público, remete para os argumentos apresentados pela Recorrida, o que equivale a falta de fundamentação”.

4. Conforme se acaba de ver, tanto o TAD como o TCA não questionam a existência dos factos que determinaram a instauração dos processos disciplinares, isto é, que se encontra provado que, nos referidos jogos, nas bancadas onde se encontravam os adeptos do A………… houve rebentamento de petardos, deflagramento e arremesso de tochas incandescentes e potes de fumo e exibição de tarjas com frases ofensivas. O que eles consideram é que a ocorrência desses factos, por si só, não é suficiente para condenar o Clube e isto porque, não sendo objectiva a responsabilidade pela prática de tais infracções (As normas em causa são do seguinte teor:
Artigo 186.º
Das ofensas corporais nos limites exteriores do complexo desportivo
1. O Clube cujo sócio ou simpatizante agrida fisicamente pessoa presente dentro dos limites exteriores do complexo desportivo no exercício de funções relacionadas direta ou indiretamente com a ocorrência do jogo, antes, durante ou depois da realização deste, causando-lhe lesão que não seja considerada grave nos termos previstos no número 1 do artigo 183.º, é sancionado com multa a fixar entre 8 e 30 UC.
2. A tentativa ou a prática de qualquer ato intimidatório é sancionado com sanção de multa a fixar entre 5 e 10 UC.
3. Em caso de reincidência o limite mínimo da sanção de multa é fixado entre 20 e 30 UC.
4. Em caso de prática reiterada da infração, o Clube é ainda sancionado com interdição de jogar no seu estádio por 1 jogo.
Artigo 187.º
Do comportamento incorreto do público
1. O Clube cujos sócios, adeptos ou simpatizantes mantenham no decurso do jogo um comportamento socialmente reputado incorreto, designadamente a prática de ameaças ou coação sobre os agentes referidos no número 1 do artigo 174.º, o arremesso de objetos para o terreno de jogo, insultos e ainda outros atos que não revistam especial gravidade ou que pratiquem atos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina, é sancionado com multa a fixar entre 10 e 20 UC.
2. Em caso de reincidência, os limites da sanção referida no número anterior são agravados para o dobro.
3. Se dos atos referidos no número um resultarem danos para as infraestruturas desportivas que ponham em causa as condições de segurança, o recinto desportivo permanece interdito pelo período necessário à reposição das mesmas.
Artigo 188.º
Arremesso perigoso de objetos sem reflexo no jogo
1. O Clube cujos sócios ou simpatizantes arremessem para dentro do terreno de jogo objetos, líquidos ou quaisquer outros materiais que pela sua natureza sejam idóneos a provocar lesão de especial gravidade aos elementos da equipa de arbitragem, elementos das forças de segurança em serviço, delegados e observadores da FPF, dirigentes, jogadores, treinadores e demais agentes desportivos ou qualquer pessoa autorizada por lei ou regulamento a permanecer no terreno de jogo, sem que tal dê causa ou perturbe o início, reinício ou realização do jogo, é sancionado com a sanção de multa a fixar entre 10 e 20 UC.
2. Nos casos de reincidência o limite mínimo e máximo das sanções são elevados ao dobro. Artigo 189.º Limites objetivos da sanção de multa Os limites das sanções de multa previstos nesta secção são os que resultam da aplicação do artigo 109.º.), era indispensável que a acusação provasse que o demandado não tinha vigiado convenientemente a entrada dos seus adeptos no seu estádio ou que os autores dos factos puníveis tinham sido, efectivamente, seus adeptos.
O que evidencia que a questão que aqui se coloca tem relevante importância jurídica uma vez que é decisivo saber, se nas circunstâncias dos autos, recai sobre a acusação o ónus de provar o que o Acórdão recorrido considerou indispensável sob pena de absolvição do Clube acusado. Se assim for, isto é, se for indispensável fazer a prova exigida por aquele Acórdão a conclusão a retirar é que os transcritos normativos terão uma diminuta aplicação visto ser muito difícil fazer essa prova. O que vale por dizer que a aplicação do disposto nos art.º 186 e 187 do RD da FPF, que a Recorrente considera importante para assegurar a ordem nos desafios de futebol, será residual.
Por ser assim, é importante saber se o Acórdão fez correcto julgamento quando considerou que a responsabilidade prevista nos apontados preceitos não é objectiva visto se fundar na culpa e na ilicitude, questão cuja relevância jurídica é suficiente para justificar a admissão da revista.

Decisão.
Termos em que se admite o recurso.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Abril de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – Teresa de Sousa.