Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0590/16
Data do Acordão:05/11/2017
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
ACORDO ORTOGRÁFICO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
ACTO POLÍTICO
ACTO ADMINISTRATIVO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00070177
Nº do Documento:SA1201705110590
Data de Entrada:05/11/2016
Recorrente:ANPROPORT - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PROFESSORES DE PORTUGUÊS
Recorrido 1:ESTADO, CONSELHO DE MINISTROS E PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS
Votação:MAIORIA COM 1 VOTO VENC
Meio Processual:ACÇÃO ADM ESPECIAL
Decisão:JULGAR JURISDIÇÃO INCOMPETENTE EM RAZÃO DA MATÉRIA
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM ESPECIAL
Legislação Nacional:CPTA ART73.
RCM 8/2011.
ETAF/2015 ART1 ART4.
CONST ART212 ART9 ART199 ART182 ART197 ART198.
RAR 26/91.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC0390/09 DE 2010/05/20.; AC STAPLENO PROC01357/15 DE 2016/11/17.
Referência a Doutrina:MANUEL ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES PROCESSO CIVIL 1956 PÁG92.
Aditamento:
Texto Integral: 1. ANPROPORT- ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PROFESSORES DE PORTUGUÊS, A…………………, B………………….., C……………………… e D………………………. movem acção popular - acção administrativa especial de impugnação de normas - contra o ESTADO, CONSELHO DE MINISTROS e PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS, requerendo, ao abrigo do art. 73°, nº1, CPTA e art. 24°, nº1, iii), do ETAF, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral da norma constante do nº1 da Resolução do Conselho de Ministros (RCM) nº 8/2011, no que respeita à Administração Pública Directa.
Para tanto alegam relativamente à mesma: "III. Das nulidades totais da RCM n.º 8/2011, "III.A. A Inconstitucionalidade total formal e orgânica, decorrente de preterição de indicação da correcta lei habilitante; III.B. Inconstitucionalidade total orgânica e formal por não citar nem se basear em nenhuma lei prévia habilitante, que tenha fixado a competência objectiva e subjectiva para a respectiva emissão; III.C. Inconstitucionalidade total por violação do princípio da precedência de lei; III.D. Inconstitucionalidade total formal devido a não assumir a forma de decreto regulamentar; III.E. Inconstitucionalidade e ilegalidade total por violação do princípio da participação dos interessados na gestão efectiva da Administração Pública; III.F. Ilegalidade total por preterição de formalidade essencial, por falta de consulta da Academia das Ciências de Lisboa;
IV. Nulidades do n.º 1 da RCM n.º 8/2011, no que respeita à imposição do AO90 à Administração Pública Directa;
IV.A. lnconstitucionalidade por violação do direito à língua e da liberdade de expressão escrita, incluindo violação da garantia da proibição de censura;
IV.B. Ilegalidade por violação da liberdade de expressão e opinião no contrato de trabalho em funções públicas;
IV.C. Inconstitucionalidade por violação da garantia da proibição de dirigismo estatal na cultura;

IV.D. Inconstitucionalidade por violação da proibição de legislar sobre a língua portuguesa;
IV.E. Inconstitucionalidade e ilegalidade por violação da estabilidade ortográfica e por violação do princípio da boa fé, na vertente da confiança legítima. "

2. O Ministério Público, em representação do ESTADO, contesta a acção suscitando as excepções de:
- Incompetência material deste STA, com fundamento na insindicabilidade da norma objecto da presente acção, por integrar um acto pertencente à função política;
- Ilegitimidade dos Autores, por inverificação dos pressupostos previstos nos art.s 72º e 73º do CPTA, nomeadamente face à inexistência do pressuposto de recusa de aplicação da norma em 3 casos concretos com fundamento na sua ilegalidade;
- Ilegitimidade do Estado, pois a norma sob impugnação, foi aprovada em Conselho de Ministros, pelo Governo, daí decorrendo a inobservância do art. 10° CPTA.
Pugna ainda pela improcedência da acção.

3. O CONSELHO DE MINISTROS e a PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS contestaram defendendo a improcedência da acção e suscitam ainda a questão da inimpugnabilidade da Resolução do Conselho de Ministros, por se tratar de um acto da função política e não de um acto da função administrativa.
Invocam também a incompetência absoluta da Jurisdição Administrativa, perante a exclusão de actos praticados no exercício da função política e legislativa resultante do art. 4°, nº 3, ETAF, conhecimento que é de ordem pública e precede o de qualquer outra matéria - art. 13° CPTA.
E, uma vez que os autores invocam fundamentos que se enquadram nas inconstitucionalidades previstas no nº 1 do artigo 281° CRP, fica excluído o recurso ao regime de declaração de ilegalidade (art. 72°, nº 2 CPTA) e ainda a inimpugnabilidade do acto, face à inexistência de eficácia externa, por se destinar à Administração Pública em sentido orgânico e não se repercutir assim directamente na esfera jurídica dos autores.
Notificados os autores para se pronunciarem sobre as excepções arguidas pelos RR., (despacho de fls. 297) vieram os AA. responder, defendendo a improcedência das mesmas.


*

Fixa-se a seguinte matéria de facto com interesse para o conhecimento das excepções invocadas:

1. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, foi assinado em Lisboa, em 16.12.1990, pela República Popular de Angola, pela República Federativa do Brasil, pela República de Cabo Verde, pela República da Guiné-Bissau, pela República de Moçambique, pela República Portuguesa, e pela República Democrática de São Tomé e Príncipe - I série-A do DR, nº 193, de 23.08.1991, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

2. A Resolução da Assembleia da República nº 26/91, de 04.06.1991, que aprovou, para ratificação, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa - I série-A do DR, nº 193, de 23.08.91, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

3. Foi aprovada a Rectificação nº 19/91, de 15.10.1991, feita à Resolução da Assembleia da República nº 26/91 - I série-A do DR, nº 256, de 07.11.1991, que aqui se dá por integralmente reproduzida;

4. O Decreto do Presidente da República nº 43/91, de 23.08.1991, ratifica o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – I série-A do DR, nº 193, de 23.08.1991, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

5. O "Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa", assinado na Praia, Cabo Verde, em 17.07.1998, pela República Popular de Angola, pela República Federativa do Brasil, pela República de Cabo Verde, pela República da Guiné-Bissau, pela República de Moçambique, pela República Portuguesa, e pela República Democrática de São Tomé e Príncipe, ratificado pelo Decreto Presidencial nº 1/2000, de 28 de Janeiro - I série-A do DR, nº 23, de 28.01.2000, aqui dado por integralmente reproduzido;

6. Por Resolução da Assembleia da República nº 8/2000, de 18.11.1999, foi aprovado o "Segundo Protocolo, que aprova o Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado na Praia, Cabo Verde, em 17.07.1998 - I série-A do DR, nº 23, de 28.01.2000, e aqui dado por integralmente reproduzido;

7. Por Decreto do Presidente da República nº 1/2000, de 28.01.2000, que ratifica o Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado na Praia, Cabo Verde, em 17.07.1998 - I série-A do DR, nº 23, de 28.01.2000, aqui dado por integralmente reproduzido;

8. Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em São Tomé e Príncipe, em 26 e 27 de Julho de 2004, pelo Governo da República de Angola, pelo Governo da República Federativa do Brasil, pelo Governo da República de Cabo Verde, pelo Governo da República da Guiné-Bissau, pelo Governo da República de Moçambique, pelo Governo da República Portuguesa, pelo Governo da República Democrática de São Tomé e Príncipe, e pelo Governo da República Democrática de Timor-Leste - DR, nº 145, de 29.07.2008, aqui dado por integralmente reproduzido;

9. Resolução da Assembleia da República nº 35/2008, de 29.07.2008, que aprova o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, adoptado na V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada em São Tomé em 25 de Julho de 2004 - I série do DR, nº 145, de 29.07.2008, aqui dado por integralmente reproduzido;

10. Decreto do Presidente da República nº 52/2008, de 29.07.2008, que ratifica o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, adoptado na V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada em São Tomé em 26 e 27 de Julho de 2004 - I série do DR, nº 145, de 29.07.2008, aqui dado por integralmente reproduzido;

11. Extrai-se da Resolução do Conselho de Ministros nº 8/2011, de 09.12.2010 - I série do DR de 25.01, aqui dado por integralmente reproduzido, o seguinte:

"A língua portuguesa é um elemento essencial do património cultural português. A protecção, a valorização e o ensino da língua portuguesa, bem como a sua defesa e promoção da difusão internacional, são tarefas fundamentais do Estado, consagradas na Constituição. A prossecução destes objectivos é, igualmente, um desígnio do XVIII Governo Constitucional, materializado na adopção de uma política da língua, unificada e eficaz, como eixo fundamental do desenvolvimento cultural, económico e social dos Portugueses.

Ao Governo compete criar instrumentos e adoptar medidas que assegurem a unidade da língua portuguesa e a sua universalização, nomeadamente através do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e da promoção da sua aplicação.

A presente resolução do Conselho de Ministros determina a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa no sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012 e, a partir de 1 de Janeiro de 2012, ao Governo e a todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo, bem como à publicação do Diário da República.

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa em 1990, aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 43/91, ambos de 23 de Agosto, simplifica e sistematiza vários aspectos da ortografia e elimina algumas excepções ortográficas, garantindo uma maior harmonização ortográfica. O Acordo Ortográfico incide apenas sobre a ortografia, mantendo-se a pronúncia e o uso das palavras inalteráveis. Deve salientar-se que não se trata do primeiro acordo sobre a ortografia do português ou a primeira convenção ortográfica da língua portuguesa.

Esta resolução adopta, ainda, o Vocabulário Ortográfico do Português, produzido em conformidade com o Acordo Ortográfico, e o conversor Lince como ferramenta de conversão ortográfica de texto para a nova grafia, disponíveis e acessíveis de forma gratuita no sítio da Internet www.portaldalinguaportuguesa.org e nos sítios da Internet de todos os departamentos governamentais, ambos desenvolvidos pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional [ILTEC] com financiamento público do Fundo da Língua Portuguesa. Ainda, para garantir que a aplicação do Acordo Ortográfico é efectuada de forma informada, tanto pelos portugueses em geral como pelas entidades referidas na resolução, prevê-se a realização de iniciativas de informação e de sensibilização e a divulgação de conteúdos de esclarecimento da aplicação do Acordo Ortográfico no sítio da Internet de cada departamento governamental.

O Acordo Ortográfico visa dois objectivos: reforçar o papel da língua portuguesa como língua de comunicação internacional e garantir uma maior harmonização ortográfica entre os oito países que fazem parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (PLP).

Em primeiro lugar, a aplicação do Acordo Ortográfico e a definição de uma base ortográfica comum aos oito países que partilham este património linguístico permitem reforçar o papel da língua portuguesa como língua de comunicação internacional. Trata-se de algo particularmente relevante na criação de oportunidades e na exploração do seu potencial económico, cujo valor é consensualmente reconhecido.

Este instrumento visa contribuir para a expansão e afirmação da língua através da consolidação do seu papel como meio de comunicação e difusão do conhecimento, como suporte de discurso científico, como expressão literária, cultural e artística e, ainda, para o estreitamento dos laços culturais.

Deve referir-se que a cooperação no seio dos países de língua portuguesa tem assumido uma importância crescente, o que levou à criação, pelo Governo, do Fundo da Língua Portuguesa, destinado a promover a língua como factor de desenvolvimento e de combate à pobreza.

Em segundo lugar, a harmonização ortográfica nos países da CPLP é fundamental para que os cerca de 250 milhões de falantes, presentes em comunidades portuguesas no estrangeiro, nos países de língua oficial portuguesa ou, ainda, integrados no crescente número de pessoas que procuram a língua portuguesa por outras razões, possam comunicar utilizando uma grafia comum.

O Acordo do Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 35/2008 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n° 52/2008, ambos de 29 de Julho, determinou uma nova forma de entrada em vigor do Acordo Ortográfico com o depósito do terceiro instrumento de ratificação. Assim, e nos termos do Aviso nº 255/2010, de 13 de Setembro, publicado no Diário da República, 1ª série, de 17 de Setembro de 2010, o Acordo Ortográfico já se encontra em vigor na ordem jurídica interna desde 13 de Maio de 2009. Para salvaguardar uma adaptação e aplicação progressivas dos termos do Acordo Ortográfico, a referida resolução prevê, para determinadas entidades, um prazo transitório de seis anos para a implementação da nova grafia.

Considerando a existência de diversos recursos, em papel ou informáticos, já disponíveis em Portugal, destinados ao apoio à expressão escrita e à produção de texto em língua portuguesa em consonância com as novas regras expressas no Acordo Ortográfico, a utilização da nova grafia está a ser gradualmente introduzida nos hábitos quotidianos dos Portugueses. A adopção do Acordo Ortográfico pelos órgãos de comunicação social tem vindo a contribuir, numa base quotidiana e de forma progressiva e natural, para a familiarização da população com as novas regras ortográficas. A sua aplicação pelas diversas entidades públicas e a sua utilização nos manuais escolares serão determinantes para a generalização da sua utilização e, por consequência, para a sua adopção plena. A este propósito, cumpre esclarecer que, nos termos da Lei nº 47/2006, de 28 de Agosto, e do Decreto-Lei nº 261/2007, de 17 de Julho, os manuais escolares são adoptados por períodos de seis anos, de acordo com um calendário já estabelecido e que importa manter em virtude do investimento feito pelas famílias e pelo Estado na sua aquisição ou comparticipação, adequando a este calendário a utilização progressiva do Acordo Ortográfico, visando que, até ao final do período transitório de seis anos, todos os manuais apliquem a grafia do Acordo Ortográfico. Ora, uma vez que se encontra a decorrer o período transitório, compete ao Governo garantir que os cidadãos disponham de instrumentos de acesso universal e gratuito para a aplicação do Acordo Ortográfico e definir atempadamente os procedimentos a adoptar.

Assim:

Nos termos da alínea g) do artigo 199° da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:

1 - Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 43/91, ambos de 23 de Agosto, em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação.

2 - Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, a publicação do Diário da República se realiza conforme o Acordo Ortográfico.

3 - Determinar que o Acordo Ortográfico é aplicável ao sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012, bem como aos respectivos manuais escolares a adoptar para esse ano lectivo e seguintes, cabendo ao membro do Governo responsável pela área da educação definir um calendário e programa específicos de implementação, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

4 - Manter a vigência dos manuais escolares já adoptados até que sejam objecto de reimpressão ou cesse o respectivo período de adopção, previsto no artigo 4° da Lei nº 47/2006, de 28 de Agosto, e no artigo 2° do Decreto-Lei nº 261/2007, de 17 de Julho.

5 - Determinar que cada departamento governamental deve desenvolver iniciativas de informação e de sensibilização e assegurar a divulgação de conteúdos no respectivo sítio da Internet, para esclarecimento da aplicação do Acordo Ortográfico.

6 - Para os efeitos dos números anteriores, adoptar o Vocabulário Ortográfico do Português e o conversor ortográfico Lince, disponíveis no sítio da Internet www.portaldalinguaportuguesa.org e nos respectivos sítios da Internet dos departamentos governamentais.

7 - Determinar a criação de uma rede de pontos focais para acompanhamento da aplicação do Acordo Ortográfico composta por representantes nomeados pelos membros do Governo responsáveis pelas seguintes áreas:

a) Negócios estrangeiros;

b) Finanças;

c) Procedimento legislativo;

d) Educação;

e) Ensino superior;

f) Cultura;

g) Assuntos parlamentares ...”.


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O DIREITO

Excepção de incompetência do tribunal

Os réus suscitam a excepção de incompetência material dos tribunais administrativos para conhecer a impugnação da RCM 8/2001 invocando que a mesma visou executar, ou pormenorizar, a Resolução da Assembleia da República que acolheu o AO90, e nessa medida não pode deixar de ser integrada no exercício da função política do Governo enquanto meio necessário à implementação das regras do AO90.

Para tanto alegam que a intenção dos autores é impedir ou entravar a aplicação das regras convencionadas no AO90.

Então vejamos.

Os aqui autores vêm interpor, ao abrigo do art. 73° nº1 do CPTA, acção de impugnação de normas, pedindo que seja declarada ilegal com força obrigatória geral a norma do nº1 da RCM 8/2011.

E imputam à referida RCM as seguintes ilegalidades:

" III.A. Inconstitucionalidade total formal e orgânica, decorrente de preterição de indicação da correcta lei habilitante;

III.B. Inconstitucionalidade total orgânica e formal por não citar nem se basear em nenhuma lei prévia habilitante, que tenha fixado a competência objectiva e subjectiva para a respectiva emissão;

III.C. Inconstitucionalidade total por violação do princípio da precedência de lei;

III.D. Inconstitucionalidade total formal devido a não assumir a forma de decreto regulamentar;

III.E. Inconstitucionalidade e ilegalidade total por violação do princípio da participação dos interessados na gestão efectiva da Administração Pública;

III.F. Ilegalidade total por preterição de formalidade essencial, por falta de consulta da Academia das Ciências de Lisboa;

IV. Nulidades do n.º 1 da RCM n.º 8/2011, no que respeita à imposição do AO90 à Administração Pública Directa;

IV.A. Inconstitucionalidade por violação do direito à língua e da liberdade de expressão escrita, incluindo violação da garantia da proibição de censura;

IV.B. Ilegalidade por violação da liberdade de expressão e opinião no contrato de trabalho em funções públicas;

IV.C. Inconstitucionalidade por violação da garantia da proibição de dirigismo estatal na cultura;

IV.D. Inconstitucionalidade por violação da proibição de legislar sobre a língua portuguesa;

IV.E. Inconstitucionalidade e ilegalidade por violação da estabilidade ortográfica e por violação do princípio da boa fé, na vertente da confiança legitima. "

Ora, desde logo, as nulidades invocadas em IV (de A a E) reportam-se com toda a evidência ao próprio AO90, pelo que não poderia através da sindicância de um eventual acto de execução ser aquele AO90 posto em causa.

Já quanto às inconstitucionalidades referidas em III as mesmas apenas têm a ver com a própria RC, pelo que, relativamente às mesmas há que aferir da natureza política ou não desta.

Então vejamos.

Dispõe o art. 1° do ETAF na redacção dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro que “1- Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.

2 - Nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.

Veio, assim, reafirmar-se o comando estabelecido no artigo 212º n.º 3 da Constituição, que define a competência material dos tribunais administrativos, como dizendo respeito aos litígios emergentes das relações jurídico - administrativas.

Nos termos do art. 4° do novo ETAF, na referida redacção, vem o legislador indicar exemplificativamente os litígios que se encontram incluídos no âmbito da jurisdição administrativa, assim como aqueles que dela de encontram excluídos.

E, nos termos do alínea a), do n.º 3 deste art. 4°, diz-se que:

«3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:

a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa".

A delimitação do poder jurisdicional atribuído aos tribunais administrativos faz-se, pois, segundo um critério material, ligado à natureza da questão a dirimir, tal como resulta do art. 212° nº 3 da C.R.P.

A competência dos tribunais determina-se pelo pedido do A., não dependendo o seu conhecimento nem da legitimidade das partes nem da procedência da acção.

Diz M. de Andrade, (N.E. de Processo Civil, 1956, pág.92) que, a competência em razão da matéria atribuída aos tribunais, baseia-se na matéria da causa, no seu objecto, "encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada."

Daí a expressa exclusão supra referida do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal da apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de actos políticos.

E isto não envolve qualquer inconstitucionalidade, pois é imperioso e natural que a jurisdição «administrativa» se ocupe de questões desse mesmo género, e não de quaisquer outras.

Há, pois, que averiguar que tipo de relação está em causa nos autos e se, atentos os pedidos e a causa de pedir, estamos na presença de um acto administrativo ou, como pretendem os réus, perante um acto emitido no exercício da função política.

Como resulta do AC. do STA/Pleno de 20.05.2010, Rº0390/09 a «função política» traduz-se na direcção suprema e geral do Estado, tendo por objectivo definir os fins últimos da comunidade e coordenar as outras funções à luz desses fins, definindo e prosseguindo o interesse geral da colectividade, operando escolhas que procuram melhorar, preservar e desenvolver, o modelo económico e social escolhido.

Como se extrai também do Ac deste STA Pleno - P. 01357/15, de 17/11/2016:

''Tem sido considerado pacifico o entendimento segundo o qual, deve considerar-se que o exercício da função politica se traduz em definir do interesse geral da colectividade e, por isso, que a mesma se concretiza na escolha das opções destinadas à preservação e melhoria do modelo económico e social por forma a assegurar a satisfação das necessidades colectivas de segurança e de bem estar das pessoas. E, por isso, é que só os órgãos superiores do Estado podem exercer essa função pois só eles têm legitimidade para definir, em termos gerais, os fins que a sociedade deve almejar, os meios que cabe utilizar para os alcançar e os caminhos que será necessário percorrer, legitimidade que encontra fundamento no sufrágio popular, isto é, na livre escolha dos cidadãos [cfr. M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª ed., vol. I, pg.s 8 a 10, Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo pg.s 29/30 e Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, pg 45, e Acórdãos deste STA de 22/04/93 (rec. n.º 029.790), de 9/06/1994, (rec n.º 33.975), de 5/03/98 (rec. n.º 43.438), de 9/05/2001 (rec. 28.775) e de 02/04/2009 (rec. n.º 0195/08)].
Como também é indiscutível que a função administrativa se reporta a um momento posterior uma vez que se destina a aplicar as orientações gerais traçadas pela função política revestindo, no essencial, natureza executiva e complementar ... ".

Está aqui em causa uma Resolução do Conselho de Ministros que determina a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e, na parte aqui impugnada dispõe que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo, a apliquem em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação.

Esse Acordo Ortográfico de 1990 foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 43/91, ambos de 23 de Agosto e alvo da Rectificação n.º 19/91, de 7 de novembro, tendo entrado em vigor em Portugal em 13 de maio de 2009, conforme dispõe o Aviso n.º 255/2010, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 182, de 17 de Setembro de 2010.

Trata-se de um tratado internacional firmado em 1990 com o objectivo de criar uma ortografia unificada para o português, a ser usada por todos os países de língua oficial portuguesa.

Foi assinado por representantes oficiais de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe em Lisboa, em 16 de Dezembro de 1990, ao qual aderiu Timor-Leste em 2004 depois da independência.

Ora, nos termos do art.º 9.° da CRP são tarefas fundamentais do Estado o uso e difusão internacional da língua portuguesa.

Pelo que, a adesão do Estado Português juntamente com outros Estados ao AO90 assim como a Resolução da Assembleia da República que o aprovou para ratificação e o Decreto do Presidente da República que o ratificou, são actos que traduzem uma opção fundamental do Estado sobre a definição e prossecução da harmonização ortográfica da língua portuguesa, ou seja, a materialização de uma política da língua enquanto eixo fundamental do desenvolvimento cultural, económico e social dos Portugueses.

Ou seja, estamos perante actos desenvolvidos no exercício da função politico-legislativa apenas suscetíveis de serem sindicados no plano jurídico-normativo no Tribunal Constitucional quando preenchidos os requisitos para tal.

E, será que a RCM tem a mesma natureza de ato emitido no exercício da função política do AO90 ou reveste antes da natureza de ato emitido no exercício da função administrativa?

Independentemente dos argumentos a favor ou contra o novo acordo, importa esclarecer que o mesmo só entrava plenamente em vigor na ordem jurídica portuguesa a partir de 1 de Janeiro de 2016.

E, é precisamente durante o período de transição, que o Governo através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro, e nomeadamente do seu n.º 1, aqui em causa, impôs a observância do novo acordo ortográfico para a Administração Pública (organismos e entidades tutelados pelo Governo) antecipando a sua entrada em vigor.

Como se extrai do nº 1 daquela RCM 8/2011 o Conselho de Ministros ao abrigo da alínea g) do artigo 199° da Constituição, resolve:

"1 - Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto, em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação. "

É certo que é invocado como base habilitante da RCM, o art. 199° aI. g) da CRP que é dedicado à "Competência administrativa" do Governo.

Mas, também é certo que esta RCM n.º 8/2011 e nomeadamente o n.º 1 aqui em causa se traduz apenas na antecipação do final do "prazo de transição" em 4 anos e 9 meses do "Acordo Ortográfico" de 1990 [AO90] à Administração Pública (directa, indirecta e autónoma).

Por outro lado, não é a mera alusão a esta competência administrativa que significa, só por si, que efectivamente é um acto desta natureza que está em causa.

Assim, a questão será aferir se a mera antecipação do prazo de entrada em vigor de um tratado internacional em vigor na ordem jurídica interna reveste algum carácter de execução regulamentar ou se o mesmo tem um carácter exclusivamente político.

Ora, a nosso ver, o momento da aplicação de um tratado internacional aprovado no exercício da função política ainda reveste a natureza política deste.

Na verdade, a oportunidade quanto ao momento da entrada em vigor de um tratado internacional aprovado internamente relativamente à Administração revela também uma opção fundamental do Estado quanto à prossecução de uma política da língua portuguesa, ou seja, ainda a sua materialização.

Pelo que, independentemente da caracterização do tipo de acto que é esta Resolução do Conselho de Ministros, o que está em causa na mera antecipação da entrada em vigor de um tratado é ainda a natureza política do mesmo.

Em suma, por estar excluída da jurisdição administrativa a apreciação dos actos praticados no exercício da função política é este Supremo Tribunal e a jurisdição administrativa materialmente incompetente para apreciar do pedido formulado nestes autos.


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Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em declarar a jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria para conhecer da acção dos autos com a consequente absolvição da instância dos réus.

Sem custas - artigo 4°, n.º 1 alínea b), do RCP.

Notifique.

Lisboa,11 de Maio de 2017. – Ana Paula Portela (relatora) – Madeira dos Santos – Carlos Carvalho (vencido nos termos da declaração de voto que anexo.)

Vencido, não acompanhando a fundamentação/motivação que obteve vencimento.

1. Divergi do mesmo entendimento porquanto considero que, no caso sub specie, presente os termos e acto objecto de impugnação este Tribunal e jurisdição administrativa são materialmente competentes para o seu conhecimento e julgamento.

2. É certo que, da articulação do previsto nos arts. 161.º, aI. i) e 197.º, n.ºs 1, als. b) e c), e 2, da CRP, se extrai constituírem actos emanados do exercício da função política a aprovação de convenções internacionais, bem como os actos de negociação e ajustamento daquelas convenções, actos esses em que a Assembleia da República e o Governo gozam de competências nesse domínio e natureza constitucionalmente conferidas.

3. Também é incontroverso que o Governo, nos termos do art. 182.º da CRP, é o órgão de condução política geral do País [interna e externa - cfr. ainda os arts. 197.º e 198.º, da CRP], mas também constitui o órgão superior da Administração Pública.

4. No exercício da competência administrativa o Governo desenvolve a sua actuação enquanto garante da execução das leis [cfr. arts. 199.º, als. c) e f), e 272.º, n.º 1, da CRP], no assegurar do adequado e cabal funcionamento da Administração Pública [cfr. art. 199.º, als. d) e e), da CRP - exercendo poderes de direcção (quanto à administração directa), de superintendência (relativamente à administração indirecta) e de tutela (sobre administração autónoma)], e na promoção da satisfação daquilo que são as necessidades colectivas [cfr. arts. 199.º, als. c) e f), e 272.º, n.º 1, da CRP].

5. Estamos em face de RCM, sob o n.º 08/2011, que, no nosso entendimento, assume a veste, no caso, de regulamento administrativo, produzido no quadro exercício da função administrativa [cfr. aI. g) do art. 199.º da CRP], em aplicação/transposição do Acordo Ortográfico de 1990 [«AO/90»] e no qual se funda enquanto norma de habilitação, e não como acto emanado da função político-legislativa.

6. Com efeito, dum lado, temos a função política em que se promove e visa a realização das opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade, e nesta se inserem, no caso, o «AO/90», subscrito e assinado no plano internacional pelo Estado Português juntamente com outros Estados, bem como a Resolução da Assembleia da República que o aprovou para ratificação e o Decreto do Presidente da República que o ratificou, já que estes actos traduzem, efectivamente, uma opção fundamental do Estado naquilo que o mesmo entende ser a definição, promoção e realização da harmonização ortográfica da língua portuguesa expressa através dos órgãos supremos do poder do Estado, enquanto materialização de uma política da língua e assumida como um eixo fundamental do desenvolvimento cultural, económico e social dos Portugueses.

7. E, do outro lado, temos a função administrativa, com carácter secundário, subordinada às funções primárias [política e legislativa] e nas quais deve encontrar fundamento, que não pode interferir na formulação das escolhas essenciais daquela colectividade já que às mesmas deve obediência.

8. Ora aquela RCM constitui o meio ou a forma de começar a implementar ou executar, no plano interno e enquanto órgão superior da Administração Pública, aquilo que são, algumas, das decorrências e implicações das obrigações assumidas pelo Estado Português ao haver assinado o «AO/90», definindo tarefas, procedimentos, prazos e regras destinados à implementação e aplicação do AO/90 pelas diversas entidades públicas sob sua direcção, superintendência e tutela, de molde a que, no momento convencionalmente definido e vinculante inserto no referido «AO/90», a Administração Pública estivesse apta a cumprir aquilo que foram e agora são as obrigações/compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português.

9. As determinações constantes da RCM n.º 08/2011 consubstanciam normas administrativas regulamentares, já que situadas a jusante da referida opção política e visando dar-lhe uma efectiva implementação/concretização, na certeza de que se dúvidas existem quanto à sua natureza as mesmas mostram-se desfeitas pelos próprios termos insertos no acto jurídico em crise já que, diz-se expressamente que a «resolução», foi tomada ao abrigo da competência conferida ao Governo pelo art. 199.º, al. g), da CRP, o mesmo é dizer ao abrigo da sua «competência administrativa».

10. Nestas circunstâncias e de harmonia com tudo o atrás exposto, deveria ter sido improcedida a arguida excepção de incompetência em razão da matéria.

Carlos Luís Medeiros de Carvalho