Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:016/15.2BEPDL
Data do Acordão:11/21/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:IRS
BOLSA DE FORMAÇÃO
MÉDICO
VAGA
Sumário:I- A bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial, deve ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores pois o seu escopo é o de estimular a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico.
II- Como corolário dessa opção, a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal e, por isso, fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação (art. 2º n.ºs 3 al. b) e 8 al. c) CIRS em vigor à data dos factos), sendo que, ao invés, estes rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte no momento do seu pagamento ou colocação à disposição nos termos do artigo 99°,1 do CIRS e do Decreto-Lei n° 42/91 de 1991-01-22.
III- Não tendo sido decididas pela sentença recorrida as questões da violação, pela A.T., do direito de audição prévia por referência ao previsto no art. 60.° n.°5 da L.G.T. e da violação do princípio da boa-fé, impõe-se a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para que sobre tais questões se pronuncie.
Nº Convencional:JSTA000P25188
Nº do Documento:SA220191121016/15
Data de Entrada:03/06/2019
Recorrente:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...........
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. Relatório

Inconformada vem a Autoridade Tributária e Aduaneira, recorrer para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada que julgou procedente a impugnação deduzida por A…………., melhor identificada nos autos, contra a liquidação de IRS e juros compensatórios, respeitantes ao ano de 2011.

Foram apresentadas alegações com o seguinte quadro conclusivo:


“A) O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao entender que «a bolsa de formação é recebida no âmbito da ação de formação do médico interno, “não estando sujeito a tributação em sede de I.R.S., por constituir uma prestação paga em virtude da formação profissional dos médicos internos, tudo nos termos do artº.2, nº.8, al.c), do C.I.R.S.», seguindo a Jurisprudência firmada no Acórdão de 12 de janeiro de 2017, do Venerando Tribunal Central Administrativo Sul, no âmbito do processo n.º 09966/16;
B) Ao defender a aplicação deste entendimento, está a contender diretamente com a decisão tomada no Acórdão do Colendo Supremo Tribunal Administrativo, de 31-01-2018, com o n.º de processo 01331/16, que determinou que «I - Afigura-se duvidoso, apesar da designação que o legislador lhe atribuiu, que a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial deva ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, pois sendo embora verdade a conexão desta com a formação especializada dos médicos que a recebem, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico. II- Não tendo sido decididas pela sentença recorrida as questões da natureza remuneratória ou meramente compensatória da prestação auferida e bem assim da alegada “actuação da administração violadora do princípio da boa-fé” relativamente às “bolsas de formação” pagas em 2010 e 2011, impõe-se a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para que sobre tais questões se pronuncie»;
C) Refere-se este Acórdão ao “estatuto especial” conferido aos médicos em regime de vaga preferencial concluindo que: «1. À semelhança dos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial celebram um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, ao abrigo do qual exercem a profissão de Medicina de forma remunerada e recebem formação especializada de cariz teórico e prático (artigos 2.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).2. Contrariamente aos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial: a. Assumem a obrigação de, após internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto); e b. Gozam do direito ao recebimento de uma bolsa de formação, que acresce à respetiva remuneração de médico interno (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto)» (sublinhado nosso);
D) Aquilo que distingue uma vaga normal de uma vaga preferencial não é a existência de uma oferta formativa diferenciada ou alargada para os médicos internos que ocupam as vagas preferenciais, é antes o facto de os médicos internos em regime de vaga preferencial assumirem a obrigação de, após o internato, exercerem funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial;
E) Conforme determina o Colendo STA, «o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de Medicina em regime de internato, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico».
F) Nestes termos, para assegurar uma interpretação e aplicação uniforme do Direito, deverá ser seguida a posição expressa pelo STA no aludido Acórdão, pelo que estas bolsas deverão ser submetidas ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares;
G) Existindo erro de julgamento na interpretação e aplicação do direito, deverá improceder a impugnação e, consequentemente, improceder a condenação em custas da Fazenda Pública.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas., COLENDOS CONSELHEIROS, doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado totalmente procedente por provado, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo, sendo substituída por outra que determine a improcedência da impugnação, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público, neste STA, a fls. 136 e ss dos autos, emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder e que, se se entender que deve proceder, deverá ser ordenada a baixa dos autos para que o tribunal se pronuncie sobre as questões atinentes à violação do direito de audição prévia por referência ao previsto no artº 60º, nº5 da LGT e à violação do princípio da boa-fé por ter ocorrido a frustração de legítimas expectativas.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
2 – Fundamentação

2.1.- Dos Factos

Na sentença recorrida e com relevância para a decisão a proferir julgou-se como provada a seguinte factualidade:
1) A……… exerceu funções como médica de internato no Hospital da Horta, E.P.E., durante o ano de 2011, ocupando uma vaga preferencial na especialidade de oncologia (por acordo).
2) A………… foi alvo de uma ação inspetiva, de âmbito parcial, relativo a IRS de 2011, desenvolvida a coberto da ordem de serviço n.°OI201400128, a qual teve início a 31 de março de 2014 (cfr. teor do relatório de inspeção, de fls. 44 a 46 do processo administrativo).
3) Em 1 de agosto de 2014 foi efetuado o relatório de inspeção, pelo qual se propôs a correção meramente aritmética à matéria coletável de IRS, de 2011, no valor de € 20.970,00, com fundamento no facto de a referida quantia, paga pelo Hospital da Horta, E.P.E., a título de bolsa de estudo, consubstanciar uma remuneração acessória tributável em sede de IRS, nos termos do artigo 2.°, n.° 1 e 2 do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, nos termos seguintes:
"III. Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas
Como incentivo à fixação dos médicos internos no Serviço Regional de Saúde, a Região Autónoma dos Açores (RAA) concedeu bolsas de estudo para a frequência do internato médico constituídas por subsídios mensais equivalentes a 200% (ou 300% no caso de uma especialidade especialmente carenciada) da retribuição mínima mensal garantida na RAA.
O sujeito passivo em epígrafe recebeu rendimentos do Hospital da Horta E.P.E., NIF 512103070, relativos ao ano 2010, entre os quais a assim designada bolsa sobre a qual a entidade patronal não efectuou retenção na fonte. Na declaração de vencimentos emitida pela entidade patronal nos termos do artigo 119°, 1, b) do Código do IRS (CIRS) tais rendimentos são individualizados num quadro que tem por título «Isentos de Imposto».
O sujeito passivo apresentou a declaração de rendimentos modelo 3 de acordo com esta declaração de vencimentos, não tendo incluído os valores constantes neste último quadro entre os rendimentos declarados.
(...)
Estes rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte no momento do seu pagamento ou colocação à disposição nos termos do artigo 99°,1 do CIRS e do Decreto-Lei n° 42/91 e devem constar da declaração a que se refere a alínea o artigo 119°,1,c) do CIRS - declaração mensal de remunerações.
Assim, independentemente da designação que lhes é dada, tais rendimentos estarão sujeitos a IRS por força do disposto nos números acima referidos do artigo 2° do CIRS, originando desta forma IRS em falta aquando da liquidação original.
Tendo o sujeito passivo recebido a designada bolsa nas circunstâncias referidas, deverá a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS relativa ao ano 2011 ser corrigida nos termos seguintes:
Tendo o sujeito passivo recebido a designada bolsa nas circunstâncias referidas, deverá a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS relativa ao ano 2010 ser corrigida nos termos seguintes:
A………… - 2011 Rendim.(€)
0,00
Mod.3 (valor declarado relativo ao Hospital da Horta) 20.970.00
Bolsa recebida Valor a inscrever com a presente correcção 20.970.00
(...)
VIII. Outros Elementos Relevantes.
Direito de audição a que se refere o artigo 60° da Lei Geral Tributária (LGT):
O sujeito passivo exerceu em 15/7/2014 o direito de audição; embora fora do prazo de 15 dias que havia sido concedido na notificação com registo de 20/6/2014 o processo não havia ainda evoluído para relatório final pelo que foi tida em conta, analisando-se a seguir.
(…)
Assim passa-se a analisar o direito de audição.
Refere o seu ponto 9 que a bolsa de formação é um incentivo atribuído, a título compensatório, no âmbito de um processo de formação profissional legalmente regulado, em contrapartida do compromisso assumido de, findo o internato, exercer funções no estabelecimento onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do programa de formação médica especializada que a expoente frequentou.
Considera a expoente que os rendimentos em questão se enquadram no disposto na alínea c) do n°8 do artigo 2° do CIRS, pelo que estão portanto afastados da tributação em IRS.
Dispõe a referida alínea c) que «não constituem rendimento tributável (...) as prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal quer por organismo de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes.»
A este respeito cumpre verificar se os rendimentos em causa se podem considerar prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação profissional.
O alcance da norma é-nos indicado pelo termo exclusivamente.
Assim sendo, estão afastados da tributação não quaisquer rendimentos que tenham uma relação mais ou menos directa com acções de formação profissional desde que assim sejam designados, mas apenas as prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação ou seja, relacionadas com despesas em que o formando incorre em virtude da formação e que não incorreria se não a recebesse.
Esta disposição destina-se exclusivamente a prestações relacionadas com acções de formação efectivamente realizadas (que comportaram para o trabalhador encargos que não suportariam em ambiente normal de trabalho), desenvolvidas de acordo com o regime jurídico que estabelece as regras relativas à formação profissional, quer seja ministrada pelas entidades empregadoras ou pelas entidades previstas na citada disposição.
Assim, nunca esteve em causa a tributação dos rendimentos de um médico interno que não está afecto a uma vaga preferencial. O seu rendimento é integralmente tributado. Um médico colocado numa vaga preferencial recebe uma formação que para a mesma especialidade é a priori indistinta da formação de um médico não colocado numa vaga preferencial.
Bastaria isso para nos convencer da não aplicabilidade da alínea c) do n°8 do CIRS mas o próprio Decreto-Lei n°203/2004 indica a finalidade para que foram criadas as vagas preferenciais, a saber, suprir necessidades de médicos de determinadas especialidades (n°1 do art. 12-A), e estabelece os termos em que é concedida a bolsa de formação: a contrapartida estabelecida pela percepção do rendimento é o compromisso de futura prestação de trabalho para, a entidade que concede a bolsa, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada (n°4 do art.12-A).
Por fim, é de notar que a obrigatoriedade de devolução da bolsa não depende de qualquer aspecto relacionado com a formação em si, nem sequer a falta de aproveitamento (cf. n°10 do art. 12°-A do DL 203/2004), mas antes do incumprimento da obrigação de o médico interno ficar a realizar trabalho para o estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial.
Sendo esta a principal linha de argumentação exposta no direito de audição, outras observações são feitas que carecem de breve análise.
Os pontos 7 e 12 referem que até 31 de Dezembro de 2012 a Administração Fiscal nunca tributou os rendimentos em causa e que pretende agora tributá-los, embora não tenha havido qualquer alteração ao quadro legal tributável.
Concorda-se com a parte final, é certo não ter havido alterações ao quadro legal relevantes para a matéria; mas embora se compreenda que possa haver a percepção, por parte do sujeito passivo, do que é dito ao princípio, a verdade é que terá sido sensivelmente por essa altura que o erro foi detectado e efectuadas as diligências para o corrigir. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não tem evidentemente recursos ilimitados e a sua não intervenção imediata não permite aferir da tributação ou não, em abstracto, de um facto tributário." (cfr fls. 46 a 50 do processo administrativo).
4) Em 6 de agosto de 2014, a chefe de divisão dos serviços de inspeção tributária concordou com o teor do relatório de inspeção (cfr fls. 44 do processo administrativo).
5) Em 22 de agosto de 2014, nome de A…………., foi efetuada em a liquidação de IRS n.°2014.4005257757, relativa ao ano 2011, da qual resultou um valor a pagar de € 6.884,81 (cfr. fls. 56 e 57 do processo administrativo).
6) Em 27 de agosto de 2014, nome de A………, foi efetuada a liquidação de juros compensatório n.°2014.00002151760, no valor de € 529,62 e a liquidação de juros compensatórios por recebimento indevido n.°2014.0000215759, no valor de € 54,22, relativo ao IRS de 2011 (cfr. fls. 52, 58 e 59 do processo administrativo em apenso).
7) Em 28 de agosto de 2014, em nome de A………., foi efetuada a nota de cobrança de IRS n.°2014.11602839, relativa ao exercício de 2011, no valor a pagar de €7.515,19, cujo prazo de pagamento terminava a 6 de outubro de 2014 (cfr. fls. 52 e 53 do processo administrativo em apenso).
8) Em 1 de setembro de 2014, a nota de cobrança de IRS n.° 2014.11602839 foi enviada para A………., sob o registo postal n.°RY655775850PT (cfr. fls. 52 e 53 do processo administrativo em apenso).
9) O registo postal n.°RY655775850PT foi recebido a 3 de setembro de 2014 por A………… (cfr. fls. 53 a 55 do processo administrativo em apenso).
10) Em 26 de setembro de 2014, A………. apresentou no Serviço de Finanças de Ponta Delgada uma reclamação graciosa, a qual foi tramitada com o n.°2992201404002156, nos termos constantes de fls. 1, 3 e 4 do processo administrativo em apenso.
11) Em 23 de outubro de 2014, o Serviço de Finanças de Ponta Delgada instaurou o processo de execução fiscal n.° 2992201481000154, contra A…………, com vista ao pagamento da quantia de € 7.515,19, relativo ao IRS de 2011 (cfr. fls. 1, 2 e 3 do processo executivo).
12) Em 12 de dezembro de 2014, A……… apresentou a petição inicial que deu origem ao presente processo de oposição n.°16/15.2BEPDL, na qual deduz o seguinte pedido (cfr. informação de fls. 56 e fls. 25 do suporte físico do processo).
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Da instrução da causa inexistem factos não provados.

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A convicção do tribunal fundou-se na análise do conjunto da prova documental junta ao suporte físico do processo e ao processo administrativo, nos termos especificados.
A matéria em 1) decorre do alegado nos pontos 109° a 121° da petição inicial e 6° a 10° da contestação.

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2.2.- Fundamentação jurídica

Para julgar procedente a impugnação a sentença recorrida externou a seguinte fundamentação jurídica de que se extracta o seguinte bloco fundamentador:

“(…) a questão em apreço foi já objeto de apreciação pelos Tribunais Superiores desta jurisdição.
De facto, o Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão de 12 de janeiro de 2017, no processo n.°09966/16 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), decidiu que a bolsa de formação em causa não constitui uma remuneração acessória derivada de uma prestação de trabalho dependente, mas antes, um incentivo pecuniário atribuído, a título compensatório, no âmbito de um processo de formação profissional, ao médico interno que ocupe uma vaga preferencial, em contrapartida da obrigação por ele assumida de, findo o internato, permanecer ao serviço do estabelecimento onde se verificou a necessidade que deu lugar àquela vaga preferencial, por um período igual ao do respetivo programa de formação médica especializada.
Segundo o Tribunal Central Administrativo Sul, a bolsa de formação é abonada em 12 mensalidades anuais, no âmbito de um processo de formação médica especializada, teórica e prática, e só vigora pelo período de duração estabelecido pelo respetivo programa de formação médica.
Tal bolsa de formação tem por objetivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado numa especialidade médica, sendo que os médicos internos ficam sujeitos a avaliação.
A conclusão do Tribunal Central Administrativo Sul foi a de que a bolsa de formação é recebida no âmbito da ação de formação do médico interno, "não estando sujeito a tributação em sede de I.R.S., por constituir uma prestação paga em virtude da formação profissional dos médicos internos, tudo nos termos do artº.2, nº.8, al. c), do C.I.R.S., supra identificado, na redacção em vigor em 2011 (norma entretanto revogada pela Lei 82-E/2014, de 31/12 - Lei da Reforma do I.R.S.)".
Este Tribunal adere integralmente e sem reservas ao entendimento firmado no acórdão enunciado, dessa forma assegurando uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. artigo 8.°, n.° 3 do Código Civil).
Assim, respondendo à questão enunciada, o pagamento da bolsa de formação efetuado à impugnante não está abrangido pelo n.° 2 e alínea b) do n.° 3 do artigo 2.° do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
O ato de liquidação do IRS padece, portanto, de vício de violação de lei, pelo que a impugnação deve ser julgada totalmente procedente.
Termos em que fica prejudicado o conhecimento de todas as demais considerações tecidas pela impugnante.”
Quid juris?
A questão que cumpre resolver tem sido reiteradamente tratada em jurisprudência recente consagrada nos acórdãos deste STA de 21.01.2018, recursos n.º01331/06, de 08.05.2019, recurso nº02553/14.7BELRS, 22/05/2019 recurso nº15/15.4BEPDL, de 29/05/2019 e de 25-09-2019, recurso nº0401/15.0BEAVR, no último dos quais o ora relator interveio como Juiz 1º adjunto e, visto que, perante conclusões de recurso, as que se debatem nestes autos são substancialmente idênticas, adoptaremos a solução encontrada naqueles arestos e que passamos a revelar.
Assim, a questão levantada pela AT no seu recurso reconduz-se a saber se a denominada “Bolsa de Formação” a que se referia o n.º 8 do artigo 12º-A do DL n.º 203/2004, de 18.08, constituía ou não rendimento tributável e se, por essa razão, a liquidação de imposto sobre o rendimento efectuada pela AT se mostrava ilegal, como defendeu a sentença recorrida ou legal como sustenta a recorrente FP.
Do discurso fundamentador da sentença supra transcrito, resulta claro que nela se assume o entendimento de que a questionada “bolsa de formação” recebida pela recorrida está excluída de tributação em IRS por constituir uma bolsa de formação, excepcionada pelo artigo 2.º nº 8 al. d) do CIRS, na redacção aplicável.
Dissentindo desse entendimento, a recorrente AT defende, em substância, que a bolsa de formação paga aos médicos internos, em regime de vaga preferencial, constitui um meio para obviar às carências de médicos em determinados serviços ou estabelecimentos, sem nexo directo com a formação médica e sem se encontrar exclusivamente relacionado com ela, antes constituindo uma forma de retribuição do trabalho prestado numa vaga preferencial ao abrigo do contrato de trabalho em funções públicas. E por assim ser, estaria abrangida pela enumeração casuística do artigo 2.º do Código do IRS, não lhe podendo ser aplicada a al. c) do nº 8 da mesma disposição legal.
O MP, neste STA, entende que o recurso não merece provimento nos termos do parecer supra condensado.
No caso dos autos, a ora recorrida exerceu funções como médica de internato no Hospital da Horta, E.P.E., durante o ano de 2011, ocupando uma vaga preferencial na especialidade de oncologia.
Como incentivo à fixação dos médicos internos no Serviço Regional de Saúde, a Região Autónoma dos Açores (RAA) concedeu bolsas de estudo para a frequência do internato médico constituídas por subsídios mensais equivalentes a 200% (ou 300% no caso de uma especialidade especialmente carenciada) da retribuição mínima mensal garantida na RAA.
O sujeito passivo em epígrafe recebeu rendimentos do Hospital da Horta E.P.E., NIF 512103070, relativos ao ano 2010, entre os quais a assim designada bolsa sobre a qual a entidade patronal não efectuou retenção na fonte. Na declaração de vencimentos emitida pela entidade patronal nos termos do artigo 119°, 1, b) do Código do IRS (CIRS) tais rendimentos são individualizados num quadro que tem por título «Isentos de Imposto».
O sujeito passivo apresentou a declaração de rendimentos modelo 3 de acordo com esta declaração de vencimentos, não tendo incluído os valores constantes neste último quadro entre os rendimentos declarados.
Como já se antecipou, elegemos como preferível o entendimento deste STA, expresso no acórdão de 31-01-2018, proc. 01331/16 e nos demais atrás nomeados e que seguiram essa solução e o qual está exposto na sua fundamentação jurídica como segue:
“Dispunha a alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos – que a sentença recorrida julgou aplicável ao caso dos autos -, que estavam excluídas de tributação “as prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal, quer por organismos de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes”.
(…)
Ora, nos termos do artigo 2.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto (diploma que estabelece o regime jurídico do internato médico), na redação em vigor à data dos factos, “após a licenciatura em Medicina, inicia-se o internato médico, que corresponde a um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objectivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respectiva área profissional de especialização”.
Ou seja, o internato médico corresponde ao período de exercício da Medicina que se segue, imediatamente, à conclusão da respetiva licenciatura. Neste período de internato, e ao abrigo de um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, os médicos internos exercem a sua profissão e recebem, simultaneamente, formação especializada de cariz teórico e prático (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).
Por força da aprovação do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, foi aditado ao Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto o artigo 12.º-A, com a epígrafe “vagas preferenciais”, através do qual foi criada uma distinção ao nível das vagas do internato médico, a saber: as vagas comuns e as vagas preferenciais. Nos termos do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, a introdução desta distinção foi motivada pela revogação do contrato administrativo de provimento (operada no âmbito das alterações introduzidas ao regime legal da função pública pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro e pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro), o que obrigou à criação de uma nova forma de vinculação dos médicos internos através da qual pudesse ser assegurado o exercício de funções próprias do serviço público que não revestissem carácter de permanência.
Pela sua importância para a decisão do caso sub judice, transcreve-se o artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto, com a epígrafe “Vagas Preferenciais” (aditado pelo Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro):
1 - No mapa de vagas previsto no n.º 6 do artigo 12.º, podem ser identificadas vagas preferenciais, destinadas a suprir necessidades de médicos de determinadas especialidades, as quais não podem exceder 30 % do total de vagas estabelecidas anualmente.
(…)
3 - As vagas preferenciais são fixadas independentemente da existência de capacidade formativa no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que a elas deu lugar, podendo a formação decorrer em estabelecimento ou serviço diferente daquele, no caso de não existir idoneidade ou capacidade formativa.
4 - Os médicos internos colocados em vagas preferenciais assumem, no respectivo contrato, a obrigação de, após o internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições.
5 - O exercício de funções nos termos do número anterior efectiva-se mediante celebração do contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, o qual é precedido de um processo de recrutamento em que são considerados e ponderados o resultado da prova de avaliação final do internato médico e a classificação obtida em entrevista de selecção a realizar para o efeito.
(…)
8 - O preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno, de valor e condições a fixar por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde, sem prejuízo do recurso a outros regimes de incentivos legalmente previstos.
(…)
10 - O incumprimento da obrigação de permanência prevista no n.º 4, bem como a não conclusão do respectivo internato médico por motivo imputável ao médico interno, salvo não aproveitamento em avaliação final de internato, implica a devolução do montante percebido, a título de bolsa de formação, sendo descontados, proporcionalmente, os montantes correspondentes ao tempo prestado no estabelecimento ou serviço de saúde onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, a contar da data de conclusão do respectivo internato médico.
(…)
Importa, pois, compreender o “estatuto especial” conferido aos médicos em regime de vaga preferencial nos termos do artigo 12º-A transcrito, por oposição ao estatuto dos médicos internos em regime de vaga normal. Assim:
1. À semelhança dos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial celebram um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, ao abrigo do qual exercem a profissão de Medicina de forma remunerada e recebem formação especializada de cariz teórico e prático (artigos 2.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).
2. Contrariamente aos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial:
a. Assumem a obrigação de, após internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto); e
b. Gozam do direito ao recebimento de uma bolsa de formação, que acresce à respetiva remuneração de médico interno (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).
Em face do exposto, parece evidente que aquilo que distingue uma vaga normal de uma vaga preferencial não é a existência de uma oferta formativa diferenciada ou alargada para os médicos internos que ocupam as vagas preferenciais, antes o facto de os médicos internos em regime de vaga preferencial assumirem a obrigação de, após o internato, exercerem funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial.
Afigura-se-nos, pois, duvidoso que, apesar da designação que o legislador lhe atribui, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial deva ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores e como tal excluída de tributação em IRS, como julgado pela sentença recorrida, pois sendo embora verdade a conexão desta com a formação especializada dos médicos que a recebem, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de Medicina em regime de internato, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico, como, aliás, é reconhecido pelo recorrido nas suas contra-alegações de recurso.
Não pode, pois, manter-se o decidido, que julgou procedente a impugnação em razão da aplicação do disposto na alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.”.
Porém, como refere o MP a entender-se que o recurso é de proceder quanto ao referido erro de direito, não se pode deixar de observar que a recorrida tinha invocado ainda as seguintes questões:
-violação, pela A.T., do direito de audição prévia por referência ao previsto no art. 60.° n.° 5 da L.G.T.;
-ter ocorrido a frustração de legítimas expectativas, conforme melhor consta dos pontos 125 a 127 da impugnação. 
Sendo assim, como os termos desta questão não são muito diversos do que levou a determinar no dito acórdão do S.T.A. (de 31-01-2018, Processo nº01331/16) propugna que deve ser apurado se ocorre ainda violação do princípio da boa-fé, sendo de mandar baixar os autos para que daquelas questões se conheça.
Destarte, por via da procedência do recurso, importa revogar a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos ao Tribunal “a quo” para que destes fundamentos conheça, ampliando para tal, se necessário, o probatório fixado, o que se determina.

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3.- Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para que conheça dos demais fundamentos da impugnação.

Custas a final.
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Lisboa, 21 de Novembro de 2019. – José Gomes Correia (relator) – Joaquim Condesso – Ascensão Lopes.