Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0462/13.6BEAVR
Data do Acordão:09/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO VERGUEIRO
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRC
CIRCULAR
ENCARGOS FINANCEIROS
ÓNUS DE PROVA
Sumário:Padece de ilegalidade o apuramento do lucro tributável em obediência à orientação constante no ponto 7. da Circular nº 7/2004, de 30 de Março, da DSIRC, a menos que se demonstre a inviabilidade da determinação directa dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais, recaindo o ónus de tal demonstração sobre a AT - art. 74º nº 3 da LGT.
Nº Convencional:JSTA000P26332
Nº do Documento:SA2202009160462/13
Data de Entrada:04/26/2019
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, SGPS, SA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

O Excelentíssimo Representante da Fazenda Pública, devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, datada de 11-02-2019, que julgou procedente a pretensão deduzida por “A…………, SGPS, S.A.” no presente processo de IMPUGNAÇÃO relacionado com o despacho de 25/1/2013 que indeferiu o Recurso Hierárquico relativo à sua autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2009, no que concerne aos encargos financeiros no valor de € 630.458,12.

Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“ (…)

I) Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…………, SGPS., S.A. relativamente à autoliquidação de IRC do exercício de 2009, pretendendo a recorrente Fazenda Pública a sua revogação e substituição por decisão que considere tal impugnação improcedente.
1. Objecto do recurso
II) A questão decidenda a submeter ao Tribunal ad quem consiste em saber se o Tribunal a quo laborou em erro de julgamento de direito ao ter considerado que, in casu, incumbia à AT o ónus da prova da impossibilidade de realização de uma avaliação por via directa.
2. O ónus da prova
III) Considerou o Tribunal recorrido que, competindo à AT o ónus de prova da impossibilidade de quantificação por via directa, a partir do momento em que esta se limitou a aplicar tal metodologia sem dar cumprimento ao encargo probatório que sobre si impendia, a impugnação teria de proceder.
IV) Ora, a liquidação resultou da entrega, pela própria impugnante, da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, de acordo com as orientações genéricas da AT constantes da Circular 7/2004, na parte refente aos encargos financeiros.
V) No entanto, as orientações genéricas emanadas pela AT não são dotadas de eficácia externa, não vinculando os contribuintes nas suas relações jurídico-tributárias.
VI) No que concerne à questão do ónus da prova, importa referir que estamos perante uma liquidação da iniciativa do contribuinte e não da AT, atendendo a que a autoliquidação é a liquidação de um tributo que não é realizada por aquela, mas pelo sujeito passivo, ainda que seguindo as orientações vertidas numa determinada circular, à qual não deve, porém, qualquer tipo de obediência.
VII) Resultando a liquidação da entrega da declaração de rendimentos por parte do contribuinte, a consequente liquidação assenta, directa e imediatamente, não num qualquer valor apurado pela AT, mas sim nos elementos constantes em tal declaração.
VIII) Nestes termos, não pode recair sobre a AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos de um acto tributário que assentou em factos da iniciativa do contribuinte, tendo o douto Tribunal a quo, ao perfilhar entendimento diverso, incorrido em erro de julgamento, violando o disposto no n.º 3 do artigo 74.º e o n.º 1 do artigo 75.º, ambos da LGT, bem como o preceituado no n.º 1 do artigo 16.º, na alínea a) do artigo 89.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º, todos do Código do IRC.

Requer-se ainda que, atendendo à complexidade da causa e à conduta processual das partes, seja dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, tal como previsto no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais.
Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta decisão judicial, por padecer a mesma de erro de julgamento de direito, assim se fazendo
JUSTIÇA.”

A Recorrida “A…………, SGPS, S.A.” não apresentou contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, vem o processo submetido à Conferência para julgamento.




2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que a matéria apontada nos autos resume-se, em suma, em saber se o Tribunal a quo laborou em erro de julgamento de direito ao ter considerado que, in casu, incumbia à AT o ónus da prova da impossibilidade de realização de uma avaliação por via directa.


3. FUNDAMENTOS

3.1. DE FACTO

Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:

“…


1. Em 28/5/2010 a impugnante procedeu à entrega, via Internet, da Declaração de Rendimentos - Modelo 22 de IRC, referente ao exercício de 2009 (cfr. fls. 42 a 45 e 77 e 78 do processo físico);
2. Tal declaração de rendimentos refletiu, na autoliquidação efetuada no Quadro 07, linha 225, o montante de € 630.458,12 - fls. 43 e pág. 2 de fls. 77 do processo físico;
3. Em 31/5/2010 a B………… SGPS, SA, nipc ………, apresentou a declaração modelo 22 de IRC, regime de tributação de grupo, cuja “soma algébrica dos resultados fiscais”, no montante de € -12.975.973,97, se encontra influenciado pelo valor aludido no ponto anterior – fls. 82 e 83 do processo físico e acordo;
4. Na mesma data, 28/5/2010, a Impugnante apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC, na parte relativa aos encargos financeiros, no valor de € 630.458,12, e contra os seus reflexos na soma algébrica do resultado fiscal ao nível da declaração modelo 22 da declaração de grupo da sociedade, referente ao exercício de 2009 - fls. 1 e seguintes do PA;
5. Em 6/7/2012 foi proferido projeto de decisão de indeferimento e determinada a notificação da Reclamante para efeitos do exercício do direito de audição, que a AT remeteu por via postal sob registo de 13/7/2012 - fls. 4 a 6 do PA;
6. Expirado o prazo sem que tivesse sido exercido o direito de audição prévia, por despacho de 1/8/2012 foi a reclamação graciosa indeferida com os fundamentos que constavam do projeto de decisão - fls. 7 e 8 do PA apenso;
7. Notificada da decisão a que alude o ponto anterior, a agora Impugnante apresentou recurso hierárquico contra tal decisão - fls. 9 a 11 do PA apenso;
8. Remetido o pedido para a Direção de Serviços do IRC-AT com proposta de indeferimento, por “…………, subdiretor geral, na qualidade de “substituto legal do Diretor-Geral”, foi proferido em 4/2/2013 o seguinte despacho: “Indefiro nos termos propostos” na informação nº 2280/2012, de 26/11/2012 – fls. 12 a 22 do PA;
9. Pelo ofício n.º 200 252, de 15-02-2013, remetido sob registo postal da mesma data, a Impugnante foi notificada, na pessoa da sua mandatária judicial, da referida decisão de indeferimento do recurso hierárquico - fls. 23 e 24 do PA apenso;
10. Em 20/5/2013, via telefax, a Impugnante apresentou neste Tribunal administrativo e Fiscal de Aveiro a petição inicial da presente impugnação – fls. 1 e seguintes do processo físico.

*
3.2 Matéria de facto dada como não provada:
Não se apuraram factos relevantes a julgar não provados.

*
4 – Motivação de facto
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da análise crítica dos documentos e informações constantes dos autos e do processo administrativo apenso, os quais não foram impugnados, bem como da posição assumida pelas partes nos respetivos articulados, tudo conforme se encontra especificado em cada um dos pontos do probatório.
Para além dos supra elencados, não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.”
«»

3.2. DE DIREITO

Assente a factualidade apurada cumpre, então, entrar na análise da realidade em equação nos autos, sendo que a este Tribunal está cometida a tarefa de indagar da bondade da decisão recorrida que julgou procedente a impugnação judicial por considerar ilegal a implementação do método preconizado na circular n.º 7/2004, de 30 de Março, da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, no que tange à afetação de encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais, na medida em que a AT não demonstrou a impossibilidade de aplicação de um método de afetação directa, o que redundou na anulação da decisão impugnada e da autoliquidação que teve por objecto.

Para se decidir pela procedência da acção de impugnação considerou o Tribunal “a quo”, invocando jurisprudência do S.T.A. (Pleno) (acórdão de 26/09/218, proc. nº 406/18.9BALSB), a cujos fundamentos aderiu, que “padece de vício de violação de lei o ato de auto-liquidação de IRC efetuado em obediência à orientação constante do ponto 7 da circular nº 7/2004, de 30 de Março, na medida em que se estabelece um método indireto, presuntivo, de afectação dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais, sem observância do disposto nos artigos 87ºa 90ºda LGT”.

Nas suas alegações, a Recorrente refere que o Tribunal recorrido considerou que, competindo à AT o ónus de prova da impossibilidade de quantificação por via directa, a partir do momento em que esta se limitou a aplicar tal metodologia sem dar cumprimento ao encargo probatório que sobre si impendia, a impugnação teria de proceder.
Ora, a liquidação resultou da entrega, pela própria impugnante, da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, de acordo com as orientações genéricas da AT constantes da Circular 7/2004, na parte refente aos encargos financeiros, sendo que as orientações genéricas emanadas pela AT não são dotadas de eficácia externa, não vinculando os contribuintes nas suas relações jurídico-tributárias e no que concerne à questão do ónus da prova, importa referir que estamos perante uma liquidação da iniciativa do contribuinte e não da AT, atendendo a que a autoliquidação é a liquidação de um tributo que não é realizada por aquela, mas pelo sujeito passivo, ainda que seguindo as orientações vertidas numa determinada circular, à qual não deve, porém, qualquer tipo de obediência, de modo que, resultando a liquidação da entrega da declaração de rendimentos por parte do contribuinte, a consequente liquidação assenta, directa e imediatamente, não num qualquer valor apurado pela AT, mas sim nos elementos constantes em tal declaração, o que significa que não pode recair sobre a AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos de um acto tributário que assentou em factos da iniciativa do contribuinte, tendo o douto Tribunal a quo, ao perfilhar entendimento diverso, incorrido em erro de julgamento, violando o disposto no n.º 3 do artigo 74.º e o n.º 1 do artigo 75.º, ambos da LGT, bem como o preceituado no n.º 1 do artigo 16.º, na alínea a) do artigo 89.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º, todos do Código do IRC.

Que dizer?
Desde logo, importa notar que, tal como se aponta no Ac. deste Tribunal de 31-01-2018, Proc. nº 01157/17, www.dgsi.pt, (apud Ac. de 08-03-2017, Proc. nº 0227/16) “… Da leitura atenta que se faz daquele ponto 7, cuja legalidade vem questionada nos presentes autos, pode-se surpreender com facilidade que o método escolhido pela AT se assume como um método indirecto de afectação dos encargos, em contraposição a um método directo, motivado pela dificuldade de utilização de um método de afectação directa ou específica e pela possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria.
Ou seja, a AT, face às dificuldades sentidas de integração do disposto naquele artigo 32º do EBF, desinteressou-se pela obtenção da verdade dos factos, pilar da tributação sobre o rendimento real, cfr. artigo 104º, n,º 2 da CRP, e assumiu como único método aceitável o que parte de uma presunção de que os passivos remunerados das SGPS e SCR devem ser afectos liminarmente e de forma prioritária a empréstimos remunerados a participadas e outros investimentos geradores de juros e, no remanescente, aos demais activos, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição.
Portanto, a recorrente ao seguir as orientações genéricas da AT, a que não estava obrigada, lançou mão de um método indirecto, presuntivo, de afectação de encargos financeiros, mas como bem refere a própria AT na decisão do recurso hierárquico, de nada lhe valeria (à recorrente) fazer de modo diferente porque, caso o fizesse, seria sempre corrigida a sua liquidação nos precisos termos daquelas orientações genéricas existentes, cfr. pág. 39 dos autos, parágrafo 2º.
Aliás, seguindo os contribuintes as orientações da AT, desde que conformes à lei, nas suas autoliquidações, evitam posteriormente dissabores e incómodos no tocante à regularização da sua situação tributária.
Na situação dos autos não vem concretamente explicada a razão pela qual (não) se poderia efectuar a afectação dos encargos financeiros por outro modo (directo), diferente daquele que foi efectivamente utilizado (indirecto), não o explica a recorrente, nem o explica a AT, ambas se limitam a referir que o método utilizado é o determinado pela Circular em questão. E a sentença bastou-se com o facto de a recorrente na autoliquidação ter seguido o método que para si não era obrigatório.
Tratando-se a avaliação indirecta de uma operação sem correspondência com a verdade dos factos, precisamente porque estes não são possíveis de determinar com segurança e certeza, ou porque há indícios muito fortes (a quase certeza) de que os factos evidenciados pelo contribuinte, e que devem servir de fundamento à determinação da matéria tributável, não são verdadeiros, previu o legislador, de forma taxativa, as concretas situações em que é possível o recurso a tais métodos indirectos nos artigos 87º a 90º da LGT.
Portanto, a “norma” emitida pela AT não pode ser considerada de per si, de forma isolada, sem qualquer relação com uma concreta situação de determinado contribuinte, como se tratando de método de afectação ilegal e proibido; se houver razões que justifiquem a sua aplicação, pode tratar-se de método idóneo a efectuar a respectiva afectação, mas se não se verificarem tais razões, trata-se de método inadequado de proceder a essa mesma afectação.
Já vimos que no caso dos autos nada se diz a esse respeito, isto é, nada se diz da possibilidade ou impossibilidade de aplicação de um método de afectação directo, tem-se por bom o método de afectação indirecto, de forma acrítica e sem conexão íntima com a situação concreta da contribuinte.
Contudo, não vindo expressamente invocado pela AT que no caso concreto da recorrente se imponha o recurso a um método de avaliação indirecto, o que lhe competia nos termos do disposto no artigo 74º, n.º 3 da LGT, em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação-, não se pode valer da dita “norma administrativa” da Circular em análise para manter a autoliquidação efectuada de acordo com a mesma.
É certo que as “normas administrativas” constantes da circular que se analisa foram emitidas, precisamente, face às dificuldades e dúvidas quanto à possibilidade de utilização de um método de afectação directa e à possibilidade de haver manipulação desse mesmo método por parte dos contribuintes, no entanto a aplicação de métodos indirectos, quaisquer que eles sejam, de forma generalizada e sem ser tida em conta a situação individual concreta de que cada contribuinte está proibida por lei, resultando essa proibição do disposto nos artigos 104º, n.º 2 da CRP, 81º, n.º 1 e 85º da LGT, e, como também já vimos, as ditas “normas administrativas” não prevalecem sobre qualquer um daqueles preceitos legais, cfr. artigo 112º, n.º 5 da CRP.
Temos, assim, que concluir pela razão da recorrente no que toca a pretender que não se aplique à sua situação concreta o disposto naquele n.º 7 da dita Circular 7/2004, mostrando-se afectada por vício de violação de lei a autoliquidação efectuada.
De resto, o facto de a própria recorrente ter procedido à autoliquidação do imposto, segundo as regras estabelecidas pela AT, não implica que tal seja admissível ou lhe seja oponível, desde logo porque aos contribuintes não assiste o direito de apresentar as suas declarações de rendimentos lançando mão de métodos indirectos que não tenham uma correspondência directa e imediata com a sua realidade contabilística, o que se impõe por força dos princípios da tributação das empresas pelo rendimento real e da igualdade, segundo os quais, todos, e cada um, contribuirão coactivamente para a receita do Estado segundo as suas possibilidades e na medida do esforço que lhes possa ser exigido, cfr. artigo 103º, n.º 1 da CRP.
E já vimos que, o uso de tais métodos indirectos, apenas é consentido à AT nas situações enumeradas na lei e segundo os parâmetros legalmente estabelecidos, neste caso, para salvaguarda da receita do Estado, assim se conseguindo a distribuição do sacrifício, na medida do possível, por todos os contribuintes.»
Por tal motivo, encontra-se decisivamente inquinada a determinação da matéria tributável que suporta o acto de autoliquidação impugnado. …”.

Nesta sequência, diga-se que este Supremo Tribunal tem desenvolvido este tipo de análise, até porque a Recorrente tem insistido nesta matéria, o que nos remete para o Ac. deste Tribunal de 25-09-2019, Proc. nº 0708/13.0BEAVR, www.dgsi.pt, onde se ponderou, com referência ao elemento posto em destaque pela Recorrente, que: “… Salvo o devido respeito, o que a Impugnante pretende é que seja anulada a autoliquidação de IRC do ano de 2006, na parte referente aos encargos financeiros com aquisições de participações sociais, pretensão que deduziu judicialmente depois de ter visto indeferidos, sucessivamente, a reclamação graciosa e o recurso hierárquico que interpôs.
Na verdade, na declaração de rendimentos que apresentou relativamente àquele ano, a impugnação, ora Reclamada, seguiu as instruções veiculadas pela AT através da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, da Direcção de Serviços do IRC (DSIRC), designadamente o ponto 7 da Circular n.º 7/2004, que instituiu um método indirecto, presuntivo, de cálculo dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais.
É certo que, como afirma a Reclamante, a sociedade ora reclamada não estava obrigada a seguir as orientações genéricas veiculadas pela Circular n.º 7/2004, pois é sabido que apenas os serviços da AT a elas ficam vinculados, nos termos do n.º 1 do art. 68.º-A da Lei Geral Tributária (LGT), que dispõe: «A administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias».
A doutrina administrativa assim veiculada, sendo obrigatória para os serviços da AT, não é vinculativa para os tribunais nem para os sujeitos passivos. Na verdade, as ordens internas da AT, seja qual for a forma que revistam – “despachos genéricos”, instruções, circulares ou outra – não são fontes de Direito Fiscal «porquanto a força vinculativa de tais diplomas se acha circunscrita a um sector da ordem administrativa. E essa mesma força vinculativa resulta tão-somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm, e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem» (SOARES MARTÍNEZ, Direito Fiscal, Almedina, 7.ª edição, pág. 111.). A doutrina nelas veiculada apenas poderá convencer de que fazem a melhor interpretação da lei em razão da sua fundamentação.
Apesar da sua natureza não vinculativa para os sujeitos passivos, se estes não as seguirem serão confrontados com os posteriores dissabores e incómodos decorrentes da correcção a que AT sempre estaria obrigada – em função dos princípios da igualdade e da boa fé (cf. art. 55.º da LGT) – pela referida Circular. Assim, como impressivamente ficou dito no acórdão de 8 de Março de 2017, proferido no processo com o n.º 227/16 (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5704ee0d1f7f25b9802580df004e3eed.), «de nada lhe valeria [ao sujeito passivo] fazer de modo diferente porque, caso o fizesse, seria sempre corrigida a sua liquidação nos precisos termos daquelas orientações genéricas existentes».
Serve este intróito para salientar que mal se compreende e causa até alguma perplexidade que seja a AT a vir agora sustentar que o sujeito passivo não deveria ter seguido a doutrina administrativa por ela veiculada no ponto 7 da Circular n.º 7/2004.
Seja como for, como se deixou dito na decisão singular ora reclamada, apesar de ter sido a sociedade ora reclamada quem efectuou a liquidação ao abrigo da referida Circular, a AT recusou razão à Contribuinte quando esta, em sede de reclamação graciosa e de recurso hierárquico, pôs em causa a legalidade da doutrina por aquela veiculada e, consequentemente, do acto de autoliquidação na parte correspondente. E bem poderia a AT, nessa fase, ter pedido à sociedade para «vir apresentar prova do valor a quantificar (procedendo à sua afectação real) referente a encargos financeiros resultantes da aquisição de participações sociais e que de acordo com o seu acto declarativo, são enquadráveis nos termos do n.º 2 do art. 32.º do EBF, e consequentemente, declarados como custos não aceites fiscalmente a acrescer ao lucro tributável, no sentido, de ser posteriormente rectificado o valor a considerar», pedido esse que agora quer que seja o tribunal a fazer, quando não ignora que os poderes judiciais são de mera sindicância da legalidade do acto tributário.
Mas, dizíamos, não o fez e, pelo contrário, “administrativizou” o acto de autoliquidação praticado pela sociedade (Neste sentido, CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 300/401.). Como ficou dito na decisão sumária reclamada, apesar de ter sido a sociedade quem efectuou a liquidação ao abrigo da referida Circular (ou, como alega a Reclamante, «estamos perante uma liquidação da iniciativa do contribuinte e não da AT, atendendo a que a autoliquidação é a liquidação de um tributo que não é realizada por aquela, mas pelo sujeito passivo, ainda que seguindo as orientações vertidas numa determinada circular, à qual não deve, porém, qualquer tipo de obediência»), a AT recusou razão à Contribuinte quando esta, em sede de reclamação graciosa e de recurso hierárquico, pôs em causa a legalidade da doutrina por aquela veiculada; ora, só era possível à AT manter o acto de autoliquidação caso se demonstrasse a legalidade do recurso ao método indirecto previsto na Circular 7/2004, o que implicava que a AT fizesse prova da inviabilidade da determinação directa dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais [cfr. arts. 85.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, alínea b), da LGT], como lhe compete (cfr. art. 74.º, n.º 3, da LGT).
Mal se compreende, pois, a alegação de que a decisão sumária não conheceu da questão do ónus da prova. …”.

Com este pano de fundo, resta apenas dizer que a questão suscitada pela Recorrente já foi amplamente debatida no Supremo Tribunal Administrativo, tendo sido uniformizado entendimento no sentido de que é sobre a administração tributária que recai o ónus de prova da impossibilidade de determinação directa dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais e que, consequentemente, padece de ilegalidade o apuramento do lucro tributável em obediência à orientação constante no ponto 7 da Circular n.º 7/2004, de 30-03, da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, que não seja precedido daquela demonstração - ver os Acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal de 2018/09/26 e de 11-12-2019 (Processos n.ºs 0406/18.9BALSB e 0333/18.0BALSB), www.dgsi.pt.

Perante o carácter assertivo do que ficou exposto nos arestos transcritos e citados e porque concordamos integralmente com o que ali ficou decidido e respectivos fundamentos, sem olvidar o disposto no n.º 3 do art. 8.º do Código Civil, resta apenas reiterar o que ficou ali consignado, até porque as alegações da Recorrente não têm a virtualidade de colocar em crise o que ficou dito nos arestos apontados, o que significa a decisão recorrida não merece qualquer censura, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão no que concerne ao presente recurso.

A recorrente pede a dispensa do remanescente da taxa de justiça devida.
O benefício tem natureza excepcional e pressupõe a ponderação da especificidade da situação, considerando como factores atendíveis a complexidade da causa e a conduta processual das partes (art.6º nº7 Regulamento das Custas Processuais).
No caso concreto estão verificados os requisitos legais da dispensa:
-a conduta processual da requerente não merece censura (por inexistência de expedientes dilatórios ou suscitação de incidentes entorpecentes que dificultassem a prolação de decisão final);
- a solução da principal questão enunciada (ónus da prova dos pressupostos da aplicação de métodos indirectos) foi consideravelmente facilitada pela adesão a jurisprudência consolidada do S.T.A. nos termos apontados.


4. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, mantendo-se a decisão judicial recorrida.

Custas pela Recorrente, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Notifique-se. D.N..




Lisboa, 16 de Setembro de 2020. – Pedro Vergueiro (relator) – José Gomes Correia – Nuno Bastos.