Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01802/17.4BELRA
Data do Acordão:01/16/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24098
Nº do Documento:SA22019011601802/17
Data de Entrada:11/09/2018
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A............, SA E OUTRO
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. O Ministério Público recorre da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que, no âmbito de processo de impugnação judicial instaurada pela sociedade A…………, S.A., contra acto de liquidação de IRC/2013, julgou extinta a instância por desistência apresentada pela sociedade impugnante.

1.1. Aduziu alegações que finalizou com o seguinte quadro conclusivo:

1. Após ordenar a notificação das partes para se pronunciarem sobre a eventual extinção da instância, por desistência, a MM Juíza a quo proferiu a douta sentença recorrida;

2. Fê-lo sem que tivesse ordenado que os autos fossem presentes ao Ministério Público para elaboração de parecer;

3. O parecer do Ministério Público é obrigatório nos termos do preceituado nos artigos 14º, nº 2, e 121º, nº 1, do CPPT (este último normativo aplicável por força do disposto no artigo 211º do CPPT);

4. E constituiu uma formalidade essencial;

5. A preterição de uma formalidade essencial consubstancia, em nosso entender, uma nulidade que determina a anulação do processado subsequente - de acordo com os artigos 98º nº 3 do CPPT e 195º do CPC (aplicável ex vi do artigo 2º e) do CPPT).

6. Em face do exposto, a douta sentença recorrida deverá ser anulada e ordenar-se-á o cumprimento da formalidade em falta, determinando-se que os autos sejam presentes ao Ministério Público para a elaboração do parecer a que aludem os artigos 14º, nº 2 e 121º, nº 1 do CPPT, após o que prosseguirão os seus trâmites.

1.2. As partes - Impugnante e Fazenda Pública - não apresentaram contra alegações.

1.3. O Magistrado do Ministério Público junto do STA não emitiu parecer.

2. Factos processuais com relevo para a decisão do presente recurso:

1. Em 22/12/2017 a Impugnante instaurou impugnação judicial contra acto de liquidação de IRC e juros compensatórios referente ao exercido de 2013, no montante de € 614.510,91 - cfr. petição inicial.

2. Em 3/5/2018 a Fazenda Pública apresentou contestação - cfr. contestação a fls. 48 dos autos.

3. Em 30/5/2018 a Impugnante apresentou requerimento de desistência da instância - cfr. fIs. 101 dos autos.

4. Notificada a Fazenda Pública desse requerimento, nada opôs. Todavia, veio requerer a dispensa do remanescente da taxa de justiça ao abrigo do disposto no art.º 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais.

5. Foi proferida decisão de extinção da instância, por desistência da acção, sem que antes tivesse sido dada vista dos autos ao Ministério Público.

6. Nessa decisão consta ainda o deferimento do pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça formulado pela Fazenda Pública.

3. Com se viu, o Ministério Público, ora Recorrente, vem arguir uma nulidade processual, anterior à decisão recorrida, traduzida na violação do disposto nos artigos 14º, nº 2, e 121º, nº 1, do CPPT, por não lhe ter sido dada vista dos autos antes da prolação da decisão que homologou a desistência da instância apresentada pela Impugnante.

No que concerne à sucessão processual que releva para a apreciação da questão, há que reter que após a lmpugnante ter apresentado requerimento de desistência da instância em processo de impugnação judicial que instaurara contra acto de liquidação de IRC (invocando que o fazia face às excepções suscitadas na contestação - caducidade do direito de acção e erro na forma de processo) e ao qual a Fazenda Pública nada opôs, limitando-se a apresentar um pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, o Mm.º Juiz proferiu de imediato decisão de homologação de desistência da instância e nela concedeu a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Segundo o Recorrente, foi cometida uma nulidade processual em virtude de não lhe ter sido dada a possibilidade de emissão de parecer antes da prolação da decisão recorrida, razão por que pede que esta seja anulada para que seja previamente cumprida aquela formalidade legal.

Vejamos.

Desde logo, importa sublinhar que esta nulidade processual pode ser suscitada no recurso interposto da decisão final, pois que embora as nulidades secundárias em que o tribunal haja porventura incorrido só possam ser, em princípio, conhecidas mediante reclamação a deduzir no prazo geral de 10 dias previsto art.º 149º do CPC, o certo é que, por força do nº 1 do art.º 199º do mesmo Código, esse prazo tem de ser contado do conhecimento da nulidade pelo interessado. E, no caso vertente, face à sucessão processual acima exposta, o prazo para arguição da nulidade não se tinha ainda iniciado quando foi proferida a decisão recorrida - por falta de conhecimento, pelo interessado, da irregularidade cometida - a qual, desse modo, dá cobertura à referida nulidade.

Aliás, a irregularidade cometida só se consumou verdadeiramente com a pronúncia da decisão final, ficando implicitamente coberta por ela, já que o dever omitido se encontra funcionalizado à sua prolação, pelo que essa irregularidade se tornou também vício formal da decisão que lhe deu cobertura.

Dito isto, cumpre indagar da ocorrência da arguida nulidade processual, por omissão de audição do Ministério Público.

Como se sabe, as nulidades processuais são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder - embora não de modo expresso - uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais.

A nulidade invocada pelo Recorrente não consta do rol exaustivo de nulidades insanáveis que o legislador consagrou no art.º 98º do CPPT, motivo por que será à luz do regime contido no art.º 195º e segs. do CPC que deveremos aferir se estamos perante irregularidade processual susceptível de ser qualificada como nulidade (secundária).

Nos termos do art.º 195º, nº 1, do CPC, “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Ou seja, as nulidades, enquanto violações da lei processual, têm que revestir uma de três formas: (i) prática de um acto proibido; (ii) omissão de um acto prescrito na lei; (iii) realização de acto imposto ou permitido por lei, mas sem as formalidades requeridas. E, concomitantemente, têm de poder influir no exame ou na decisão da causa.

Estabelece o art.º 14º do CPPT que «Cabe ao Ministério Público a defesa da legalidade, a promoção do interesse público e a representação dos ausentes, incertos e incapazes» (nº 1) e «O Ministério Público será sempre ouvido nos processos judiciais antes de ser proferida a decisão final, nos termos deste Código» (nº 2).

Por seu turno, o art.º 121º do CPPT estabelece que «Apresentadas as alegações ou findo o respectivo prazo e antes de proferida a sentença, o juiz dará vista ao Ministério Público para, se pretender, se pronunciar expressamente sobre as questões de legalidade que tenham sido suscitadas no processo ou suscitar outras nos termos das suas competências legais.» (nº 1).

Donde decorre que a intervenção do Ministério Público nos processos judiciais tributários regulados no CPPT se restringe à defesa da legalidade e à promoção do interesse público em matéria tributária, o que torna altamente questionável que tenha de ser ouvido antes da homologação de uma desistência de instância, já que esta depende unicamente do consentimento da parte que tenha contestado a acção (art.º 286º, nº 1 do CPC).

Todavia, ainda que se entenda que essa audição se impunha, e que, como tal, foi preterida uma formalidade legal, tal não basta para que se dê por verificada uma nulidade processual, pois, como se viu, esta depende, necessariamente, de a irregularidade cometida poder «influir no exame ou na decisão da causa».

Ora, quanto a este aspecto, nada foi alegado pelo Ministério Público para evidenciar como terá a omissão dessa formalidade influído na decisão de extinguir a instância a pedido do autor; e, por outro lado, também nós não vislumbramos como tal possa ocorrer, na medida em que a desistência da instância depende unicamente de aceitação do réu, tal como aconteceu no caso vertente.

Ou seja, ainda que se considerasse que o juiz, antes de homologar a desistência, devia ter ordenado que os autos fossem com vista ao Ministério Público para eventual emissão de parecer, a omissão dessa formalidade só poderia constituir uma nulidade processual caso existisse algum elemento que evidenciasse que essa omissão teve, ou podia ter tido, influência na decisão tomada, dado que o princípio geral que rege o processo civil é, como se viu, o de que a omissão de acto que a lei prescreva só produz nulidade quando a lei o declare (o que, no caso, não acontece) ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Em suma, não se podendo afirmar que essa irregularidade tem potencialidade para influenciar a decisão tomada - pois, abstractamente, não se vislumbra que considerações podia o Ministério Público tecer para influenciar a decisão de homologação da desistência da instância ou para a ela se opor (para mais quando o pedido de desistência encerra um reconhecimento da justeza das excepções suscitadas e que sempre levariam ao termo da acção) - é de concluir que não se verifica a invocada nulidade.

Todavia, o mesmo já não acontece com a falta de audição do Ministério Público antes da decisão de dispensa do remanescente da taxa de justiça formulado pela Fazenda Pública, tendo em conta que, em matéria de custas, o Ministério Público intervém na dupla vertente de fiscalização do cumprimento da legalidade e de promoção do interesse tributário do Estado, assumindo o papel de parte interessada sempre que se encontre em causa a conformidade da decisão com a lei expressa ou a determinação do crédito do Estado relativo a custas.

E a sua falta de audição é, em abstracto, susceptível de influir na decisão de dispensar as partes do pagamento desse remanescente, já que sempre poderia tecer considerações relevantes para a concreta e casuística avaliação de que ela depende - subordinada, como se sabe, às especificidades da causa e à conduta processual das partes, bem como à ponderação de critérios de razoabilidade e proporcionalidade que têm de presidir à aplicação do nº 7 do art.º 6º do Regulamento das Custas Processuais.

Neste contexto, entendemos que se verifica uma nulidade processual por falta de audição do Ministério Público antes da decisão sobre o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, o que determina a anulação desta estrita decisão - dada a sua autonomia e independência relativamente à decisão de homologação da desistência da instância e dado o disposto no art.º 195º nº 2, do CPC, segundo o qual a nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.

4. Termos em que se acorda em conceder parcial provimento ao recurso e em anular a decisão sobre o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, baixando os autos ao tribunal de 1ª instância para que sejam presentes ao Ministério Público para elaboração de parecer antes da prolação de nova decisão sobre esta matéria.

Sem custas.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2019. – Dulce Neto (relatora por vencimento) – Pedro Delgado – Ana Paula Lobo, vencida segundo voto que anexo.

Voto de vencida

Não acompanho a decisão que logrou vencimento na parte em que confirmou a decisão recorrida pelos fundamentos que passo a indicar:

O rito processual legalmente previsto para o processo de impugnação judicial, constante do art.º 121.º do Código de Processo e Procedimento Tributário impõe que, após a apresentação das alegações, ou, findo o respectivo prazo e antes de proferida a sentença, o juiz dê vista ao Ministério Público para, se pretender, se pronunciar expressamente sobre as questões de legalidade que tenham sido suscitadas no processo ou suscitar outras nos termos das suas competências legais. Tal significa que, em caso de estar em discussão quer a matéria de facto quer o direito atinente ao pedido formulado, o Magistrado do Ministério Público previamente à sentença tenha a possibilidade de sobre eles emitir parecer.

Além disso, ao definir a competência do Magistrado do Ministério Público o Código de Processo e Procedimento Tributário, no art.º 14.º, determina que o Magistrado do Ministério Público será sempre ouvido antes de proferida a decisão final.

Deste modo e, pese embora o pedido de desistência da instância a que se não oponha a parte contrária, quando oferecido depois de apresentada a contestação, art.º 286.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no art.º 2.º do Código de Processo e Procedimento Tributário, impeça que o tribunal tome conhecimento do pedido, não deixa de ser proferida uma decisão final no processo, que, por ser decisão final tem que ser antecedida por audição do Magistrado do Ministério Público, nos processos judiciais tributários para que este possa exercer as suas competências de defesa da legalidade, promoção do interesse público e representação dos ausentes, incertos e incapazes.

O processo judicial tributário tem por função a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária - artigo 96.º, Código de Processo e Procedimento Tributário -.

Nos termos da CRP, do Estatuto do Ministério Público, do ETAF e do Código de Processo e Procedimento Tributário, os magistrados do Ministério Público têm competência para intervir em todos os processos judiciais da área tributária.

Nos termos do artigo 3º, nº 1, alíneas f) e o), do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 47/86, de 15/10, na redacção dada pela Lei n.º 114/2017, de 29/12, compete ao Ministério Público, além do mais, defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis, e recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa. Acresce que preceitua o nº 4, alínea b), do artigo 5º do mencionado Estatuto, que o Ministério Público intervém acessoriamente nos demais casos previstos na lei, e o artigo 6º seguinte, nºs 1 e 2, que quando intervém acessoriamente, o Ministério Público zela pelos interesses que lhe estão confiados, promovendo o que tiver por conveniente, sendo os termos da intervenção os previstos na lei do processo.

Somente a vista ao Magistrado do Ministério Público antes de proferida toda e qualquer decisão final num processo tributário possibilita que seja assegurada processualmente a defesa da legalidade e promoção do interesse público e de outros interesses que ao Ministério Público cabe defender, bem como permite suscitar questões de que o tribunal deva tomar conhecimento. Neste contexto, concluímos que a omissão de vista ao Ministério Público é susceptível de influir no exame e na decisão da causa dado que o n.º 2 do artigo 14.º do CPPT determina que o Ministério Público seja ouvido sempre, nos processos judiciais tributários, antes de ser proferida decisão final, não apenas quando se trate de decisão final sobre o mérito da causa o que tem implícita a ideia de que tal acto é importante para a decisão da causa, não competindo ao juiz fazer um juízo prévio, hipotético, sobre que questões pode ou não o Magistrado do Ministério Público suscitar, naquela concreta situação processual, dado que as competências deste se mostram expressas na lei e apenas podem ser restringidas nos termos da lei e do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público.

Nos termos do disposto no art.º 194.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável subsidiariamente por força do disposto no art.º 2.º do Código de Processo e Procedimento Tributário, «A falta de vista ou exame ao Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória, considera-se sanada desde que a entidade a que devia prestar assistência tenha feito valer os seus direitos no processo por intermédio do seu representante» sendo anulado o processado desde o momento em que ocorreu essa falta se aquela intervenção não ocorrer. A omissão de tal intervenção é legalmente considerada como relevante, como sempre influenciadora do exame e decisão da causa a menos que a parte representada pelo Magistrado do Ministério Público tenha feito valer processualmente os seus direitos. Na presente situação em que não há um processo de partes e o Magistrado do Ministério Público intervém em defesa da legalidade e promoção do interesse público, nunca ocorre essa defesa sem a sua intervenção.

Concluo, pois, que a omissão da vista ao Magistrado do Ministério Público para emitir parecer constitui irregularidade que pode influir no exame e decisão da causa, integrando, pois, nulidade, nos termos do estatuído no artigo 195.º do Código de Processo Civil aqui aplicável por força do disposto no art.º 2.º do Código de Processo e Procedimento Tributário, com a consequente anulação dos actos praticados depois da omissão analisada, pelo que revogaria totalmente a decisão recorrida com a anulação de todo o processado desde o momento da omissão do acto processual imposto por lei e aqui em análise.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2019

Ana Paula Lobo