Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02977/10.9BELRS
Data do Acordão:02/03/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
NÃO RESIDENTE
ABUSO DE DIREITO
Sumário:I – A norma do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS, na redacção aplicável, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE, ao qual o Estado português se obrigou.
II - Essa incompatibilidade da norma com o Direito Europeu não pode ter-se como sanada pelo regime opcional introduzido no artigo 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, aliás, previsto apenas para os residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou na EEE e não para os residentes em Países terceiros.
III – A figura do abuso do direito constitui uma “válvula de segurança" do sistema através da qual se obsta a que certos direitos, válidos em tese, se consumem por, em concreto, se traduzirem numa clamorosa ofensa da Justiça, entendida enquanto expressão do sentimento jurídico socialmente dominante.
IV – O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium pressupõe a existência de duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente (uma inacção ou acção em determinado sentido seguida de acção em sentido oposto).
V – A apresentação em juízo dos Impugnantes, pedindo a anulação da liquidação emitida na sequência da apresentação anual de rendimentos imposta pelo artigo 57.º do CIRS, só pode ser entendida como o legitimo exercício do direito que lhes está reconhecido nos artigos 102.º do CPPT e 268.º da CRP, insusceptível, pois, de preencher os pressupostos do abuso de direito referidos em IV.
Nº Convencional:JSTA000P27123
Nº do Documento:SA22021020302977/10
Data de Entrada:03/03/2020
Recorrente:A......... E OUTROS
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. Inconformada com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial - deduzida por A………. e B………. contra as liquidações de IRS e respectivos juros compensatórios do ano de 2009, no valor global de €111.077,48 - a Autoridade Tributária e Aduaneira recorre para este Supremo Tribunal Administrativo pedindo a sua revogação, com os fundamentos que verteu nas suas alegações e que resumiu nas seguintes conclusões:

«I – Vem o presente recurso reagir contra a Sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo em 30-10-2019, a qual julgou parcialmente procedente os presentes autos de impugnação judicial, intentados por A………., NIF …….. e B………., NIF ………, contra o acto tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e respectivos juros compensatórios, relativos ao ano de 2009, já devidamente identificados nos autos, no valor de € 111.077,48 (cento e onze mil e setenta e sete euros e quarenta e oito cêntimos).

II – O Douto Tribunal a quo postulou pela parcial procedência dos presentes autos, em virtude de ter considerado que o facto de existir uma limitação da tributação a metade das mais valias realizadas apenas para os residentes e não para os não residentes, cfr. n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, constitui uma restrição (ilegal) aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE.

III – No que respeita aos rendimentos provenientes de mais-valias, o ganho sujeito a imposto é constituído pela diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, conforme consta da alínea a) do n.º 4 do artigo 10.º e do n.º 1 do artigo 43.º, ambos do Código do IRS.

IV – Sendo tal saldo apenas considerado em 50% do seu valor no caso de transmissões efectuadas por residentes ao abrigo das alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, cfr. n.º2 do artigo 43.º do Código do IRS.

V – Por seu turno, quanto aos não residentes, como é o caso dos ora Impugnantes, a tributação em sede de IRS incide apenas sobre os rendimentos obtidos em território português, prevendo o n.º 1 do artigo 72.º do CIRS a aplicação de uma taxa especial proporcional de 28% que incide sobre a totalidade do saldo relativo às mais-valias imobiliárias; e isto porque inexiste, no ordenamento jurídico, uma disposição legal semelhante ao n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS que seja aplicável aos não residentes.

VI – Sendo que, esta norma legal não viola, nem discrimina, os direitos dos não residentes, por contraposição aos residentes em Portugal, desde logo, porque os Estados-Membros da União Europeia, em matéria de impostos directos (IRS), têm competência para legislar e exercer a sua jurisdição fiscal, em conformidade com as leis tributárias vigentes no seu ordenamento jurídico-tributário, que, no caso nacional, se rege pela norma constitucional postulada na alínea i) do n.º1 do artigo 165.º da CRP (reserva de lei da Assembleia da República em matéria fiscal)

VII – Da mesma forma, a delimitação do âmbito de aplicação da norma contida no n.º 2 do artigo 43.º do CIRS, a contribuintes residentes no território português, não implica desfavor dos não residentes, desde logo, porque a diferença de tratamento fiscal, deve ser interpretada em conjugação com o sistema geral do imposto sobre o rendimento, aplicável a residentes e a não residentes.

VIII – O facto de se prever uma tributação diferente para não residentes, no caso de realização de mais valias, justifica-se atendendo ao regime de tributação de rendimentos, em especial à diferente taxa de tributação aplicável a residentes e a não residentes. Com efeito, para os primeiros, o rendimento colectável é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias, incluindo, portanto, as mais-valias auferidas em cada ano, sujeito a uma tabela de taxas progressivas, enquanto que, para os segundos, o CIRS prevê a aplicação de uma taxa especial proporcional.

IX – Significa isto que, com a tributação por taxa liberatória, o contribuinte não residente beneficia de uma taxa proporcional que o coloca fora do alcance da aplicação de taxas mais

elevadas aplicáveis aos contribuintes residentes no território português, não se vislumbrando, nesta perspectiva, qualquer desfavor dos não residentes por comparação com os residentes.

X – Até porque não se deve olvidar que a noção de “carga fiscal” é uma noção lata, eminentemente quantitativa e finalística, a qual depende, em concreto e a título meramente exemplificativo, o rendimento declarado; a eventual aplicação do coeficiente conjugal; a eventual aplicação da parcial exclusão tributária do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS, as eventuais despesas que concorrem para a formação da mais-valia, a aplicação das taxas que apuram o imposto, etc…

XI – Sendo que, o acórdão Hollman, referindo-se, por um lado, não à norma, mas à legislação nacional, em clara alusão global ao ordenamento jurídico fiscal e conjugando uma pluralidade de premissas, como sejam: a aplicação do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS; a constatação de que aos não residentes são aplicáveis as taxas do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS e que aos residentes são aplicáveis as taxas progressivas do artigo 68.º do mesmo diploma legal, acaba por restringir os efeitos do seu raciocínio jurídico, concluindo que uma norma, prescrita nos precisos termos do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS, é violadora do Tratado.

XII – O que conduz a uma solução algo idiossincrática, de tributar de um modo mais favorável as mais-valias imobiliárias auferidas por não residentes em território nacional, relativamente aos residentes - beneficiando, doravante, da redução de 50% da base de incidência; sujeitando-se a uma taxa única na maioria das situações inferior às taxas progressivas, e sem que sobre eles impenda a obrigação de cá englobar todos os seus rendimentos.

XIII – De qualquer forma, neste seguimento e em claro respeito pela orientação dada por aquele Tribunal, o legislador nacional através da Lei n.º 67.º-A/2007 de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para o ano de 2008) introduziu os números 7 e 8 do artigo 72.º do CIRS, actuais números 8 e 9.º deste normativo.

XIV – Com a entrada em vigor de tais normativos, tal diferenciação entre residentes e não residentes foi ultrapassada, pelo facto de os não residentes, como é o caso dos ora Impugnantes, poderem optar relativamente aos ganhos de mais valias imobiliárias pela tributação à taxa de acordo com a tabela prevista no artigo 68.º do CIRS, que seria aplicável aos sujeitos passivos residentes em território português, em que os ganhos de mais-valias são sujeitos a tributação apenas em 50%.

XV – Desta forma, com a entrada em vigor da Lei n.º 67-A/2007 de 31 de Dezembro, e com efeitos para o futuro, foi dado aos contribuintes sem domicílio fiscal em território nacional, sujeitos à tributação de mais valias imobiliárias cá obtidas, a opção de englobar os demais rendimentos, permitindo que a estes pudessem ser aplicadas condições similares às dos residentes em território nacional.

XVI – Assim, tendo ficado indelevelmente esgotado o entendimento vertido no acórdão Hollmann (aproveitado na sua fundamentação pelo Aresto do STA de 16-01-2008, proc. n.º439/06) para impedir a aplicação do regime excecional previsto na alínea a) do n.º 1 do anterior artigo 58.º do TCE, é possível afirmar que, tendo sido conferida aos não residentes em território nacional, o direito de ver a sua situação tributária tratada nos precisos termos dos residentes, não só essa vantagem fiscal excessiva se obliterou, como são agora os residentes alvo de discriminação fiscal.

XVII – Poderiam, portanto, os ora Impugnantes fazer a opção pela tributação das mais-valias pelas taxas gerais do artigo 68.º do CIRS, ao abrigo do atual n.º 9 do artigo 72.º do mesmo diploma legal, bastando para tal ter indicado a opção 9 no quadro 8-B - Residência fiscal – Não residentes, “Opção pelas taxas gerais do art. 68.º do CIRS – Relativamente aos rendimentos não sujeitos a retenção liberatória – Art. 72.º n.º 9 do CIRS”, na declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS para o ano de 2009; contudo, compulsada tal declaração, constatamos que os mesmos optaram pela tributação pelo regime geral no quadro 8-B – Residência fiscal – Não residente (destaque nosso).

XVIII – A este respeito, atente-se ao entendimento perfilhado no parecer n.º 97/09, de 11.02.2009 do Centro de Estudos Fiscais e ao que se encontra vertido no Acórdão do CAAD de 22-04-2019, proc. n.º 539/2018-T, cujas soluções aqui damos por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais.

XIX – De facto, pretendendo os Impugnantes que a sua situação tributária se equipare à dos sujeitos passivos residentes, legalmente nada os impediria de assim proceder, pois que se encontrava na sua disponibilidade fazê-lo (o que nunca sucedeu), nos termos já prescritos do artigo 72.º do CIRS. A administração tributária, a tal não se oporia, estribada que estava na lei.

XX – Consequentemente, não tendo os Impugnantes efectuado aquela opção, tendo, pelo contrário, manifestado expressamente que pretendiam a tributação de acordo com o regime geral, legitimada estava a administração tributária, perante a sua declaração de rendimentos, a liquidar o imposto, à taxa de 28%, prevista no n.º 1 do artigo 72.º do CIRS, considerando a totalidade da mais-valia por si realizada e não apenas 50% daquela.

XXI – Nesta senda, cumpre ainda dizer que os Impugnantes cometem abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, dado que, optaram de forma livre e consciente pela tributação segundo o regime geral dos não residentes, assim despoletando o acto tributário e depois, solicitaram a sua parcial anulação com base na pretensa ilegalidade da opção que tomaram, reitere-se, de forma livre e consciente.

XXII – Por último e não se assacando qualquer tipo de vício ou ilegalidade que seja susceptível de inquinar o acto tributário impugnado, também não se alcança qualquer tipo de ilicitude ou desconformidade jurídica na liquidação de juros compensatórios, pelo que esta deve ser mantida, na íntegra, na ordem jurídica.

XIII – Desta forma, a Sentença recorrida, ao decidir como efectivamente o fez, estribou o seu entendimento numa inadequada valoração da matéria de direito relevante para a boa decisão da causa, tendo violado o disposto nas supra mencionadas disposições legais.

1.3. Os Impugnantes, doravante Recorridos, notificados da interposição do recurso apresentaram contra-alegações, tendo aí concluído nos seguintes termos:

«A. O douto Tribunal a quo considerou que o facto de existir uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em território nacional, e já não para os não residentes, de acordo com o n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE.

B. Deste modo, padecendo a liquidação do vício de violação de lei, impunha-se a sua anulação parcial, apenas podendo “perfazer metade do valor que vem liquidado pela mais-valia imobiliária tributável aos impugnantes”.

C. Contra o assim decidido se insurge a recorrente Fazenda Pública.

D. Entendem, no entanto, os aqui recorridos que a sentença deverá ser plenamente confirmada na ordem jurídica, na medida em que não padece dos vícios que lhe são imputados.

E. Com efeito, conquanto se reconheça competência legislativa aos Estados-membros no que tange ao imposto sobre o rendimento, não podem estes incluir na sua regulamentação normas que, em concreto, surjam como violadoras dos Tratados que regem a União Europeia, “na interpretação que deles faça, como fez, o Tribunal de Justiça da UE”.

F. Assim, não assiste razão à recorrente quando sustenta que o n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS não “viola nem discrimina os não residentes”, atento o primado do direito comunitário sobre as normas do direito ordinário nacional.

G. Do mesmo modo, não podemos manifestar concordância com a recorrente quando defende que a existência de uma tributação diferente para residentes e não residentes se justifica “atendendo ao regime de tributação de rendimentos, em especial à diferente taxa de tributação aplicável” a uns e a outros.

H. Na verdade, no caso da alienação de um bem imóvel sito em território nacional, ocorrendo a realização de mais-valias, “os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior à que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos”, sendo que esta “discriminação da norma nacional não é justificável”.

I. Por outro lado, se a aplicação daquela taxa liberatória coloca os não residentes “fora do alcance da aplicação das taxas mais elevadas aplicadas aos contribuintes residentes”, importa não olvidar que, em sentido inverso, impede os não residentes de beneficiar das taxas mais baixas previstas no artigo 68.º do Código do IRS.

J. Por conseguinte, a interpretação e aplicação do nº 2 do artigo 43.º do Código do IRS, no sentido de excluir da limitação da incidência do imposto em 50% as mais-valias resultantes da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, realizadas por um residente noutro Estado-membro da União Europeia, limitando aquela incidência unicamente a residentes em território português, consubstancia uma violação do disposto no artigo 63.º do TFUE, por se traduzir num regime fiscal discriminatório para os residentes noutro Estado-membro da União Europeia.

K. A este entendimento não obsta a argumentação da aqui recorrente, quando sustenta que, com a entrada em vigor da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, que introduziu os n.ºs 7 e 8 ao artigo 72.º do Código do IRS, a diferenciação entre residentes e não residentes foi ultrapassada.

L. Com efeito, apesar de o mencionado acórdão Hollmann ter sido proferido antes daquela mudança legislativa, tem sido entendido que “estas alterações à lei não afastam a invalidade do regime discriminatório ainda em vigor e que foi aplicado à liquidação de IRS em causa”, na medida em que, apesar da consagração da possibilidade de opção pelas taxas do artigo 68.º do Código do IRS, certo é que “a previsão deste regime facultativo faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não sendo a opção de equiparação susceptível de excluir a discriminação em causa”.

M. Ademais, será de rejeitar a imputação de que os impugnantes teriam cometido abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que foi a própria Autoridade Tributária que, “perante a declaração de rendimentos do Requerente, liquidou o imposto (…), considerando a totalidade da mais-valia realizada por aquele e não apenas sobre 50% daquela (…)”.

N. Mesmo que assim não fosse, atendendo à redacção da norma invocada pela recorrente, os impugnantes não poderiam ter realizado a opção nela prevista, dado que a mesma restringe a sua aplicação aos residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu e, como resulta da factualidade dada como provada, os impugnantes foram considerados como residentes na República da Turquia que, como consabido, não integra nem a União Europeia, nem o Espaço Económico Europeu.

O. Nestes termos, por não se revelar merecedora de qualquer censura, e com o douto suprimento de V. Exas., deverá a sentença recorrida manter-se, com a consequente anulação parcial da liquidação e correspondentes juros compensatórios, nos exactos termos na mesma definidos, assim se fazendo JUSTIÇA».

1.4. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

1.5. Cumpre decidir, submetendo-se os autos para o efeito à conferência.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é o teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, na sua vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou, se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), situação em que não podem ser reapreciadas pelo Tribunal ad quem. Na sua vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso sub judice, da alegação de recurso apresentada pela Recorrente resulta de forma clara serem duas as questões que nos são colocadas para julgamento.

A primeira é a de saber se a exclusão de tributação em IRS de 50% das mais-valias imobiliárias prevista no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, obtidas em território português por não residentes em Portugal viola o direito europeu, designadamente o disposto no artigo 63.º n.º 1 do TFUE - princípio da Liberdade de Circulação de Capitais.

A segunda, saber se, tendo as liquidações impugnadas sido emitidas com base na declaração de rendimentos apresentada pelos Recorridos, designadamente em conformidade com as opções por eles aí realizadas, o pedido de anulação que apresentaram em juízo constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

No que a esta última questão respeita, importa sublinhar que embora a questão do eventual abuso de direito não tenha sido suscitada pela Recorrente em qualquer um dos articulados que antecederam a sentença, que, por essa razão, dela não conheceu, constituindo, nesta medida, uma questão nova, não obsta que, no caso, seja incluída no objecto do recurso e, consequentemente, que este Supremo Tribunal Administrativo, perante quem foi pela primeira vez suscitada, a aprecie e decida.

Na verdade, não obstante em matéria de recurso o ordenamento jurídico português seguir " o modelo do recurso de revisão ou reponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já pedido e decidido pelo tribunal a quo, baseado nos factos alegados e nas provas produzidas perante este", (Amâncio Ferreira, "Manual dos Recursos em Processo Civil", Coimbra, 2000, página 106.) e seja pacífico na jurisprudência o entendimento de que não é admissível invocar em sede de recurso questões não suscitadas e, consequentemente, não decidias na decisão recorrida, certo é que tal regra é, neste caso, derrogada pela natureza oficiosa da questão colocada.

Como nos ensina a doutrina “ O objecto do recurso é integrado pelas respectivas conclusões, como se infere do n.º 4 do artigo 639.º (…) estendendo-se ainda a questões de conhecimento oficioso, relativamente às quais existam elementos que possam ser apreciados”.

Vale, pois, o que vimos dizendo, para que se afirme que a restrição consagrada no artigo 608.º, n.º 2 do CPC – no sentido de que o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento - também se aplica em recurso, o que significa que, sendo invocada perante este Supremo Tribunal Administrativo questão nova que seja de conhecimento oficioso, como é o caso do abuso de direito, a sua apreciação nos está imposta.

Apreciação que realizaremos de imediato por ser indiscutível que o princípio do contraditório - que no âmbito das questões de direito de conhecimento oficioso assume especial relevo por constituir a única forma de obstar à prolação de uma decisão surpresa – se mostra já cumprido, uma vez que os Recorridos sobre essa questão se pronunciaram já nas contra-alegações apresentadas.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

A sentença efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

1) O C……….., entidade patronal do Impugnante A………., propôs que ele fosse trabalhar na República da Turquia (ou Turquia) por um período mínimo de 3 anos (provado por inquirição das testemunhas);

2) Desde o ano de 2007 que o Impugnante A………… começou a trabalhar na República da Turquia, desempenhando funções de administração numa sociedade bancária detida a 100% pelo C………., tendo sido acompanhado, uns meses mais tarde, pelo seu cônjuge, a Impugnante B………., e pelos seus filhos (provado por inquirição das testemunhas);

3) Na Turquia, os referidos Impugnantes passaram a residir em casa arrendada e paga pelo C…………. (provado por inquirição das testemunhas);

4) Pelo menos durante o ano de 2008 a Impugnante B………… fez os seus descontos para a CGA (doc n.º 3, da PI, a fls 94 e 95 do proc. físico);

5) O Impugnante A………. deslocava-se frequentemente a Lisboa para reuniões com a Administração do C……….., bem como se deslocava a Lisboa o agregado familiar, fora do período escolar dos filhos dos Impugnantes (inquirição das testemunhas);

6) A Impugnante B…………. passou a viajar com frequência para Lisboa ao longo dos anos de 2008 e 2009, em virtude de a sua mãe D………… padecer de sucessivos problemas de saúde (inquirição das testemunhas e docs. 5 a 109 da Pi, de despesas e de exames médicos);

7) Em 02-12-2009 foi celebrado o seguinte contrato:

«CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA

Entre:

E……….., casado, natural de Lisboa, portador do cartão do cidadão n.° ………, com data de validade 25-07-2014, NIF ………., residente em Av. ………, n.° ……., Estoril, e F……….., casada, portadora do Bilhete de Identidade n.º ……. e NIF ………., residente na mesma morada, doravante designados como Primeiros Contraentes,

E

A………, casado, natural de Lisboa, residente na Rua ……., n.º ……….. em Lisboa, titular do Bilhete de Identidade n.° ………, emitido em 26-05-2004, pelos SIC de Lisboa e NIF ……… e B………., casada, natural de Angola, residente na mesma morada, titular do Bilhete de Identidade n.° ………. emitido em 21-07-2004, pelos SIC de Lisboa e NIF …………, doravante designados como Segundos Contraentes.

É celebrado e reciprocamente aceite o presente contrato, o qual se rege pelas cláusulas e condições seguintes e, no que for omisso, pela legislação aplicável:

CLÁUSULA PRIMEIRA

(Titularidade e Posse}

Os Primeiros Contraentes são proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano destinado a habitação, sito em Av. ……..n.° ………, Estoril, da Freguesia de Estoril, concelho de Cascais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.° 3823, da freguesia de Estoril e inscrita na matriz predial urbana com o artigo n.° 7965, da freguesia do Estoril.

CLÁUSULA SEGUNDA

(Preço)

Os Primeiros Contraentes prometem vender aos Segundos Contraentes, e estes prometem reciprocamente comprar, o prédio urbano identificado na cláusula primeira, devoluto e livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, e desocupado de pessoas e bens, pelo valor total de € 750,000,00 (setecentos e cinquenta mil euros), a ser pago de acordo com o estabelecido na cláusula seguinte.

CLÁUSULA TERCEIRA

(Pagamento)

O pagamento do preço acordado será efectuado da seguinte forma:

1. € 194.000,00 (cento e noventa e quatro mil euros), nesta data, como sinal e princípio de pagamento, do qual os Primeiros Contraentes dão quitação após boa cobrança.

2. O remanescente preço será pago no acto da outorga da escritura de compra e venda, através de cheque bancário.

CLÁUSULA QUARTA

(Entrega das chaves e posse)

1. A entrega das chaves do imóvel é feita nesta data, com a assinatura do presente contrato.

2. Após a entrega das chaves fica o Segundo Contraente investido na posse do imóvel.

3. Não obstante a data da escritura pública de compra e venda, os Segundos contraentes poderão começar a utilizar e a fruir do imóvel nesta data sendo o mesmo entregue aos Segundos Contraentes, em bom estado de conservação.

CLÁUSULA QUINTA

(Escritura de compra e venda)

1. A outorga da escritura pública de compra e venda, relativa ao prédio urbano que serve de objecto ao presente contrato promessa, será realizada até ao dia 31 de Janeiro de 2010, podendo ainda o mesmo prazo ser alterado mediante acordo das partes envolvidas.

2. O prazo referido no n.° 1 da presente cláusula poderá ser prorrogado por mais 30 (trinta) dias, igualmente sem necessidade de acordo reduzido a escrito e desde que devidamente comunicado pelos contraentes, entre si, com antecedência de 8 dias sobre o termo do prazo.

3. É da responsabilidade dos Segundos Contraentes todas as despesas respeitantes a IMT, se houver lugar ao seu pagamento, celebração das escrituras em causa e registos.

4. É da responsabilidade dos Segundos Contraentes a marcação da respectiva escritura de compra e venda, ficando obrigado a avisar os Primeiros Contraentes da data e local da mesma, com prazo não inferior a 15 dias, contados da data e local da mesma, com prazo não inferior a 15 dias, contados da recepção de comunicação escrita a ser enviada pelos Segundos Contraentes aos Primeiros Contraentes, mediante carta registada com aviso de recepção.

CLÁUSULA SEXTA

(Registos Provisórios)

Os Segundos Contraentes reservam-se o direito de promover, a expensas suas, os actos de registo provisório de compra e venda prometida pelo presente contrato, obrigando-se os Primeiros Contraentes, em tal caso, a assinar os respectivos requerimentos junto da conservatória do registo predial de Lisboa, na data e hora a designar pelos Segundos Contraentes.

CLÁUSULA SÉTIMA

(Incumprimento)

1. Se o prazo indicado no n° 1 da cláusula quinta for ultrapassado por causa imputável aos Segundos Contraentes e desse facto resultar o incumprimento definitivo do contrato, os Primeiros Contraentes poderão rescindir o presente contrato-promessa, perdendo o Segundo Contraente todas as quantias entregues a título de sinal e princípio de pagamento.

2. Se o prazo no n° 1 indicados da cláusula quinta, forem ultrapassados por causa imputável aos Primeiros Contraentes e desse facto resultar o incumprimento definitivo do contrato, os Segundos Contraentes poderão optar por receber as quantias entregues a título de sinal em dobro, ou a recorrer à execução específica, nos termos previstos na cláusula oitava deste contrato-promessa.

CLÁUSULA OITAVA

(Execução especifica)

O presente contrato está sujeito ao regime de execução específica nos termos previsto no art. 830.° do C.C.

CLÁUSULA NONA

(Responsabilidades anteriores à escritura)

Os Primeiros Contraentes são responsáveis e assumem todos os encargos relativos ao imóvel objecto do presente contrato-promessa, desde que vencidos ou exigíveis anteriormente à celebração da escritura de compra e venda.

CLÁUSULA DÉCIMA

(Domicílios Contratuais)

Cada um dos intervenientes no presente contrato promessa obriga-se a comunicar aos restantes, por escrito, qualquer alteração à respectiva morada identificada no preâmbulo do presente contrato, aceitando expressamente que, até se efectuar tal comunicação, os únicos locais válidos para serem endereçadas comunicações decorrentes deste contrato são os constantes daquele preâmbulo. A recusa de recebimento de qualquer comunicação vale para todos os efeitos como comunicação efectuada.

CLÁUSULA DÉCIMA PRIMEIRA

(Alterações ao Contrato Promessa)

Quaisquer alterações a este contrato só serão válidas desde que convencionadas por escrito, com menção expressa de cada uma das cláusulas eliminadas e da redacção de cada uma das aditadas ou modificadas.

CLÁUSULA DÉCIMA SEGUNDA

(Resolução do contrato)

O presente contrato extingue-se:

1. Por resolução, nos casos nele previstos;

2. Com a celebração da escritura de compra e venda;

3. Com a não celebração da escritura de compra e venda no prazo referido na cláusula quinta, por facto imputável ou não a qualquer dos contraentes.

CLÁUSULA DÉCIMA TERCEIRA

(Disposições finais)

Para qualquer questão emergente ou omissa do presente contrato, as partes elegem como competente o foro da Comarca de Cascais, com expressa renúncia a qualquer outro.

As partes dispensam as formalidades previstas no n.º 3 do art. 410.° do C.C., do reconhecimento presencial das assinaturas e certificação, de existência de licença de utilização e, renunciam, expressamente, a invocar a omissão destes requisitos.

O presente contrato é feito em duplicado, ambos valendo como originais, ficando cada uma das partes com um exemplar, os quais vão ser assinados.

Estoril, 2 de Dezembro de 2009» (doc. 110 da PI).

8) Em 26-02-2010 D……… apresentou a sua declaração de IRS Modelo 3, relativa ao ano de 2009, declarando rendimentos de pensões (doc. de fls. 329 a 334 do PAT apenso aos presentes autos);

9) Em 12-08-2010 os Impugnantes entregaram, via Internet, a sua declaração de rendimentos Modelo 3, referente ao IRS do ano de 2009, tendo declarado serem “não residentes”, indicando representante fiscal (doc n.º 1, da PI, a fls. 90 e 91 do proc. físico; docs de fls. 318 a 322 do PAT apenso aos autos);

10) Da declaração identificada no ponto anterior fazia parte integrante o Anexo G, onde os Impugnantes declararam a alienação, em Dezembro de 2009, pelo valor de €600.000,00 de um prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º 794, fracção M, da Freguesia de Santos-o-Velho, que tinha sido adquirido, em Novembro de 1998, pelo preço de €120.000,00, e declararam a intenção de reinvestir aquele valor de €600.000,00 (doc n.º 1, da PI, a fl. 92 do proc. físico; docs de fls. 318 a 322 do PAT apenso aos autos);

11) Com data de 13-08-2010 foi emitida a liquidação de IRS n.º 2010-5884931311, referente ao ano de 2009, no valor de 110.160,00 €, incluindo, ainda, 917,48 € de juros compensatórios liquidados na liquidação abaixo identificada no facto 12, no valor total liquidado de 111.077,48 € (doc n.º 2, da PI, a fl. 93 do proc. físico e fls. 315-316 do PAT apenso), nos seguintes termos:



12) Foi também emitida a liquidação n.º 2010-1540776, de juros compensatórios, no valor de 917,48 €, relativos ao período de 29-05-2010 a 12-08-2010, sobre o valor de 110.160,00 €, à taxa de 4% (doc n.º 2, da PI, a fl. 93 do proc. físico e fls. 317 do PAT apenso);

13) A PI que deu origem à presente Impugnação deu entrada em 30-12-2010.

3.2. Fundamentação de Direito

3.2.1. Estão em causa neste recurso a liquidação de IRS emitida pela Administração Tributária a dois cidadãos portugueses residentes na Turquia, na parte respeitante às mais-valias obtidas com a venda, em 2009, de um imóvel sito em Lisboa, que havia sido adquirido em 1998, bem como a liquidação respeitante aos respectivos juros compensatórios na parte que com aquela tributação se conexionam.

Para calcular o valor do rendimento a tributar, a Administração Tributária atendeu exclusivamente ao disposto no n.º 1 do artigo 43.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), ao qual aplicou a taxa autónoma de 28%, não aplicando o regime de exclusão de tributação de 50% previsto no n.º 2 desse artigo, na redacção em vigor à data dos factos.

Tais liquidações foram judicialmente impugnadas junto do Tribunal Tributário de Lisboa, com fundamento, para o que ora releva atento o objecto do recurso, em que padecem de vício de violação de lei, por traduzirem uma discriminação negativa dos não residentes face aos residentes em Portugal, restritiva da liberdade de circulação de capitais e, por isso, contrária ao artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

Na decisão recorrida, a Meritíssima Juíza, após expender um profundo discurso argumentativo de facto e de direito, reconheceu razão aos Impugnantes, anulando, nessa parte, as liquidações impugnadas.

É, pois, contra esta decisão que vem dirigido o presente recurso, insistindo a Recorrente nos mesmos argumentos que invocou em abono da sua pretensão em anteriores articulados, a que aditou, agora em recurso, a invocação de abuso de direito, por, em seu entender, os Recorridos, ao apresentarem-se em juízo a pedir a anulação de uma liquidação emitida com base na sua própria declaração e na opção de tributação que voluntariamente realizaram assumem uma conduta de venire contra factum proprium.

3.2. Apreciemos, então, per se, cada uma das questões que deixámos enunciadas.

3.2.1. Relativamente à primeira questão que nos é colocada, tributação de não residentes por mais-valias imobiliárias em sede de IRS, este Supremo Tribunal Administrativo, por acórdãos do Pleno da Secção Tributária de 9 de Dezembro de 2020, proferidos nos processos n.º 75/20.6BALSB e 64/20.0BALSB, tomou pela primeira vez posição sobre a matéria, uniformizando jurisprudência no sentido de que «o n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável, ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, incompatível com o art. 63.º do TJUE, não tendo essa discriminação negativa dos não residentes sido ultrapassada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro».

Considerando que em ambos os acórdãos se dá resposta cabal a todos os argumentos convocados pela Recorrente nesta parte do seu recurso, mas que no acórdão proferido no processo n.º 75/20.6BALSB também estão em causa mais-valias imobiliárias obtidos em Portugal por residente em país terceiro à União Europeia, será por acolhimento da sua fundamentação, que transcrevemos e fazemos nossa para efeitos do julgamento da primeira questão colocada neste recurso:

«(…)

Vejamos:

Os ganhos obtidos por pessoas singulares com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, quando não constituam rendimentos empresariais e profissionais, são tributados, em sede de IRS, no âmbito da categoria G (incrementos patrimoniais), como mais-valias, nos termos do disposto nos arts. 9.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS.

Esses rendimentos, desde que resultantes da transmissão de direitos reais relativos a imóveis situados em território português consideram-se aqui obtidos [art. 18.º, n.º 1, alínea h), do CIRS], pelo que ficam abrangidos pela incidência de IRS quando auferidos por titulares não residentes (cf. arts.13.º, n.º 1 e 15.º, n.º 2, do CIRS).

O valor desses rendimentos que seja qualificado como mais-valias, quando obtidos por sujeitos passivos residentes é sujeito a englobamento e a tributação é efectuada às taxas gerais progressivas estabelecidas no art. 68.º do CIRS, mas apenas é considerado em 50%, como resulta do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável.

Quanto aos sujeitos passivos não residentes, a tributação desse valor faz-se à taxa fixa especial de 28%, nos termos do art. 72.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, ou, se forem residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (EEE), neste caso por opção, às taxas gerais progressivas do art. 68.º o CIRS, considerando-se então todos os seus rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, mas sobre 100% da mais-valia imobiliária realizada (cf. arts. 72.º, n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável).

A questão que se coloca é a de saber se, como alega a Recorrente, este regime opcional, que foi introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), então sob os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14 e n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável), aditados ao art. 72.º do CIRS, veio pôr termo à discriminação negativa dos não residentes, que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) tinha já considerado verificar-se relativamente ao n.º 2 do art. 43.º do CIRS.

Na verdade, o TJCE – em acórdão (Hollmann) proferido em 11 de Outubro 2007, no processo n.º C-443/06 (Disponível em

https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62006CJ0443&from=EN.), em resposta ao reenvio prejudicial efectuado pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 493/06 (Vide os acórdãos proferidos nesse processo n.º 439/06, o primeiro fazendo o reenvio prejudicial e, o segundo, já referido na nota 3 supra, decidindo o recurso, após a pronúncia do TJCE:
- de 28 de Setembro de 2006, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5b7c4837b616cebc802571fd003c0cec;
- de 16 de Janeiro de 2008, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1827bec1e1931004802573d800503721.), julgou «incompatível com o direito europeu a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE».

É certo que o legislador nacional, através da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), procurou obviar a esse tratamento discriminatório dos residentes comunitários e do EEE, facultando-lhes, em termos opcionais, a possibilidade de tributação das mais-valias imobiliárias em condições similares às aplicáveis aos residentes em território português, aditando ao art. 72.º do CIRS os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14). Ou seja, após a referida alteração legislativa ficaram a vigorar, na área da tributação das mais-valias imobiliárias, dois regimes distintos, aplicáveis a não residentes: um regime geral, aplicável a quaisquer sujeitos passivos não residentes, traduzido na tributação desses rendimentos à taxa especial de 28% incidente sobre a totalidade do rendimento e um regime especificamente aplicável a residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do EEE, equiparável ao regime de que beneficiam os sujeitos passivos residentes.

Mas esse regime específico de opção, não só constitui um ónus suplementar comparativamente aos residentes, como não afastou a referida discriminação negativa. Como bem concluiu a decisão recorrida, «o regime de equiparação actualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal».

Como também salientou a decisão recorrida, o acórdão (Gielen) do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 18 de Março de 2010, proferido no processo n.º C-440/08 (Disponível em
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:62008CJ0440.), após salientar que «a opção de equiparação [que] permite a um contribuinte não residente, (...) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório» não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais, concluiu que «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (...) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório» e que o Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (...) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes».

Ou seja, o regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, não veio sanar a discriminação negativa resultante da norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS para os não residentes e a violação do art. 63.º do TFUE que dela resulta.
Finalmente, porque o caso respeita a um sujeito passivo residente, não num outro Estado-membro da União Europeia ou no EEE, mas num País terceiro, poderia questionar-se a validade das proposições acima formuladas. Mas não há motivo para tanto.

Desde logo, porque o regime de abolição de restrições à livre circulação de capitais vigorar, não só entre Estados-membros da Comunidade Europeia, mas também entre estes e Estados terceiros, sendo o seu conteúdo o mesmo para as duas situações, conforme decorre do n.º 1 do art. 63.º do TFUE (Cf. Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio (coord.), Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, Almedina, 2012, anotação aos arts. 63.º a 66.º, do TFUE, pág. 368 e João Sérgio Ribeiro, Direito Fiscal da União Europeia, Almedina, 2018, pág. 56.).

Como bem ficou dito na decisão recorrida, a esse propósito «é elucidativo o acórdão do TJUE de 18 de Janeiro de 2018, no Processo n.º C-45/17 (acórdão Jahin). Aí se refere que o artigo 63.º do TFUE estabelece a livre circulação de capitais entre Estados Membros, por um lado, e entre Estados Membros e países terceiros, por outro, de onde decorre que o âmbito de aplicação territorial da livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º TFUE não se limita aos movimentos de capitais entre Estados Membros, mas estende se igualmente aos movimentos de capitais entre Estados Membros e Estados terceiros (parágrafos 19 e 21). No que se refere ao âmbito de aplicação material do artigo 63.º TFUE, embora o Tratado não defina o conceito de «movimentos de capitais», resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que esses movimentos, na acepção desse artigo, compreendem, nomeadamente, as operações mediante as quais os não residentes efectuam investimentos imobiliários no território de um Estado-Membro. Pelo que as imposições efectuadas nos termos de uma legislação nacional que incidem sobre os rendimentos prediais e sobre uma mais-valia obtida na sequência da alienação de um imóvel, adquirido num Estado Membro por uma pessoa singular que reside num Estado terceiro, estão abrangidas pelo conceito de «movimentos de capitais», na acepção do artigo 63.º TFUE (parágrafos 22 e 23)».
Mas, se alguma dúvida subsistisse relativamente à aplicação do entendimento anteriormente expresso quando a discriminação operada pelo art. 43.º, n.º 2, do CIRS, incide sobre um residente em País terceiro, ela deve ter-se por expressamente afastada pelo TJUE, que, por despacho da 7.ª Secção proferido em 6 de Setembro de 2018, no processo C-184/18 (Disponível em
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:62018CO0184&from=PT.) – em pedido de reenvio prejudicial formulado pelo Tribunal Central Administrativo Sul no processo n.º 1358/08.9BESNT (Vide os acórdãos proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul nesse processo n.º 1358/08.9BESNT (6021/12), o primeiro fazendo o reenvio prejudicial e, o segundo, decidindo o recurso, após a pronúncia do TJUE:
- de 19 de Setembro de 2017, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/5a8ed864080e522d802581a200533e1c;
- de 8 de Maio de 2019, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/bca5ceb1b80d357f802583f40058bb8b .) –, se pronunciou no sentido de que «[u]ma legislação de um Estado Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado Membro, efectuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais valias realizadas por um residente naquele Estado-Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela excepção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, TFUE».
Temos, pois, de concluir, como se concluiu no aresto que elegemos como fundamento desta nossa decisão, que bem andou a decisão recorrida quando julgou incompatível com o Direito da União Europeia a norma do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo art. 63.º do TFUE e, em consequência, quando anulou os actos de liquidação em causa (de IRS e de juros compensatórios) na parte em que desconsideraram aquela limitação.

3.2.2. Enfrentemos agora a segunda questão, que, como deixámos enunciado no ponto 2. deste acórdão, se reconduz a saber se constitui abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium o recurso dos Recorridos a Tribunal para que fosse apreciada a legalidade das liquidações impugnadas.

3.2.2.2. E, fazendo-o, desde já se diz que também nesta parte não assiste qualquer razão à Recorrente, por o abuso de direito, genericamente consagrado no artigo 334º do Código Civil, não se aplicar à conduta de um cidadão que se limita, como foi o caso, a manifestar em Tribunal a sua discordância com uma actuação da Administração Fiscal que culminou com a prática de um acto lesivo dos seus direitos e interesses.
A figura do abuso do direito constitui, como correntemente se afirma, uma espécie de “válvula de segurança" do sistema através da qual se obsta a que certos direitos, válidos em tese, se consumem por, em concreto, se traduzirem numa clamorosa ofensa da Justiça, entendida enquanto expressão do sentimento jurídico socialmente dominante. (Neste sentido, Vaz Serra, BMJ n.º 85/253; Coutinho de Abreu, “Do Abuso do Direito”, 1983; Manuel de Andrade, “Teoria Geral das Obrigações”, 3.ª Edição, pgs.63-64; Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 6.ª Edição, página 516 e Pires de Lima/A. Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Edição, página 299.)

Como vários acórdãos dos nossos Tribunais Superiores têm salientado, o “venire contra factum proprium”, assume, na sua formulação dogmática e no quadro do instituto do abuso do direito, uma estrutura que pressupõe duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o “factum proprium” (uma inacção ou acção em determinado sentido) seguido, em contradição, do “venire” (acção em sentido oposto). (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 2013, integralmente disponível em www.dgsi.pt.)

Ora, no caso concreto não houve qualquer inacção ou acção definitiva num sentido que tenha sido seguida de acção em sentido oposto. Tudo quanto se descortina dos factos apurados, e até da própria alegação de recurso, é que os Recorridos apresentaram, como deviam por a tal estarem legalmente obrigados (artigo 57.º do CIRS), uma declaração de rendimentos em 2010 relativamente aos rendimentos de 2009 e que perante uma liquidação que lhes foi efectuada em sede de IRS, com a qual discordavam, reagiram judicialmente, nos termos que a Lei e a Constituição da República Portuguesa lhe reconhecem (cfr. em especial, artigo 102.º e ss do CPPT e artigos 268.º, nºs 3 e 4 da CRP).
Sem prejuízo deste pressuposto ou fundamento inultrapassável da decisão que tomamos, podemos ainda dizer, para que nenhum argumento da Recorrente fique por apreciar, que mesmo que fosse relevante - e não é - não corresponde à verdade que os Recorrentes pudessem ter optado na declaração de rendimentos que apresentaram – que segundo a Recorrente, desencadeou o procedimento e provocou que a liquidação tivesse sido emitida nos termos em que o foi - por um regime fiscal que lhes reconhecia automaticamente o mesmo regime ou condições de tributação dos cidadãos que são residentes fiscais em Portugal.
É que, como a Recorrente não pode, de todo, ignorar, e os Recorridos assertivamente realçaram, a “opção” descriminada nas conclusões XVII a XIX das suas conclusões de recurso, que supostamente teria obstado à liquidação e à necessidade de recurso a Tribunal para reconhecimento do direito - opção pela tributação das mais-valias pelas taxas gerais do artigo 68.º do CIRS, ao abrigo do atual n.º 9 do artigo 72.º do mesmo diploma legal, bastando para tal ter indicado a opção 9 no quadro 8-B - Residência fiscal – Não residentes, “Opção pelas taxas gerais do art. 68.º do CIRS – Relativamente aos rendimentos não sujeitos a retenção liberatória – Art. 72.º n.º 9 do CIRS”, na declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS para o ano de 2009 - nem sequer podia ser realizada pelos Recorridos, porque, como resulta da conjugação das referidas normas, essa opção está reservada a sujeitos passivos residente noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu. O que não é o caso dos Recorridos, que o Tribunal a quo declarou como residentes na Turquia.
E, sendo assim, é de declarar improcedente a alegação vertida na conclusão XXI e, consequentemente, de julgar também nesta parte improcedente o recurso jurisdicional.

3.3. Nos termos do artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito, entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Tendo a Recorrente ficado totalmente vencida, sobre si recairá a responsabilidade das custas do presente recuso.

4. Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo, negar provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pela Recorrente.
Registe e notifique.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2021. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) - José Gomes Correia - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.