Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0775/02.2BTVIS
Data do Acordão:02/20/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:MÉTODOS INDIRECTOS
FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:I - As características exigidas quanto à fundamentação formal do acto tributário, são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor a proferir a decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a actuação administrativa no caso concreto (ou seja, esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico).
II - Resultando da petição inicial que a causa de pedir invocada sob a denominação “falta de fundamentação” se refere à fundamentação substancial, enferma de erro de julgamento a sentença que a apreciou como se se tratasse de fundamentação formal.
Nº Convencional:JSTA000P24248
Nº do Documento:SA2201902200775/02
Data de Entrada:11/15/2018
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional de sentença proferida em processo de impugnação judicial

1. RELATÓRIO

1.1 O Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que a Juíza daquele Tribunal, julgando procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade acima identificada, anulou a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) que lhe foi efectuada com referência ao ano de 1999, após a AT ter feito correcções à matéria tributável declarada, com recurso a métodos indirectos.

1.2 O recurso foi admitido, com subida imediata e nos próprios autos e a Recorrente apresentou a motivação do recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A- Incide o presente recurso sobre a sentença proferida em 31/05/2018, que julgou totalmente procedente a presente impugnação, com a consequente anulação da liquidação de IRC relativa ao ano de 1999, no valor total a pagar de € 78.326,68.

B- Concluiu o Tribunal a quo “… que a decisão de recurso a métodos indirectos não cumpre desde logo a especial exigência de fundamentação jurídica imposta pelo n.º 4 do artigo 77.º da LGT, sendo quanto basta para padecer o despacho do Director de Finanças em que se suporta a liquidação, de manifesta falta de fundamentação”.

C- O pedido formulado pela impugnante nos presentes autos, tal como expresso na PI, é a anulação da liquidação do imposto ora impugnado, por errónea quantificação dos rendimentos e por vício de falta de fundamentação. Concretamente, no que a este último vício concerne, imputa-o a impugnante à motivação constante do relatório inspectivo, sancionado hierarquicamente e que, em sede de procedimento de revisão, redundou na manutenção dos valores propostos.

D- Neste domínio a impugnante não faz nas suas alegações qualquer alusão ao despacho que manteve aqueles valores e que constitui a fixação definitiva da matéria tributável por métodos indirectos, nem lhe imputa qualquer vício. O presente recurso tem, assim, por objecto, a reapreciação da matéria de direito no que diz respeito à apreciação do vício na estrita medida das alegações da impugnante.

E- Para conhecimento dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância é competente a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo quando o recurso tiver por exclusivo fundamento matéria de direito e é competente a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo territorialmente competente se o fundamento não for exclusivamente de direito (alínea b) do art. 26.º e alínea a) do art. 38.º, ambos do ETAF, e n.º 1 do art. 280.º do CPPT); “não deve considerar-se como invocação de matéria de facto as referências a peças que constem do processo, pois todas as ocorrências processuais são de conhecimento oficioso”, vide Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, 6.ª edição, págs. 225.

F- Pode justificar-se a precedência do vício de forma quando a indagação acerca da concreta motivação do acto se mostrar indispensável ao controlo dos vícios de substância; razão, aliás, por que se tem reconhecido que a tutela mais eficaz dos interesses do recorrente pode passar pelo conhecimento prioritário dos vícios de forma, concretamente do vício de falta de fundamentação, sempre que a descoberta da motivação do acto possa oferecer elementos necessários ao juízo de verificação dos vícios de fundo, o que acontece sempre que ocorra uma absoluta falta de fundamentação (de facto e/ou de direito), por isso implicar a impossibilidade de conhecimento dos factos em que assentou o acto e/ou o seu enquadramento jurídico, inviabilizando o controlo jurisdicional dos vícios de fundo.

G- Contudo, a apreciação e eventual procedência destes vícios depende do teor do discurso fundamentador do acto de liquidação, pois só ele pode fornecer ao julgador a razão ou base legal que sustenta o acto, ficando o conhecimento desses vícios inviabilizado sem essa prévia revelação e clarificação do enquadramento jurídico em que ele assentou.

H- Neste contexto, não merece reparo a sentença impugnada ao optar pelo conhecimento prioritário do vício de falta de fundamentação. Não obstante, como ficou dito supra (em C e D), a densificação operada pela impugnante relativamente a tal vício não permitiria o alcance que foi conferido na análise efectuada, o que, de alguma forma, pode explicar o erro de julgamento que imputamos à sentença, ao concluir pela falta de fundamentação do despacho do Director de Finanças em que se suporta a liquidação.

I- Falamos em erro de julgamento, dado não padecer a sentença ora sindicada de falta absoluta de motivação, nem de inteligibilidade; enfermando, apenas, de uma inexactidão dos fundamentos utilizados para justificar a decisão; decorrente de a impugnante, na PI, jamais invocar como causa de pedir a falta de fundamentação nos termos configurados na sentença.

J- Refere a Meritíssima Juíza [do Tribunal] a quo que a fundamentação adoptada pela AT e os motivos pelos quais considera legalmente justificado o recurso aos métodos indirectos de tributação e respectiva quantificação, se condensaram no despacho do Director de Finanças de Viseu proferido ao abrigo do que determina o art. 92.º, n.º 6 da LGT, por a liquidação nestes autos impugnada assentar no acto por si emanado no procedimento de revisão apresentado nos termos e para efeitos do art. 91.º da LGT.

L- O critério para aferição da clareza, congruência e suficiência da fundamentação consiste em verificar se na situação em concreto e perante o acto em causa e as circunstâncias específicas em que o mesmo é praticado um destinatário normalmente diligente ou razoável ficaria em condições de conhecer o itinerário funcional, cognoscitivo e valorativo do autor do acto, que o levou a decidir em determinado sentido.

M- A falta de fundamentação constitui um vício formal do acto, pelo que não está em causa aqui a apreciação da validade material dos fundamentos invocados, mas a existência de pressupostos e motivos coerentes, possíveis, credíveis e suficientes a esclarecer as razões determinantes do sentido do acto.

N- Distingue-se, neste âmbito a validade formal do acto, decorrente do facto de a Administração Tributária ter dado a conhecer razões ou motivos em que fundou a sua decisão, da validade substancial do acto, correspondente a saber se os motivos invocados correspondem à realidade e, correspondendo, são suficientes para legitimar o concreto sentido da decisão tomada.

O- A jurisprudência e a doutrina têm consagrado o entendimento de que um acto se encontra suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo seguido pelo agente para a sua prática.

P- A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo pacificamente que, nos casos de remissão, o acto administrativo integra, nele próprio o parecer, informação ou proposta que, assim, em termos de legalidade, terão de satisfazer os mesmos requisitos da fundamentação autónoma. Ponto é que a fundamentação responda, às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto de liquidação, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática.

Q- Acresce dizer que “o grau de fundamentação há-de ser o adequado ao tipo concreto do acto e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado, de molde a satisfazer a divergência existente entre a posição da Administração Fiscal e a do contribuinte”.

R- Ora, visto o teor e as circunstâncias concretas do caso, os vícios inquinantes da liquidação são apontados pela impugnante, apenas e tão só, por reporte ao relatório inspectivo.

S- O que é bem expressivo das circunstâncias concretas em que tal acto foi praticado: na sequência de acção inspectiva levada a cabo à actividade da impugnante, foi elaborado projecto de relatório inspectivo (fls. 18 a 30 do PA), relativamente ao qual veio a impugnante exercer o seu direito de audição, de cuja apreciação não resultou qualquer alteração, pelo que o dito se converteu em definitivo – conforme fls. 34 do PA. Apresentou a impugnante reclamação da fixação do lucro tributável, imposto e volume de negócios em sede de IRC e para o ano de 1999, conforme fls. 12 e 13 do PA, o qual mais não traduz do que o cumprimento de condição de impugnabilidade do acto de liquidação, posto que, conforme decorre do teor de tal reclamação, se limita a meras considerações, desprovidas de qualquer meio de prova (nomeadamente meios de pagamento utilizados nas transacções efectuadas), que permitisse uma inflexão na motivação da AT.

T- Do referido relatório consta, quer a fundamentação sobre os pressupostos de aplicação de métodos indirectos, quer o critério de quantificação, o qual teve por base a amostragem elaborada na acção inspectiva, que se estribou nos folhetos de publicidade das agências imobiliárias da cidade de Viseu (que se encontram juntos a fls. 24 a 30 do processo administrativo) de preços de venda de apartamento e de lojas, praticados na mesma zona e em zonas idênticas, referentes aos anos de 1998, 1999 e 2000, tendo-se, em conformidade, obtido o preço médio de venda por m2. Metodologia devidamente elaborada e justificada no relatório da acção inspectiva.

U- Constatou-se na acção inspectiva a existência de diferenças acentuadas entre os preços declarados pelo sujeito passivo e os preços praticados no mercado, concluindo-se que as vendas das fracções foram escrituradas manualmente e registadas na contabilidade por um preço substancialmente inferior ao seu valor de mercado. E o que a impugnante vem sindicar, em sede de errónea quantificação dos rendimentos sujeitos a tributação, é precisamente o preço médio de mercado achado no relatório de inspecção; o que se inscreve já no âmbito da chamada fundamentação substancial do acto.

V- À fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor ao proferimento da decisão com um concreto conteúdo e à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a actuação administrativa no caso concreto, ou seja, na medida da real verificação dos pressupostos de facto invocados e da correcta interpretação e aplicação das normas que servem de fundamento jurídico. Ou seja, uma coisa é saber se a AT deu a conhecer os motivos que a motivaram a actuar como actuou (questão que se situa no âmbito da validade formal do ato), situação diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos se verificam e se são suficientes para legitimar a concreta actuação da AT.

X- Emerge de forma clara e expressa, no relatório inspectivo, a enunciação da fundamentação sobre os pressupostos de aplicação de métodos indirectos; cumprindo-se o desiderato da fundamentação formal.

Z- A Meritíssima Juíza [do Tribunal] a quo incorreu em erro de julgamento ao tomar em consideração, para a resolução da questão colocada pela impugnante, factos não alegados de que o tribunal não podia conhecer oficiosamente; por violação do princípio dispositivo, enunciado no art. 5.º do CPC.

Termos em que se requer seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogada a decisão recorrida, julgando-se não verificada a falta de fundamentação, por referência à decisão da comissão de revisão; ordenando-se, em consequência, a baixa do processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, a fim de aí prosseguir os seus termos».

1.3 A Impugnante apresentou contra-alegação, pugnando pela manutenção da sentença, com conclusões do seguinte teor:

«i. As “conclusões” apresentadas pela Recorrente violam o disposto no artigo 639.º, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT, o que implica o indeferimento do requerimento de recurso (artigo 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC).

ii. A douta sentença recorrida não enferma de qualquer inexactidão dos fundamentos utilizados para justificar a decisão.

iii. A Meritíssima Juiz [do Tribunal] a quo não incorreu em qualquer erro de julgamento».

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação: «[…]

De acordo com as conclusões apresentadas, resulta para apreciar:
- se ocorre erro de julgamento no decidido por despacho do Director de Finanças de Viseu, o qual se invoca ter sido proferido ao abrigo do que determina o art. 92.º n.º 6 da L.G.T. e em a liquidação impugnada assentar no acto por si emanado no procedimento de revisão apresentado, nos termos e para os efeitos do art. 91.º da L.G.T.;
- se ocorre erro de julgamento ao se ter tomado em consideração para a resolução da questão colocada pela impugnante factos não alegados de que o tribunal não podia conhecer oficiosamente, nos termos do art. 5.º do C.P.C..
E em consequência do que demais defende, acaba a pedir que seja revogada a decisão recorrida e, sendo de julgar não verificada a falta de fundamentação, por referência à decisão da comissão de revisão, é de ordenar a baixa do processo ao T.A.F. de Viseu a fim de que os autos ainda aí prossigam.
Quanto ao 1.º invocado erro de julgamento:
Após pedido de revisão da matéria tributável, nos termos do art. 91.º da L.G.T., veio a ser proferido despacho pelo sr. Director do Serviço de Finanças de Viseu, reproduzido no ponto 8 da matéria de facto, pela qual se decidiu manter os valores fixados em sede de IRC quanto ao exercício de 2000.
Assim, e ainda que no relatório de inspecção reproduzido no ponto 3 da matéria de facto conste alguma matéria que poderia levar à fundamentação da tributação por métodos indirectos relativamente ao ano de 1999, a mesma não pode, sem mais, ser considerada.
Com efeito, as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que foi proferido, podendo ocorrer nomeadamente, por concordância com pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem relatório de fiscalização tributária, nos termos previstos no art. 77.º n.ºs 1 da L.G.T.
Neste caso de fundamentação por remissão, a decisão de ser expressa, ainda que, podendo ser sucinta, e ser clara, suficiente e congruente, o que no caso não ocorre, nos termos em que se mostra proferido, pelo sr. Director de Finanças de Viseu, o referido despacho, nos termos do art. 92.º n.º 6 da L.G.T. – nesse sentido, nomeadamente, os acórdãos do S.T.A. de 7-10-2015 e de 24-2-2016 nos processos n.ºs 0406/15 e 0329/14.
Quanto ao 2.º invocado erro:
Encontra-se previsto no dito art. 5.º n.ºs 1 e 2 al. b) do actual C.P.C. que os factos essenciais têm de ser alegados na p.i., sem prejuízo de, sendo complementares, serem ainda atendíveis os que resultarem da instrução da causa.
Tal teve o intuito de afastar o efeito preclusivo decorrente da falta de alegação de certos factos na p.i., na linha do que certa doutrina defendia quanto a só ocorrer então nulidade quando tal tivesse influência na sua boa decisão – cfr. anotação crítica de Miguel Teixeira de Sousa ao acórdão do S.T.J. de 21.9.2006, proferido no proc. 277/06 em Cadernos de Direito Privado n.º 17, Janeiro/Março 2007 e prof. Mariana França Gouveia, O princípio Dispositivo e a alegação de factos em processo civil: A incessante procura da flexibilidade processual, prof. Mariana França Gouveia, em Estudos em Homenagem aos Profs. Palma Carlos e Castro Mendes, p. 613 e ss.
Não ocorre, assim, também este erro».

1.5 Colhidos os vistos dos Conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu deu como assentes os factos que constam de fls. 241 a 246 v.º, dos quais ora nos interessam (A sentença deu ainda como provados muitos outros factos, sob os n.ºs 12 a 31, mas, porque os mesmos foram registados em ordem a conhecer da questão da prescrição da obrigação tributária correspondente à liquidação impugnada, dispensamo-nos de os reproduzir.) os seguintes:

«1. No cumprimento das Ordens de Serviço n.ºs 29717/29721, os Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Viseu, desencadearam procedimento inspectivo à sociedade A………………., Lda., NIPC: ……………, aqui Impugnante, de âmbito geral e com incidência, entre outro, ao exercício de 1999 – cfr. capítulo II. do projecto de relatório de inspecção tributária de fls. 18 a 30 do Processo Administrativo apenso aos autos.

2. Em 27/02/2002, na sequência do procedimento inspectivo, foi elaborado pelos Serviços de Inspecção Tributária projecto de relatório, onde foi proposta a correcção à matéria tributável em sede de IRC, com recurso a métodos indirectos, no montante de € 186.057,79, por referência ao ano 1999 – cfr. projecto de relatório de inspecção tributária de fls. 18 a 30 do Processo Administrativo apenso aos autos.

3. A correcção com recurso a métodos indirectos, referida no ponto que antecede, resultou da seguinte fundamentação inclusa no projecto de relatório de inspecção tributária, que dali se extrai:
(…)
I- CONCLUSÕES DA ACÇÃO INSPECTIVA
A contabilidade não reflecte a verdadeira situação patrimonial da empresa nem os resultados efectivamente obtidos. As situações que fundamentam o recurso a métodos indirectos (art. 51.º e 52.º do CIRC), encontram-se descritas no ponto IV e, em síntese são:
A conta caixa apresenta durante os exercícios em causa elevados saldos devedores.
Entendemos não existirem quaisquer razões objectivas para que se contraiam empréstimos junto da banca, quando a caixa apresenta saldos devedores bastante elevados.
Escrituração e contabilização da venda de apartamentos e garagens por um preço substancialmente inferior ao valor de mercado.
Existem motivos e factos que permitem concluir que não declarou a totalidade dos valores obtidos pelas vendas das fracções do prédio sito na …………., freguesia de S. Salvador desta cidade, pelo que se procedeu ao apuramento das vendas consideradas omitidas com recurso a métodos indirectos nos termos do art. 52.º do CIRC e art. 87.º a 89.º da LGT.
Os valores com recurso a métodos indirectos são apurados do seguinte modo:
IRC
1999
resultado declarado
1.177.778,00
correcções M.I
37.301.238,00
lucro tributável proposto
38.479.016,00
(…)
IV- MOTIVOS E EXPOSIÇÃO DOS FACTOS QUE IMPLICAM O RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS
- A conta caixa apresenta permanentemente nos exercícios em causa elevados saldos devedores. No ano de 1999 o saldo em 31/12/1999 é de 45.698.565$00 e no ano de 2000 o saldo em 31/12/000 é de 45.072.026$00. Nas mesmas datas as contas de Depósitos à Ordem evidenciam saldos de 648.420$00, devedor e 218.486$00 credor, respectivamente.
- As únicas entradas de meios monetários relativos às transmissões de apartamentos, em termos contabilísticos ocorrem apenas com base nas respectivas escrituras e pelos valores constantes das mesmas. Não são referidas quaisquer importâncias eventualmente recebidas antecipadamente e a título de adiantamentos.
- Perante montantes de dinheiro em caixa tão elevados, entendemos que não existem quaisquer razões objectivas para que se contraiam empréstimos junto da banca, os quais ascendem a 21.550.000$00 em 31/12/1999 e 25.550.000$00 em 31/12/2000, respectivamente.
- De referir que a construção deste prédio (…………….), situa-se numa das zonas da cidade com um grande crescimento habitacional. O forte impacto da construção nesta zona contribuiu para um aumento sustentado dos preços das habitações. Através do registo de propriedade horizontal e das escrituras de venda, fez-se a análise a fim de verificar o preço de venda por m2. Nesta análise teve-se em conta a área dos apartamentos não se considerando áreas das varandas, os lugares na cave e subcave de estacionamento e arrumos e sótão. De salientar que a área dos compartimentos amplos no sótão destinados a arrumos e a escadaria de acesso, bem como a(s) varanda(s) das fracções J e L, também não foram tidas em conta. Neste caso apenas se teve em conta a área das fracções B, C, E, F, J e L, uma vez que são as garagens e os apartamentos vendidos no ano de 1999. De salientar que no ano de 2000, não existem vendas de apartamentos e/ou garagens. As fracções E, F, J e L são apartamentos e as fracções B e C são garagens. Deste modo considerou-se uma área total de 512,50 m2 para as vendas totais de apartamentos de 46.000.000$00, o que nos dá um preço médio de venda por m2 de 89.756$00/m2 (apartamentos).
- Relativamente às garagens, que correspondem às fracções B e C aceita-se os valores de venda declarados.
- De modo a confirmar esta conclusão, procedeu-se à recolha [em rodapé: 1Esta recolha foi feita através dos folhetos de publicidade das agências imobiliárias viseenses que se encontram arquivados nos nossos serviços e das quais se anexam fotocópias] de preços de venda de apartamentos e de lojas praticados na mesma zona e em zonas idênticas, referentes aos anos de 1998, 1999 e 2000, tendo-se obtido o preço médio de venda por m2, que se indica nos quadros seguintes:
Apartamentos

Zona Localização
Tipo de Apart.
Preço venda
Área m2
Preço/m2
Marzovelos
T3
19.500.000,00
120
162.500,00
1 Km da cidade
T4
22.000.000,00
140
157.142,86
Junto à cidade
T3
20.500.000,00
130
157.692,31
T4
25.000.000,00
180
138.888,89
T1
13.000.000,00
60
216.666,67
T2
16.000.000,00
80
200.000,00
Abraveses
T2 usado
13.000.000,00
100
130.000,00
Viseu
T3
25.000.000,00
150
166.666,67
Junto ao Politécnico
T3
17.500.000,00
120
145.833,33
T3
19.500.000,00
130
150.000,00
162.539,07
Preço Médio de Mercado/m2
162.539$00

Preço médio de mercado = 162.539$00/m2
Se comparamos o preço de venda obtido dos registos contabilísticos e o preço de mercado, verificamos que existem diferenças acentuadas entre os preços declarados pelo sujeito passivo e os preços praticados no mercado, o que nos leva a concluir que as vendas das fracções foram escrituradas notarialmente [em rodapé: 2A propósito de escrituras notariais, como documentos autênticos, leia-se o art. 371.º do n.º 1 do Código Civil e acórdão do STA de 24 de Novembro de 1999, proferido no processo n.º 24.0124. Em suma, a força probatória plena dos documentos autênticos limita-se aos factos que neles se referem. No caso em apreço, escritura de compra e venda, apenas se tem como plenamente provado que os outorgantes do contrato declararam compra e vender por um certo preço, mas não que esse preço tenha sido o efectivamente praticado.] e registadas na contabilidade por um preço substancialmente inferior ao seu valor de mercado. Esta análise permite-nos reforçar a ideia de que as escrituras não relevam os valores de venda efectivamente praticados.
Contactado o responsável pela sociedade, este declarou que os custos contabilizados correspondem aos efectivamente ocorridos.
V- CRITÉRIOS E CÁLCULOS DOS VALORES CORRIGIDOS COM RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS
5.1- CRITÉRIO
Com base no que foi exposto anteriormente, propõe-se que os resultados do ano de 1999 sejam corrigidos com recurso a métodos indirectos conforme prevê o art. 90.º da L.G.T. Serão utilizados os preços médios de mercado referenciados anteriormente.
5.2- CÁLCULOS
5.2.1- IRC/1999
Neste exercício foram vendidas as fracções E, F, J e L. De acordo com o registo de propriedade horizontal, a área correspondente aos apartamentos vendidos neste ano perfaz uma área total de 512.50 m2. Utilizando o preço de mercado acima obtido, chegamos ao seguinte valor de vendas presumidas:
512.50 m2 x 162.539$00 = 83.301.238$00
Em síntese concluímos que:

valores declarados
valores presumidos
valores omitidos
46.000.000,00
83.301.238,00
37.301.238,00

(…)” – cfr. projecto de relatório de inspecção tributária de fls. 18 a 30 do Processo Administrativo apenso aos autos.

4. Pelo ofício n.º 3220 de 04/03/2002, da Direcção de Finanças de Viseu, dirigido à Impugnante, foi remetido o projecto de relatório a que se alude em 3), dando conta do prazo para o exercício do direito de audição, o qual, tal como ali se referiu, a não ser exercido ou não sofrer alterações, acarretaria a conversão do projecto de relatório em definitivo – cfr. cópia do ofício da fls. 16 a 17 do Processo Administrativo apenso aos autos.

5. Em 18/03/2002, foi elaborado relatório de inspecção tributária, do qual consta o seguinte:
IX. DIREITO DE AUDIÇÃO – FUNDAMENTAÇÃO
(…) Relativamente às alegações apresentadas, temos a referir o seguinte:
§ De salientar que no registo de propriedade horizontal consta que as fracções E, F, J e L, incluem um compartimento destinado a garagem. As fracções B e C são garagens, não estão anexadas a qualquer apartamento. Deste modo, achamos não existir qualquer dúvida que estas são fracções autónomas.
§ Quando faz referência de que “relativamente às garagens, fracções B e C aceita-se os valores de venda declarados”, deve-se ter em conta que deste procedimento não resulta qualquer correcção que deva ser contestada.
§ De referir que a construção deste prédio se situa numa zona da cidade com forte crescimento populacional. Por este motivo, quando se refere no direito de audição, que para a obtenção dos preços de mercado se consideram zonas diferentes e níveis de oferta diferentes, deve-se ter em linha de conta que é nossa convicção que não resultou qualquer prejuízo para o contribuinte, uma vez que se considerasse somente apartamentos situados nesta zona nos daria um preço de mercado superior.
§ No que se refere às tipologias achamos não existir qualquer dúvida, porque o que se teve em consideração não foi a tipologia dos apartamentos, mas sim as áreas destes.
§ No que respeita aos preços de mercado considerados foram incluídos preços de 1998 e de 2000 conforme consta dos anexos ao projecto de relatório. De referir, ainda, que os preços de mercado não têm sofrido oscilações relevantes.
Conclui-se então que o direito de audição nada vem acrescentar ou alterar ao que foi descrito no projecto de relatório. Contestam-se os critérios adoptados, mas não se indicam outros que fundadamente sejam de considerar eventualmente mais adequados às realidades indicadas dados que os valores mencionados nas escrituras são manifestamente inferiores aos mínimos aceitáveis como credíveis em termos de mercado (…) Os factos referidos pelo S.P. não alteram quantitativamente as correcções efectuadas, pelo que se propõe que as mesmas se mantenham” – cfr. relatório de inspecção tributária de fls. 26 a 27 do Processo Administrativo apenso aos autos.

6. Em 22/04/2002, a aqui Impugnante apresentou junto do Director de Finanças de Viseu, pedido de revisão da matéria colectável – cfr. doc. de fls. 12 a 13 do Processo Administrativo apenso aos autos.

7. Em 20/05/2002, no âmbito do procedimento de revisão a que se alude no ponto que antecede, reuniram-se os peritos da Administração Tributária (AT) e da Impugnante para apreciação do pedido, fazendo constar o teor da reunião em acta elaborada para o efeito com o n.º 35/02, que não chegaram a acordo, tendo o perito da AT proposto a manutenção das correcções propostas no relatório de inspecção tributária e o da Impugnante o regresso aos valores declarados, nos seguintes termos, como dali consta:
(…) O Perito do Contribuinte deu por integralmente reproduzida a reclamação apresentada por escrito (…) O Perito da Administração Fiscal, como contra argumento, deu também por reproduzido o exposto no relatório da acção inspectiva. Acrescentou ainda que nem na reclamação apresentada nem na presente reunião foram apresentados elementos novos além daqueles que já tinham sido apresentados no direito de audição e que por isso já foram analisados e tidos em conta nas correcções propostas (…)
O perito do contribuinte não apresentou justificação para as diferenças verificadas dado que considera que os preços que a empresa praticou foram muito próximos dos valores praticados na zona, na altura da realização das vendas, ou seja, anos de 1997 e 1998.
Pelo perito da Administração Tributária foi referido que na escolha da amostra foram considerados apartamentos localizados fora do centro da cidade e em localizações semelhantes (…) e que em todos eles os preços de mercado são significativamente maiores (…) verifica-se nomeadamente num anúncio datado de Julho de 1998, ou seja, próximo da data referida (…) referiu ainda o facto de todos os apartamentos em causa incluírem uma garagem fechada, zonas de arrumos e varandas – cujas áreas não foram consideradas nos cálculos (…) as fracções J e L dispõe de zonas de arrumos no sótão (com cinco compartimentos e varandas) e com escadaria interna de acesso – facto este que contribui para valorizar as fracções em causa e que também não foi tido em conta nas propostas efectuadas (…) considera que o preço de mercado considerado é representativo e os motivos apresentados pelo contribuinte (diferentes zonas geográficas, diferentes tipologias, diferentes níveis de oferta e diferentes anos) não são suficientes para explicar as diferenças apuradas. Afirma ainda que a utilização dos preços de mercado foi o meio utilizado para a Administração fiscal em consequência das irregularidades verificadas na elaboração da contabilidade, nomeadamente na movimentação da conta das disponibilidades (conta caixa, depósitos à ordem e clientes) (…)” – cfr. docs. de fls. 8 e 9 do Processo Administrativo apenso aos autos.

8. Em 24/05/2002, foi elaborada pelo Director de Finanças de Viseu, a seguinte decisão no âmbito do procedimento de revisão a que se alude em 6), a qual foi remetida à Impugnante por ofício n.º 8141 de 27/05/2002, por carta registada com aviso de recepção, o qual se mostra assinado com data de 30/05/2002:
(…)
IMPOSTO(s)/ANO(s) – IRC-99
DECISÃO
(n.º 6 do art. 92.º LGT)
Nos termos do n.º 6 do art. 92.º da Lei Geral Tributária, cumpre ao órgão competente para a fixação da matéria tributável resolver, na falta de acordo entre os peritos.
Analisada a respectiva acta verifica-se, entre outros, o seguinte:
1- O Perito do Sujeito Passivo mantém os argumentos constantes na reclamação apresentada nos termos do art. 91.º da LGT, que se resume na “contestação da utilização dos preços médios de mercado, apurados na amostra apresentada pela Administração Fiscal, para corrigir os valores das vendas declaradas”, afirmando que “os preços que a empresa praticou foram próximos dos valores praticados na zona, na altura da realização das vendas”.
2- Além de manter os valores do relatório da Inspecção, o Perito da Administração Tributária contra argumenta que “na escolha da amostra foram considerados apartamentos localizados fora do centro da cidade e em localizações semelhantes às dos apartamentos em causa e que em todos eles os preços de mercado são significativamente superiores a qualquer um dos que foi praticado pelo contribuinte” e ainda o facto “de todos os apartamentos em causa incluírem uma garagem fechada, zonas de arrumos e varandas, cujas áreas não foram consideradas nos cálculos”.
Assim, considerando todos os elementos existentes, relatório da inspecção tributária, posição dos peritos, Decido, por falta de elementos que, nesta fase, os ponham em causa, e nos termos do n.º 6 do art. 92.º da LGT, atendendo à posição/defesa do Perito da Administração Tributária, manter os valores fixados em sede de IRC, no exercício de 2000.
Notifique-se (…) – cfr. doc. de fls. 4 a 7 do Processo Administrativo apenso aos autos.

9. Em resultado da correcção com recurso a métodos indirectos efectuada pelos Serviços da Inspecção Tributária a que se alude em 2) e descrita em 3) e 5), mantida por decisão referida em 8), em 05/06/2002, foi emitida, por referência à aqui Impugnante, a liquidação de IRC n.º 2002 8310009602, relativa ao exercício económico do ano de 1999, no valor total a pagar de € 78.326,68, nestes autos impugnada – cfr. doc. n.º 1 junto com a petição inicial, de fls. 10 do processo físico.

10. Em 12/10/2002, foi autuado pelo Serviço de Finanças de Viseu 2, o processo de execução fiscal (PEF) com o n.º 3700200201027590, em que é executada a aqui Impugnante, para cobrança coerciva do IRC relativo ao ano de 1999, resultante da liquidação a que se alude em 9) – cfr. fls. 1 a 2 do processo de execução fiscal apenso aos presentes autos.

11. Em 22/10/2002, foi apresentada no Serviço de Finanças de Viseu 2, a petição inicial que deu origem aos presentes autos […]».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Na sequência de uma acção de fiscalização, a AT entendeu que a contabilidade da ora Recorrida, com referência ao exercício do ano de 1999, não reflectia a sua verdadeira situação patrimonial nem os resultados efectivamente obtidos, motivo por que procedeu à correcção do lucro tributável declarado, com recurso a métodos indirectos e, após ser decidido o pedido de revisão formulado por aquela sociedade ao abrigo do disposto no art. 91.º da Lei Geral Tributária (LGT), à consequente liquidação adicional do IRC.
A Recorrente impugnou judicialmente a liquidação, invocando como fundamentos do pedido de anulação a «errónea quantificação dos rendimentos» e o «vício de falta de fundamentação».
A sentença recorrida, depois de apreciar a prescrição da obrigação tributária correspondente à liquidação e de concluir que a mesma não está prescrita, passou a apreciar o vício de falta de fundamentação. Foi com fundamento na verificação desse vício que julgou procedente a impugnação judicial.
O Representante da Fazenda Pública discordou da sentença e dela recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo. Salvo o devido respeito, as alegações de recurso e respectivas conclusões não primam pela clareza e exigem um redobrado esforço na tentativa de alcançar o seu sentido. Isto, porque estão pejadas de referências doutrinais e de considerandos que obnubilam o seu sentido e dificultam que se alcance o seu sentido.
Se bem interpretamos a motivação do recurso, na parte útil, a Recorrente sustenta que a sentença laborou em erro ao conhecer da falta de fundamentação como vício de forma e ao referir esse vício o despacho por que foi decidido o procedimento de revisão previsto no art. 91.º da LGT, pois fê-lo apesar de a Impugnante «jamais invocar como causa de pedir a falta de fundamentação nos termos configurados na sentença». Ou seja, nas palavras da Recorrente, «a densificação operada pela impugnante relativamente a tal vício [falta de fundamentação] não permitiria o alcance que foi conferido na análise efectuada, o que, de alguma forma, pode explicar o erro de julgamento que imputamos à sentença, ao concluir pela falta de fundamentação do despacho do Director de Finanças em que se suporta a liquidação».
Dito de outro modo, a Recorrente sustenta que o que a Impugnante pôs em causa na petição inicial foi a falta de fundamentação, não enquanto vício formal do acto – não questionando que a AT tenha dado a conhecer as razões ou motivos em que se funda a liquidação adicional impugnada –, mas enquanto vício material, decorrente da não correspondência à realidade ou da insuficiência dos motivos invocados como justificativos do recurso aos métodos indirectos na determinação da matéria tributável.
Por isso, na sua tese, a sentença terá incorrido em erro de julgamento ao apreciar a alegação aduzida na petição inicial sob uma óptica que não foi aquela com a qual a Impugnante a configurou.
Também nós consideramos que a eventual apreciação da invocada “falta de fundamentação” como vício formal, ao invés de como vício material, se contrariar o âmbito da petição inicial, integrará erro de julgamento e não nulidade da sentença. Mas a questão da qualificação da irregularidade da sentença, como erro de julgamento ou como nulidade, nem sequer assume relevância para efeitos da sua apreciação. Na verdade, mesmo a considerar-se que o vício assacado à sentença integra nulidade por excesso de pronúncia, ao invés do invocado erro de julgamento, não será por isso que o Tribunal ad quem pode dispensar-se de dele conhecer, pois, como afirma a doutrina e este Supremo Tribunal tem vindo a dizer repetidamente (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume, anotação 20 ao art. 125.º, pág. 375, com indicação de jurisprudência.
Vide também, entre muitos outros, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 19 de Setembro de 2012, proferido no processo n.º 862/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/e46947495061fff580257a85005669e9;
- de 7 de Novembro de 2012, proferido no processo n.º 1109/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8673ffdcf026532480257abb003306da;
- de 27 de Janeiro de 2016, proferido no processo n.º 43/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/605684522d35f1b680257f4c005084c2;
- de 24 de Fevereiro de 2016, proferido no processo n.º 329/14, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ed2a828136a5fb5580257f6900407974.), não está impedido de apreciar como nulidade o vício que é apresentado pelo recorrente como erro de julgamento e vice-versa, já que, na sua função jurisdicional, não fica sujeito à alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [art. 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC)]. Não seria, pois, o eventual erro na qualificação a obstar ao conhecimento por este Supremo Tribunal Administrativo, como tribunal de recurso, daquela que se nos afigura ser a única questão suscitada pela Recorrentes no recurso.
É certo que a Recorrente faz também uma alusão – quer no art. 34.º das alegações quer na conclusão Z – a um erro de julgamento por violação do princípio do dispositivo, consagrado no art. 5.º do CPC, em que teria incorrido a sentença «ao tomar em consideração, para a resolução da questão colocada pela impugnante, factos não alegados de que o tribunal não podia conhecer oficiosamente».
Sucede, porém, que não encontramos na motivação do recurso alegação alguma que suporte a invocação desse erro de julgamento. Na verdade, a Recorrente não diz quais os factos que a sentença usou para resolver a acção e que não foram alegados nem eram do conhecimento oficioso. Em face dessa omissão, e porque também não descortinamos onde e como possa a sentença ter incorrido numa eventual violação do princípio do dispositivo relativamente a matéria de facto, afigura-se-nos como plausível que a Recorrente tenha invocado o art. 5.º do CPC em defesa da sua posição de que a sentença não podia ter decidido a impugnação judicial com uma causa de pedir que não foi invocada pela Recorrente e que também não é do conhecimento oficioso, qual seja a da falta de fundamentação formal.
Seja como for, a questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença recorrida incorreu, ou não, em erro de julgamento ao apreciar se a decisão da utilização dos métodos indirectos na avaliação da matéria tributável enferma de falta de fundamentação.


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2.2.2 DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO – FUNDAMENTAÇÃO FORMAL VERSUS FUNDAMENTAÇÃO MATERIAL

Lida a petição inicial, verificamos que a Impugnante invocou como fundamentos do pedido de anulação da liquidação «a errónea quantificação dos rendimentos sujeitos a tributação» e «o vício da fundamentação legalmente exigida». Interessa-nos agora considerar este último vício, pois foi com fundamento em falta de fundamentação que a sentença recorrida anulou o acto impugnado. A Impugnante refere a verificação desse vício ao relatório da inspecção, designadamente à conclusão que nele é formulada, de que «existem motivos e factos que permitem concluir que não declarou a totalidade dos valores obtidos pelas vendas das fracções do prédio sito na ……………..», conclusão que considera «não se encontra minimamente fundamentada» porque «[n]ada consta do relatório que permita retirar essa ilação». Se bem interpretamos a petição inicial, a Impugnante, pese embora invocar expressamente a verificação do «vício de fundamentação legalmente exigida», revela ter alcançado os motivos invocados pela AT para ter lançado mão dos métodos indirectos para a avaliação da matéria tributável e o critério utilizado na fixação dessa matéria.
Assim, a Impugnante revela ter compreendido que a AT não aceitou como preços de venda das fracções por ela comercializadas no ano de 1999 os preços declarados nas escrituras de compra e venda porque os considerou inferiores aos preços médios de mercado e, por isso, sem correspondência com os realmente praticados. Revela também ter compreendido o método utilizado pela AT, quer para concluir pela discrepância entre os preços declarados e os efectivamente praticados e, bem assim, para determinar estes e, desse modo, determinar o lucro tributável da sociedade no exercício do ano de 1999. Revela ainda ter compreendido que essa determinação foi efectuada com recurso a métodos indirectos (o que, aliás, resulta também do facto de ter efectuado oportunamente um pedido de revisão ao abrigo do disposto no art. 91.º da LGT).
Por outro lado, na indicação das razões de direito, a Impugnante não invocou, nem sequer referiu, norma alguma respeitante ao dever de fundamentação ou à falta de cumprimento do mesmo, designadamente o art. 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, o art. 124.º do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91 de 15 de Novembro, em vigor à data, o art. 77.º, n.º 1, da LGT ou, especificamente, quanto à tributação por métodos indiciários, o n.º 4 do mesmo artigo.
A única norma legal a que a Impugnante indicou na petição inicial como tendo sido violada, depois de referir que «o apuramento das vendas omitidas foi efectuado nos termos do disposto no artigo 52.º do CIRC e nos artigos 87.º a 89.º da Lei Geral Tributária», foi o art. 87.º da LGT – norma que prevê os casos de avaliação indirecta da matéria tributável –, relativamente ao qual afirmou que não se verifica qualquer das situações nele previstas.
Em suma, a alegação aduzida pela sociedade Impugnante na petição inicial permite concluir, por um lado, que ela compreendeu os motivos ou fundamentos por que a AT entendeu afastar a presunção de veracidade da escrita e recorrer ao métodos indirectos na avaliação da matéria tributável e, por outro, que a Impugnante discorda desses fundamentos, porque, a seu ver, não correspondem à realidade e, por isso, não autorizam o recurso à tributação por métodos indirectos na avaliação da matéria tributável.
Ou seja, na leitura que fazemos da petição inicial, a Impugnante não questionou a dimensão formal da fundamentação, mas antes a sua dimensão material ou substancial, pois, como este Supremo Tribunal tem vindo a salientar numerosas vezes (Vide, entre outros, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 7 de Outubro de 2015, proferido no processo n.º 406/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/56c3a90d7f2ae6b080257ee70050254e;
- de 14 de Março de 2018, proferido no processo n.º 512/17, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b023601187fbbbb980258255004cd684;
- de 9 de Maio de 2018, proferido no processo n.º 572/17, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3907daa7722dd4448025828a0038a19a.), uma coisa é saber se a AT deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem distinta e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa (Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, 2003, pág. 231.).
Na verdade, as características exigidas quanto à fundamentação formal do acto tributário são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor a proferir a decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a actuação administrativa no caso concreto (ou seja, esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico)
Ora, a Impugnante não alegou dificuldade alguma em compreender os motivos por que a AT entendeu lançar mão dos métodos indirectos na determinação da matéria tributável, deles revelando, aliás, perfeito conhecimento; alegou, sim, que os mesmos não legitimam aquela decisão. O que a Impugnante sustentou foi que a AT não conseguiu ilidir a presunção de veracidade da sua escrita e que os elementos que recolheu em sede de inspecção não lhe permitiam que considerasse, como considerou, outros valores para as compras e vendas de imóveis senão os declarados nessas escrituras; ou seja, considerou a Impugnante que não se verificam os pressupostos da determinação da matéria tributável por métodos indirectos. Foi essa a causa de pedir invocada como suporte do pedido de anulação da liquidação com fundamento em “falta de fundamentação”.
Assim o não entendeu o Tribunal a quo, que não só apreciou o vício de falta de fundamentação na sua dimensão formal, como também o considerou referido à decisão do procedimento de revisão do art. 91.º da LGT, no entendimento de que «a fundamentação adoptada pela AT, e os motivos pelos quais considera legalmente justificado o recurso aos métodos indirectos de tributação e respectiva quantificação, se condensaram no despacho do Director de Finanças de Viseu proferido ao abrigo do que determina o artigo 92.º, n.º 6 da LGT, por a liquidação nestes autos impugnada assentar no acto por si emanado no procedimento de revisão apresentado nos termos e para os efeitos do artigo 91.º da LGT».
Em consequência, entendemos ser de conceder provimento ao recurso, uma vez que o Tribunal a quo, ao invés de conhecer a verdadeira questão suscitada mediante a invocação da “falta de fundamentação”, conheceu de questão que a Impugnante não suscitou e não é do conhecimento oficioso, qual seja a da fundamentação formal.
Revogada a sentença, na parte impugnada, deverão os autos voltar ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, a fim de aí serem apreciadas as questões suscitadas na petição inicial.


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2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - As características exigidas quanto à fundamentação formal do acto tributário, são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor a proferir a decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a actuação administrativa no caso concreto (ou seja, esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico).

II - Resultando da petição inicial que a causa de pedir invocada sob a denominação “falta de fundamentação” se refere à fundamentação substancial, enferma de erro de julgamento a sentença que a apreciou como se se tratasse de fundamentação formal.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença na parte recorrida e ordenar que os autos regressem ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, a fim de aí serem conhecidas as questões suscitadas na petição inicial.


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Custas pela Recorrida.

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Lisboa, 20 de Fevereiro de 2019. – Francisco Rothes (relator) – Ana Paula Lobo – Dulce Neto.