Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0144/17
Data do Acordão:05/30/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRS
MAIS VALIAS
INSOLVÊNCIA
Sumário:I - Os bens apreendidos e vendidos em processo de insolvência continuam a ser propriedade do insolvente até à venda.
II - A diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respectivo produto fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente.
III - Sendo certo que o CIRE, no n.º 1 do seu art. 268.º, prevê a isenção das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou cessão de bens do insolvente aos credores no âmbito do processo de insolvência, já não prevê idêntica isenção no caso da venda, nada fazendo crer (designadamente para efeitos da aplicação extensiva da norma a esta última situação) que o legislador tenha dito menos que pretendia.
Nº Convencional:JSTA000P23353
Nº do Documento:SA2201805300144
Data de Entrada:02/07/2017
Recorrente:AT AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -
1 – A Autoridade Tributária e Aduaneira recorre para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, de 30 de Junho de 2016, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A……… e B…….…, ambos com os sinais dos autos, contra o indeferimento de reclamação graciosa tendo por objecto liquidação de IRS do ano de 2013, no valor de €9.786,81, para o que apresentou as seguintes conclusões:

1. Conforme resulta dos factos provados sob os pontos n.º 1 a 6, estamos na presença de uma liquidação de IRS que foi emitida em nome de A………. e B………., pelo facto de se entender que os sujeitos passivos enquanto titulares do imóvel devem ser tributados pelas mais-valias decorrentes da venda do imóvel, ainda que se trate da alienação do imóvel da massa insolvente desses sujeitos passivos.
2. Na sentença sob recurso defende-se que os insolventes, ora impugnantes, nenhuma intervenção tiveram no negócio efetuado, não exerceram qualquer atividade no sentido de obterem qualquer rendimento a qualquer título, não se podendo repercutir na esfera jurídica dos insolventes uma obrigação tributária para a qual os mesmos não concorreram.
3. E afirma-se que o imposto decorrente da venda do imóvel não poderá constituir uma dívida dos ora impugnantes, pois na data em que foi efetuada a venda do imóvel este era já parte integrante da massa insolvente.
4. Posição com a qual não concordamos uma vez que, os insolventes ora impugnantes é que são sujeitos passivos de IRS, e não a massa insolvente.
5. Conforme resulta do art. 46.º n.º 1 do CIRE “A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”.
6. É pois a massa insolvente um património autónomo do devedor, cujo objectivo primordial é a satisfação dos créditos da insolvência.
7. O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, como o próprio nome indica, incide sobre os rendimentos originados por pessoas singulares ou físicas, que são considerados os seus sujeitos passivos.
8. A massa insolvente não cabe no conceito de sujeito passivo do art. 13.º do CIRS, desde logo porque não se trata de uma pessoa singular.
9. As massas insolventes são apenas partes separadas dos patrimónios das pessoas (singulares ou coletivas) a quem os bens pertencem. O que acontece, quando há uma declaração de insolvência, é apenas, como resulta do artº 81.º n.º 1 do CIRE, uma transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, do insolvente para o Administrador da Insolvência. Os bens continuam a ser do insolvente, apenas se dá uma transferência daqueles poderes sobre eles (que de outro modo continuariam no insolvente por os bens serem dele).
10. Procedendo o administrador da insolvência, na qualidade de fiel depositário dos bens do devedor, como representante da massa insolvente, e não em nome próprio, à alienação onerosa de bens imóveis na mesma integrados, não pode ser considerado titular do direito de propriedade do bem.
11. Assim, praticando o administrador atos de liquidação da massa insolvente, na forma de venda de bens integrantes dessa massa, por um valor superior ao valor pelo qual ele foi adquirido, tal corresponde a um acréscimo do património do devedor, pessoa singular ou coletiva, e o imposto que esse acréscimo vai originar é um imposto do devedor pelo qual responde apenas o património separado naquela massa insolvente.
12. A massa insolvente de A……….. e B……….., ora impugnantes, representada por a administradora da insolvência ao outorgar a escritura de compra e venda em 10/05/2013 não intervém porque se tornou proprietária individual do bem transmitido, pelo que carece de fundamento legal o entendimento de que as mais-valias dessa venda do imóvel devem ser tributadas na esfera jurídica da massa insolvente e não dos insolventes.
13. Quanto aos benefícios fiscais que se encontram no CIRE, no que se refere às isenções de IRS, o art. 268º do CIRE prevê que eventuais mais-valias que o devedor obtenha com a doação em cumprimento de bens seus, e da cessão de bens aos credores estão isentas de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares não concorrendo para a determinação da matéria coletável.
14. In casu, como não se está perante uma destas hipóteses de isenção, as mais-valias realizadas, com a venda de um bem da massa insolvente, está abrangida pelo IRS, concorrendo para a determinação da matéria coletável.
15. Neste sentido, entendeu-se na informação vinculativa emitida no processo 5957/2010 da Direcção-Geral dos Impostos, com despacho concordante da Srª Subdiretora-geral de 01/10/2010, que se cita no corpo das presentes alegações.
16. Durante o processo de insolvência de uma pessoa, é nomeado um Administrador Judicial para administrar os bens da pessoa. E o mesmo se passa numa empresa.
17. A diferença é que na empresa encerrando-se o processo o assunto está resolvido e com as pessoas não. As pessoas continuam a existir e também do ponto de vista fiscal.
18. Uma pessoa singular nunca deixa de existir por razões ligadas ao processo de insolvência e por norma continua a auferir rendimentos e é obrigada a declará-los.
19. Daqui decorre que os insolventes não podem deixar de apresentar a declaração de rendimentos, e declarar a alienação do imóvel na categoria G – mais-valias, ainda que se trate da alienação do imóvel da massa insolvente desses sujeitos passivos.
20. Os acréscimos patrimoniais que a lei considera como mais-valias tributáveis na categoria G correspondem, essencialmente, a ganhos resultantes de uma valorização de bens devida a circunstâncias exteriores, portanto, independentemente de uma atividade produtiva do seu titular. São “ganhos trazidos pelo vento” (windfallgains).
21. Afirmar que os insolventes não devem ser tributados em mais-valias porque não exerceram qualquer atividade no sentido de obterem qualquer rendimento a qualquer título, é ir contra a vontade do legislador que prevê este tipo de tributação independentemente de qualquer atividade produtiva produzida pelo seu titular.
22. O acréscimo do património é dos insolventes, embora reportado a uma massa patrimonial separada. Os insolventes, como pessoas singulares que são, estão obrigados a declarar os acréscimos patrimoniais por mais-valias.
23. Com a separação patrimonial decorrente da declaração de insolvência, não passa a haver duas pessoas distintas, os insolventes e a massa, e o acréscimo patrimonial beneficiou os insolventes embora na parte do seu património separado para a massa.
24. No sentido de que o insolvente singular deve cumprir pessoalmente com as suas obrigações diz Sara Luís da Silva Veiga Dias, in O crédito tributário e as obrigações fiscais no processo de insolvência, págs. 98/99, dissertação de mestrado, no repositórium da Universidade do Minho, págs. 121 que citamos no corpo destas alegações.
25. A douta sentença sob recurso incorreu em erro de julgamento da matéria de direito, e violou os artigos 10º n.º 1 a) e 13.º do CIRS, 46º nº 1, 81º nº 1 e 268º nº 1 do CIRE.
TERMOS EM QUE, deve ordenar-se a revogação da douta sentença, como é de LEI E JUSTIÇA

2 – Contra-alegaram os recorridos, nos termos de fls. 85 a 90 dos autos, pugnando pela manutenção do julgado recorrido.

3 - O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu o parecer de fls. 99/100 dos autos, concluindo no sentido da improcedência do recurso e manutenção do julgado recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

- Fundamentação -
4 – Questão a decidir
É a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao julgar procedente a impugnação da liquidação de IRS, no entendimento de que o imposto incidente sobre as mais-valias imobiliárias geradas com a alienação de um bem integrado na massa insolvente, efectuada pela administradora da insolvência, e cujo produto da venda reverte para a massa insolvente, não pode constituir uma dívida dos impugnantes, pois na data em que foi efectuada a venda do imóvel este era já parte integrante da massa insolvente.

5 – Na sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro objecto de recurso foram fixados os seguintes factos:
1 – Em 03.02.2011 foi proferida sentença no âmbito do processo de insolvência n.º 96/11.0T2AVR que correu termos no Juízo do Comércio da Comarca do Baixo Vouga, na qual se declarou a insolvência dos ora impugnantes, cfr. fls. 14 do PA e que aqui se dá por reproduzida.
2 – No âmbito dos autos de insolvência identificados em 1), foi nomeada administradora da insolvência a Sra. Dra. C………., cfr. fls. 14 do PA.
3 – Em 18.04.2012 foi admitido o pedido de exoneração do passivo restante conforme despacho proferido pelo Tribunal da Comarca do Baixo Vouga – Juízo do Comércio, onde se refere, entre outros, o seguinte: “(…) determina-se que durante os cinco anos subsequentes ao Trânsito em julgado desta decisão, o rendimento disponível dos insolventes se considera cedido ao fiduciário, com exclusão dos créditos indicados nas alíneas (…) fixando-se o sustento mensal minimamente digno dos insolventes no valor correspondente a 3.5 salários mínimos nacionais, (…) sendo o restante rendimento disponível para cessão. (…) Como fiduciário, fica designada a administradora da insolvência. (…)”.
4 – Em 10.05.2013 no Cartório Notarial de Anadia, foi celebrada escritura de compra e venda do prédio urbano sito em …………., Rua …………., concelho de Anadia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2263, cfr. fls. 8 a 12 do PA e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
5 – O imóvel identificado em 3), foi vendido por C…………. na qualidade de Administradora de Insolvência da massa insolvente de A……… e mulher, B…………., conforme fls. 8 e 9 do PA e escritura de compra e venda identificada em 4).
6 – A liquidação do IRS do ano de 2013 e ora impugnada foi emitida em nome de A……….. e B…………, cfr. fls. 16 a 18 do PA e que aqui se dão por reproduzidas.
7 – Os ora impugnantes apresentaram reclamação graciosa contra a liquidação identificada em 6) nos termos constantes de fls. 2 a 7 do PA e que aqui se dão por reproduzidas.
8 – A reclamação referida em 7) foi indeferida com os fundamentos constantes de fls. 34 a 38 e 41 do PA e que aqui se dão por reproduzidas e cujos extractos a seguir se transcrevem: “(…) Assim, sendo o requerente o titular do imóvel e tendo ocorrido a transmissão do mesmo, caímos no âmbito de aplicação da tributação dos ganhos em sede de mais-valias (…) O acréscimo patrimonial que justifica a incidência do IRS sobre os rendimentos de mais-valias não resulta necessariamente de um fluxo financeiro a favor do titular dos rendimentos, podendo consistir, como é o caso, em uma redução do seu passivo. (…) O benefício fiscal do art. 268º nº 1 do CIRE apenas abrange a dação em pagamento dos bens do insolvente e não a compra e venda. (…) Concluindo (…) São mais valias os acréscimos patrimoniais, ainda que traduzidos em uma mera redução do passivo, do sujeito passivo de IRS insolvente, ainda que a alienação dos bens imóveis que os originou tenha sido efectuada pelo administrador da Insolvência, em virtude da privação do sujeito passivo insolvente dos poderes de disposição dos seus bens. (…) Assim, a questão em análise no presente processo cai no âmbito de aplicação da tributação dos ganhos em sede de mais-valias. (…)”.
9 – Em 28.07.2015 foi apresentada a presente impugnação judicial, cfr. fls. 4 (processo físico) destes autos.

6 – Apreciando.
6.1 Do alegado erro de julgamento da sentença recorrida
A sentença recorrida, a fls. 42 a 51 dos autos, julgou procedente a impugnação deduzida pelos ora recorridos contra a decisão de indeferimento de reclamação graciosa tendo por objecto liquidação de IRS de 2013 resultante da tributação de mais-valias imobiliárias decorrentes da transmissão onerosa de bem imóvel apreendido para a massa insolvente, efectuada pela administradora da insolvência, no entendimento de que tal imposto não pode constituir uma dívida dos ora impugnantes, pois na data em que foi efectuada a venda do imóvel este era já parte integrante da massa insolvente – cfr. sentença recorrida, a fls. 50 dos autos.
Fundamentou-se o decidido na “doutrina” emanada do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/07/2015, processo n.º 8729/12.4TBVNG – G.P1, transcrito na sentença recorrida a fls. 46 a 49, que a 1.º instância julgou “ter aplicação in totum ao caso sub judice.
Discorda do decidido a AT, alegando que os insolventes ora impugnantes é que são sujeitos passivos de IRS, e não a massa insolvente, que não cabe no conceito de sujeito passivo do art. 13.º do CIRS, desde logo porque não se trata de uma pessoa singular e que praticando o administrador atos de liquidação da massa insolvente, na forma de venda de bens integrantes dessa massa, por um valor superior ao valor pelo qual ele foi adquirido, tal corresponde a um acréscimo do património do devedor, pessoa singular ou coletiva, e o imposto que esse acréscimo vai originar é um imposto do devedor pelo qual responde apenas o património separado naquela massa insolvente. Mais alega que embora o art. 268º do CIRE prevê que eventuais mais-valias que o devedor obtenha com a doação em cumprimento de bens seus, e da cessão de bens aos credores estão isentas de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares não concorrendo para a determinação da matéria coletável, in casu, como não se está perante uma destas hipóteses de isenção, as mais-valias realizadas, com a venda de um bem da massa insolvente, está abrangida pelo IRS, concorrendo para a determinação da matéria coletável. Conclui, em conformidade, que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de direito, e violou os artigos 10º n.º 1 a) e 13.º do CIRS, 46º nº 1, 81º nº 1 e 268º nº 1 do CIRE.
Os recorridos pugnam pela manutenção do julgado recorrido e também o Excelentíssimo Procurador-Geral adjunto junto deste STA se pronuncia pelo não provimento do recurso, por adesão ao julgado recorrido ou, em alternativa, pela consideração de que tais mais-valias não constituem um ganho susceptível de concorrer para a determinação da matéria colectável do sujeito passivo do imposto, pois que apenas beneficia o património autónomo que constitui a massa insolvente, cuja administração o Insolvente não controla e que está exclusivamente afecto à satisfação dos interesses dos seus credores, não tendo qualquer reflexo sobre o património remanescente, ou ainda, em alternativa, por não repugnar, uma interpretação extensiva da norma do art. 268.º, n.º 1 do CIRE, postulada pela similitude das situações, vistas à luz da ratio do preceito (…) - cfr. parecer, a fls. 100 dos autos.
Vejamos.
Questão similar à que é objecto do presente recurso foi já objecto de pronúncia por este STA, em termos dissonantes dos adoptados pela sentença recorrida e contrários ao parecer do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal.
A questão foi tratada no nosso Acórdão de 10 de Maio de 2017, proferido no recurso n.º 669/17, e reiterada, mais recentemente, por Acórdão de 11 de Outubro último, proferida no recurso n.º 504/17.
Ali se decidiu, e aqui se reitera, não padecer de ilegalidade a liquidação de IRS efectuada aos proprietários (insolventes) de bens imóveis integrados na massa insolvente cuja alienação, pelo administrador de insolvência, gere mais-valia, pois que são estes, nos termos legais, e não a massa insolvente, os proprietários dos bens e sujeitos passivos do imposto. Como se decidiu não ser de interpretar extensivamente a norma de isenção prevista no n.º 1 do artigo 268.º do CIRE por forma a nela abarcar, para além da sua letra, IRS incidente sobre mais-valias geradas pela venda de bens imóveis que integrem a massa insolvente.
E isto porque, como ali se consignou, e que com a devida vénia se transcreve:

«O art. 268.º do CIRE, que tem como epígrafe «Benefícios relativos a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas», prevê no seu n.º 1 uma isenção relativamente aos impostos sobre o rendimento nos seguintes termos:

«As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas, não concorrendo para a determinação da matéria colectável do devedor».

Como resulta da letra da lei apenas estão abrangidas pela isenção de IRS, as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do insolvente e da cessão desses bens aos credores e já não as resultantes da venda desses bens – figuras jurídicas inequivocamente distintas e tratadas autonomamente no Código Civil (CC) –, ainda que o seu produto seja aplicado no pagamento aos credores.

Antes do mais, cumpre ter presente que, em matéria de isenções, há que observar o princípio constitucional da legalidade tributária, na sua vertente de tipicidade, que veda a integração analógica de normas de isenção de imposto, embora consinta na sua interpretação extensiva, como, aliás, reconhece o legislador ordinário (cfr. art. 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais). A interpretação extensiva pressupõe que, por via interpretativa, se conclua que o legislador minus dixit quam voluit, que o legislador disse menos do que aquilo que se pretendia dizer (Sobre a questão, vide o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 23 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 592/11, disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/276fb5605d95722d8025795d00445be9.), ou seja, que quando isentou de IRS as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do devedor aos credores ou da cessão de bens aos credores pretendia igualmente abranger no âmbito da isenção as mais-valias realizadas com a venda a terceiros desse bens, pelo menos na parte em que o produto dessa venda fosse utilizado no pagamento aos credores. Mas, salvo o devido respeito, qualquer que seja o juízo sobre a bondade da opção legislativa, não pode é sustentar-se que o legislador pretendia também abranger na isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE as mais-valias resultantes da venda de bens do devedor. Na verdade, a ser assim, por certo o teria dito expressamente (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CC), tanto mais que as situações de venda serão mais vulgares que as de dação em pagamento ou cessão de bens aos credores. Por outro lado, nada permite concluir, designadamente a ratio legis, que o legislador quisesse aplicar às situações em que há venda de bens (transferência de bens do insolvente para terceiros) tratamento idêntico àquele em que há uma transferência directa de bens da esfera patrimonial do insolvente para a dos credores, sendo legítimo concluir que pretendeu estimular este modo de extinção das dívidas do insolvente.

Concluímos, pois, que as mais-valias resultantes da venda de bens do insolvente não estão abrangidas pela isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE.

Mas será que, como sustentou o Juiz do Tribunal a quo, que o insolvente não obteve qualquer rendimento com a alienação do imóvel?

Atento o disposto nos arts. 1.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e, designadamente, a repartição do produto obtido pelos credores, podendo ser objecto de tal processo quaisquer pessoas singulares ou colectivas, sendo que, no caso, apenas nos interessa considerar a insolvência de pessoa singular.

Quando uma pessoa singular é objecto de uma declaração de insolvência, os seus bens susceptíveis de penhora são apreendidos, de acordo com a alínea g) do n.º 1 do art. 36.º do CIRE, e passam a integrar um património autónomo e de afectação, uma vez se destina à satisfação dos interesses dos credores da insolvência, denominada massa insolvente. A massa insolvente, de acordo com o conceito do n.º 1 do art. 46.º do CIRE, «destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo». Esses bens são entregues ao administrador da insolvência (O administrador da insolvência é um órgão da insolvência sem poderes de representação do insolvente que seja pessoa singular, contrariamente ao que sucede relativamente às pessoas colectivas (cfr. art. 81.º, n.º 4, do CIRE).), que é quem pode exercer poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE).

Daqui decorre que a massa insolvente tem autonomia patrimonial, que existe quando se está perante uma «certa massa de bens afectada ao pagamento de um conjunto próprio de dívidas» (Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, anotação 4 ao art. 601.º, pág. 586.

No mesmo sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido, Revista da Ordem dos Advogados, Dezembro de 1995, págs. 652/653; MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os efeitos substantivos da falência, PUC 2000, pág. 127; PAULA COSTA E SILVA, A liquidação da massa insolvente, Revista da Ordem dos Advogados, 2005, volume III, págs. 717 a 719, onde fala de «património de afectação» (também disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=44561&ida=44625).), mas não constitui uma pessoa (singular ou colectiva), um novo ente, distinto daquele a quem o património autónomo continua a pertencer (() Não passam a existir duas pessoas, tal como não existem três entes em resultado de um casamento, apesar de existirem dois patrimónios próprios e um comum.). Dito de outro modo, «A constituição de um património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor insolvente que lhe deu origem» (Cfr. BRUNO SANTIAGO e BEATRIZ CAPELOA GIL, A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente, Cadernos de Justiça Tributária, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, n.º 13, págs. 3 a 15.).

A massa insolvente constitui apenas uma parte separada do património da pessoa singular a quem os bens pertencem e a quem não deixam de pertencer por força da declaração de insolvência; o que acontece, quando há uma declaração de insolvência, é apenas a transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, da pessoa insolvente para o administrador da insolvência (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE). Os bens não deixam de ser propriedade do insolvente; apenas se dá uma transferência daqueles poderes sobre eles.

Assim, praticando o administrador actos de liquidação da massa insolvente, designadamente vendendo (Segundo o art. 158.º, n.º 1, do CIRE, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente.) bem imóvel integrante dessa massa (venda efectuada na qualidade de fiel depositário dos bens do devedor, como representante da massa insolvente, e não em nome próprio), se a venda for efectuada por um valor superior àquele pelo qual o imóvel foi adquirido, gera um acréscimo do património do insolvente, constituindo assim um rendimento sujeito a IRS, nos termos do art. 10.º, n.º 1, alínea a), do Código daquele imposto. Como deixou já dito este Supremo Tribunal Administrativo, para a qualificação como mais-valia sujeita a tributação releva unicamente a diferença positiva entre o valor pelo qual um imóvel foi alienado e o valor da sua aquisição, corrigido e acrescido nos termos legais, sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu ( Cfr. o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 21 de Setembro de 2016, proferido no processo n.º 582/15, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b601a4ed1e38d3eb80258037004cbb31.).Aliás, nem sequer pode dizer-se que não haja benefício para o insolvente, pois esse acréscimo patrimonial beneficiou o insolvente embora na parte do seu património separada para a massa, traduzindo-se numa diminuição do seu passivo.

Neste sentido, aponta também, a contrario, o disposto no art. 268.º do CIRE, ao prever uma isenção de IRS para as mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento (realização de uma prestação, diferente da que é devida, com o fim de extinguir imediatamente a obrigação) de bens do devedor e da cessão de bens aos credores (em que o devedor encarrega os credores de liquidar o seu património ou parte dele e de repartirem entre si o respectivo produto para satisfação dos seus créditos); o que significa que, se as mais-valias não resultarem de um desses negócios previstos nesta norma de isenção, designadamente se resultarem da venda de bens da massa insolvente, e a menos que gerem rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais (Ou seja, pressupomos que os imóveis pertencem ao património particular do sujeito passivo, isto é, que não estavam afectos a qualquer actividade empresarial e/ou profissional.), estão abrangidas pelo IRS, concorrendo para a determinação da matéria colectável em sede deste imposto [art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS]. Neste sentido também se pronunciam a AT, na informação vinculativa emitida no processo 5957/2010 da Direcção-Geral dos Impostos, com despacho concordante da Subdirectora-Geral de 1 de Outubro de 2010 (() Disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/B88EB745-5794-49A6-8C8C-00AFC4C8030F/0/ProcN%C2%BA5957_2010IRS.pdf.), e a doutrina ( Designadamente:

- CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3.ª edição, Quid Juris, 2015, págs. 916/917;

- LIMA GUERREIRO, Os créditos fiscais no novo CPERF, Fisco, ano V, n.º 54, pág. 118;

- SARA LUÍS DA SILVA VEIGA DIAS, O crédito tributário e as obrigações fiscais no processo de insolvência, págs. 98/99, dissertação de mestrado, no repositorium da Universidade do Minho, disponível em

http://hdl.handle.net/1822/21395;

- ANA PRATA, JORGE MORAIS DE CARVALHO e RUI SIMÕES, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, Almedina, 2013, pág. 716, em anotação ao art. 268.º.).

Daqui decorre que não podemos concordar com a sentença quando, considerando inexistir rendimento do insolvente sujeito a tributação em IRS, anulou a liquidação com esse fundamento.» (fim de citação).

É este julgamento que aqui se reitera, sendo, pois, de concluir que, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, a liquidação impugnada não sofre de vício de violação de lei ao ter liquidado o IRS aos proprietários, insolventes, do bem imóvel alienado e integrado na massa insolvente gerador de mais-valias, como não viola a norma de isenção prevista no n.º 1 do artigo 268.º do CIRE.

Questão diversa, que não cumpre aqui tratar - pois que na impugnação está apenas em causa a legalidade da liquidação sindicada e não a exigibilidade da dívida liquidada - é a de saber por que bens responde a dívida de IRS gerada, admitindo a própria recorrente que o imposto que esse acréscimo vai originar é um imposto do devedor pelo qual responde apenas o património separado naquela massa insolvente (conclusão 11 das alegações de recurso). Trata-se, porém, de questão a apreciar, se for o caso, no âmbito do processo executivo, e que não cabe aqui antecipar.

Pelo exposto se conclui pelo provimento do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e a improcedência da impugnação judicial deduzida pelos ora recorridos.

- Decisão -
7 - Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a impugnação judicial deduzida pelos recorridos.

Custas pelos recorridos, em 1.ª instância e neste STA.

Lisboa, 30 de Maio de 2018. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Pedro Delgado - Dulce Neto.