Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0636/18.3BELRS
Data do Acordão:01/13/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CPPT
Sumário:I – O recurso de revista excepcional previsto no art. 150.º do CPTA não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II – Justifica-se a admissão da revista relativamente à questão de saber se o pedido de dispensa da prestação de garantia, se formulado com a comunicação da intenção de deduzir reclamação graciosa, mas antes da apresentação desta, pode ser indeferido por intempestividade, à luz do disposto no n.º 4 do art. 170.º do CPPT, caso a reclamação graciosa não seja deduzida no prazo de 10 dias, a contar da apresentação daquele pedido.
III - Essa questão reveste importância fundamental, pela sua relevância jurídica e, de igual modo, a sua resolução por este Supremo Tribunal impõe-se em ordem à melhor aplicação do direito, atenta a capacidade de expansão da controvérsia, pela susceptibilidade de repetição e por a sua solução poder ser um paradigma ou orientação para apreciação de outros casos, o que significa que a utilidade da decisão ultrapassa, claramente, os limites do caso concreto.
Nº Convencional:JSTA000P26998
Nº do Documento:SA2202101130636/18
Data de Entrada:11/13/2020
Recorrente:A............, LDA.
Recorrido 1:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 636/18.3BELRS

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada, inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 13 de Setembro de 2018 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/847760f8b5d9e48a8025830b00565fd7.) – que, concedendo provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, revogou a sentença proferida no Tribunal Tributário e, em substituição, manteve o despacho do órgão da execução fiscal que aquela anulara, de indeferimento do pedido de dispensa da prestação de garantia formulado pela sociedade ora Recorrente –, dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, ao artigo do disposto no art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), apresentando as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«IV- CONCLUSÕES

A) O presente recurso de revista tem por objecto o Acórdão proferido pelo TCAS, do qual foi a Recorrente notificada em 20.09.2018, que concedeu provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, tendo revogado a sentença recorrida e confirmado o despacho reclamado, que indeferiu o pedido de dispensa de garantia com fundamento na sua extemporaneidade;

B) Os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista, estabelecidos no artigo 150.º, do CPTA, encontram-se reunidos in casu, pelo que deve o mesmo ser admitido;

C) Em causa encontram-se questões passíveis de se repetir num número indeterminado de casos futuros, o que torna a admissão da revista claramente necessária para a melhor aplicação do direito, nos termos do n.º 1, do artigo 150.º, do CPTA;

D) Por outro lado, uma das questões que pretende a Recorrente ver apreciada em sede de revista reveste uma relevância social que lhe imprime a importância fundamental a que se reporta o n.º 1, do artigo 150.º, do CPTA, e que se assume como um dos pressupostos que justifica a admissibilidade do recurso de revista;

E) As questões que se colocam no caso sub judice que justificam a necessidade de admissão da revista para que se proceda a uma melhor aplicação do direito – uma das quais reveste uma relevância social fundamental conforme se detalhará – são as seguintes:
(i) é possível considerar o pedido de dispensa de garantia intempestivo por antecipação com base no facto de o meio gracioso ou judicial tendente a discutir a legalidade ou exigibilidade da dívida ter sido deduzido fora do prazo de 10 dias previsto no artigo 170.º, n.º 4 do CPPT?
(ii) afigura-se possível reduzir o prazo regra legalmente consagrado para apresentação do meio gracioso ou judicial tendente a discutir a legalidade ou exigibilidade da dívida (no caso da reclamação graciosa de 120 dias) para 10 dias por via interpretativa?
(iii) é admissível por via da interpretação enunciada em (i) tornar o princípio geral de acordo com o qual “os prazos processuais, não podendo ser excedidos, podem, em regra, ser antecipados” insusceptível de ter aplicação no caso concreto do pedido de dispensa de garantia?

F) Estas questões resultam de o Tribunal a quo ter considerado que a apresentação antecipada, em face do prazo estabelecido no artigo 170.º, n.º 1 do CPPT, do pedido de dispensa de garantia tem como conditio sine qua non a dedução do meio gracioso ou judicial tendente à discussão da legalidade ou exigibilidade da dívida no prazo de 10 dias previsto no artigo 170.º, n.º 4 do CPPT;

G) Impõe-se, assim, clarificar se, à semelhança do que sucede no caso do pedido de prestação de garantia, cujo propósito é o mesmo do pedido de dispensa de garantia – suspensão provisória do processo de execução fiscal – para decidir o pedido de dispensa de garantia basta a indicação, por parte do executado, da intenção de vir a deduzir meio gracioso ou judicial tendente à discussão da legalidade ou exigibilidade da dívida;

H) Ou, no limite, se a consequência da apresentação antecipada do pedido de dispensa de garantia será o conhecimento do mesmo por parte da AT apenas após a apresentação do meio de reacção que o executado haja indicado como tendo intenção de usar;

I) Estranho seria já, contudo, aceitar-se o entendimento de acordo com o qual o pedido de dispensa de garantia pode ser antecipado, embora para poder sê-lo, tenha de ser deduzido em dez dias o meio gracioso ou judicial tendente à discussão da legalidade ou exigibilidade da dívida, por se tratar de interpretação que, restringindo desnecessariamente direitos liberdades e garantias dos contribuintes (no caso, o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da CRP) desrespeitaria o artigo 18.º, n.º 2 da CRP e, simultaneamente, consubstanciaria uma interpretação contrária ao princípio pro actione, por seu turno corolário daquele princípio a uma tutela jurisdicional efectiva, revelando-se por isso materialmente inconstitucional;

J) A segunda questão encontra-se relacionada com o facto de, por via da interpretação sancionada no Acórdão recorrido, se transformar o prazo de decisão do pedido de dispensa de garantia (previsto no artigo 170.º, n.º 4 do CPPT) no prazo para deduzir o meio gracioso ou judicial através do qual se discute a legalidade ou exigibilidade da dívida (previsto em diferentes artigos, como o artigo 70.º, n.º 1 do CPPT, o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT, o artigo 10.º, n.º 1 do RJAT, o artigo 203.º, n.º 1 do CPPT, etc.), em violação do princípio da tipicidade, na vertente de reserva material da lei, de acordo com o qual a matéria das garantias dos contribuintes deve constar de lei (como consta in casu, embora em nenhum caso o prazo legalmente previsto seja de dez dias);

K) A terceira questão, por seu turno, tem que ver com o facto de a interpretação veiculada no Acórdão recorrido, desincentivando de forma significativa e velada a apresentação antecipada do pedido de dispensa de garantia – porquanto apenas a admite se acompanhada do meio gracioso ou judicial tendente à discussão da legalidade ou exigibilidade da dívida no prazo de dez dias – contraria o princípio geral univocamente reconhecido em jurisprudência do STA de acordo com o qual os prazos processuais, não podendo ser excedidos, podem em regra ser antecipados;

L) Todas estas questões integram uma matéria que, ultrapassando os limites dos casos concreto e afectando interesses comunitários relevantes, reclamam uma decisão deste Supremo Tribunal nos termos definidos para a revista pelo artigo 150.º do CPTA, revestindo uma delas uma relevância social que lhe imprime a importância fundamental a que se reporta aquela mesma disposição legal.

V- DO PEDIDO

Nestes termos e nos mais de Direito, se requer a V. Exas. se dignem admitir o presente recurso de revista e revogar o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que, com base na pronúncia acerca das questões acima identificadas, determine a anulação do despacho reclamado que indeferiu o pedido de dispensa de garantia com base na sua intempestividade, com as demais consequências legais».

1.2 A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

1.3 O Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido da admissão da revista. Isto, após tecer diversos considerando sobre o objecto do recurso e os requisitos da admissibilidade da revista e a interpretação que dos mesmos tem vindo a ser efectuada pela jurisprudência, com a seguinte fundamentação:

«Em consonância com a recorrente, entendemos que se verificam os pressupostos de admissão do recurso excepcional de revista.
De facto, verifica-se uma clara necessidade de admissão da revista, pois que ocorre uma evidente capacidade de expansão da controvérsia, sendo certo que, salvo melhor juízo, as questões foram tratadas de forma pouco consistente pelo tribunal recorrido, quando se condiciona a aplicação do princípio geral de que os “prazos processuais, não podendo ser excedidos, podem, por regra, ser antecipados” à apresentação do meio gracioso/judicial no prazo de 10 dias, estatuído no artigo 170.º/4 do CPPT, que se reporta, de forma patente, ao prazo de decisão e não ao prazo de apresentação do meio graciosa/judicial.
Como bem sustenta o douto voto de vencido dificilmente se justifica o encurtamento de um prazo de 120 dias para deduzir reclamação graciosa para um prazo de 10 dias, sem que daí decorra uma severa diminuição do direito de defesa do sujeito passivo.
Por outro lado as questões controvertidas nos autos ostentam uma relevância social fundamental, uma vez que a sua solução pode ser um paradigma ou orientação para apreciação de outros casos, sendo certo que a utilidade da decisão ultrapassa, claramente, os limites do caso concreto».

1.4 Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) (Apesar de entretanto, após a alteração introduzida no regime de recursos da jurisdição tributária pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, o recurso de revista excepcional ter passado a ter previsão no art. 285.º do CPPT, que decalca o regime do art. 150.º do CPTA, o novo regime apenas é aplicável «[a]os recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei», nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 13.º da referida Lei.).


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art. 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido.


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cf. art. 150.º, n.º 1, do CPTA).
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.2.1.2 Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicável).

2.2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (Cf., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.2.1 O recurso vem interposto do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que, concedendo provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, revogou a sentença proferida no Tribunal Tributário de Lisboa e, em substituição, manteve o despacho do órgão da execução fiscal que aquela anulara, de indeferimento, por extemporaneidade, do pedido de dispensa da prestação de garantia formulado pela sociedade ora Recorrente.
A questão a dirimir, em ordem à verificação dos requisitos da admissibilidade do recurso de revista, gira em torno de saber se o pedido de dispensa da prestação de garantia apresentado em execução fiscal conjuntamente com a manifestação da intenção de deduzir reclamação graciosa contra as liquidações que deram origem às dívidas exequendas, deve ser indeferido por extemporaneidade tão-logo esteja decorrido o prazo de 10 dias previsto no n.º 4 do art. 170.º do CPPT, se não for deduzida entretanto a reclamação graciosa, ou se deve aguardar o decurso do prazo para a interposição daquele meio gracioso (de 120 dias, nos termos do n.º 1 do art. 70.º do CPPT), sendo então apreciado pelo órgão da execução fiscal, a menos que entretanto seja deduzido aquele meio de reacção graciosa.
Questão diversa, mas que não foi suscitada, é a de saber se a execução fiscal se suspende provisoriamente com o pedido de dispensa de prestação de garantia e a intenção de deduzir reclamação graciosa ou se apenas se pode suspender a partir do momento em que é apresentada a reclamação graciosa cuja intenção de instauração foi comunicada previamente.
Vejamos mais detalhadamente:
A ora Recorrente, executada no âmbito de um processo executivo em que lhe estão a ser exigidas dívidas fiscais, pediu em 27 de Julho de 2017 a dispensa de prestação de garantia e a suspensão da execução fiscal, manifestando a intenção de deduzir reclamação graciosa contra as liquidações que deram origem àquelas dívidas.
A AT indeferiu esse pedido por decisão de 29 de Agosto de 2017. Em resumo, com a seguinte fundamentação: nos termos do disposto no art. 169.º, n.º 1, do CPPT, e do art. 52.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), a suspensão da execução fiscal mediante prestação de garantia ou dispensa dessa prestação tem como condição a dedução de meio procedimental ou processual tendo por objecto a legalidade ou a exigibilidade da própria dívida exequenda; nos termos do n.º 2 do mesmo art. 169.º do CPPT, a suspensão da execução fiscal também pode ser obtida desde que, após o termo do prazo de pagamento voluntário, seja prestada garantia antes da apresentação do meio gracioso ou judicial correspondente, acompanhada de requerimento em que conste a natureza da dívida, o período a que respeita e a entidade que praticou o acto, bem como a indicação da intenção de apresentar meio gracioso ou judicial para discussão da legalidade ou da exigibilidade da dívida exequenda; o que significa que, «nos termos do n.º 2 do art. 169.º do CPPT, a execução fica suspensa se a apresentação do requerimento em que se manifesta a intenção de deduzir meio gracioso ou judicial para discussão da legalidade ou da exigibilidade da dívida exequenda for acompanhada da prestação de garantia idónea, ou se, havendo prestação desta garantia, se verificar, em simultâneo, a apresentação do requerimento supra referido»; no caso, a Executada requereu a dispensa da prestação de garantia e manifestou a intenção de reclamar graciosamente das liquidações que deram origem às dívidas exequendas, sendo que ainda estava em prazo para essa reclamação; mas, inexistindo por parte da Executada pedido de pagamento em prestações ou prestação da garantia, pois apenas pediu a dispensa desta prestação, o facto de ter manifestado a intenção de deduzir reclamação graciosa não tem a virtualidade de suspender a execução fiscal, sem prejuízo de a Executada poder voltar a pedir a dispensa de prestação de garantia no prazo de 15 dias a contar da apresentação do meio de reacção gracioso ou contencioso, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 170.º do CPPT.
A Recorrente, que, entretanto, em 31 de Agosto de 2017, deduziu a reclamação graciosa – cuja intenção de dedução comunicara em 27 de Julho de 2017 –, reclamou dessa decisão, que apenas lhe foi notificada em 20 de Setembro de 2017, mediante petição inicial apresentada em 29 de Setembro de 2017.
O Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, depois de enunciar o disposto nos n.ºs 1 a 4 do art. 52.º da LGT e nos arts. 169.º, n.º 1, e 170.º, n.º 1, do CPPT, salientou que «a lei estabelece como prazo para apresentação do pedido de dispensa de prestação de garantia o de 15 dias após a apresentação da reclamação graciosa, da impugnação judicial ou recurso judicial que tenham por objecto a legalidade da dívida exequenda, ou da oposição à execução», o que deve ser visto como definindo apenas o termo final do prazo, inexistindo motivo para que se não aplique ao mesmo prazo o princípio geral de que os prazos, não podendo ser excedidos, podem, em regra, ser antecipados.
Parece ainda o Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa considerar que o efeito suspensivo provisório que a lei reconhece no n.º 2 do art. 169.º do CPPT («A execução fica igualmente suspensa, desde que, após o termo do prazo de pagamento voluntário, seja prestada garantia antes da apresentação do meio gracioso ou judicial correspondente, acompanhada de requerimento em que conste a natureza da dívida, o período a que respeita e a entidade que praticou o acto, bem como a indicação da intenção de apresentar meio gracioso ou judicial para discussão da legalidade ou da exigibilidade da dívida exequenda») é extensivo às situações que, ao invés da prestação de garantia, seja requerida a dispensa dessa prestação. Mas, como salientámos já, é questão que não cumpre apreciar no âmbito do presente recurso.
Salientou ainda a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que a decisão administrativa reclamada (proferida em 29 de Agosto de 2017), apesar de reconhecer e comunicar à ora Recorrente a possibilidade de apresentar novo pedido de dispensa de prestação de garantia no prazo de 15 dias após a apresentação da reclamação graciosa (ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 170.º do CPPT), só lhe foi notificada (em 20 de Setembro de 2017), quando tinham já decorrido mais de 15 dias a contar da apresentação da reclamação graciosa (em 31 de Agosto de 2017), «o que faz mesmo questionar o cumprimento dos princípios basilares da boa-fé que devem nortear a actuação da AT».
Concluiu o Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa que, «assim sendo, não podem resultar dúvidas de que o Órgão da Execução Fiscal deveria ter-se abstido de proferir decisão final quanto ao pedido de dispensa de prestação de garantia até que decorresse o prazo para apresentação da reclamação graciosa, não podendo considerar-se aquele pedido apresentado pela Reclamante como extemporâneo, como o foi».
Por tudo isso, salientando ainda que não estava em causa nos autos o reconhecimento do direito à dispensa da garantia, anulou a decisão reclamada, com o fundamento de que não se mostra extemporâneo o pedido de dispensa da prestação de garantia.
Em resumo: a sentença recorrida reconheceu a possibilidade de o pedido de dispensa de garantia ser formulado antes da apresentação do meio gracioso ou judicial correspondente, desde que com a indicação da intenção de apresentar esse meio gracioso ou judicial para discussão da legalidade ou da exigibilidade da dívida exequenda; nesse caso, deve a AT aguardar a apresentação desse meio impugnatório gracioso ou judicial pelo respectivo prazo, para só então se pronunciar sobre o pedido de dispensa da prestação de garantia.
A AT discordou deste entendimento e recorreu da sentença para o Tribunal Central Administrativo Sul. Sustentou, em síntese, que, atento o disposto no n.º 1 do art. 170.º do CPPT, o pedido de dispensa de garantia só pode ser apresentado nos 15 dias subsequentes à apresentação dos meios de reacção graciosos ou contenciosos (a menos que se verifique a situação do n.º 2 do mesmo artigo, que ora não importa considerar), «[p]elo que, antes de dar entrada ou ser iniciado qualquer dos meios que, existindo garantia ou reconhecimento da sua dispensa quando reunidos os pressupostos legais, suspende o processo de execução fiscal, não tem cabimento legal qualquer pedido de dispensa de prestação de garantia»; mais sustentou a inaplicabilidade à situação sub judice do princípio geral de que os prazos, não podendo ser excedidos, podem, em regra, ser antecipados.
Ou seja, o recurso assenta no erro de julgamento assacado à sentença, por ter considerado que, contrariamente ao que entendeu a sentença recorrida, o pedido de dispensa da prestação da garantia se deve ter por extemporâneo, porque não respeitou o prazo do n.º 1 do art. 170.º do CPPT, não sendo de aplicar à situação o princípio geral, assumido pela jurisprudência do STA para situações diversas, de que a antecipação do termo inicial do prazo não tem como consequência a intempestividade.
O Tribunal Central Administrativo Sul, que delimitou a «única questão a decidir nos presentes autos» como sendo «de saber se o despacho reclamado é ilegal, na medida em que considerou o pedido de dispensa de garantia extemporâneo, nos termos do art. 170.º, nº. 1, do C.P.P.T., visto não ser acompanhado da apresentação de meio gracioso ou judicial tendente à discussão da legalidade ou da exigibilidade da dívida subjacente aos autos», deu razão à AT.
No entendimento adoptado pelo Tribunal Central Administrativo Sul no acórdão recorrido, embora seja admissível a antecipação do momento de apresentação do pedido de dispensa de prestação de garantia, previsto no art. 170.º, n.º 1, do CPPT, quando tal ocorra, deve o meio gracioso ou judicial tendente à apreciação da legalidade ou inexigibilidade da dívida ser apresentado no prazo de 10 dias, mencionado no n.º 4 do mesmo artigo, para que o órgão da execução fiscal possa apreciar o mérito do pedido com respeito por esse prazo. Assim, no caso, não tendo a ora Recorrente deduzido a reclamação graciosa nesse prazo de 10 dias após ter apresentado o pedido de dispensa da prestação de garantia, este pedido deve ser indeferido por intempestividade.
Em suma, o Tribunal Central Administrativo Sul admite que o princípio geral de que os prazos, não podendo ser excedidos, podem, em regra, ser antecipados logra aplicação ao caso, aceitando a possibilidade de a Executada apresentar o pedido de dispensa de garantia antes de deduzir a anunciada reclamação graciosa. No entanto, ratifica a decisão de considerar esse pedido extemporâneo, com o fundamento (não coincidente com o utilizado pela AT) de que, «quando esta antecipação ocorra, será mester a apresentação de tal meio gracioso ou judicial tendente à discussão da legalidade ou da exigibilidade da dívida exequenda no prazo de dez dias consagrado no mencionado artº.170, nº.4, do C.P.P.T., de forma a que a Fazenda Pública veja reunidas as condições legais de apreciação do mérito do pedido».
Em face da decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, a Recorrente vem solicitar a este Supremo Tribunal, mediante a interposição de recurso de revista excepcional, que se pronuncie sobre três questões, que enunciou nos seguintes termos:
1.ª «É possível considerar o pedido de dispensa de garantia intempestivo por antecipação com base no facto de o meio gracioso ou judicial tendente a discutir a legalidade ou exigibilidade da dívida ter sido deduzido fora do prazo de 10 dias previsto no artigo 170.º/4 do CPPT?»
2.ª «Afigura-se possível reduzir o prazo regra legalmente consagrado para apresentação do meio gracioso ou judicial tendente a discutir a legalidade ou inexigibilidade da dívida (no caso de reclamação graciosa de 120 dias) para 10 dias por via interpretativa?»
3.ª «É admissível por via da interpretação enunciada na 1.ª questão tornar o princípio geral de acordo com o qual “os prazos processuais, não podendo ser excedidos, podem, em regra, ser antecipados” insusceptível de ter aplicação no caso concreto do pedido de dispensa de garantia?»

2.2.2.2 A nosso ver, e tendo sempre presente que no caso está em causa apenas indagar da tempestividade do pedido de dispensa de prestação de garantia – que não da susceptibilidade de o pedido formulado nesses termos ter efeito suspensivo provisório – é manifesta quer a relevância jurídica da questão, quer a necessidade de admitir o recurso em ordem à melhor aplicação do direito.
Na verdade, a divergência entre as instâncias, que também divergiram da posição assumida pela AT na decisão reclamada, e a não unanimidade no acórdão recorrido – sendo que o voto de vencido também não concorda integralmente com o decidido na sentença –, não sendo, por si só, determinantes para que se conclua pela relevância jurídica da questão, são reveladoras das dificuldades de interpretação na resolução da questão, a justificar a intervenção deste Supremo Tribunal para o esclarecimento das dúvidas nessa tarefa hermenêutica.
A admissão do recurso também se justifica em ordem à melhor aplicação do direito, atenta a capacidade de expansão da controvérsia (pela susceptibilidade de repetição e a sua solução poder ser um paradigma ou orientação para apreciação de outros casos, o que significa que a utilidade da decisão ultrapassa, claramente, os limites do caso concreto.
Por tudo isso, justifica-se a admissão da revista.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 150.º do CPTA não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - Justifica-se a admissão da revista relativamente à questão de saber se o pedido de dispensa da prestação de garantia, se formulado com a comunicação da intenção de deduzir reclamação graciosa, mas antes da apresentação desta, pode ser indeferido por intempestividade, à luz do disposto no n.º 4 do art. 170.º do CPPT, caso a reclamação graciosa não seja deduzida no prazo de 10 dias, a contar da apresentação daquele pedido.

III - Essa questão reveste importância fundamental, pela sua relevância jurídica e, de igual modo, a sua resolução por este Supremo Tribunal impõe-se em ordem à melhor aplicação do direito, atenta a capacidade de expansão da controvérsia, pela susceptibilidade de repetição e por a sua solução poder ser um paradigma ou orientação para apreciação de outros casos, o que significa que a utilidade da decisão ultrapassa, claramente, os limites do caso concreto.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 150.º do CPTA, em admitir o presente recurso.


*

Custas a final.
*
Lisboa, 13 de Janeiro de 2021. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Isabel Marques da Silva.