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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0756/08.2BELLE 0990/17
Data do Acordão:06/23/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:NULIDADE PROCESSUAL
CONTRADITÓRIO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NATUREZA
CLASSIFICAÇÃO
PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO
VERIFICAÇÃO
PRESSUPOSTOS
MÉTODOS INDICIÁRIOS
RELAÇÕES ESPECIAIS
REENVIO PREJUDICIAL
TEORIA DO ACTO CLARO
Sumário:I - Visto que o acórdão do TCAS não deixou de se ocupar das causas de pedir alegadas, para o que entendeu necessário servir-se dos factos fixados na ajuizada alínea do probatório e que estavam articulados a partir de documentos existentes nos autos, não cometeu erro de actividade jurisdicional, sendo em tal conspecto indevido o accionamento da regra da substituição ínsita no nº 3 do artº 665º do CPC, restando à recorrente suscitar o eventual erro de julgamento sobre a matéria de facto vertida na dita al. do probatório no instrumento recursório.
II - É que, relativamente a esse conhecimento que a recorrente e o Ministério Público entendem que foi “em substituição” e que foi cometida uma nulidade processual, por, em violação do princípio do contraditório, se ter omitido a prévia audição das partes, imposta pelos art°s. 665.°, n.°3, do CPC, sendo também certo que este normativo se destina a evitar decisões-surpresa, no caso, não se verificou qualquer surpresa na decisão em “substituição”, visto que a questionada matéria constava de documentos que já eram do conhecimento das partes.
III - A matéria relativa à natureza das inspecções tributárias -ou, mais especificamente, ao critério caracterizador do conceito de inspecção externa e de inspecção interna-, reveste-se de alta importância, atentas as consequências que daí advém, nomeadamente para os efeitos previstos no art.º 63º nº 3 da LGT, por se tratar de situações em que a Administração Tributária, socorrendo-se de elementos que não estão na sua posse, qualifica a inspecção como “interna” com vista a possibilitar uma nova inspecção a um período que já fora objecto de inspecção “externa”.
IV - Decorrendo do conteúdo do relatório e dos fundamentos que serviram de base às liquidações que a questionada inspecção teve por objecto exclusivo o IVA relativo ao segundo trimestre de 2003 e esgotou-se numa apreciação formal, realizada no Serviço de Finanças, da declaração apresentada pelo contribuinte e assentado na análise de alguns recibos, enviados com em fax em que se justificava a inexistência de comprovativos por se encontrar a aguardar licenciamentos, justificação que, à data, foi aceite como boa, é indubitável que a inspecção parcial em sede de IVA — 2° semestre — efectuada à recorrente foi uma inspecção interna, porque integralmente concretizada nos serviços de finanças, e que os actos praticados naquele procedimento se consubstanciaram na análise formal e na coerência de documentos detidos pela Administração Tributária e foram integralmente concretizados nas suas instalações, soçobra a pretensão da recorrente de ser atribuída outra qualificação ao procedimento.
V - Destarte, tratando-se de actos praticados pela administração fiscal como preliminar do procedimento de inspecção devem ser apreciados como tal e não como parte de um procedimento informal, não se verifica a nulidade da prova tida em consideração em sede da acção inspectiva, como pretende a impugnante.
VI - Tendo a determinação da matéria tributável por avaliação indirecta de ser feita por aproximação à realidade que se procura apurar, é necessário que se demonstre que teve por suporte elementos de facto possíveis e prováveis, extraídos de parâmetros gerais e comuns, adequados à situação. E, por isso, a AT tem de utilizar elementos de facto conhecidos que, segundo as regras da experiência, pautados por critérios de razoabilidade e de normalidade e tendo em linha de conta as especificidades próprias do contribuinte, conduzam à extrapolação dos factos desconhecidos ou à aproximação da realidade que se procura alcançar.
VII - Assim, a AT tem de indicar e justificar os critérios que utiliza na determinação da matéria tributável por métodos indiciários, para que o contribuinte deles fique ciente e apto a discutir a valorimetria aplicada, isto é, para que possa provar que os critérios utilizados são desadequados e/ou inadmissíveis para a sua actividade, que houve erro ou manifesto excesso na matéria tributada quantificada.
VIII - In casu o Relatório de Inspecção Tributária (RIT) justifica o recurso aos métodos indirectos para determinação da matéria tributável, na circunstância de ter sido detectado um contrato de arrendamento, não declarado, celebrado entre a recorrente e uma outra sociedade com a qual detém relações especiais (nos termos do artigo 58.°, n.°4, do CIRC), tendo resultado das diligências desenvolvidas e devidamente discriminadas no relatório, que o valor declarado é manifestamente inferior ao que em regra se encontra a ser fixado em contratos de arrendamento de natureza semelhante ao omitido na declaração
IX - Perante o iter cognitivo e valorativo é lícito inferir que os elementos carreados para os autos pela AT integram indubitavelmente indícios robustos de que a contabilidade da recorrente não merece credibilidade e que os dados a que foi possível aceder, como o contrato de arrendamento em apreço, não merece igualmente credibilidade atenta a disparidade ou discrepância com o “valor de mercado médio” para o tipo de contrato em questão, tendo, ainda, nessa determinação, sido atendidos, de forma sensata e coerente, os valores de majoração declarados por a alternativa ser a aplicação de coeficientes demasiado elevados para o tipo de contrato (arrendamento rural) em questão.
X - Acresce que a recorrente não tinha declarado o contrato de arrendamento, o que logo gera desvantagem ou desconfiança adensada pelo facto da existência de relações especiais entre os contraentes, tudo criando a necessidade de a AT considerar anómalas essas circunstâncias e o valor da própria renda pois, estando na normalidade a formalização do contrato em que se se estabeleceram os termos e as condições essenciais, como sejam, o objecto do contrato, a renda, o facto de não ter sido inscrito na contabilidade e declarado à administração fiscal, a patente discrepância entre o valor declarado e o valor de mercado do serviço de arrendamento rural e considerando a apresentação continuada de prejuízos fiscais, não é descabida a consideração de que a existência e não exibição do mesmo poderia constituir um elemento objectivo seguro da inveracidade do valor da renda, o que só não se alcançou dada a inexistência de tal instrumento na contabilidade, jogando esse facto contra a recorrente tanto mais que, como constataram os serviços da AT e decorre do Relatório a contabilidade deixou de ser digna de credibilidade tendo também em conta a disparidade ou discrepância com o “valor de mercado médio” para o tipo de contrato em questão.
XI - Sem embargo de ter sido perante os referidos indícios existentes nos autos que a AT, secundada pelo tribunal, julgou cessada a presunção de veracidade das operações constantes da escrita e dos respectivos documentos de suporte, a recorrente vem opor que os valores da renda correspondem à realidade e correspondem ao critério empresarial que reputou adequado o que, a aceitar-se, significaria que tal critério empresarial é insindicável e que não basta invocar preços simbólicos para o afastar.
XII - É que, a existência de valores significativamente inferiores ao normal constitui indício seguro de inveracidade, sendo critério legal de admissão do recurso a métodos indiciários com base nos indicadores objectivos de base técnico - científica que está consagrado hoje no artigo 87.° da Lei Geral Tributária.
XIII - Assim sendo, incumbia à recorrente infirmar tal conclusão carreando factos que permitissem credibilizar não os dados da sua escrita onde nem sequer figurava o contrato de arrendamento, designadamente através de circunstâncias excepcionais que justificassem terem sido tão comedido o valor das rendas.
XIV - Porque a recorrente não provou a falta ou insuficiência de indícios aptos a provarem que o valor da renda constante do contrato de arrendamento não tinha adesão à realidade do mercado de arrendamento, nem tão pouco que exista erro ou manifesto excesso na quantificação da matéria tributável, haverá que aceitar a legalidade do método presuntivo ou indirecto e da consequente liquidação adicional.
XV - Todavia, a possibilidade de correcção da determinação do lucro tributável a que se refere o art. 58º do CIRC, configura-se como um poder quase discricionário da AT, pelo que esta deve descrever os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias.
XVI - Embora o citado normativo não defina o que deve entender-se por "relações especiais", a doutrina fiscal vem considerando que tais relações existem quando haja situações de dependência, nomeadamente no caso de relações entre a Sociedade e os sócios, entre empresas associadas ou entre sociedades com sócios comuns ou ainda entre empresas mães e filiadas.
XVII - No caso vertente, como consta do RIT demonstrou-se a existência de relações especiais entre a impugnante e a outra sociedade, sem que a ora recorrente ponha em causa a sua existência pelo que não há qualquer insuficiência nesta fundamentação pois o raciocínio silogístico é claro e encontra-se devidamente suportado em factos concretos enunciados relativos a valores erradamente contabilizados e em outras diligências de prova.
XVIII - E, se por um lado se pode aceitar, num juízo de normalidade, que aquelas referidas circunstâncias determinaram necessariamente o estabelecimento de condições diferentes das que decorreriam normalmente entre pessoas independentes, também, por outro lado, se prova que a AT logrou demonstrar os termos em que, normalmente, operações da mesma natureza decorreriam se fossem efectuadas entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias.
XIX - Quanto ao método usado, importava averiguar se a sua escolha – e não de outro, porventura mais adequado à realidade da recorrente -, se encontra acompanhada de uma fundamentação precisa e objectiva, para, em função da mesma, sindicar a sua adequação ao caso concreto e ficou evidenciado que foi adoptada pelo Fisco uma fundamentação específica no que respeita à escolha do método adoptado, de entre os diversos métodos elencados no artigo 90º da Lei Geral Tributária.
XX - A pura decisão quantitativa tem de ser necessariamente corroborada por outros elementos – actividade de investigação da Administração, deveres de cooperação que evitem o puro raciocínio quantitativo – e a escolha do método constante do Relatório Final de Inspecção Tributária contém a fundamentação exigida pelo artº 58º do CIRC, na medida em que a sua adopção, em detrimento de outros métodos de quantificação indirecta da matéria tributável, foi acompanhada de uma fundamentação concreta, passível de sindicância por parte da Impugnante.
XXI - O TJUE já concluiu que, saber se um sujeito passivo, num caso concreto, adquiriu bens para os fins das suas actividades económicas, constitui uma questão de facto cuja apreciação deve ter em conta o conjunto dos dados do caso concreto, entre os quais a natureza dos bens em causa e o período decorrido entre a sua aquisição e a respectiva utilização ao serviço das actividades económicas do sujeito passivo, sendo que os períodos de ajustamento previstos no artigo 20.º n.°2, da Sexta Directiva não têm, enquanto tais, qualquer relação com a questão de saber se os bens são adquiridos com vista à sua utilização nessas actividades económicas.
XXII - E que se um particular adquire bens para os fins de uma actividade económica, na acepção do artigo 4.°, actua na qualidade de sujeito passivo, mesmo que os bens não sejam imediatamente utilizados para essas actividades económicas. Em consequência, é a aquisição de bens por um sujeito passivo agindo nessa qualidade que determina a aplicação do regime do IVA e, portanto, do mecanismo da dedução.
XXIII - A utilização que é dada às mercadorias, ou a que lhes é destinada, apenas determina o montante da dedução inicial a que o sujeito passivo tem direito, nos termos do artigo 17.°, e o âmbito dos eventuais ajustamentos durante os períodos seguintes pelo que a utilização imediata de bens para operações tributáveis ou isentas não constitui, por si só, um pressuposto da aplicação do artigo 20.°, n.°2 da Sexta Directiva.
XXIV - O direito de dedução pode ser exercido a partir da realização das despesas de investimento sem que seja necessário esperar pela realização de operações sujeitas a imposto, e das posições assumidas pelo TJUE decorre que as despesas iniciais de investimento efectuadas com vista ao exercício da actividade económica projectada pela empresa devem ser consideradas como constituindo uma actividade económica.
XXV - Partindo dessa premissa, hodiernamente é líquido, que a questão não é a de saber se é ou não dedutível o IVA quanto às actividades em fase de investimento, direito que a recorrente se arroga e que funda a sua pretensão de ser ponderado um eventual reenvio da questão por si apresentada para o TJUE que nesta matéria tem já posição consolidada mas, sim, saber se resultou apurado que os custos apresentados e o IVA deduzido corresponderam precisamente a qualquer investimento nessa actividade realizado pela Impugnante.
XXVI – E o que resultou comprovado pela Administração Tributária foi que os custos suportados na aquisição dos terrenos e imóveis assim como os custos suportados nas ajuizadas obras não tiveram como consequência a realização de operações tributadas, porque, apesar de o sujeito passivo manifestar a sua intenção de exercer uma actividade turística que confere direito à dedução, tal actividade nunca foi efectivamente iniciada, não resultando minimamente indiciada a intenção de a iniciar, atenta a inexistência de quaisquer diligências, mínimas ou elementares, nesse sentido, como o sejam os procedimentos administrativos tendentes à obtenção de quaisquer licenciamentos.
XXVII - Por assim ser e porque no acórdão que admitiu a presente revista se salvaguardou que, quanto à arguida nulidade processual por falta de reenvio prejudicial para o TJUE, constitui jurisprudência consolidada que o reenvio só é obrigatório se a questão for pertinente ou relevante para a decisão da causa, competindo ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a decisão como analisar a pertinência das questões que as partes pretendem submeter ao TJUE, significa que o reenvio não é uma faculdade processual das partes e, como tal, a falta de reenvio não pode constituir uma nulidade processual.
XXVIII - Mas há excepções, a primeira das quais (falta de pertinência da questão) cabem os casos em que o tribunal nacional considere que o litígio sub judice não deve ser decidido de acordo com as normas comunitárias mas tão-somente na conformidade das disposições do direito interno; na verdade, a ser assim, não pode ser-lhe imposta a obrigação de solicitar a interpretação ou apreciação da validade de uma norma comunitária desprovida de interesse para o julgamento da causa - e isto ainda que alguma das partes tenha indevidamente invocado e suscitado a questão da sua interpretação ou validade, como aconteceu no caso concreto.
XXIX - É que, como é manifesto, nesse caso a questão da interpretação ou da apreciação de validade é totalmente desprovida de pertinência; existem anteriores decisões interpretativas do TJUE da normação em causa e existe total clareza da norma em causa, ou seja, a norma comunitária aplicável é perfeitamente clara, não suscitando a mínima dificuldade de interpretação, sendo desrazoável forçar o tribunal nacional a reenviar ao Tribunal Comunitário, isso honrando o velho princípio jurídico segundo o qual «in claris nonfit interpretado» que condensa a comumente chamada teoria do acto claro.
Nº Convencional:JSTA00071184
Nº do Documento:SA2202106230756/08
Data de Entrada:01/23/2019
Recorrente:Z........., LDA
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO DO TCA SUL
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA
Legislação Nacional:ARTIGOS 87º DA LGT E 58º DO CIRC
Aditamento: