Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0521/07
Data do Acordão:10/25/2007
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:OMISSÃO DE PRONÚNCIA
MÉDICO
FÉRIAS
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
TAREFEIRO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário:I - Não há omissão de pronúncia sobre determinada questão, tida como uma excepção peremptória, se ela não fora invocada nos articulados nem se suportava em quaisquer factos alegados ou adquiridos no processo.
II - A qualificação, como contrato de trabalho, de um contrato assumido como sendo de tarefa pressupõe, ou um lapso na qualificação dos elementos integrantes do negócio, ou a conversão dele, subsequente à invalidade do contrato celebrado.
III - A possibilidade dessa conversão não pode ser averiguada pelo tribunal se não integrar a «causa petendi».
IV - Na medida em que a lei previa o trabalho médico em regime de tarefa dentro dos hospitais, o contrato de tarefa pactuado não se descaracterizava pelo tempo da sua duração ou pelo facto de o médico, enquanto inserido num espaço hierarquizado e regulamentado como é o hospitalar, receber ordens e instruções que deixavam indemne a sua liberdade na execução das tarefas cometidas.
V - Trabalhando em regime de tarefa, o médico não tinha a qualidade de agente e, por isso, também não tinha direito a gozar férias e a auferir os subsídios de férias e de Natal.
VI - O dito em V não ofende o princípio da igualdade, segundo a aplicação particular dele vertida no art. 59º, n.º 1, al. a), da CRP.
Nº Convencional:JSTA00064602
Nº do Documento:SA1200710250521
Data de Entrada:06/11/2007
Recorrente:HOSPITAL DE SANTA MARIA
Recorrido 1:A...
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF LISBOA PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL / ESTATUTÁRIO.
Legislação Nacional:CPC96 ART489 N1 ART506 ART660 N2 ART668 N1 D.
CCIV66 ART293 ART294.
DL 62/79 DE 1979/03/30 ART1 ART11.
DL 41/84 DE 1984/02/03 ART17.
DL 81-A/96 DE 1996/06/21.
DL 496/80 DE 1980/10/20.
CONST ART59 N1 A.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
O Hospital de Santa Maria interpôs recurso jurisdicional da sentença do TAF de Lisboa que, julgando totalmente procedente a acção que contra si fora movida por A… , identificado nos autos, condenou o réu a pagar ao autor a quantia de 20.718,42 euros, a título de férias e subsídios de férias e de Natal correspondentes aos anos de 1988 a 1998, bem como os juros de mora vencidos e vincendos sobre as quantias em dívida, tendo a sentença considerado que, em 10/6/2002, aqueles se liquidavam na importância de 36.590,69 euros.
O recorrente terminou a alegação de recurso formulando as seguintes conclusões:
1 – A douta sentença recorrida violou a al. d) do n.º 1 do art. 668º do CPC, já que não se pronunciou sobre uma questão (embora superveniente) que devia apreciar.
2 – A testemunha n.º 2, B… (cassette n.º 1 – de 2/02 – lado A, voltas 0915 a 1.501), disse textualmente «pertencia ao Hospital da Marinha (o autor), isso sei eu».
3 – No documento de fls. 168, o próprio autor declara pertencer aos quadros da Marinha Portuguesa desde finais de 1983.
4 – Estamos perante uma acumulação de funções públicas, já que o Hospital de Santa Maria era, à data dos factos, um organismo público, o mesmo acontecendo também com a Marinha Portuguesa.
5 – Essa situação está prevista nos Decretos-Leis ns.º 427/89, de 7/12, e 413/93, de 23/12, pelo que, a existir a obrigação de o Hospital de Santa Maria remunerar o autor de modo diferente do previsto no regime pelo qual foi contratado (regime esse que o autor aceitou, conforme se prova pela resposta positiva ao quesito 6º), essa remuneração teria de ser calculada nos termos daqueles diplomas, de acordo com o previsto para a acumulação de funções públicas, violando, pois, a sentença recorrida aqueles diplomas legais.
6 – A situação do autor não estava abrangida pela proibição do art. 2º do DL n.º 81-A/96, de 21/6, porque o horário do autor não era completo, conforme prevê o n.º 1 do art. 4º daquele decreto-lei. Com efeito,
7 – Provou-se que «o autor exercia funções em regime de trabalho nocturno ou aos fins-de-semana» (resposta ao quesito 9º), contrapondo-se assim ao facto de «a médica Dr.ª C… , referida na al. N), desempenhava funções para o réu em tempo completo».
8 – O ter-se ultrapassado o prazo previsto no n.º 1 do art. 17º do DL n.º 41/84 é um argumento jurídico inócuo para os efeitos pretendidos. A sentença recorrida considera que o contrato de prestação de serviços ao abrigo do qual o autor foi contratado se transformou num contrato sem termo apenas por ter decorrido o prazo nele estipulado.
9 – Viola, assim, a força obrigatória geral do acórdão n.º 368/2000, do Tribunal Constitucional, na medida em que este pretende evitar que o «direito especial de igualdade» no acesso à função pública (em regra por concurso – art. 47º, n.º 2, da Constituição) seja violado tão só pela circunstância de ter sido ultrapassado o limite máximo de duração fixado num qualquer contrato a termo.
O recorrido contra-alegou, finalizando do modo seguinte:
Analisando as conclusões formuladas no recurso, diremos que não foi apresentado qualquer articulado superveniente, relativo a facto superveniente, pelo que não foi violada a al. d) do art. 68º do CPC.
Está fora do âmbito do STA o conhecimento de questões de facto, logo, prejudicadas as 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª e 6.ª conclusões.
É inexacto que a sentença tenha decidido contra a força do acórdão 368/2000, do Tribunal Constitucional, pelo que estão prejudicadas as conclusões 8.ª e 9.ª.
Qualquer norma dos Decretos-Leis 427/89 e 413/93, de 23/12, interpretada no sentido de negar ou condicionar o direito ao 13.º mês e ao subsídio de férias seria inconstitucional, por violação do art. 59º, n.º 1, al. a), da CRP.
O Ex.º Magistrado do MºPº junto deste STA emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
A matéria de facto pertinente é a dada como provada na decisão «sub judicio», que aqui damos por integralmente reproduzida – como estabelece o art. 713º, n.º 6, do CPC.
Passemos ao direito.
A sentença «sub censura», dando total procedência à acção dos autos, condenou o réu, ora recorrente, a pagar ao autor e aqui recorrido uma importância correspondente às férias não gozadas e aos subsídios de férias e de Natal não recebidos durante os cerca de dez anos em que ele trabalhou para o réu como «falso tarefeiro», quantia essa acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos.
São duas as vias por que o recorrente acomete a sentença: imputa-lhe uma nulidade por omissão de pronúncia (conclusões 1.ª a 5.ª da alegação de recurso) e considera que o recorrido, enquanto subscritor de um contrato de tarefa, não tinha direito a férias e àqueles subsídios (conclusões 6.ª a 9.ª). Ora, começaremos por enfrentar a questão prejudicial – e, portanto, prioritária – da validade da sentença.
O recorrente diz que se fez prova de que o recorrido, enquanto desempenhou as tarefas a que se obrigara, pertencia aos «quadros da Marinha Portuguesa», facto revelador de que ele incorrera numa «acumulação de funções públicas» que, por si só, impediria o efeito jurídico visado pela acção. E, como este assunto não foi abordado pelo tribunal «a quo», o recorrente acha que a sentença pecou aí por omissão de pronúncia.
Mas é manifesta a improcedência desta tese. Se a aludida «acumulação» realmente configurava uma excepção peremptória – ou seja, uma defesa indirecta eficaz – o réu e aqui recorrente devia tê-la referido e ter alegado os factos dela constitutivos na contestação (art. 489º, n.º 1, do CPC) ou, quando muito, num articulado superveniente (art. 506º do CPC). Não tendo o réu procedido assim, aquela «acumulação de funções públicas» não foi erigida em «quaestio juris» resolúvel na acção dos autos – o que, aliás, era confirmado pelo pormenor de, na factualidade assente ou na base instrutória, não haver um único facto que directamente apontasse ao assunto. Ora, se tal questão não integrava o acervo das matérias que o juiz devia decidir (cfr. o art. 660º, n.º 2, do CPC), é impossível que a sua não decisão acarrete a nulidade da sentença, «ex vi» do art. 668º, n.º 1, al. d), do CPC. Mostram-se, pois, improcedentes ou irrelevantes as conclusões 1.ª a 5.ª da alegação de recurso.
Adquirido que a sentença não enferma da nulidade que lhe vinha atribuída, apreciemos agora a exactidão dela quanto ao problema de fundo. O tribunal «a quo» fundou a procedência da acção na ideia de que o autor, pelo tempo e pela subordinação hierárquica do trabalho que prestara ao réu, fora um «falso tarefeiro», isto é, que ele, sob a aparência de um contrato de tarefa, celebrara e cumprira um autêntico contrato de trabalho, gerador dos direitos ao gozo de férias e à percepção dos mencionados subsídios. Assim, o problema posto nos autos concerne à captação do nexo que uniu juridicamente as partes.
A alínea B) da factualidade provada diz-nos que o autor foi contratado pelo réu, em 1988, «para desempenhar as funções de Assistente Hospitalar de Pediatria Médica, integrado nas equipas de urgência»; mas também está assente que essa contratação foi titulada pelo documento cuja cópia está a fls. 76, donde constava que o exercício de funções se faria «em regime de prestação eventual de serviços, nos termos do art. 11º do DL n.º 62/79, de 30 de Março, conjugado com o art. 17º do DL n.º 41/84, de 3 de Fevereiro». Esse DL n.º 62/79 ocupou-se de «especificações» várias dentro do «regime de trabalho do pessoal hospitalar» («vide» art. 1º); e aquele seu art. 11º referia-se ao «trabalho médico em regime de tarefa», obviamente exercitável dentro dos serviços hospitalares. Portanto, as partes celebraram entre si um contrato que consideraram ser «de tarefa» e que referiram ao tipo contratual respectivo, abstractamente contemplado na lei. E, segundo se depreende do alegado pelo autor e da factualidade recolhida, radica nesse contrato o título formal e originário da actividade médica por aquele prestada durante cerca de dez anos.
Ante um contrato expressamente assumido pelas partes como «de tarefa», só seria concebível que um tribunal viesse a encará-lo como «de trabalho» se ocorresse uma de duas situações: ou um erro de qualificação jurídica, por os elementos constitutivos do contrato real não suportarem a designação dada e antes configurarem um autêntico contrato de trabalho; ou a invalidade do dito contrato de tarefa, causal de uma sua ulterior conversão num contrato de trabalho (art. 293º do Código Civil). Ora, a «causa petendi» ateve-se somente à primeira daquelas possibilidades; e a sentença, muito naturalmente, só podia explorar e só explorou essa hipótese – vindo a concluir que o contrato era realmente de trabalho, como dissemos já.
Para chegar a tal conclusão, a sentença argumentou com os dez anos por que perdurou a relação contratual e com a subordinação hierárquica do autor relativamente aos chefes de equipa e às «ordens e instruções» vigentes no hospital. É que o contrato de tarefa tinha natureza excepcional e transitória (cfr. os arts. 11º do DL n.º 62/79 e 17º do DL n.º 41/84); e, até por definição, visava «a execução de trabalhos específicos sem subordinação hierárquica» (n.º 2 daquele art. 17º). Mas estes pormenores, donde a sentença inferiu que o contrato fora de trabalho, não são tão impressivos quanto julgou o Mm.º Juiz «a quo».
Com efeito, a circunstância de todas as tarefas contratadas pelo recorrente ao recorrido corresponderem a necessidades normais e permanentes dos serviços – o que explica que tais tarefas tenham excedido no tempo o que a lei preconizava para os contratos do género – não leva fatalmente à transmutação do contrato de tarefa num contrato de trabalho. Se o recorrente contratou o recorrido em regime de tarefa fora das condições em que legalmente o poderia fazer, teríamos, no limite, que tal contrato fora «contra legem» – sendo então nulo nos termos do art. 294º do Código Civil (por «outra solução» se não vislumbrar). Mas essa nulidade só poderia trazer ao aqui recorrido os direitos que ele invoca na lide se acaso o negócio nulo se convertesse num contrato de trabalho – o que exigiria que o autor, ao invés do que fez, tivesse oportunamente alegado factos relativos à vontade hipotética das partes, referida no art. 293º, «in fine», do Código Civil.
Portanto, o excessivo tempo por que o autor viu perdurar a sua qualidade de tarefeiro – seja isso denotativo de uma contratação intrinsecamente «contra legem» ou de uma mera falta de legitimação do hospital para contratar como o fez – é inapto para que aqui concluamos pela qualificação do contrato como «de trabalho». Assim, a sentença claudicou quanto ao ponto em apreço. E resta-nos agora ver se ela ainda pode ser confirmada em virtude de o autor trabalhar sujeito a «ordens e instruções» da hierarquia – como decidira o tribunal colectivo, nas suas respostas aos quesitos 1.º, 2.º e 8.º.
«Primo conspectu», dir-se-ia que sim, pois há uma decisiva incompatibilidade entre a execução de trabalhos em regime de tarefa e a subordinação hierárquica (cfr. o art. 17º, n.º 2, do DL n.º 41/84, de 3/2, aliás expressivo de uma ideia geral). Mas essa primeira impressão tem de ceder ante uma análise menos simplista. Desde logo, é de notar que a citada norma só afasta a subordinação hierárquica na «execução» dos trabalhos que sejam objecto do contrato de tarefa, pelo que ela não veda, e antes admite, que o tarefeiro actue «qua talis» num espaço funcional hierarquicamente organizado. Com efeito, pode ser-se livre na «execução» – o que sempre caracterizou a situação de todos os tarefeiros – e, não obstante, receber-se ordens ou instruções relativamente ao «onde» ou ao «quando» do que se deva executar. Aliás, se os médicos não pudessem actuar dentro dos hospitais com a liberdade inerente aos tarefeiros cairíamos na maior perplexidade: pois, então, o «trabalho médico em regime de tarefa», previsto pelo legislador no art. 11º do DL n.º 62/79, constituiria coisa irrealizável e o preceito teria preconizado uma solução juridicamente impossível.
Deste modo, a circunstância de o aqui recorrido receber ordens ou instruções quanto aos trabalhos específicos que deveria cumprir não descaracterizava o contrato dos autos como sendo «de tarefa»; pois tudo indica que o recorrido, na concreta execução das tarefas que lhe fossem designando, actuava livre de peias ou subordinações, aliás em conformidade com a autonomia técnica de que dispunha e que o tribunal colectivo lhe reconheceu. Assim sendo, nenhuma razão há para que agora digamos que as partes celebraram um negócio diferente do que se deduz das suas declarações negociais, antes se nos impondo a conclusão oposta: foi ao abrigo de um contrato de tarefa, tal como a «lex temporis» consentia, que o autor e agora recorrido se manteve durante cerca de dez anos a executar trabalhos vários para o recorrente, não se detectando um qualquer erro de qualificação que presentemente devêssemos rectificar.
Contra a conclusão anterior, de nada vale argumentar com a jurisprudência deste STA acerca dos chamados «falsos tarefeiros», pois estes trabalhavam sob total subordinação hierárquica e em regime de tempo completo, ou seja, num quadro de circunstâncias em tudo idêntico às dos funcionários que desempenhavam actividades do mesmo género. E uma outra nota se impõe: a identidade do contrato de tarefa que unia as partes não cede pela emergência do DL n.º 81-A/96, de 21/6 – que constituiu mais uma tentativa de regularizar situações de precariedade na Administração Pública. É que o recorrido não foi alvo dessa regularização, mantendo-se quanto a ele o «statu quo ante»; e, em boa verdade, nem sequer poderia ser alvo dela, pois não vinha exercendo as suas tarefas em «horário completo», como se exigia no art. 4º do diploma.
Ora, a certeza de que o recorrido era um efectivo – e não «falso» – tarefeiro acarreta a improcedência da acção dos autos. Na medida em que trabalhou para o recorrente em regime de tarefa, o recorrido não obteve a qualidade de agente («vide» o art. 17º, n.º 6, do DL n.º 41/84); e, não detendo essa qualidade de agente, o recorrido não tinha direito às férias e aos pretendidos subsídios – como resulta do facto de o DL n.º 496/80, de 20/10, só reconhecer tais direitos «aos funcionários e agentes em efectividade de serviço».
Por último, resta dizer que a denegação dos direitos invocados pelo recorrido não ofende o art. 59º, n.º 1, al. a), da CRP. Esta norma inclui a máxima «para trabalho igual salário igual», traduzindo um afloramento particular do princípio geral da igualdade. Todavia, só «prima facie» o trabalho prestado pelo recorrido em regime de tarefa era «igual» ao dos médicos que exerciam funções no hospital recorrente em regime de nomeação ou mediante contratos de provimento ou de trabalho a termo certo; pois a diversidade dos vários títulos determinativos das prestações de trabalho implicava «ea ipsa» uma caracterização díspar ao trabalho prestado – de modo que essa diferença «in initio» justificava plenamente a havida dissemelhança quanto ao modo de remunerar as distintas actividades funcionais.
Assim, mostram-se genericamente procedentes as conclusões 6.ª a 9.ª da alegação de recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida e a improcedência total da acção.
Nestes termos, acordam:
a) Em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional e em revogar a sentença recorrida;
b) Em julgar a acção dos autos totalmente improcedente e em absolver o réu e ora recorrente do pedido.
Custas da acção e do recurso pelo aqui recorrido.
Lisboa, 25 de Outubro de 2007. – Madeira dos Santos (relator) – Freitas Carvalho – Costa Reis (Vencido. Considero, tal como o tribunal recorrido, que, quer pelo tempo em que o contrato perdurou quer pela subordinação hierárquica a que o Autor estava sujeito, o contrato ora em causa deveria ser qualificado como de trabalho).