Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0752/07.7BELSB
Data do Acordão:03/24/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
PRESSUPOSTOS
ADMISSÃO
Sumário:Dado o relevo social fundamental da questão e para melhor aplicação do direito justifica-se a admissão de revista sobre a questão de saber se a recorrente tinha obrigação de conservação dos documentos referentes aos títulos de juros de dívida pública por mais de 10 anos por se tratar da comprovação de um benefício fiscal.
Nº Convencional:JSTA000P27402
Nº do Documento:SA2202103240752/07
Data de Entrada:02/02/2021
Recorrente:A........, SGPS, S.A.
Recorrido 1:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -

1 – A………., SGPS, S.A., com os sinais dos autos, vem, ao abrigo do artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) interpor para este Supremo Tribunal recurso de revista excepcional do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 25 de junho de 2020, que negou provimento ao recurso por si interposto da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgara improcedente a impugnação judicial – resultante da convolação da acção administrativa especial por si deduzida – contra o indeferimento do recurso hierárquico do indeferimento parcial de reclamação graciosa tendo por objecto liquidação adicional de IRC relativa ao exercício de 1990.

A recorrente termina as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

A. O objeto do presente recurso de REVISTA é o excerto decisório do acórdão recorrido no qual foi concluído que a Recorrente tinha obrigação de conservação dos documentos referentes aos títulos de juros de dívida pública por mais de 10 anos por se tratar da comprovação de um benefício fiscal, in casu, o previsto no DL 143-A/89, de 3 de Maio, o qual dispunha, no artigo 2.º que “os rendimentos da dívida pública interna que venha a ser emitida após a publicação do presente diploma [3 de Maio de 1989] contam apenas por 80% para fins de I.R.S. e de I.R.C”.

B. A questão que se submete a Revista é precisamente a de saber se a Recorrente tem uma obrigação de exibição de documentos, quando a obrigação de conservação desses documentos é de 10 anos (artigo 98.º, n.º 5 (1990) e n.º 5 do artigo 115.º e n.º 1 do artigo 121.º (2003) do Código do IRC), se tal documentação for tida como o meio de prova necessário e adequado à comprovação do benefício fiscal que pretende ver reconhecido, à luz do n.º 2 do artigo 14.º e do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, em especial quando o procedimento de reclamação graciosa não foi decidido pela Administração Fiscal dentro do prazo legal (alínea c) do artigo 17.º do Código de Processo Tributário (1993) e n.º 1 do artigo 57.º da LGT (2003) nem antes de finda a obrigação de conservação dos documentos durante 10 anos.

C. Com relevância para apreciação da questão submetida a revista, resulta dos factos dados como provados nos autos o seguinte:

a) A acção de inspecção interna ao IRC do exercício de 1990 realizou-se a 12.01.1993 na qual se concluiu pelas correcções ao lucro tributável da Recorrente impugnadas nos autos – Facto B dado como provado;

b) A liquidação adicional foi emitida a 20.05.1994 – Facto D dado como provado;

c) A Recorrente apresentou Reclamação Graciosa a 13.12.1994 contra a liquidação adicional do IRC – Facto E dado como provado;

d) O procedimento de reclamação graciosa ficou pendente durante vários anos e apenas em 04.04.2003 foram solicitados os elementos à Recorrente, nomeadamente, os referentes aos certificados dos Bilhetes do Tesouro – Facto F dado como provado; ou seja, volvidos quase 10 anos sobre a data da instauração da reclamação graciosa;

e) Em 14.05.2003, a Recorrente solicitou prorrogação do prazo para apresentar os ditos documentos – Facto G dado como provado;

f) A decisão de indeferimento da reclamação graciosa foi proferida a 10.11.2003 - Facto J dado como provado.

D. Em suma, a AT apenas demonstrou a relevância daquela documentação, para a procedência do pedido do contribuinte no procedimento de reclamação graciosa, quase 10 anos volvidos da data da instauração do procedimento, e quando já haviam decorrido mais de 13 anos desde 1990.

E. Salvo o devido respeito, o Tribunal Recorrido efectuou uma incorrecta aplicação do Direito convocado pela Recorrente, nos termos que passará a demonstrar.

F. Em primeiro lugar, entende a Recorrente que a obrigação de conservação dos documentos durante 10 anos (n.º 5 do artigo 115.º e anterior n.º 5 do artigo 98.º do Código do IRC na redacção em vigor à data) é aplicável in casu ainda que se trate de um benefício fiscal. Ou seja, salvo melhor opinião, aquela norma sobrepõe-se sempre às regras do ónus da prova invocadas para sustentar a improcedência do recurso.

G. No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 06/12/2014, processo n.º 07437/14, foi decidido que: “O art. 115.º, n.º 5 do Código do IRC, (a que corresponde o actual n.º 4 do art. 123.º) estabelece uma obrigação de conservação dos documentos de suporte contabilísticos das sociedades, por 10 anos, findo este prazo, a AT não pode efectuar correcções com fundamento na falta da apresentação desses documentos, cabendo-lhe o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito de tributar (art. 74.º, n.º 1 da LGT)”.

H. No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17/10/2013, processo n.º 05354/12, foi concluído que: “as normas que obrigam as empresas a conservar a contabilidade, melhor dizendo, os documentos comerciais, durante o prazo de dez anos [art.º 40.º do CCom e artigos 98º, nº 5 (actual 123.º, n.º 4) do CIRC], servem precisamente para desonerar o contribuinte do ónus de prova em casos em que essa documentação é relevante”.

I. Por último, a situação sub judice não difere daquela que foi escrutinada por este Venerando Tribunal no Acórdão de 11/08/2006, no processo n.º 0244/06. Decorre desta jurisprudência que apesar de o ónus da prova do seu direito competir ao contribuinte, por já ter decorrido o prazo de conservação dos documentos, não lhe é exigível a exibição dos documentos que o compravam, nem pode ser prejudicado pela sua não exibição.

J. Aqui chegados, a primeira conclusão que se retira, à luz dos arestos citados, é a de que apesar de o ónus da prova competir ao contribuinte, tal como decorreria das regras do ónus da prova (n.º 2 do artigo 14.º e n.º 1 do artigo 74.º da LGT), uma vez que o prazo de 10 anos está transcorrido (n.º 5 do artigo 98.º e posterior n.º 5 do artigo 115.º do Código do IRC), o mesmo fica desonerado da exibição desses documentos para comprovar o seu direito.

K. Em segundo lugar, não podem os preceitos legais em apreço ser lidos de forma isolada e ignorar-se que a Administração Fiscal, após a apresentação da reclamação graciosa pela Recorrente em 13.12.1994 (Facto E dado como provado), tão só veio revelar a necessidade dos mesmos para apreciação daquele pedido do contribuinte em 04.04.2003 (Facto F dado como provado).

L. Ora, não só sobre os contribuintes, mas também sobre a Administração Fiscal recaem deveres. Entre os deveres que recaem sobre a actividade da administração, encontra-se o dever de decidir, em tempo razoável, as pretensões dos contribuintes.

M. Segundo o artigo 55.º da LGT, “A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários”.

N. Em especial, quanto ao dever de decisão no âmbito de procedimentos administrativos, dispunha-se na alínea c) do artigo 17.º, que “A actividade tributária respeitará, designadamente: c) O dever de a administração fiscal se pronunciar sobre as petições e reclamações dos contribuintes no prazo de 90 dias, salvo se prazo diverso decorrer das leis tributárias”.

O. A LGT passou a prever, no n.º 1 do artigo 57.º, que “O procedimento tributário deve ser concluído no prazo de seis meses, devendo a administração tributária e os contribuintes abster-se da prática de actos inúteis ou dilatórios” (prazo este encurtado em 2011 para quatro meses).

P. A instituição do princípio da celeridade e de um dever de decisão dentro daqueles prazos são vertentes do princípio da boa administração da justiça constitucionalmente consagrado no n.º 2 do artigo 266.º e no n.º 1 do artigo 267.º da Constituição.

Q. Como narram os Factos K e L dados como provados, a Recorrente diligenciou na obtenção da documentação e demonstrou, com vários outros documentos, que tinha direito ao benefício. E, perante a atitude silente da administração, após apresentação da reclamação, pôde confiar que aquela documentação seria bastante. Com efeito, o contribuinte espera um dever de decisão da Administração Fiscal atempado (a lei até o delimita) e confia que a diligência de decisão não irá demorar 9 anos, dificultando excessivamente a obtenção da documentação em posse de terceiros.

R. Portanto, a Administração Fiscal, além de ter violado flagrantemente o prazo razoável para se pronunciar sobre a pretensão da Recorrente, quando insistiu que só aquela documentação faria a prova do benefício, onerou o contribuinte com uma prova que, passados aqueles anos todos, se tornou impossível de obter.

S. Assim, por força do preceituado no artigo 266.° e 267.º da Constituição, a actividade da administração tributária tem de ser levada a cabo em subordinação à Constituição e à lei e deve respeitar os direitos e interesses legítimos dos cidadãos (princípio da legalidade) e os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.

T. Face ao exposto, conclui a Recorrente que o acórdão recorrido fez uma incorrecta aplicação do direito e deverá concluir-se que a Recorrente não tinha a obrigação de exibição dos documentos uma vez que estava ultrapassado o prazo de conservação legal dos mesmos, tudo como se explanou supra.

U. Por fim, a Recorrente entende estarem verificados os requisitos legais, previstos no artigo 285.º do CPPT, a que corresponde o artigo 150.º do CPTA, da admissibilidade do presente recurso de revista.

V. No tocante ao requisito da relevância jurídica (n.º 1 dos referidos preceitos legais), considera a Recorrente que a sua verificação é manifestamente evidente: a questão ultrapassa, sem qualquer margem para dúvidas, o caso singular, envolvendo a análise de questões jurídicas associadas à obrigação de conservação dos documentos fiscais respeitantes a benefícios fiscais a cargo dos sujeitos passivos do IRC; a questão ainda se relaciona com a interpretação das regras do ónus da prova dos contribuintes e da sua dependência ou não com aquele prazo de conservação da documentação, sendo o campo de aplicação da questão bastante amplo.

W. A questão revela-se complexa do ponto de vista jurídico e implica a conjugação de várias normas legais, bem como a jurisprudência tecida a esse respeito referenciada nas alegações.

X. A Revista tem um interesse social inegável: o interesse, comum a inúmeros sujeitos passivos que, como a Recorrente, são confrontados com a morosidade da Administração Fiscal em tomar uma posição quanto às pretensões dos contribuintes a que pode perigar a obtenção de documentação que, só muitos anos depois, é definitivamente tida como crucial para a prova dos seus direitos.

Y. Considera ainda estar preenchido o requisito da necessidade de apreciação do recurso para uma melhor aplicação do direito (n.º 1 do artigo 285.º do CPPT e n.º 1 do artigo 150.º do CPTA): o caso aqui em apreço é, como vimos, susceptível de constituir um tipo e a quaestio decidendi há-de, certamente, repetir-se; questão ora suscitada revela-se manifestamente controvertida como se deu nota através da jurisprudência citada para fundamentar as presentes alegações.

Z. A presente Revista tem o seu fundamento numa flagrante violação da lei, quer substantiva, quer processual, consubstanciada na violação n.º 2 do artigo 14.º e n.º 1 do artigo 74.º da LGT, n.º 5 do artigo 98.º e posterior n.º 5 do artigo 115.º do Código do IRC, e artigos 55.º da LGT, alínea c) do artigo 17.º do Código de Processo Tributário, n.º 1 do artigo 57.º da LGT, bem como na violação do princípio da boa administração da justiça (n.º 2 do artigo 266.º e no n.º 1 do artigo 267.º da Constituição) e dos princípios da proporcionalidade, justiça e boa fé.

TERMOS EM QUE SE REQUER A V. EXAS. QUE ADMITAM O PRESENTE RECURSO DE REVISTA E QUE O JULGUEM TOTALMENTE PROCEDENTE, ASSIM SE REVOGANDO O ACÓRDÃO RECORRIDO, PROFERINDO-SE NOVO ACÓRDÃO QUE, NOS TERMOS E COM OS FUNDAMENTOS ACIMA INVOCADOS, VENHA A JULGAR TOTALMENTE PROCEDENTE A IMPUGNAÇÃO JUDICIAL.

ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 – A Excelentíssima Magistrada do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido da admissão da revista, com a seguinte fundamentação específica:

«(…) in casu, afigura-se-nos que estão verificados os apontados requisitos de admissibilidade do recurso de revista excepcional.

Na verdade, alega a Recorrente que é essencial que o recurso seja admitido uma vez que a questão em causa é de relevância jurídica e de interesse social,

Ultrapassando, sem qualquer margem para dúvidas, o caso singular e envolvendo a análise de questões jurídicas associadas à obrigação de conservação dos documentos fiscais respeitantes a benefícios fiscais a cargo dos sujeitos passivos do IRC

E ainda se relaciona com a interpretação das regras do ónus da prova dos contribuintes e da sua dependência ou não com aquele prazo de conservação da documentação, sendo o campo de aplicação da questão bastante amplo.

Ou seja, o que se pretende saber é se, face às normas em vigor à data e aplicáveis ao caso dos autos, se a Recorrente tem uma obrigação de exibição de documentos, quando a obrigação de conservação desses documentos é de 10 anos (artigo 98.º, n.º 5 (1990) e n.º 5 do artigo 115.º e n.º 1 do artigo 121.º (2003) do CIRC),

Se tal documentação for tida como o meio de prova necessário e adequado à comprovação do benefício fiscal que pretende ver reconhecido, à luz do n.º 2 do artigo 14.º e do n.º 1 do artigo 74.º da LGT,

Em especial quando o procedimento de reclamação graciosa não foi decidido pela Administração Fiscal dentro do prazo legal (alínea c) do artigo 17.º do CPPT (1993) e n.º 1 do artigo 57.º da LGT (2003) nem antes de finda a obrigação de conservação dos documentos durante 10 anos.

Na verdade esta questão porque é susceptível de abranger um número indeterminado de casos, reveste-se de importância fundamental, na medida em que se poderá ponderar, tal como defende a recorrente, que apesar de o ónus da prova competir ao contribuinte, tal como decorreria das regras do ónus da prova (n.º 2 do artigo 14.º e n.º 1 do artigo 74.º da LGT), e uma vez que o prazo de 10 anos está ultrapassado (n.º 5 do artigo 98.º e posterior n.º 5 do artigo 115.º do Código do IRC), o mesmo fica desonerado da exibição desses documentos para comprovar o seu direito.

E não se descortinou que este Supremo Tribunal Administrativo já se tenha debruçado sobre esta questão, de modo a que se possa concluir existir uma jurisprudência uniforme, quer num sentido, quer no outro.

Assim, e porque é manifesta a importância desta questão, no que toca à salvaguarda dos direitos de defesa dos contribuintes, afigura-se-nos que a revista deve ser admitida.»

4 – Dá-se por reproduzido, para todos os legais efeitos, o probatório fixado no acórdão recorrido (fls. 9 a 21 da respectiva numeração autónoma).


- Fundamentação -

5 – Apreciando.

5.1 Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto e admitido como recurso de revista excepcional, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.

Dispõe o artigo 285.º do CPPT, na redacção vigente, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:

1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.

3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5 – Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.

6 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.

E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.

O acórdão do TCA-Sul sindicado nos presentes autos negou provimento ao recurso interposto pela recorrente da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgara improcedente a impugnação judicial resultante da convolação de acção administrativa especial interposta pela recorrente contra o indeferimento do recurso hierárquico do indeferimento parcial de reclamação graciosa tendo por objecto liquidação adicional de IRC do exercício de 1990.

A recorrente solicita revista relativamente ao excerto decisório do acórdão recorrido no qual foi concluído que a Recorrente tinha obrigação de conservação dos documentos referentes aos títulos de juros de dívida pública por mais de 10 anos por se tratar da comprovação de um benefício fiscal, in casu, o previsto no DL 143-A/89, de 3 de Maio, o qual dispunha, no artigo 2.º que “os rendimentos da dívida pública interna que venha a ser emitida após a publicação do presente diploma [3 de Maio de 1989] contam apenas por 80% para fins de I.R.S. e de I.R.C”.

Alega que, quanto a essa questão, estão verificados os requisitos legais (…) da admissibilidade do presente recurso de revista, porquanto a questão ultrapassa, sem qualquer margem para dúvidas, o caso singular, envolvendo a análise de questões jurídicas associadas à obrigação de conservação dos documentos fiscais respeitantes a benefícios fiscais a cargo dos sujeitos passivos do IRC e que a questão ainda se relaciona com a interpretação das regras do ónus da prova dos contribuintes e da sua dependência ou não com aquele prazo de conservação da documentação, sendo o campo de aplicação da questão bastante amplo e que revela-se complexa do ponto de vista jurídico e implica a conjugação de várias normas legais, bem como a jurisprudência tecida a esse respeito e tem um interesse social inegável: o interesse, comum a inúmeros sujeitos passivos que, como a Recorrente, são confrontados com a morosidade da Administração Fiscal em tomar uma posição quanto às pretensões dos contribuintes a que pode perigar a obtenção de documentação que, só muitos anos depois, é definitivamente tida como crucial para a prova dos seus direitos. Considera ainda estar preenchido o requisito da necessidade de apreciação do recurso para uma melhor aplicação do direito (n.º 1 do artigo 285.º do CPPT e n.º 1 do artigo 150.º do CPTA) pois o caso aqui em apreço é (…) susceptível de constituir um tipo e a quaestio decidendi há-de, certamente, repetir-se; questão ora suscitada revela-se manifestamente controvertida como se deu nota através da jurisprudência citada para fundamentar as presentes alegações.

Também a Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta junto deste STA se pronuncia no sentido da admissão da revista porque a questão é susceptível de abranger um número indeterminado de casos, reveste-se de importância fundamental, na medida em que se poderá ponderar, tal como defende a recorrente, que apesar de o ónus da prova competir ao contribuinte, tal como decorreria das regras do ónus da prova (n.º 2 do artigo 14.º e n.º 1 do artigo 74.º da LGT), e uma vez que o prazo de 10 anos está ultrapassado (n.º 5 do artigo 98.º e posterior n.º 5 do artigo 115.º do Código do IRC), o mesmo fica desonerado da exibição desses documentos para comprovar o seu direito e porque não se descortinou que este Supremo Tribunal Administrativo já se tenha debruçado sobre esta questão, de modo a que se possa concluir existir uma jurisprudência uniforme, quer num sentido, quer no outro e ainda porque é manifesta a importância desta questão, no que toca à salvaguarda dos direitos de defesa dos contribuintes.

Entendemo-lo também assim.

A questão, tal como delimitada pela recorrente, é susceptível de ser tratada como um caso-tipo, replicável num número indeterminado de casos futuros justificando a intervenção deste STA enquanto órgão de cúpula da jurisdição, no sentido de sobre ela firmar jurisprudência, assim contribuindo para melhor certeza do Direito num caso, aparentemente, de alguma complexidade.

O facto de o acórdão recorrido se ter apoiado em jurisprudência deste STA relativa a um caso de IVA não infirma o interesse da admissão da revista, pois não pode afirmar-se sem mais que o entendimento firmado relativamente ao IVA deva valer nos mesmos termos para os Impostos sobre o Rendimento.

Assim, atendendo à relevância social fundamental da questão decidenda vai a revista admitida.


- Decisão -

6 - Termos em que, face ao exposto, acorda-se em admitir o presente recurso de revista.

Custas a final.

Lisboa, 24 de Março de 2021. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Francisco Rothes - Aragão Seia.