Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02131/11.2BELRS
Data do Acordão:06/22/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:IRS
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
TRIBUTAÇÃO PELO RENDIMENTO REAL
Sumário:I - O prazo previsto no artigo 77.º do CIRS para a liquidação oficiosa de IRC no caso de falta de apresentação pelo contribuinte da declaração de rendimentos não é um prazo de caducidade; é apenas um prazo dirigido aos serviços da AT para a actuação diligente dos serviços em ordem a prevenir a caducidade do direito de liquidar (que fica sujeita ao prazo normal).
II - Nos casos em que o sujeito passivo não apresenta a declaração de rendimentos, e sem prejuízo do poder-dever que a AT tem de promover a liquidação oficiosa provisória imposto à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 76.º do CIRS, para evitar que dessa falta (independentemente das sanções aplicáveis pela violação dos deveres acessórios declarativos a que possa dar lugar) resulte uma vantagem futura para o sujeito passivo inadimplente; porém, é dever da AT inteirar-se, por via do exercício dos seus poderes inspectivos, da real situação económica do sujeito passivo, sobretudo quando este apresenta, fora de prazo, a declaração de rendimentos correspondente àquele ano fiscal.
Nº Convencional:JSTA000P29610
Nº do Documento:SA22022062202131/11
Data de Entrada:11/09/2021
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I - Relatório

1 – A…………, com os sinais dos autos, impugnou no Tribunal Tributário de Lisboa a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que apresentara da liquidação de IRS respeitante ao exercício de 2009.

2 – Após algumas decisões intercalares, foi proferida sentença em 7 de Abril de 2021, na qual o Tribunal Tributário de Lisboa julgou procedente a impugnação judicial e anulou o referido acto de liquidação.

3 – Inconformada com aquela decisão, a Fazenda Pública recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«[…]
A) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que decidiu julgar procedente a impugnação judicial à margem identificada, deduzida por A…………, NIF ………, e, em consequência, determinou a anulação, da liquidação oficiosa de IRS, emitida para o ano de 2009, bem como, da decisão que indeferiu o procedimento de reclamação graciosa apresentado contra tal ato tributário, “… aquela porque ilegalmente emitida em procedimento que não mais podia ter sido utilizado, esta porque não só mantém tal como porque é a se ilegal, ao impedir a demonstração do rendimento real, no que cada um dos atos violou as normas legais a cada propósito citadas.”

B) Decidindo da forma como decidiu, a douta sentença sob recurso enferma de erro de julgamento por errónea interpretação e aplicação aos factos dados como provados, dos comandos normativos ínsitos no art.º 76º, nº 1 alínea b) e nºs 2 e 3 e no art.º 77º, ambos do CIRS.

C) O Recorrido não apresentou, no prazo legal, a declaração de rendimentos (Modelo 3) respeitante ao exercício de 2009. Perante esta falta, a AT procedeu à emissão da liquidação oficiosa, nos termos do disposto no citado art.º 76º, nº 1, alínea b) e nºs 2 e 3, do CIRS, não o tendo feito, contudo, até ao dia 30 de novembro do ano seguinte a que respeita o imposto, ou seja, até 30/11/2010, mas, apenas, em 31/01/2011.

D) Sustenta o Tribunal a quo que, a Administração Tributária não podia elaborar a liquidação oficiosa como fez, em 31/01/2011, por força da limitação temporal da aplicabilidade do procedimento especial, prevista na alínea c), do art.º 77º do CIRS, na redação vigente à data.

E) Discordamos, em absoluto, com o entendimento perfilhado na sentença sob recurso, relativamente à natureza do prazo, previsto no citado normativo legal do CIRS.

F) Com efeito, o prazo fixado na alínea c) do art.º 77º do CIRS, na redação vigente à data, é tão-só um prazo ordenador ou disciplinador do procedimento de liquidação, motivo por que o facto de ser excedido não tem repercussão alguma sobre o direito de liquidar, que não está sujeito senão ao prazo geral de caducidade.

G) Por outras palavras, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeitam os rendimentos. Porém, sendo excedido este prazo - alínea c) do art.º 77º do CIRS -, de natureza meramente disciplinar ou ordenador do funcionamento dos serviços da Administração Tributária, nenhuma repercussão desse excesso pode ser retirada para a legalidade, eficácia ou perfeição do ato de liquidação que venha a ocorrer em momento posterior.

H) Questão idêntica à questão sub judicie, foi abordada pelo STA, nos doutos Acórdãos de 16/12/2009, proferidos no processo n.º 0955/09, e de 18/06/2014, processo 1842/13, que responderam à questão de saber se o prazo contido na norma da alínea al. b) do n.º 1 do art.º 83.º do CIRC, (atual art.º 90º), seria um prazo perentório ou um prazo meramente ordenador.

I) Com a devida vénia, e porque entendemos ser de perfilhar idêntico entendimento relativamente à norma do art.º 77º, alínea c) do CIRS, passamos a transcrever parte do primeiro Acórdão citado, que entendemos ser bastante claro e elucidativo, no sentido de esclarecer e suprimir qualquer dúvida à volta da questão controvertida nos presentes autos:

(…) Afigura-se-nos evidente que estamos perante um prazo meramente ordenador. Na verdade, os prazos de caducidade são os estabelecidos pela LGT – art. 45.º.

No caso, o que a lei pretende é disciplinar a acção interna da administração fiscal, estabelecendo prazos de actuação para liquidação do imposto. E, assim, as consequências da sua inobservância não são a ilegalidade da liquidação, mas eventualmente a responsabilidade disciplinar dos funcionários e, mesmo, a responsabilidade civil extracontratual do Estado, demonstrados que sejam, pelo contribuinte, prejuízos inerentes, nos termos do art. 22.º da Constituição, para o que, como é sabido, nem sequer é necessária uma imputação individual, bastando a existência da chamada culpa funcional dos serviços, como este STA tem vindo uniformemente a entender.

Nem se compreenderia a fixação de um prazo de caducidade tão curto e exíguo: se tivesse sido esse o escopo legal, o legislador tê-lo-ia dito expressamente como fez, por exemplo, a propósito da inspecção.

Temos, pois, que a ultrapassagem do referido prazo representa mera inobservância de prazos ordenadores, indicativos ou disciplinares, destinados a balizar ou regular a tramitação procedimental da liquidação do imposto, não gerando assim qualquer ilegalidade susceptível de a afectar, nem sendo, consequentemente, fonte de qualquer invalidade do acto, maxime de caducidade do exercício do direito à mesma liquidação

(sublinhado nosso).

J) Da doutrina vertida no acórdão citado, aplicável mutatis mutandis ao caso dos autos, temos que:

· as normas constantes da alínea b), do art.º 76º e da alínea c), do art.º 77º, ambos do CIRS, se limitam a estabelecer um procedimento e forma de liquidação, definindo critérios para a quantificação da matéria coletável na ausência de declaração de rendimentos apresentada pelo sujeito passivo.

· a natureza meramente disciplinar ou ordenadora do prazo estabelecido na alínea c), do art.º 77º do CIRS, para a liquidação oficiosa, está inculcada na ausência de previsão de sanção para o incumprimento pela administração tributária;

· sendo excedido o prazo previsto na alínea c), do art.º 77º do CIRS, de natureza meramente disciplinar ou ordenador do funcionamento dos serviços da Administração Tributária, nenhuma repercussão desse excesso pode ser retirada para a legalidade eficácia ou perfeição do ato de liquidação que venha a ocorrer em momento posterior.

K) De tudo o que vimos de dizer, resulta manifesto que a sentença recorrida andou mal ao sustentar a ilegalidade da liquidação oficiosa de IRS, impugnada nos autos, no esgotamento do prazo previsto no art.º 77º, alínea c) do CIRS, para que a AT pudesse socorrer-se do procedimento de liquidação oficiosa.

L) Mostrando-se assente que, nenhuma repercussão do excesso do prazo previsto na alínea c), do art.º 77º do CIRS, (de natureza meramente disciplinar ou ordenador do funcionamento dos serviços da Administração Tributária), pode ser retirada para a legalidade, eficácia ou perfeição do ato de liquidação que vinha impugnado, impõe-se a revogação da sentença recorrida, por ter incorrido em errónea interpretação e aplicação dos comandos normativos ínsitos nos citados normativos do CIRS e a sua substituição por Acórdão que mantenha vigente no ordenamento jurídico-tributário, por legal, a liquidação oficiosa de IRS impugnada.

M) Outrossim, não se vislumbra na decisão que negou provimento à reclamação graciosa, a ilegalidade que lhe vem assacada pela sentença recorrida: “(…) a decisão da reclamação graciosa é por isso ilegal, violando direta, embora implicitamente [não só a finalidade do próprio procedimento, como vimos, mas,] na sua economia e teor decisório, o disposto no art.73º da Lei Geral Tributária – que não também o disposto no seu art.74º nº2, dados os elementos identificativos da fonte dos rendimentos, diretamente constantes da declaração tardia, pelo menos quanto a rendimentos de trabalho dependente. (…)”

N) Como é sabido e é doutrina e jurisprudência aceites, o sistema fiscal português consagra a declaração do contribuinte como método regra de apuramento dos rendimentos tributáveis - art.º 75º da LGT, na medida em que ali se estabelece a presunção legal de que a escrita/contabilidade dos contribuintes correspondia à verdade dos factos, se organizada segundo a lei comercial ou fiscal.

O) Desenvolvendo este princípio, os n.ºs 1 e 2, do art.º 59º do CPPT estabelecem que O procedimento de liquidação instaura-se com as declarações dos contribuintes ou, na falta ou vício destas, com base em todos os elementos de que disponha ou venha a obter a entidade competente, e que O apuramento da matéria tributável far-se-á com base nas declarações dos contribuintes, desde que estes as apresentem nos termos previstos na lei e forneçam à administração tributária os elementos indispensáveis à verificação da sua situação tributária.” (negrito e sublinhado nossos)

P) O legislador, para aplicação do princípio da prevalência da declaração do contribuinte na determinação da matéria tributável, previsto nos citados normativos da LGT e CPPT, colocou a exigência de “apresentação nos termos da lei”, em que se inclui o cumprimento dos prazos de entrega das declarações, que a própria lei, precisamente, estabelece.

Q) Estipulando, também, que, se a apresentação ocorrer depois de emitida liquidação para o ano fiscal, quando não dê origem a liquidação de imposto a pagar de montante superior ao já liquidado ou reembolso inferior e exista divergência entre o contribuinte e o serviço na qualificação de atos, factos ou documentos invocados, ou fundada dúvida sobre a sua existência, a sua valia fica condicionada à apreciação em sede de impugnação administrativa (art.º 59º, nº 5, do CPPT).

R) In casu, com a omissão declarativa referente ao exercício de 2009, nos termos e prazos legalmente previstos, a iniciativa do procedimento de liquidação deixou de assentar na declaração do sujeito passivo e transferiu-se para a AT, por força da lei, deixando de operar a presunção de verdade que aproveitaria à declaração de rendimentos, se o Recorrido tivesse cumprido pontualmente a obrigação acessória de entrega da declaração de rendimentos nos termos da lei.

S) Pelo que, a tributação em IRS do ano de 2009, tendo por base os elementos de que a AT dispunha é, exatamente a consequência de uma atuação da AT, estritamente vinculada à lei (designadamente ao art.º 76º, n.º 1, al. b), do CIRS), conforme o princípio da legalidade (pois, de acordo com o art.º 266º, nº 2, da CRP, a Administração só pode agir nas condições em que a lei lho autoriza).

T) E estando fundamentado o critério utilizado na quantificação, passou a recair sobre o Recorrido o ónus de demonstrar o erro ou manifesto exagero dessa quantificação. Como se doutrinou no Acórdão do TCA Sul, de 18/05/2004, processo n.º 01355/03, que aqui nos permitimos citar:

Efectuada liquidação oficiosa ao contribuinte por falta de apresentação da respectiva declaração de rendimentos, esta não pode ser simplesmente anulada por liquidação efectuada com base em declaração apresentada posteriormente pela recorrente e que deu origem a imposto de valor zero.”

(…)

Efectuada oficiosamente uma liquidação, esta só poderá ser anulada, nomeadamente por inexistência de facto tributário ou excesso de liquidação se o contribuinte reclamar ou a impugnar tal liquidação e demonstrando que in casu não existiu facto tributário ou se verificou excesso de liquidação”. (negrito e sublinhado nossos)

U) Assim, a simples apresentação, tardia, de uma declaração de rendimentos da qual vem a resultar inexistência de imposto ou imposto inferior ao anteriormente liquidado não tem a virtualidade de anular, automaticamente, a anterior liquidação.

V) Posto isto, o princípio da tributação do rendimento real não impede que existam situações em que não há outra solução senão o recurso à tributação do rendimento normal, quando não é possível conhecer com suficiente aproximação o rendimento real.

W) Mesmo a formulação do princípio no art.º 104.º da CRP refere que a tributação das empresas incidirá “fundamentalmente” sobre o seu rendimento real: é um princípio que admite, excecionalmente, desvios ou exceções.

X) De toda a argumentação desenvolvida conclui-se que, in casu, a AT atuou no exercício de uma competência vinculada, ao abrigo do art.º 104º da CRP e art.º 76º nº 1, alínea b) e nºs 2 e 3, do CIRS.

Y) Destarte não vislumbramos na decisão que negou provimento ao processo de reclamação graciosa e manteve incólume a liquidação oficiosa de IRS ora em crise, a ilegalidade que lhe vem assacada pela sentença recorrida, razão pela qual, se impõe, também, a sua revogação, neste concreto segmento decisório.

Z) Sem conceder, caso esse douto Tribunal, considere existir na decisão da reclamação graciosa em apreço, o vício de violação de lei que lhe foi assacado pela sentença recorrida, impor-se-á concluir, então, que tal vício procedimental não tem a virtualidade de anular a liquidação controvertida, como ato anterior, mas tão só, se for caso disso, o de fazer retornar aquele procedimento ao ponto anterior à instrução procedimental, anulando-se apenas aquela decisão.

AA) Os vícios do procedimento de reclamação graciosa apenas implicam a anulação da decisão de indeferimento. Na medida em que, ocorrem em momento posterior à efetivação da liquidação, nunca poderiam projetar efeitos invalidantes sobre um ato tributário que o antecede. (vide, neste sentido o acórdão do TCA Norte, de 30/03/2017, proc. 00768/10.6BEPNF).

BB) Tudo visto, impõe-se a revogação da sentença recorrida por errónea interpretação e aplicação aos factos dados como provados, dos comandos normativos ínsitos nos art.ºs 76º e 77º do CIRS, e a sua substituição por Acórdão que mantenha vigente na ordem jurídica, por legal, a liquidação oficiosa de IRS que vem impugnada.

CC) Julgada improcedente, a impugnação judicial, impor-se-á, também, a reforma da sentença recorrida quanto a custas.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., e em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por Acórdão que julgue improcedente a impugnação judicial, com as legais consequências.

Todavia,

Decidindo, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada Justiça!

[…]».


4 – Não foram produzidas contra-alegações.

5 – O Excelentíssimo Representante do MP junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de negar provimento ao recurso e manter a decisão do Tribunal a quo, embora com um fundamento diverso.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação


1. De facto
A decisão recorrida deu como provada a seguinte factualidade concreta:
[…]

1. O Impugnante, A…………, tendo a atividade empresarial de «produção de filmes, de vídeos e de programas de televisão» [CAE 59110], relativamente aos seus rendimentos relevantes para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do seu ano de 2009, não apresentou a sua declaração de rendimentos, modelo 3, no prazo legalmente fixado para o efeito.

2. Transcorrido que foi esse prazo e tendo detetado essa omissão, o Serviço de Finanças Lisboa 4, com competência na área da sua residência, notificou-o a 17 de setembro de 2010, para que a apresentasse em 30 dias, sob pena de, não o fazendo, se proceder então à elaboração de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, i. e., com base nos elementos de que dispunha e lhe eram acessíveis [, nos termos do art.76º nº3 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares].

3. Não tendo o Impugnante correspondido a esse apelo, a 9 de dezembro de 2010 a Administração Tributária elaborou então uma declaração oficiosa, vindo a elaborar a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares relativa àquele ano de 2009 do Impugnante, em 31 de janeiro de 2011, com o nº[2011]5000066961, compreendendo imposto e juros compensatórios, da qual resultou uma dívida global de €1.551,77 [sendo a de juros de €37,01 – liquidação nº(2011)25660], que sob nota de demonstração de liquidação remetida ao Impugnante pelo seguro do correio, com prazo de pagamento com termo a 16 de março de 2011, a qual lhe chegou às mãos a 11 de fevereiro de 2011.

4. Foram os seguintes os items que compuseram essa liquidação oficiosa:

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5. Perante a liquidação oficiosa, o Impugnante reclamou graciosamente dela no dia 2 de junho de 2011 [procedimento a que coube o nº3301201104002202 no mencionado Serviço de Finanças], no que reconhecendo embora não ter apresentado declaração de rendimentos (e admitindo ser essa a origem da liquidação), invocava:

a. omissão do facto tributário na origem da liquidação;

b. omissão das normas que a fundamentam, ou de remissão para algum procedimento no qual haja sido apurado o rendimento subjacente – para além da menção de que se trata de liquidação oficiosa;

c. omissão de audição prévia antes de a liquidação ser elaborada, ou realização de ação inspetiva ou de procedimento com recurso a métodos indiretos na sua origem;

d. alheamento da liquidação em relação ao seu rendimento real em 2009, nunca este rendimento podendo dar azo a uma dívida de imposto como a apurada oficiosamente;

e. apontando então para a declaração de rendimentos que apresentara a 14 de fevereiro de 2011 como correspondendo aos seus rendimentos daquele ano de 2009:

trabalho dependente:

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trabalho por conta própria [regime simplificado]

Prestações de serviços ano n-Prestações de serviços ano n-1Prestações de serviços ano n-2
€0,00€2.250,00€7.220,00

deduções específicas

[IMAGEM]

f. a arguindo quer a nulidade da notificação da liquidação - por não ter sido remetida sob aviso -, quer a do procedimento de liquidação oficiosa - porque elaborada esta além do prazo legal;

g. requerendo procedesse então a prova de rendimentos que constava da sua declaração tardia/se realizasse uma ação inspetiva aos seus rendimentos;

h. [ou arguindo a omissão, anterior à liquidação, dessa ação inspetiva?];

i. arguindo ainda a omissão, anterior à liquidação, de procedimento para fixação de rendimentos;

j. arguindo ainda a inexistência de facto tributário;

k. ou, pelo menos, dúvida sobre ele, tudo confluindo, no seu entender, na anulação da liquidação, o que assim pedia.

6. Com efeito, o Impugnante entregara à Administração Tributária, em 14 de fevereiro de 2011, a sua declaração de rendimentos para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares – modelo 3 –, para 2009, na qual declarara os rendimentos de trabalho dependente e empresarial referidos no ponto anterior.

7. A referida declaração não foi liquidada – ficando na situação de «inválida» –, vindo antes a ser convolada em reclamação graciosa e junta à já então pendente, gerada pela petição mencionada no ponto 5., por despacho de 6 de setembro de 2011, com fundamento em que a pretensão veiculada pela reclamação graciosa era idêntica àquela que o Impugnante intendia com a apresentação da declaração de rendimentos tardia.

8. No termo da tramitação deste procedimento [o identificado no ponto 5., portanto] viria a ser proferida decisão, em 17 de outubro de 2011, que indeferiu a reclamação graciosa, sob a consideração de que o procedimento de liquidação oficiosa só fora suscitado após notificação adrede do Impugnante para que apresentasse a sua declaração de rendimentos [e com a cominação legal], a que todavia não correspondeu; assim, segundo dispõe o art.76ºnº1 corpo e alínea b) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, a liquidação teve e «tem por base os elementos de que a Direção-Geral dos Impostos disponha»; por outra parte, a liquidação, na parte respeitante aos rendimentos empresariais, seguiu o disposto no mesmo articulado legal, seu nº2, segundo o qual «o rendimento líquido da categoria B determina-se em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação», remetendo assim para o disposto no art.31º nº2, in fine, do mesmo corpo de normas, que manda se atenda, como rendimento mínimo, a metade do salário mínimo anual; e, por fim, na liquidação oficiosa apenas puderam ter-se em conta «as deduções previstas na alínea a) do nº1 do art.79º e no nº3 do art.97º do mesmo Código

9. Assim, concluiu-se ali que a liquidação oficiosa fora elaborada de acordo com as regras legais para liquidações oficiosas com base na omissão da declaração de rendimentos; que não houvera violação do prazo previsto no art.77º corpo e alínea c) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares [conforme o art.88º da Lei 3-B/2010 de 28 de abril], porquanto tal prazo só se aplica a partir de 1 de janeiro de 2011; que a audição do Impugnante [antes da liquidação oficiosa] era dispensada ao abrigo do disposto no art.60ºnº2 corpo e alínea b) da Lei Geral Tributária; que o modo de notificação da liquidação oficiosa se mostrava conforme com o disposto no art.149ºnº3 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, cumprindo todos os elementos exigidos pelo art.36ºnº2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário – prazos de cumprimento e de reação e seus modos, demonstração da liquidação, indicação do autor, informação do seu caráter oficioso da declaração subjacente.

10. Tal decisão foi notificada à Ilustre Mandatária do Impugnante a 19 de outubro de 2011 e, a este, disso e do sentido da decisão, foi dado conhecimento a 21 desse mês.

Inexistem outros factos provados com interesse para a decisão, sendo não provados os que por aqueles são contrariados.

[…]».


2. Questões a decidir
A única questão que vem suscitada nos presentes autos é a de saber se há erro de julgamento da sentença recorrida ao anular a liquidação oficiosa de IRS com o fundamento de que a AT não podia ter lançado mão do procedimento previsto no artigo 76.º do CIRS por extemporaneidade e de que tendo o sujeito passivo apresentado posteriormente uma declaração de rendimentos não podia a AT deixar de a apreciar e sobre ela se pronunciar, convertendo-a, se fosse o caso, em reclamação graciosa.


3. De direito
3.1. Em relação à questão da alegada extemporaneidade da liquidação oficiosa de IRS cabe destacar o seguinte: i) resulta da matéria de facto assente que o sujeito passivo e aqui Recorrido não apresentou a declaração de rendimentos modelo 3, relativa ao ano de 2009 (ponto 1 da matéria de facto assente); ii) a AT notificou-o em 17.09.2010 para que procedesse à entrega da declaração em falta, sob cominação de ser efectuada uma liquidação oficiosa (ponto 2 da matéria de facto assente); iii) sem que o sujeito passivo tivesse cumprido a obrigação legal em falta, a AT procedeu à liquidação oficiosa do imposto em 31.01.2011, da qual o sujeito passivo foi notificado em 11.02.2011.

Em relação a este ponto, o Tribunal a quo considerou que a liquidação oficiosa, efectuada nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 76.º do CIRS (redacção à data dos factos), teria, como se previa no artigo 77.º, al c) do mesmo Código (igualmente na redacção à data dos factos), que ser efectuada até 30.11.2010, sob pena de extemporaneidade.

Contudo, tem razão a Recorrente Fazenda Pública quando alerta para o erro de julgamento que está subjacente a esta parte da decisão, pois, como resulta da jurisprudência constante deste Supremo Tribunal Administrativo (v., por todos, acórdãos de 11 de Maio de 2016, processo n.º 0442/15, e de 3 de Fevereiro de 2021, processo 0276/11.8BELRS), o prazo previsto no artigo 77.º do CIRS “(…) para a liquidação oficiosa de IRC no caso de falta de apresentação pelo contribuinte da declaração de rendimentos não é um prazo de caducidade. É, isso sim, um prazo meramente dirigido aos serviços da AT, impondo-lhes um prazo curto para a liquidação oficiosa, em ordem a prevenir a caducidade do direito de liquidar (que fica sujeita ao prazo normal) (…)”.

Assim, tem razão a Recorrente e a decisão recorrida não pode manter-se nesta parte.

3.2. Porém, já não tem razão a Recorrente quando pretende “desconsiderar” os elementos da declaração de rendimentos que o sujeito passivo acabou por entregar em 14.02.2011, após ter sido notificado da liquidação oficiosa do imposto relativa àquele ano e de ter apresentado reclamação graciosa da mesma.

Com efeito, não pode manter-se a decisão que veio a ser proferida em sede de reclamação graciosa, no sentido de que a declaração de rendimentos apresentada a posteriori não tinha validade, devendo considerar-se “consolidada” em relação àquele ano fiscal a situação tributária do sujeito passivo, tal como determinada na liquidação oficiosa.

Como sublinhou este tribunal no acórdão de 3 de Fevereiro de 2021 (processo 0276/11.8BELRS), antes mencionado, o que releva, segundo o princípio fundamental da tributação pelo rendimento real (artigo 104.º, n.º 2 da CRP) “não é haver ou não haver declaração apresentada nos termos das regras do CIRC, mas sim existirem ou não rendimentos reais que sustentem o imposto liquidado” ao sujeito passivo.

E acrescenta-se ainda, “[…] não só a AT tinha a obrigação de indagar da real situação económica do sujeito passivo – o que não fez, tendo-se limitado, durante todos aqueles anos, a emitir liquidações provisórias na sequência da falta de declaração de rendimentos Modelo 22 –, como seria manifestamente violador do princípio da tributação pelo rendimento real (artigo 104.º, n.º 2 da CRP), admitir que, uma vez provada a falta de rendimentos do sujeito passivo (tendo os impugnantes preenchido o ónus que sobre eles impedia nesta impugnação segundo o n.º 1 do artigo 74.º da LGT), as liquidações não pudessem ser anuladas por inexistir uma declaração de rendimentos a zeros para aqueles anos.

Por outra palavras, não tem arrimo legal uma solução que preconiza a tributação de rendimento inexistente – comprovadamente inexistente – pela circunstância de não estar cumprida uma obrigação acessória de entrega de declaração de rendimentos. De resto, a jurisprudência pretérita deste Supremo Tribunal Administrativo não deixa dúvidas a respeito da inadmissibilidade de uma tributação que incida sobre um facto tributário inexistente [neste sentido v., por todos, acórdãos de 22 de Abril de 2015 (proc. 0826/13), de 22 de Março de 2011 (proc. 0988/10) e de 4 de Novembro de 2011 (proc. 0553/09)] […]».

Este excerto fundamentador daquele aresto é inteiramente transponível e aplicável ao caso dos autos. Quer isto dizer que, tendo o sujeito passivo depois apresentado uma declaração de rendimentos para aquele período fiscal, é obrigação legal da AT proceder às diligências necessárias para promover a correcção do acto de liquidação oficiosa, fazendo-o corresponder com a concreta situação tributária do sujeito passivo”.

Por a Fazenda Pública não ter procedido desta forma, cabe confirmar a decisão recorrida na parte em que procede à anulação do acto de liquidação oficiosa do imposto relativo ao ano de 2009.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida com os fundamentos que constam do presente acórdão.

Custas pela Recorrente

Lisboa, 22 de Junho de 2022. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.