Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02337/12.7BELRS 0493/18
Data do Acordão:05/06/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:IVA
DEDUÇÃO
Sumário:I - O direito à dedução é uma das pedras angulares do IVA, mas não é menos verdade que a existência de instrumentos efectivos de controlo por parte das Administrações Fiscais aptos a combater a fraude e a evasão fiscal assume igual relevância para a boa administração do imposto.
II - Não existindo entre nós durante o período a que respeitam os factos em causa regras de direito interno para a regulação do modo como se poderia exercer a prática da autofacturação, sempre aqueles “procedimentos” teriam, pelo menos, de ser autorizados casuisticamente pela Administração Tributária, segundo o disposto nas regras europeias.
III - A jurisprudência europeia sobre a matéria, relativa a este período temporal (1993-1996), refere expressamente que a admissibilidade do direito à dedução com base em documentos ou procedimentos que não cumprissem integralmente as regras legais teriam de ser aceites pelas Administrações Tributárias ou por estas, de alguma forma, controlados ou controláveis.
Nº Convencional:JSTA000P25866
Nº do Documento:SA22020050602337/12
Data de Entrada:05/16/2018
Recorrente:AUTOMÓVEIS A.............., S.A.
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – A Automóveis A…….., S.A., com os sinais dos autos, inconformada com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, que, em 31 de Janeiro de 2018, julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra o acto de indeferimento parcial da reclamação graciosa que havia deduzido contra os actos de liquidação adicional de IVA dos exercícios de 1993 a 1996, apresentou recurso, formulando, para tanto, alegações que concluiu do seguinte modo:
I. Têm os presentes autos por objeto liquidações de IVA e juros dos anos de 1993, 1994, 1995 e 1996.
II. No que respeita à questão prévia da prescrição: no pressuposto de que a matéria de prescrição é um facto de conhecimento prévio oficioso cuja decisão compete a este Tribunal superior, é mister revelar que a Recorrente efetuou o pagamento do imposto ao abrigo do regime especial de regularização de dívidas aprovado pelo Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro ("RERD").
III. A Recorrente solicita a indemnização prevista no art. 53.º da LGT pelos custos da garantia prestada e a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º da LGT vindo-se a provar, como é sua convicção, que o pagamento do imposto é indevido e se deve a erro dos serviços.
IV. A questão jurídica subjacente aos presentes autos coincide com a de saber se, em face da legislação vigente ao tempo dos factos, uma nota de crédito que, cumprindo todos os requisitos das facturas, seja emitida pelo beneficiário da entrega de um bem ou de uma prestação de serviços em substituição do prestador/ fornecedor confere, ou não, o direito à dedução do IVA.
V. Ou, dito de outra forma: se o direito à dedução do IVA suportado dependia de ser o próprio prestador do serviço ou transmitente do bem a emitir o documento de suporte - factura ou documento equivalente - não obstante estarem verificados todos os demais elementos de que depende a dedução do imposto, i. e., desde que o documento contenha as menções prescritas para a factura pela Sexta Directiva e reproduzidas nos arts. 19.º e ss do Código do IVA (ao tempo) e o seu conteúdo possa ser retificado ou contestado pela empresa que realizou a operação económica, a qual tem comprovado conhecimento da emissão dos documentos pela aposição, nos mesmos, da respetiva assinatura e carimbo.
VI. Nos presentes autos ficou provado que o imposto liquidado e formalizado pelas liquidações impugnadas era imposto deduzido pela Recorrente, imposto esse que havia onerado a aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos e que tais bens e serviços haviam sido adquiridos pela mesma (Recorrente) para integrar transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas estes factos constam das alíneas C) e J) (que aqui se dão por reproduzidas) da base instrutória da sentença e foram fixados como provados pelo Tribunal a quo.
VII. No que respeita ao cumprimento dos requisitos da factura: este facto nunca foi posto em causa e ficou provado na base instrutória (alínea J) da sentença), podendo ser aferido do cotejo das notas de crédito juntas à impugnação judicial e sua subsunção nos requisitos do art. 35.º do Código do IV A e demais normativo aplicável (datação, numeração, nome, firma, sede do fornecedor e do destinatário, identificação fiscal dos mesmos, quantidade e denominação dos bens e serviços, preço e montante de imposto devido, e a eventual referência à factura corrigida, bem como a assinatura e o carimbo de recepção do destinatário).
VIII. No que respeita à posição da AT, a Recorrente reproduz tudo quando articulou nos seus direitos de audição, na Reclamação Graciosa e na p.i. da Impugnação.
IX. Quanto ao Parecer do Ministério Público, não se verifica que do mesmo resulte um único motivo de fundamentação dos atos liquidatários impugnados.
X. O sentido da sentença ora em crise decorre, s.m.o., de três vertentes: (i) o acolhimento, por um lado, dos fundamentos da AT constantes do relatório de inspeção e por esta preconizados no processo, (ii) na jurisprudência acolhida pelo TCAS no processo relativo ao IVA de 1992 (Acórdão do TCAS de 16.5.2006 no Processo n.º 1021/06) e (iii) na desaplicação da jurisprudência do TJUE vertida no Acórdão TJUE, C-141/96 de 17/09/1997.
XI. O erro de julgamento - erro jurídico - da sentença recorrida é o de que a mesma considera que a legislação ao tempo dos factos proibia a autofacturação porque esta só veio a ser assumida no direito interno posteriormente. O erro desta asserção resulta, desde logo, do facto de não se poder fazer prevalecer, num processo com mais de 20 anos, legislação que não estava em vigor e com a qual as partes não podiam contar. O facto de que nunca foi assumida, à época, a "proibição" da autofacturação fica provado pelo facto de que a AT a autorizava mediante requerimento do sujeito passivo e de que a própria Requerente o fez através de Requerimento que se encontra reproduzido na alínea I) da sentença recorrida. Não se pode conceber que a AT autorizasse ou, sequer, apreciasse, requerimentos de procedimentos proibidos pela lei. Assim, é com erro de julgamento e jurídico que o Tribunal recorrido assim o conclui.
XII. A ilegalidade da sentença recorrida resulta, ainda, da violação das disposições legais relativas ao direito à dedução contidas nos arts. 19.º e ss do Código do IV A: ao proibir a dedução do IVA com o único fundamento e sem mais outro qualquer motivo, no facto de o documento de suporte ter sido emitido pelo adquirente em substituição do prestador / fornecedor.
XIII. Na alínea C) da base instrutória, o Tribunal recorrido faz um correto enquadramento fáctica (sic) das circunstâncias em que a substituição da facturação é acordada entre as partes: "a A…….. presta assistência gratuita aos seus clientes no decurso do chamado período de garantia. Esta assistência tanto pode ser efectuada pela A……….. diretamente aos seus clientes, como indiretamente através da sua rede de concessionários.". Ou seja: estamos perante serviços prestados no âmbito dos períodos de garantia dos veículos em que é a Impugnante, ora Recorrente, a entidade que suporta o custo mas também a entidade que, previamente à operação (reparação / venda / outra) define o âmbito em que os mesmos se encontram incluídos, ou não, na garantia.
XIV. No que respeita ao Acórdão 01021/06 TCA Sul, cuja jurisprudência vem acolhida na sentença recorrida, o entendimento é o de que a emissão de factura ou documento equivalente pelo adquirente estava proibida pela legislação e, por isso, impede o direito à dedução do IVA constante de documentos assim emitidos. O Tribunal considera, neste aresto, que a então Recorrente não teria provado "o requisito da alínea a), dos mesmos n.º e art., que determina, sem margem para qualquer dúvida que o acordo escrito entre transmitente/prestador de serviços (no caso os concessionários) e o adquirente/destinatário (no caso a impugnante) tem de ser expresso, inequívoco e prévio." (sublinhado nosso). É este um erro de julgamento que, no entendimento da Recorrente, não se pode repetir: se as notas de crédito estão assinadas pelos concessionários não se pode legitimamente duvidar sobre a existência de um acordo prévio à sua emissão. Muito pelo contrário: os mesmos concessionários prestaram e forneceram contínuas, sucessivas e repetidas vezes os mesmos bens e serviços, assinaram e carimbaram repetidas e sucessivas notas de crédito, num procedimento que se repetiu várias vezes nos anos de 1993, 1994, 1995 e 1996 e que, só por isso, consagrava um procedimento acordado, implementado e praticado para todos os procedimentos da situação de reparações dos veículos em períodos de garantia, todas as notas de crédito se encontram, sem excepção, assinadas e carimbadas por eles mesmos. Não é legítimo que, em face de tais procedimentos, se ponha em causa a prova de que há um acordo na emissão da nota de crédito entre a ora Requerente e os concessionários, os quais só assim procederam repetidas vezes, desde o ano de 1992 (a que se refere o acórdão citado pelo Tribunal recorrido) e durante os anos de 1993, 1994, 1995 e 1996 (a que se referem os presentes autos) porque havia um acordo nesse sentido.
XV. No tocante à desaplicação da jurisprudência do TJUE no Acórdão TJUE, C-141/96 de 17/09/1997, o Tribunal recorrido conclui sumariamente que "embora não se desconheça a jurisprudência vertida no acórdão (...), cumpre salientar que o Tribunal de Justiça não se pronunciou no sentido de ser favorável à adopção do método da autofacturação". Esta conclusão afigura-se ser demasiado superficial: ao afastar a autofacturação, o Tribunal aqui recorrido está a proibir a dedução de imposto que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, o não pode ser (proibido).
XVI. Não podemos deixar de considerar que, ao concluir pela não permissão da autofacturação, o Tribunal Tributário de Lisboa está a proibir a dedução do imposto suportado a montante em contradição com as regras de dedução sem que se verifique qualquer outro motivo para além do facto de o emitente do documento ser o adquirente em substituição do fornecedor/prestador, substituição essa feita por acordo entre ambos, adquirente e fornecedor/prestador, e tendo este último conhecimento comprovado e evidenciado dos documentos emitidos, através da respetiva assinatura e carimbo.
XVII. Material e formalmente, estamos perante imposto dedutível resultando a proibição da dedução do único facto de o emitente da factura / documento equivalente ser o adquirente em substituição do fornecedor, com o (i) acordo prévio de ambos, (ii) com a evidência do conhecimento do fornecedor em cada um dos documentos emitidos através da respetiva assinatura e carimbo vide a alínea J) da base instrutória.
XVIII. O entendimento do Tribunal a quo tem consequências a nível de distorção de concorrência e manifesta-se numa violação do princípio basilar da neutralidade e proporcionalidade em matéria de IVA.
XIX. A Recorrente citou nestas alegações os acórdãos do TJUE C-141/96 de 17/09/1997, C-90/02 de 01/04/2004, C-152/02, de 29/04/2004, C-588/10 de 26/01/2012 cuja doutrina considera relevante para os presentes autos, assim como de toda a doutrina recorrente deste Tribunal relativa às formalidades exigidas ou exigíveis pelos Estados membros que coloquem em causa os princípios da neutralidade e da proporcionalidade do IVA.
XX. Em matéria de custas, considera o Tribunal recorrido que deve ser dispensada a taxa adicional até aos 400.000€, sendo que os factores elencados para o efeito são todos eles indicativos de uma minoração das custas (simplificação da tramitação, padrões de normalidade e dos limites da boa-fé processual").
XXI. Para a consideração do valor da causa para os 400.000€, aduz-se o argumento de que "ponderando o elevado valor da causa e o serviço concretamente prestado que se entende ser "não inferior " à generalidade dos processos". A Recorrente não pode, obviamente, aceitar a ponderação do valor da causa por relação com o valor da "generalidade dos processos" porque não tem acolhimento legal (art. 6.º, n.º 7 do RCJ). Para a ponderação das custas fixadas deve atender-se ao objeto-único, irrepetível e perfeitamente identificável -do processo e da questão submetida à apreciação do Tribunal. Uma ponderação das custas por comparação com a "generalidade dos processos" conduz seguramente a efeitos nefastos em termos de acesso à justiça, constitucionalmente censurados e censuráveis.
XXII. A Recorrente requer que, atentos os fundamentos do art. 6.º, n.º 7 do RCJ, e atenta à específica questão jurídica controvertida aqui identificada, e, caso assim se entenda, ao tempo decorrido dos factos, seja dispensado o pagamento da taxa de justiça no remanescente a 275.000€, anulando-se a sentença recorrida na parte em que fixa o valor da causa, para esse efeito, em 400.000€.
XXIII. Sem prejuízo do supra exposto, e não obstante jurisprudência comunitária já produzida sobre a matéria, na medida em que não seja claro para o Tribunal o alcance dos artigos, 4.º 17.º a 20.º da Sexta Directiva, atualmente os artigos 12.º, 167.º, 168.º e 169.º da Directiva IVA, ou de qualquer outra norma desta Directiva que possa em seu juízo interferir com a boa solução deste caso, deverá então este Tribunal promover o reenvio prejudicial das questões que entenda suscitar, para o TJUE, conforme previsto no artigo 19.º, n.º 3, alínea b), e no artigo 267.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Nestes termos e nos demais de Direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, anulando-se a sentença recorrida e por estarem demostrados os fundamentos de anulação dos actos tributários ordenados manter por aquela, com o que se fará a esperada JUSTIÇA!».


2 – A Recorrida apresentou contra-alegações, cujas conclusões se transcrevem, não obstante a irregularidade de as mesmas não terem sido apresentadas em numeração separada:

XXXIX. O Impugnante, sem ter autorização para tal, optou por utilizar o método de autofacturação, emitindo notas de crédito pelos serviços de reparação que os concessionários lhe prestam.
XL. Entendendo, que nada impedia que as notas de crédito pudessem ser utilizadas em substituição de facturas do fornecedor, e efectuando, com base nas mesmas, a dedução do correspondente IVA.
XLI. Controverte-se, aqui, a questão de saber se ao Recorrente era possível, nos anos de 1993, 1994, 1995 e 1996, deduzir o IVA relativo aos serviços prestados pelos seus concessionários, na medida em que se "substituiu" àqueles -que não emitiram quaisquer facturas referentes aos mesmos serviços -através da emissão de notas de crédito, com o referido imposto incluído.
XLII. Pretendia-se, assim, saber se as notas de crédito eram à data dos factos tributários, de considerar como "documentos equivalentes" a facturas, para efeitos de IVA e se, nessa medida, era possível ao ora Recorrente exercer o direito à dedução do imposto incorrido, apenas com suporte naquelas notas.
XLIII. In casu, a AT entendeu, e acrescente-se bem, que o direito à dedução que o Recorrente efectivamente exerceu (com suporte nos mencionados documentos) não lhe assistia, pelo que procedeu às correcções que estão na génese das liquidações aqui controvertidas.
XLIV. Ou seja, considerou, a AT, que para que o Recorrente pudesse exercer o direito à dedução, os concessionários haveriam de lhe ter emitido as facturas, correspondentes às prestações de serviços que efectuaram, sendo certo que os documentos em causa utilizados pela Impugnante (notas de crédito) são emitidas por ela própria e não por aqueles, violando-se, assim, o preceituado in artigos 19.º/1 e 28.º/1 alínea a), por referência ao artigo 2.º/1, alínea a), todos do CIVA.
XLV. É que a possibilidade legal de autofacturação, enquanto mecanismo justificativo das referidas notas de crédito, como substitutivas das facturas, com origem, não no prestador de serviços ou transmitente dos bens, mas antes no destinatário dos mesmos, não existia no nosso ordenamento jurídico até ao início da vigência do DL n.º 256/2003 de 21 de Outubro, particularmente e ao que aqui releva, pelas alterações que veio introduzir aos artigos 19.º/5, 28.0/14 e 35.º/11, todos do CIVA.
XLVI. Pode, assim, sem sombra de dúvida, afirmar-se que até então (01/01/2004), não só o nosso ordenamento jurídico não contemplava a autofacturação como mecanismo adequado à emissão e dedução deste tipo de documentos, como também não houve autorização da A T para que o Recorrente a ela pudesse recorrer.
XLVII. Tal implica que, para além das notas de crédito não serem, enquanto tal, admissíveis como documentos de suporte do direito à dedução, também não preenchem -com a autofacturação a não ser legalmente permitida na economia do IVA e no nosso ordenamento jurídico antes de 01/01/2004 -os requisitos de forma impostos pelo artigo 35.º do CIVA que, nesta óptica, impunha que os mesmos tivessem origem nos transmitentes e nos prestadores de serviços.
XLVIII. No que concerne ao pedido de indemnização por eventual prestação de garantia indevida, a mesma, por força de tudo o que atrás se disse, não é devida.
XLIX. Em face do exposto, bem andaram os SIT ao efectuarem as correcções aqui postas em crise, porquanto, duvidas não restam de que o direito à dedução exercido pelo Recorrente, foi efectuado de forma ilegal.
L. Em conclusão, e por tudo o quanto ficou dito, deverá o presente Recurso Jurisdicional ser julgado improcedente, por não assistir razão à Recorrente, mantendo-se a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, por não estar ferida de qualquer vício capaz de levar à sua anulação.

Termos em que, atento o exposto, deverá o presente Recurso Jurisdicional ser julgado improcedente, por não provado, devendo, em consequência, a Douta Sentença do Tribunal a quo manter-se, para todos os devidos efeitos legais. Pois só assim se fará a mais elementar JUSTIÇA!».


3 – O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso por considerar que “não constando o IVA deduzido de fatura/documento equivalente, emitido na forma legal, não haverá direito à dedução do IVA” e também que “parecendo não existir dúvida razoável, não haverá lugar ao requerido reenvio prejudicial”. Acrescentou ainda, a respeito do pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, que “parece justificar-se a dispensa de pagamento de cerca de 50% do remanescente da taxa de justiça, que, como é sabido, aproveita a ambas as partes”.

4 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.


II – Fundamentação

1. De facto
Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A) A impugnante é uma sociedade anónima que exerce a título principal a actividade de comércio de veículos automóveis (cfr. relatório de inspecção tributária, a fls. 128 a 137 dos autos);
B) Pela Direcção de Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária da Direcção Geral das Contribuições e Impostos foi realizada à sociedade ora impugnante acção de inspecção externa aos exercícios de 1993, 1994, 1995 e 1996, em sede de IVA, no âmbito da qual foram, designadamente, efectuadas correcções relativas a dedução de imposto com base em notas de crédito emitidas a favor dos seus concessionários referentes ao valor das reparações por estes efectuadas acrescidas do correspondente IVA, e das quais resultaram imposto a pagar perfazendo o montante global de €1.537.568,41 (cfr. relatório de inspecção tributária, a fls. 128 a 137 dos autos);
C) As correcções mencionadas na alínea antecedente foram efectuadas com base nos seguintes fundamentos extraídos dos termos do capítulo “2 – Imposto sobre o Valor Acrescentado/2.1 – IVA dedutível” relatório de inspecção tributária, elaborado em 10 de Outubro de 1997:
“ (…)
2.1.1. - Devido às características da sua actividade a A………. presta assistência gratuita aos seus clientes no decurso do chamado período de garantia. Esta assistência tanto pode ser efectuada pela A……….. directamente aos seus clientes, como indirectamente através da sua rede de concessionários.
Em resultado do exame efectuado, verificou-se que deduziu imposto com base em notas de crédito emitidas a favor dos seus concessionários referentes ao valor das reparações por estes efectuadas acrescidas do correspondente IVA substituindo-se assim aos concessionários na emissão de facturas pelos serviços prestados.
Nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 28° do CIVA os sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º do CIVA são obrigados a emitir uma factura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços tal como vêm definidas no art.º 3.º e 4.º do presente diploma.
Por sua vez o n.º 1 do art.º 19.º do CIVA define, em termos gerais, como funciona o chamado mecanismo das deduções que correspondendo regra geral, a todo o imposto suportado pelo sujeito passivo explicita, no entanto, nas sucessivas alíneas como sendo “o imposto que lhes foi facturado na aquisição de bens e serviços por outros sujeitos passivos”.
Os documentos em causa não cumprem as exigências do n.º 1 do art.º 19.º do CIVA, uma vez que não se tratam de documentos emitidos pelos próprios prestadores de serviços (alínea a)).
Por outro lado, refira-se que apenas nas situações previstas no n.º 2 do art.º 71.º do CIVA é permitida ao sujeito passivo, com base em documentos por si emitidos, a regularização a seu favor do imposto anteriormente liquidado.
Face ao exposto, as deduções de IVA efectuadas pela A…….. com base em documentos por si emitidos são indevidas, pelo que se apura imposto a corrigir nos anos de 1993, 1994, 1995 e 1996 nos montantes de 58.935.293$00 (ANEXO I), 69.849.264$00 (ANEXO II), 53.502.852$00 (ANEXO II) e 62.715.874$00 (ANEXO V) respectivamente.
(…)
2.3 - CONCLUSÕES
2.3.1 - O IVA apurado em falta é de esc. 122.021.229$00, 70.014.835$00, 53.502.852$00 e 62.715.874$00 nos exercícios de 1993, 1994, 1995 e 1996 respectivamente, conforme pontos 2.1.1, 2.1.2 e 2.2.7.2 deste relatório e ANEXO XIX.
2.3.2 - O IVA liquidado fora dos prazos legais sujeito a juros compensatórios nos termos do art.º 89° do CIVA é de esc. 458.838.558$00 e 494.226$00 nos exercícios de 1993 e 1994 respectivamente, conforme ANEXO XV e ANEXO XVI.
(…)”
(cfr. relatório de inspecção tributária, a fls. 128 a 137 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
D) Em resultado das correcções mencionadas nas alíneas antecedentes, foram, em 13 de Outubro de 1998, emitidas as seguintes liquidações adicionais de IVA:
1) n.º 98193692, referente ao ano de 1993, no montante de €204.580,38, com data limite de pagamento em 31 de Dezembro de 1998 (cfr. documento de cobrança, a fls. 48 dos autos);
2) n.º 98193695, referente ao ano de 1993, no montante de €19.969,06, com data limite de pagamento em 31 de Dezembro de 1998 (cfr. documento de cobrança, a fls. 49 dos autos);
3) n.º 98193700, referente ao ano de 1993, no montante de €168.032,55, com data limite de pagamento em 31 de Dezembro de 1998 (cfr. documento de cobrança, a fls. 50 dos autos);
4) n.º 98193705, referente ao ano de 1993, no montante de €216.057,33, com data limite de pagamento em 31 de Dezembro de 1998 (cfr. documento de cobrança, a fls. 51 dos autos);
5) n.º 98193708, referente ao ano de 1994, no montante de €43.915,17, com data limite de pagamento em 31 de Dezembro de 1998 (cfr. documento de cobrança, a fls. 52 dos autos);
6) n.º 98193740, referente ao ano de 1994, no montante de €305.317,36, com data limite de pagamento em 31 de Dezembro de 1998 (cfr. documento de cobrança, a fls. 53 dos autos);
E) Em resultado das mesmas correcções, foram, em 20 de Outubro de 1998, emitidas as seguintes liquidações adicionais de IVA:
1) n.º 98301056, referente ao ano de 1995, no montante de €266.871,10, com data limite de pagamento em 31 de Dezembro de 1998 (cfr. documento de cobrança, a fls. 54 dos autos);
2) n.º 98301032, referente ao ano de 1996, no montante de €312.825,46, com data limite de pagamento em 31 de Dezembro de 1998 (cfr. documento de cobrança, a fls. 55 dos autos)
F) Em 13 de Outubro de 1998 e 20 de Outubro de 1998, foram emitidas as correspondentes liquidações de juros compensatórios, perfazendo o montante global de €3.023.758,84 (cfr. documentos de cobrança, a fls. 165 e seguintes do PAT apenso);
G) Em 16 de Março de 1999, a impugnante apresentou reclamação graciosa das liquidações identificadas nas alíneas antecedentes, exceptuando o montante de imposto liquidado adicionalmente com base na falta de documento de suporte, no valor de €15.067,62 (cfr. documento, a fls. 57 a 93 dos autos);
H) Por despacho do Director da Direcção de Finanças de Lisboa, datado de 27 de Novembro de 2002, a reclamação graciosa mencionada na alínea antecedente foi deferida parcialmente, nos termos propostos na informação antecedente, com o seguinte teor, em transcrição parcial:

(…)»
(cfr. documento, a fls. 32 a 47 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

I) Em 7 de Janeiro de 1992, a impugnante apresentou requerimento junto dos Serviços do IVA, com o seguinte teor: «
(cfr. requerimento, a fls. 163 e 164 dos autos);

J) A impugnante emitiu as notas de créditos juntas como doc. n.º 17 com a p.i., das quais consta, designadamente, o montante do IVA e a assinatura dos concessionários em nome dos quais tais notas foram emitidas (cfr. CD-ROM apenso aos autos, junto como doc. n.º 17);
K) Para garantia dos montantes em dívida identificados em D) a F) que antecedem, a impugnante prestou, em 17 de Março de 1999, a garantia bancária n.º GRE99232, junto do «B…… - Banque B…………..», no montante global de €6.149.765,34 (cfr. documento, a fls. 166 dos autos);
L) Para cobrança coerciva das dívidas referentes aos montantes identificados em D) a F) que antecedem, foi instaurado, em 11 de Agosto de 1999, o processo de execução fiscal n.º 3301199901012975 (cfr. documentos, a fls. 118 e 189 do processo de execução fiscal apenso aos autos);
M) Por despacho do órgão de execução fiscal de 28 de Novembro de 2002, foi declarada a caducidade da garantia identificada em K) que antecede (cfr. informação, a fls. 165 do processo de execução fiscal apenso aos autos);
N) Em 27 de Fevereiro de 2003, foi cancelada a garantia bancária identificada em K) que antecede (cfr. documento, a fls. 171 dos autos);
O) A impugnante procedeu ao pagamento integral da quantia exequenda no âmbito do processo de execução fiscal identificado em L) que antecede, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro, encontrando-se o processo executivo extinto por pagamento voluntário (cfr. informação, a fls. 563 do processo de execução fiscal apenso aos autos).


2. Questão a decidir
Saber se a sentença do Tribunal a quo enferma de erros de julgamento relativamente ao decidido quanto às questões: i) da alegada prescrição da dívida tributária e ii) da interpretação e aplicação das regras do CIVA, vigentes à data dos factos, sobre a possibilidade de dedução do IVA com base em notas de crédito emitidas pelo beneficiário da entrega de um bem ou de uma prestação de serviços em substituição do prestador/ fornecedor. Impõe-se ainda verificar se a questão que vem suscitada em matéria de IVA obtém uma resposta evidente a partir do disposto nas regras jurídicas e na jurisprudência já emitida ou se obriga a um reenvio prejudicial para o TJUE. Por último, iii) há que verificar também se a Recorrente podia ou não beneficiar da dispensa do remanescente da taxa de justiça.

3 – Do direito

3.1. Da prescrição da dívida

Como bem se sublinha na decisão do Tribunal a quo, a questão da prescrição da dívida tributária apenas pode ser conhecida no âmbito de um processo de impugnação judicial como “pressuposto da utilidade da decisão sobre a legalidade do acto impugnado” e sempre que tal conhecimento não implique qualquer “esforço instrutório”, por estarem presentes nos autos todos os elementos relevantes para essa decisão. Caso contrário, a prescrição deve ser conhecida em sede própria, que é a oposição à execução fiscal – neste sentido v., por último, acórdão de 22 de Janeiro de 2020 (proc. 571/06.8BEPRT).

Na decisão recorrida concluiu-se pelo não conhecimento da prescrição com o seguinte fundamento: “não está em causa a inutilidade superveniente da lide, atendendo a que a extinção da obrigação já ocorreu por força do pagamento”.

A Recorrente, inconformada, alega, em sede de recurso, que este Supremo Tribunal deve conhecer oficiosamente desta questão, e atentar na circunstância de aquele pagamento ter sido efectuado ao abrigo do regime especial de regularização de dívidas aprovado pelo Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro. Porém, o pagamento da dívida tributária ao abrigo do mencionado regime excepcional de regularização de dívidas fiscais e à segurança social não pode deixar de qualificar-se como pagamento voluntário e espontâneo para efeitos do disposto no artigo 304.º, n.º 1 e 2 do Código Civil (proibição de repetição do indevido em caso de pagamento espontâneo de dívida prescrita). Com efeito, os benefícios que o sujeito passivo buscou e, legitimamente, obteve com o pagamento das dívidas tributárias ao abrigo daquele regime jurídico, maxime a dispensa dos juros de mora e dos juros compensatórios respectivos, obstam, agora, à invocação da prescrição daquelas dívidas e à produção dos respectivos efeitos.

Em suma, tem razão o Tribunal a quo quando considera que não existe, in casu, risco de inutilidade superveniente da lide.

Acresce que, como sublinha o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal no parecer de fls. 250 (do SITAF), é ainda manifesto que não ocorre a prescrição, uma vez que a reclamação graciosa foi deduzida em 16 de Março de 1999, tendo a garantia sido prestada em 17 de Março de 1999, com a consequente suspensão do processo de execução fiscal, seguindo-se a interposição da impugnação judicial em 30 de Agosto de 2012. Assim, como resulta do acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Outubro de 2016 (proc. 0935/16) (Dispõe, assim, o sumário do referido aresto:

I - O art. 183.º-A, aditado ao CPPT pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, passou a permitir aos interessados obter a declaração de caducidade da garantia prestada pelo contribuinte ou constituída pela Administração Tributária, sem perder o efeito suspensivo da execução, se a reclamação graciosa em que fosse discutida a legalidade da liquidação não fosse decidida no prazo de um ano ou a impugnação judicial em que fosse discutida essa legalidade não estivesse decidida, em 1.ª instância, no prazo de dois anos (ulteriormente alterado para três anos pela Lei n.º 30-B/2002, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2003), a contar da sua apresentação, prazos que eram acrescidos de seis meses caso houvesse lugar à produção de prova pericial.

II - Caducada a garantia o processo de execução fiscal continuava suspenso, mesmo sem garantia, até ao momento em que estaria se a garantia se mantivesse, ou seja, até à decisão do pleito.

III - Da norma contida no nº 3 do art. 49º da LGT, conjugada com a norma legal que define o regime da suspensão da execução fiscal (art. 169º do CPPT), resulta que o efeito suspensivo da execução fiscal não é consequência directa e imediata da instauração da reclamação, impugnação ou recurso, nem é consequência directa e imediata da prestação de garantia; o que determina o efeito suspensivo da execução – e, por consequência, o efeito suspensivo da prescrição – é a instauração de reclamação, impugnação ou recurso, quando acompanhada ou seguida da constituição ou prestação de garantia idónea, da autorização da sua dispensa, ou da penhora de bens que garantam o pagamento integral da quantia exequenda e do acrescido.), o que assegura a suspensão da execução e, consequentemente, da prescrição, é a interposição da reclamação seguida da prestação da garantia e da subsequente impugnação, mantendo-se aquele efeito suspensivo até ao trânsito em julgado da decisão, independentemente de ter ou não caducado a garantia.

Uma solução jurídica que se compreende atenta a diferente natureza jurídica dos pressupostos em confronto: a garantia visa acautelar o recebimento futuro do valor em dívida, já os meios impugnatórios associados à prestação de garantia visam esclarecer a legalidade do acto de liquidação sem prossecução da cobrança coerciva; por isso, enquanto tal esclarecimento não existir não é possível promover a cobrança coerciva, mesmo que o crédito futuro deixe, entretanto, de estar garantido. E assim também não é possível, até ao trânsito em julgado daqueles processos, assacar consequências para efeitos do desinteresse do credor relativamente à obtenção do pagamento/cobrança do montante liquidado, i. e., para efeitos de prescrição da dívida.

3.2. Da interpretação e aplicação das regras do CIVA

Defende a Recorrente que teria de considerar-se conforme com o artigo 19.º do CIVA e com a Sexta Directiva IVA (na redacção em vigor de 1993 a 1996) a prática de dedução do IVA com base em notas de crédito emitidas pelo beneficiário da entrega de um bem ou de uma prestação de serviços em substituição do prestador/ fornecedor. Em contraposição, a Administração Tributária sustentou que tais notas de crédito não preenchiam os requisitos legais de facturas ou documento equivalente passado em forma legal, pelo que, incumprindo-se uma formalidade ad substantiam, não era possível a dedução do IVA, nos termos do artigo 19.º/2 do CIVA.

A factualidade em causa respeitava a prestações de serviços de reparação em veículos automóveis durante o período de garantia (reparações que eram gratuitas para os clientes) efectuadas pelos agentes da rede de concessionários da Recorrente. Nestes casos, os concessionários efectuavam as reparações gratuitamente aos clientes e a Recorrente emitia notas de crédito a seu favor, no valor correspondente às ditas reparações. O objectivo era a aqui Recorrente substituir-se aos concessionários na emissão das facturas.

A divergência quanto ao cumprimento das formalidades legais residiu, neste caso, na (in)observância da exigência vertida na al. a), do n.º 1 do artigo 19.º do CIVA, ou seja, os documentos não eram emitidos pelos prestadores de serviços. Por essa razão, a AT considerou que esta prática, que se traduzia na dedução de IVA com base em documentos emitidos pela própria Recorrente em situações em que ela não era a prestadora do serviço (prática denominada como autofacturação) era ilegal, o que justificou a prática dos actos de liquidação adicional que estão subjacentes ao presente litígio.

Ora, a Recorrente contesta a interpretação da Administração Tributária e invoca que ficou provado no processo (ponto J da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida) que as notas de crédito emitidas cumpriam todos os requisitos do artigo 35.º do CIVA, que ela (Recorrente) apresentara um requerimento à Autoridade Tributária no sentido de implementar aquela prática de autofacturação (ponto I da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida) e que tal era suficiente para o exercício do direito à dedução, à luz da jurisprudência do TJUE, fixada no acórdão Finanzamt Osnabrück-Land (Proc. C-141/96), de 17 de Setembro de 1997, segundo a qual “[O] artigo 22.º, n.º 3, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, autoriza os Estados-Membros a considerarem como «documento que substitui a factura» uma nota de crédito emitida pelo destinatário dos bens e serviços, desde que a mesma contenha as menções prescritas para as facturas pela referida directiva, seja elaborada de acordo com o sujeito passivo que entrega os bens ou presta os serviços, e este último possa contestar o montante do imposto sobre o valor acrescentado que consta da mesma”.

Segundo a Recorrente, o erro de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo reside no facto de ter considerado que a autofacturação era uma prática proibida àquela data (recorde-se, entre 1993 e 1996), por só ter sido expressamente admitida pelo direito interno, a partir de 2004, com a entrada em vigor da alteração ao CIVA aprovada pelo Decreto-Lei n.º 256/2003, de 21 de Outubro (O Decreto-Lei n.º 256/2003, de 21 de Outubro, transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva n.º 2001/115/CE, de 20 de Dezembro, que alterou a Sexta Directiva do IVA (Directiva n.º 77/388/CEE, do Conselho, de 17 de Maio).). Foi com a nova redacção dos artigos 19.º, n.º 5, 28.º, n.º 14 e 35.º, n.º 11 (hoje artigos 19.º, n.º 5, 29.º, n.º 14 e 36.º, n.º 11 (Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de Agosto, passou também a exigir-se a menção “autofacturação” (nova al. c do n.º 11 do artigo 36.º do CIVA) nas facturas emitidas pelo adquirente dos serviços.)) do CIVA, que, segundo o Tribunal a quo, a prática da autofacturação passou a ser admitida pelo ordenamento jurídico nacional, o que implicava ainda: i) primeiro, o preenchimento das condições previstas na lei – designadamente, o acordo entre o sujeito passivo prestador do serviço e o adquirente do mesmo, bem como a prova por parte do adquirente, de que o prestador do serviço tomou conhecimento da factura e aceitou o seu conteúdo –; e ii) segundo, que quando alguma das partes não dispusesse de sede em Portugal, teria de haver uma autorização prévia da Direcção-Geral dos Impostos.

A sentença recorrida afirma ainda que: i) a prática da autofacturação não era também permitida no âmbito da Sexta Directiva, tendo apenas passado a ser admitida com a Directiva n.º 2001/115/CE, apoiando-se no considerando 4.º da Directiva para sustentar esta interpretação; ii) que a jurisprudência do TJUE, firmada no já mencionado acórdão Finanzamt Osnabrück-Land (Proc. C-141/96) não era transponível para o direito interno, na medida em que o Tribunal concluiu naquele aresto que a Sexta Directiva autorizava a autofacturação realizada de acordo com as regras definidas pelo direito alemão, mas como em Portugal não existiam regras no direito interno sobre a autofacturação, não era possível transpor aquela interpretação para o direito nacional; e que iii) não existe nos autos qualquer prova de que a Administração Tributária tivesse autorizado a prática de autofacturação alegadamente requerida pela Recorrente, nem tal autorização se podia considerar concedida de forma tácita.

Ora, é precisamente neste último ponto que, a nosso ver, radica o fundamento pelo qual não assiste razão à Recorrente. É que mesmo concedendo, com base na jurisprudência europeia, incluindo o mencionado acórdão Finanzamt Osnabrück-Land (Proc. C-141/96), que a prática de autofacturação já se teria de considerar compatível com a Sexta Directiva – o que resulta do facto de ser uma prática implementada em diversos países e que, por isso, como resulta do considerando 4.º da Directiva 2001/115/CE, a União Europeia se viu impelida a estipular regras para a harmonização da mesma –, ainda assim não poderia deixar de exigir-se que essa prática observasse certas regras, tendo em vista a garantia do controlo da efectiva realização das actividades que dariam direito à dedução (serviços facturados), regras que evitariam a fraude. Uma ideia que é também expressamente sufragada nos acórdãos do TJUE Langhorst (proc. C-141/96) (Nesta decisão pode ler-se o seguinte: “O artigo 22.º, n.º 3, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, autoriza os Estados-Membros a entenderem por "documento que substitua a factura" uma nota de crédito emitida pelo beneficiário da entrega de um bem ou de uma prestação de serviços, desde que a mesma contenha as menções prescritas para a factura pela Sexta Directiva e o seu conteúdo possa ser rectificado ou contestado pela empresa que realizou a operação económica”.), Finanzamt Gummersbach (C-90/02) (De acordo com esta decisão do TJUE, o direito à dedução com base em documento que não cumpra os requisitos de uma factura emitida nos termos do n.º 3 do artigo 22.º da Directiva: “(…) deve ser exercido em conformidade com um dos objectivos prosseguidos pela Sexta Directiva, que é assegurar a cobrança do IVA e o seu controlo pela administração fiscal [v., no que se refere ao n.º 3, alínea c), do artigo 22.° da Sexta Directiva, acórdão Langhorst, já referido, n.º 17]” (cf. §§ 49).) e Terra Baubedarf-Handel GmbH (C-152/02) (Também neste aresto se reforça a necessidade de existir um controlo pela AT: “(…)No que respeita ao princípio da proporcionalidade, não se verifica qualquer infracção a este princípio pelo facto de se exigir que o sujeito passivo efectue a dedução do IVA a montante a título do período de declaração durante o qual estão preenchidas a condição da posse da factura ou de um documento que a substitua e a do surgimento do direito à dedução. Com efeito, por um lado, esta exigência está em conformidade com um dos objectivos prosseguidos pela Sexta Directiva, que é garantir a cobrança do IVA e o seu controlo pela Administração Fiscal (v. acórdãos, já referidos, Reisdorf, n.º 24, e Langhorst, n.° 17) (…) (cf. §§ 37).), em que são abordados casos próximos àquele que está aqui em apreço, ou seja, de aceitação de documentos que não cumprem os requisitos legais de uma factura para efeitos de dedutibilidade do IVA. Da leitura destes arestos resulta claro que, sendo verdade que o direito à dedução é uma das pedras angulares do IVA, não é menos verdade que a existência de instrumentos efectivos de controlo por parte das Administrações Fiscais, como instrumento de combate à fraude e à evasão fiscal, assume igual relevância para a boa administração do imposto.

Por isso, não existindo entre nós durante o período a que respeitam os factos em causa no presente litígio regras no direito interno para a regulação do modo como se poderia exercer a prática da autofacturação, sempre aqueles “procedimentos” teriam, pelo menos, de ser autorizados pela Administração Tributária, por aplicação das regras europeias, sob uma base casuística (i. e., a sua admissibilidade estava sempre subordinada a regras casuísticas impostas pela AT). E, como ficou provado nos autos, não existiu qualquer autorização expressa da Administração Tributária para o exercício da autofacturação neste caso, razão pela qual a prática adoptada pela Recorrente não constituiu um procedimento válido que permitisse o exercício, por esta, do direito à dedução. Acresce que não tem sentido falar neste caso em autorização tácita, pois haveria sempre de valer também aqui a regra de que o silêncio da Administração só tem valor positivo (i. e. só dá lugar a deferimento tácito), nos casos em que tal se encontre expressamente previsto na lei (A regra consta, actualmente, do artigo 130.º do CPA, mas figurava já no artigo 108.º do anterior CPA.).

E, por tudo quanto se disse, e por ser evidente que in casu a Recorrente nunca poderia ter beneficiado do direito à dedução com base num procedimento de autofacturação que não tivesse obtido da Administração Tributária a necessária autorização, como resulta expressamente da jurisprudência do TJUE sobre esta matéria, não se justifica a realização de qualquer reenvio prejudicial para aquela instituição do poder judicial europeu (o Tribunal de Justiça da União Europeia).

3.3. Da dispensa do remanescente da taxa de justiça

Por último, a Recorrente alega ainda que o Tribunal a quo utilizou um critério não previsto na lei – o da comparação da complexidade do caso com a “generalidade dos processos” – para fixar a dispensa do remanescente da taxa de justiça apenas na parte que excedia €400.000,00, em vez de dispensar a totalidade daquele valor na parte que excedia os €275.000,00, como admitia o artigo 6.º, n.º 7 do Regulamento de Custas Judiciais.

Ora, estipula-se no n.º 7 do mencionado artigo 6.º do Regulamento de Custas Judiciais que “[N]as causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”. Na decisão recorrida o Tribunal a quo entendeu que não poderia ser dispensada a totalidade do remanescente da taxa de justiça atendendo à complexidade da causa (é quanto a este ponto que se faz referência na decisão recorrida, correctamente, a um juízo comparativo com a “generalidade dos processos”).

Porém, e não obstante se concordar com o Tribunal recorrido quanto à circunstância de este não ser um processo com complexidade baixa, entendemos, com base num juízo de proporcionalidade entre o valor em causa e o serviço prestado, que se deve atender, em parte, ao peticionado pela Recorrente e, nessa medida, dispensar em 75% o remanescente da taxa de justiça.


Conclusões
Assim, podemos concluir, relativamente à questão em apreço, que:
- sendo verdade que o direito à dedução é uma das pedras angulares do IVA, não é menos verdade que a existência de instrumentos efectivos de controlo por parte das Administrações Fiscais aptos a combater a fraude e a evasão fiscal assume igual relevância para a boa administração do imposto;
- não existindo entre nós durante o período a que respeitam os factos em causa no presente litígio regras de direito interno para a regulação do modo como se poderia exercer a prática da autofacturação, sempre aqueles “procedimentos” teriam, pelo menos, de ser autorizados casuisticamente pela Administração Tributária, segundo o disposto nas regras europeias.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder parcialmente provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida no segmento relativo a custas e dispensando a Recorrente do remanescente da taxa de justiça em 75%.


Custas pela Recorrente [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário], com dispensa do remanescente da taxa de justiça em 75%.


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Lisboa, 6 de Maio de 2020. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.