Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0197/20.3BEALM
Data do Acordão:11/04/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULO ANTUNES
Descritores:PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
IVA
Sumário:A referência a “imposto legalmente repercutido a terceiros”, constante do n.º 2 do art. 196.º do CPPT, para efeitos de pagamento em prestações previsto nessa norma, inclui o IVA (cfr. art. 37.º do respectivo Código), nos casos em que o imposto em dívida foi efectivamente repercutido a terceiros (e já não naqueles em que o imposto liquidado e não entregue não foi repercutido).
Nº Convencional:JSTA000P26675
Nº do Documento:SA2202011040197/20
Data de Entrada:10/08/2020
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I. Relatório.

I.1. A Fazenda Pública vem interpor recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida a 16-7-2020 que, na reclamação apresentada nos termos dos artigos 276.º e segs. do C.P.P.T., anulou despacho proferido a 17-12-2019 pelo Chefe de Divisão da Justiça Tributária da Direção de Finanças de Setúbal, a indeferir pedido de pagamento em prestações efectuado no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2186-2019/01127624 e apensos, por A………………, Lda..
I.2. Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
I. Refira-se, desde logo, a existência do que se evidencia como lapso manifesto na Douta Sentença, quando conclui: “nenhum obstáculo existe a que a mesma esteja limitada ao pagamento prestacional em 24 prestações, devendo o despacho ser anulado”. Caso fosse efetivamente o Tribunal do entendimento de não existirem obstáculos à limitação a 24 prestações, então o Despacho dever-se-ia manter e a reclamação ser decidida por improcedente. No entanto, tendo em atenção toda a prévia fundamentação – que no fundo subscreve e reproduz Acórdão do STA -, a posição do Tribunal “a quo” vai precisamente no sentido da não limitação àquelas 24 prestações, razão pela qual decidiu pela procedência da Reclamação e ordenou a anulação do Despacho reclamado, decisão com a qual a Fazenda não se conforma;

II. Com todo o respeito devido, entende-se que a Douta Sentença fez errada aplicação do regime jurídico aos factos dados como assentes, vindo assentar a sua decisão final num duplo argumento interpretativo: argumento literal e argumento teleológico, mas nenhum deles apto a concluir como concluiu;

III. Em interpretação do disposto no n.º 2 do art.º 196.º do CPPT, e quanto ao elemento literal, defende o Tribunal “a quo” que, «caso a intenção do legislador fosse a de referir-se ao imposto susceptível de repercussão legal, por certo teria optado uma expressão verbal que melhor traduzisse essa intenção [cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)]: v.g., «o imposto legalmente repercutível», «o imposto cuja repercussão esteja legalmente prevista» ou outra de sentido equivalente.»;

IV. Veja-se, porém, que o legislador começa por referir “imposto retido na fonte”, para de seguida utilizar a expressão “legalmente repercutido a terceiros”. Assim, na mesma frase, utiliza o legislador duas diferentes expressões. Para a retenção na fonte “o imposto retido”. Para a repercussão do imposto, imposto “legalmente repercutido a terceiros”, e não o “imposto repercutido”. Pelo n.º 3 do art. 9.º do CC, ao qual a Sentença recorrida faz menção, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete seu pensamento em termos adequados”.

V. E não existem quaisquer dúvidas que o IVA é imposto legalmente repercutido, o que resulta logo do disposto no art.º 37.º do CIVA, sendo a repercussão intrínseca ao funcionamento do mesmo;

VI. Ao procurar o aplicador da Lei unir onde o legislador intencionalmente distinguiu, está necessariamente a fazer incorreta aplicação da norma. Teria feito uma correta análise do elemento literal caso o que estivesse inscrito na letra da norma fosse: “o imposto retido na fonte ou repercutido a terceiros”. Mas não é isso que lá está. Não remete, o legislador, para a efetiva repercussão (já o faz para a retenção), mas antes para o imposto em que existe repercussão legalmente fixada, pelo que independentemente de ter existido no caso;

VII. No mesmo erro interpretativo caiu o Tribunal quanto ao elemento teleológico quando, partindo de uma análise que se mostrou não ter adesão na letra da Lei vai procurar reforçar a conclusão a que chegou: «o que se pretende impedir é que o devedor do imposto que já o recebeu de terceiro, seja porque o repercutiu seja porque o reteve, se aproprie do respectivo montante, não o entregando de uma só vez e integralmente nos cofres do Estado, conduta que tem associado um desvalor que a lei pune como crime ou contra-ordenação [cfr. arts. 105.º e 114.º (RGIT)];

VIII. Com efeito, a Lei atribui tanto ou maior desvalor às situações em que existiu liquidação, dedução, repercussão, como nas situações em que nenhuma destas realidades se verificou. É assim porque também nos casos em que, não existindo liquidação, pelo que não há efetiva repercussão, estamos diante de uma ação tipificada quer criminal, quer contra ordenacionalmente. Veja-se, por exemplo, o disposto no n.º 1 do art.º 103.º do RGIT, segundo o qual, “Constituem fraude fiscal, punível com prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária (…)”;

IX. Também (e principalmente) a não repercussão do imposto acarreta distorções na mecânica do IVA e na concorrência entre as empresas. Para mais, a não liquidação e respetiva não repercussão do imposto concretiza-se, a maior das vezes, em atuação claramente demonstrativa de maior desvalor, concretizada muitas das vezes pelo recurso a meios ilícitos, pelo que seria sempre insólito terem estes casos tratamento favorecido em regime de pagamento prestacional na execução fiscal;

X. O IVA é imposto legalmente repercutido a terceiros. Caso o legislador, no n.º 2 do art.º 196.º do CPPT pretendesse apenas abranger os casos de efetiva repercussão não teria que constar expressão distinta da expressão utilizada na mesma frase para as retenções na fonte. Como na situação da retenção na fonte não ficou a constar legalmente retido na fonte, também para as situações do IVA bastaria ter ficado a expressão “repercutido a terceiros” caso o entendimento adotado fosse aquele que o Tribunal lhe atribui;

XI. Por outro lado, como ficou já decidido, entre outros, no Acórdão do STA, de 15.04.2015, proc.º 0331/15, não pode a Autoridade Tributária conceder moratórias de pagamento para além das legalmente permitidas – art.º 36.º da LGT e n.º 3 do art.º 85.º do CPPT, as quais são mesmo fundamento de responsabilidade tributária subsidiária. Também como concluiu já o mesmo STA, entre outros, em Douto aresto com data de 20.12.2011, emitido no proc.º 01074/11: “As dívidas resultantes da falta de entrega de imposto legalmente repercutido a terceiros, como é o caso do IVA, só excepcionalmente podem ser pagas em prestações, sendo, para isso, necessário que se demonstre dificuldade financeira excepcional do devedor e previsíveis consequências económicas gravosas. E esse pagamento só pode ser efectuado num máximo de 12 prestações mensais, não podendo o valor de qualquer delas ser inferior a uma unidade de conta no momento da autorização.” [atualmente 24 prestações];

XII. Estando em causa dívida de IVA, imposto legalmente repercutido a terceiros, está, no caso, legalmente impedido o seu pagamento prestacional em número superior a 24 prestações, não padecendo o Despacho reclamado de qualquer ilegalidade. Fez, o Tribunal recorrido, incorreta aplicação do direito, a qual teve por base uma errada interpretação quer do elemento literal – não distinguindo o que o legislador expressamente separou -, quer do elemento teológico – diferenciando desvalor de ação que o legislador não diferencia;

XIII. Ao decidir, como decidiu, incorreu o Tribunal em erro de julgamento de Direito, e violou o disposto no art.ºs 85.º e 196.º do CPPT e art.º 36.º da LGT.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V.as Ex.as se dignem:

. julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e em consequência ser a douta Sentença ora recorrida, declarada nula, ou revogada e substituída por douto Acórdão que julgue o pedido improcedente;

. decidir pela dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça a que houver lugar por aplicação da tabela I – B ao recurso, nos termos do disposto n.º 7 do art.º 6.º do RCP.

I.2. O recurso foi admitido com efeito suspensivo, não tendo sido produzidas contra-alegações.

I.3. Remetidos os autos ao S.T.A., o exm.º magistrado do Ministério Público teve “vista” dos mesmos, emitindo parecer em que concluiu no sentido do não provimento do recurso e de se confirmar integralmente a sentença recorrida.

I.4. É objecto do recurso o decidido na sentença recorrida quanto ao pagamento em prestações previsto no n.º 2 do art. 196.º do C.P.P.T. para as dívidas de imposto legalmente repercutido a terceiros, se referir exclusivamente ao imposto efectivamente repercutido de acordo com a lei, relativamente ao que a recorrente imputa erro de julgamento.
A recorrente defende um entendimento segundo o qual é de considerar abrangido pela referida disposição o imposto repercutido à face da lei, como é o caso do I.V.A., nos termos do art. 37.º do C.I.V.A..
A esse respeito imputa ainda violação do dito art. 196.º, bem como dos artigos 85.º do C.P.P.T. e 30.º da L.G.T..
E acaba ainda a pedir que a sentença proferida seja julgada nula ou revogada e concedida dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do n.º 7 do art.º 6.º do R.C.P..

I.5. É de conhecer do recurso, em conferência, com dispensa de vistos por parte dos exm.ºs Conselheiros adjuntos, pois trata-se de processo urgente, o que implica ser de dar prioridade sobre outros processos que não sejam da mesma espécie, nos termos previstos no art. 278.º n.º6 do C.P.P.T..

II. Fundamentação.

II.I. De facto.

Na sentença recorrida foi dada como provada a seguinte matéria de facto:

1. Contra a Reclamante correm no Serviço de Finanças da Moita os seguintes processos de execução fiscal:

- cfr. fls. 229-v e 230 dos autos;
2. A Reclamante foi sujeita a procedimento de inspecção tributária desenvolvido pelos serviços de inspecção tributária da Direcção de Finanças de Setúbal ao abrigo das ordens de serviço n.º OI201800471, OI201800472 e OI201800473 – cfr. fls. 399 dos autos, numeração SITAF;
3. No âmbito do procedimento inspectivo referido no ponto anterior foi elaborado Relatório de Inspecção Tributária [RIT], de onde se retira o seguinte excerto:
“(…)



(…)”

- cfr. fls. 399 dos autos, numeração SITAF;
4. Em resultado do procedimento inspectivo referido supra foram emitidas as liquidações de IVA que originaram as certidões de dívida em cobrança coerciva no processo de execução fiscal a que respeita o pedido de pagamento em prestações em apreciação – cfr. fls. 32 a 87 dos autos, facto que se extrai igualmente dos demais elementos documentais dos autos, nomeadamente o despacho reclamado;
5. A Reclamante dirigiu comunicação escrita dirigida ao Director de Finanças de Setúbal solicitando o pagamento da quantia exequenda de € 566.421,70, em 60 prestações mensais, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2186-2019/01127624 e apensos – cfr. fls. 217 a 232 dos autos;

6. Em 17 de Dezembro de 2019, o Chefe de Divisão da Justiça Tributária da Direcção de Finanças de Setúbal proferiu despacho a indeferir o pagamento em prestações solicitado pela Reclamante – cfr. fls. 229 dos autos;

7. O despacho de indeferimento referido no ponto anterior estribou-se na seguinte informação:

(…)” – cfr. fls. 229 a 233 dos autos.

II. 2. De direito.

Tal como se lê na sentença recorrida:
“Resulta do probatório que as liquidações de IVA em cobrança coerciva assentam em procedimento inspectivo que considerou que a Reclamante deveria ter apurado imposto com no regime geral e não no regime especial de tributação pela margem.
Procedendo, em consequência, ao apuramento dos valores de imposto que a Reclamante terá deixado de liquidar nas facturas emitidas.
Que não liquidou, bem ou mal para o caso não releva, mas que igualmente não repercutiu ao sues clientes, nos termos do artigo 37.º do Código do IVA”.

E conforme também mais se fundamentou de acordo com o acórdão do S.T.A. de 4-7-2018, proferido no recurso n.º 0580/18, acessível em www.dgsi.pt, a respeito do art. 196.º n.º 2 do C.P.P.T., também aqui se considera que, “(…) caso a intenção do legislador fosse a de referir-se ao imposto susceptível de repercussão legal, por certo teria optado uma expressão verbal que melhor traduzisse essa intenção [cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)]: v.g., «o imposto legalmente repercutível», «o imposto cuja repercussão esteja legalmente prevista» ou outra de sentido equivalente.

Por outro lado, (…) a utilização do particípio passado do verbo repercutir refere-se a «uma acção que já se encontra finalizada»; parece-nos inclusive que a noção de conclusão da acção verbal comportada pelo particípio passado se refere a um concreto acto, afastando a possibilidade de se referir à repercussão legal em abstracto.” E Interrogando-se sobre a teleologia da norma, expressou-se ainda que, “buscando apoio também no impedimento paralelo que existe relativamente ao imposto retido –, o que se pretende impedir é que o devedor do imposto que já o recebeu de terceiro, seja porque o repercutiu seja porque o reteve, se aproprie do respectivo montante, não o entregando de uma só vez e integralmente nos cofres do Estado, conduta que tem associado um desvalor que a lei pune como crime ou contra-ordenação [cfr. arts. 105.º e 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT)] (Neste sentido, LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária Anotado, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2000, pág. 202.).

A não ser assim, i.e., caso a lei autorizasse o pagamento em prestações do imposto repercutido a terceiros (ou do imposto retido) ao abrigo do regime geral de pagamento em prestações, estaria a permitir-se ao devedor do imposto financiar-se à custa do repercutido (contribuinte de facto) e da AT, com as consequentes distorções na mecânica do IVA e na concorrência entre as empresas. Por outro lado, admitir-se-ia que quem recebeu de terceiros a totalidade do imposto, com a obrigação de o entregar integralmente e de uma só vez, o entregasse faseadamente em igualdade de circunstâncias com quem tivesse de suportar ele mesmo o encargo com o imposto, numa solução que o legislador não pode ter querido.”

Nestes termos, e a tal não impedindo o disposto nos artigos 85.º do C.P.P.T. e 30.º da L.G.T., em que se prevê a impossibilidade de concessão de moratórias “fora dos casos previstos na lei” e a indisponibilidade dos créditos tributários em desrespeito dos “princípios da legalidade e da igualdade”, é de reiterar o entendimento tido no dito acórdão que incidiu sobre situação semelhante à presente.
Assim, concluímos também que “a lei apenas veda o recurso ao regime geral do pagamento das dívidas em prestações quando o imposto em cobrança coerciva tenha sido efectivamente repercutido a terceiro pelo devedor, nada obstando a que quando o não tenha sido, apesar da previsão legal o impor, o devedor usufrua daquele regime”.
De tal resulta que o recurso não merece provimento quanto ao pedido de ser declarada nula ou revogada a sentença recorrida.
Uma vez que a fundamentação acima utilizada assenta essencialmente no referido acórdão do S.T.A., o que torna a decisão a proferir de menor complexidade, e por, pese embora o presente recurso ter sido interposto posteriormente ao mesmo, não ser de considerar como um expediente dilatório, dispensa-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do n.º 7 do art. 6.º do R.C.P..
III. Decisão:
Nos termos expostos, os Juízes Conselheiros da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam em negar provimento ao recurso e confirmar o decidido na sentença recorrida.
Custas pela recorrente, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Lisboa, 4 de novembro de 2020. - Paulo José Rodrigues Antunes (relator) - Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.