Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0289/20.9BEALM
Data do Acordão:11/04/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:GARANTIA
DISPENSA DE PRESTAÇÃO DE GARANTIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
LEI GERAL TRIBUTÁRIA
Sumário:I - Invocando o executado a manifesta falta de meios económicos por insuficiência de bens penhoráveis susceptíveis de garantir a dívida exequenda e o acrescido, em ordem a obter a dispensa de prestação de garantia (cf. art. 52.º, n.º 4, da LGT), incumbe-lhe o ónus de alegar e demonstrar os factos susceptíveis de integrarem essa insuficiência, o que deve fazer com o requerimento de pedido, instruindo-o com a documentação pertinente (cf. art. 342.º do CC, art. 77.º, n.º 1, da LGT e art. 170.º, n.º 1, do CPPT).
II - Não pode considerar-se que o executado se desincumbiu desse ónus se, para além de não provar a invocada manifesta falta de meios económicos, a AT logrou demonstrar a existência de bens susceptíveis de serem dados em garantia.
III - Nessa circunstância, o indeferimento do pedido de dispensa de garantia não fica dependente de quaisquer diligências a efectuar oficiosamente pela AT ou de quaisquer esclarecimentos a solicitar ao executado, em ordem a estabelecer o valor desses bens.
Nº Convencional:JSTA000P26676
Nº do Documento:SA2202011040289/20
Data de Entrada:10/23/2020
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A.............., Lda.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de reclamação de actos do órgão de execução fiscal com o n.º 289/20.9BEALM

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, julgando procedente a reclamação deduzida ao abrigo do art. 276.º e segs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) pela sociedade acima identificada (adiante também denominada Executada, Requerente, Reclamante e Recorrida), anulou o acto do Chefe do Serviço de Finanças do Barreiro, que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia apresentado em processo de execução fiscal.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou a respectiva motivação, com conclusões do seguinte teor:

«I. Discorda-se da decisão de anulação do acto reclamado por, segundo o Tribunal, incorrer o mesmo em erro nos pressupostos, impondo-se à Autoridade Tributária uma actuação mais proactiva, “designadamente, na determinação da situação patrimonial concreta do interessado quando são alegados no pedido apresentado junto do órgão de execução fiscal os factos constitutivos do direito à isenção de prestação de garantia, tal como sucedeu in casu”, pois “optando a AT por indeferir logo o pedido (…) não foi dado cumprimento ao princípio da descoberta da verdade material, enquanto corolário do princípio do inquisitório, e que, no fundo, constituem pedras angulares do procedimento administrativo”;

II. No caso, como reconhece, o Tribunal, a Reclamante não instruiu “o pedido de dispensa de prestação de garantia com meios de prova quanto ao estado dos bens que possui e que integram o seu activo (imobilizado e existências), assim como quanto à inexistência de ónus sobre os mesmos (…)”. Entende-se, no entanto, mais. Entende-se que em nenhuma prova relevante sustentou a então Requerente o seu pedido;

III. Suporta-se, a Sentença, em Acórdão do TCA Sul de 24.01.2020, proc.º 460/19.6 BEALM (invocado pela reclamante na sua petição), no entanto, a realidade em análise nos presentes Autos não é bem a mesma subjacente à do Acórdão fundamento – enquanto ali a documentação apresentada e os dados em posse da Autoridade Tributária são em valor manifestamente inferiores ao da dívida exequenda, na presente situação a realidade é precisamente inversa;

IV. Pelo n.º 4 do art. 52.º da LGT, a Administração Tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido e desde que inexistindo fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado. E nos termos do disposto no n.º 3 do art. 170.º do CPPT, “o pedido a dirigir ao órgão de execução fiscal deve ser fundamentado de facto e de direito e instruído com a prova documental necessária”;

V. E como bem reconhecido pelo Tribunal “a quo”, é sobre o executado que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos para tal dispensa – art. 74.º n.º 1 da LGT e art. 342.º do Código Civil (CC). No caso isto não aconteceu. Não cumprindo a Requerente com o ónus da prova, nem pouco mais ou menos, entende, no entanto, o Tribunal que este passa a caber à Autoridade Tributária, vinculada ao princípio do Inquisitório;

VI. Mas não só nenhuma prova fez a então Requerente, quer da invocada insuficiência de bens, quer do prejuízo irreparável como, face ao montante em dívida e aos bens conhecidos – ainda que sempre dependentes de avaliação – não apenas entendeu a Autoridade Tributária não só não estar provada a insuficiência, como pelo contrário informou a executada de qual o procedimento que deveria seguir para oferecer garantia e mais esclareceu quanto ao facto de, “Estando, ainda, perante um estabelecimento comercial enquanto unidade jurídica, o mesmo também é passível de penhora, nos termos do artigo 782.º do CPC, sem que a mesma ponha em causa o seu normal funcionamento ou até ê a sua viabilidade e continuidade”;

VII. Ou seja, não apenas se verificou uma total ausência de prova das alegadas insuficiência de bens, bem como de verificação de prejuízo irreparável, como a Administração rebateu tais argumentos, considerando poder a dívida ser garantida e afastando qualquer prejuízo irreparável resultante da penhora do estabelecimento. Ficou, a ali Requerente, devidamente elucidada de quais os formalismos que deveria cumprir, e de que, nos termos do disposto na Lei o estabelecimento poderia continuar a laborar, ainda que penhorado;

VIII. Não pode o princípio do inquisitório servir para esvaziar a regra geral do ónus de prova a que a Requerente/Reclamante se encontra obrigada na presente situação. Muito menos para afastar a concretização de tal regra constante do no n.º 3 do art. 170.º do CPPT, pelo qual se exige à Requerente não apenas a fundamentação do pedido de facto e de direito, mas a instrução do mesmo com a prova documental necessária – o que manifestamente não foi feito;

IX. A seguir o entendimento que fez vencimento, bastará ao Requerente a mera alegação de inexistência de bens e verificação de prejuízo irreparável, competindo à Administração, ao abrigo do princípio do inquisitório, fazer a prova que, por enquanto, a lei exige ao Requerente;

X. O mesmo TCA Sul que emitiu o Acórdão fundamento da Sentença recorrida, em Acórdão de 25.06.2020, emitido no Proc.º 633/19.1BEALM, veio concluir: “III - Quer a dispensa de prestação da garantia assente na ocorrência de prejuízo irreparável, quer na manifesta falta de meios económicos do executado, é sobre o Requerente que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos para tal dispensa. IV - Por seu turno, compete à Administração Tributária a demonstração da existência de fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa do Requerente”;

XI. Podendo ler-se na respectiva fundamentação, “E nem se diga, como parece entender a Recorrente [cfr. conclusões y), z), aa)] que cabia à AT e/ou ao Tribunal substituírem-se à requerente e providenciar pelos elementos em falta, evidenciando inclusivamente a Requerente que “estavam ao seu (leia-se, da AT) alcance todos os elementos necessários à análise da situação da recorrente.” A este propósito, diremos que os poderes da AT e do Juiz não servem para colmatar a inércia ou a absoluta falta de diligência das partes, como aqui patentemente aconteceu, sob pena de se esvaziar, por completo, a obrigação das partes no cumprimento daquilo que a lei lhes impõe, no que, aliás, seria uma actuação de carácter absolutamente paternalista que entendemos não ser de acolher. De resto, nem sequer foram indicados os elementos/documentos em poder da AT, nem, patentemente, a AT está em condições de se substituir à parte para demonstrar se ela está impossibilitada de suportar uma garantia bancária ou um seguro-caução, conforme alegado”;

XII. Com efeito, no artigo 43.º da petição de Reclamação é referido que estavam ao alcance da Administração “todos os elementos necessários à análise da situação da reclamante, no domínio das informações imanentes de bancos, conservatórias e demais instituições”. O que resulta numa afirmação vazia acaba, a final, por ser precisamente o que o Tribunal “a quo”, ao decidir, como decidiu, vai impor à Autoridade Tributária, assim aparentemente obrigada a procurar informações imanentes;

XIII. Ao decidir, como decidiu, fez o Tribunal “a quo” uma errada aplicação do Direito, em violação do disposto nos arts. 52.º n.º 4 e 74.º n.º 1 da LGT, art. 342.º do CC, e n.º 3 do art. 170.º do CPPT.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V.as Ex.as se dignem julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e em consequência ser a douta Sentença ora recorrida, declarada nula, ou revogada e substituída por douto Acórdão que julgue o pedido improcedente».

1.3 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

1.4 A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença, com conclusões do seguinte teor:

«a) A jurisprudência invocada pela recorrente, vertida no Acórdão do TCA Sul de 25/06/2020, proferido no Recurso n.º 633/19.1BEALM, afigura-se inaplicável “in casu”, porquanto, não só foi proferida em face de factualidade distinta, como conduziria, pelo menos na interpretação extraída pela recorrente, salvo o devido respeito pela opinião contrária, à postergação de princípios informadores e basilares do procedimento tributário.

b) Como o são, o princípio do inquisitório, o princípio da descoberta da verdade material, da proporcionalidade e o próprio princípio da colaboração a que a AT está vinculada nas relações com os contribuintes.

c) De facto, a decisão de imediato indeferimento com base na falta de junção de prova, em especial tratando-se de factos negativos, sempre se revela, no caso, uma decisão desproporcionada (neste sentido, vide o Acórdão desse STA de 15/05/2013, tirado no Recurso n.º 0519/13, relatado pela Ilustre Conselheira Fernanda Maçãs).

d) Tanto mais que quanto às exigências do requerimento de dispensa de prestação de garantia o art. 170.º, n.º 3, do CPPT limita-se a referir de forma vaga que o pedido deve conter a “fundamentação de facto e de direito” e ser “instruído com a prova documental necessária (neste sentido, vide, ainda o Acórdão desse STA de 15/05/2013, tirado no Recurso n.º 0519/13).

e) Acresce que, não se vislumbra quais os interesses que possam justificar a inexistência sequer de um convite para o executado juntar meios de prova em dois ou três dias (neste sentido, vide, ainda o Acórdão desse STA de 15/05/2013, tirado no Recurso n.º 0519/13). E,

f) Sendo que a justiça material deve prevalecer sobre a justiça formal, caberia à AT convidar a recorrida a suprir a omissão da prova dos factos alegados, e assim se obviaria a que uma omissão de natureza meramente procedimental conduzisse de imediato ao que veio a constituir uma denegação quase automática e cega do requerimento da recorrida, obrigando-a a recorrer ao Tribunal, o que poderia ser evitado (neste sentido, vide, ainda o Acórdão desse STA de 15/05/2013, tirado no Recurso n.º 0519/13).

g) Para além de que, no mesmo sentido milita o dever de colaboração que deve mediar as relações entre os sujeitos do procedimento, sendo que a desproporção entre a irregularidade cometida pela recorrida (não juntar os documentos sobre os factos alegados) e a consequência que lhe é associada pela AT é manifesta, não se revelando adequada nem proporcional, (neste sentido, vide, ainda, o Acórdão desse STA de 15/05/2013, tirado no Recurso n.º 0519/13).

h) Jurisprudência, que cabe referir, amplamente aplicável nos presentes autos, porquanto, não obstante no Acórdão citado estar em causa um caso de renovação de uma dispensa de garantia já concedida, no Acórdão desse STA de 26/09/2012, tirado no Recurso n.º 0708/12, onde foi proferido o voto de vencido para que aquele remete, estava em causa um pedido de dispensa de garantia.

i) De facto, o que na verdade se impõe responder é se a falta de instrução do incidente de dispensa da prestação de garantia, para efeitos de suspensão da execução fiscal, tem como efeito imediato o indeferimento do pedido por falta de prova dos pressupostos previstos no n.º 4 do artigo 52.º da LGT,

j) Sendo que, atenta a redacção do n.º 3 do artigo 170.º do CPPT, de onde não resulta quais as consequências do incumprimento ou cumprimento defeituoso do ónus de instrução desse incidente, tal resposta só pode ser negativa (neste sentido, vide, o voto de vencido do Ilustre Conselheiro Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro, proferido no já citado Acórdão desse STA de 26/09/2012, tirado no Recurso n.º 0708/12).

k) Antes se impondo ao órgão de execução, diligências no sentido do suprimento da irregularidade, “convidando” o requerente a instruir o pedido ou, caso disponha dos elementos sobre a situação económica do executado, juntá-los ao incidente e decidir em função deles (neste sentido, vide, ainda, o voto de vencido do Ilustre Conselheiro Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro, proferido no Acórdão desse STA de 26/09/2012, tirado no Recurso n.º 0708/12).

l) A tal obriga a constatação de que, na compatibilidade entre o princípio da auto-responsabilidade das partes, concretizado no ónus de instrução do requerimento, com o princípio da colaboração, tem preponderância este último, dada a dificuldade que o executado pode ter em apresentar prova de factos negativos em tão pouco tempo, (neste sentido, vide, ainda, o voto de vencido do Ilustre Conselheiro Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro, proferido no Acórdão desse STA de 26/09/2012, tirado no Recurso n.º 0708/12).

m) Mais, aplicando supletivamente as regras do processo civil, chega-se à conclusão que o órgão de execução fiscal não pode ficar indiferente à ausência de instrução do incidente e avançar logo para a aplicação das regras do ónus da prova, impondo-se, antes, uma atitude “pro actione” que possibilite, na medida do possível, a prova dos factos alegados, (neste sentido, vide, ainda, o voto de vencido do Ilustre Conselheiro Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro, proferido no Acórdão desse STA de 26/09/2012, tirado no Recurso n.º 0708/12).

n) Pelo que, por todo o exposto, antes de indeferir o requerimento com fundamento no ónus da prova, impunha-se que a AT verificasse os elementos que detinha em seu poder e, em caso de dúvida, solicitasse à recorrida que instruísse o respectivo pedido com os documentos em falta (neste sentido, vide, ainda, o voto de vencido do Ilustre Conselheiro Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro, proferido no Acórdão desse STA de 26/09/2012, tirado no Recurso n.º 0708/12).

o) Tanto mais, que no despacho na génese dos presentes autos, se admite que a AT desconhece, por falta de elementos, se a ora recorrida tem meios para prestar garantia.

p) No entanto, não solicitou a AT quaisquer elementos adicionais, que entendesse necessários à decisão, limitando-se a indeferir o pedido.

q) O que lhe cabia fazer ao abrigo do princípio do inquisitório, do dever de colaboração e de cooperação recíprocas com o contribuinte, solicitando a este o esclarecimento de dúvidas e os elementos de prova adicionais ou complementares a seu ver necessários para poder formular um juízo fundado sobre a alegada situação de insuficiência, pelo que o não fazendo, optando por indeferir logo o pedido, o acto reclamado incorreu em erro nos pressupostos, vício determinante da sua anulação” (neste sentido, vide, o recente Acórdão do TCA Sul de 24/01/2020, tirado no Recurso n.º 460/19.6BEALM).

r) Não se pode ainda deixar de referir, que a busca da verdade material não permite a omissão das restantes partes, intervenientes no processo, não se bastando com o alcançar de uma verdade formal, exigindo antes, que se arrede o primado do princípio do dispositivo, ao menos temperando-o com o inquisitório.

s) Ora se o juiz, no percurso para atingir a verdade material pode e deve investigar os fatos, sem subordinação às provas apresentadas ou requeridas pelas partes, é impróprio falar-se de um ónus subjectivo da prova (neste sentido, vide, o Acórdão desse STA, de 7/05/2003, proferido no Recurso n.º 1026/02).

t) Ora, no sentido do Acórdão citado no ponto anterior, resulta evidente que cabe também, como forma de responder à questão da falta de provas da falta de capacidade financeira e/ou da existência ou não de bens suficientes, que a AT faça o que lhe compete, ao contrário do peticionado pela recorrente.

u) Estavam ao seu alcance todos os elementos necessários à análise da situação da ora recorrida, no domínio das informações imanentes de bancos, conservatórias e demais instituições, mediante os poderes que são conferidos à AT, no acesso a todos os dados.

v) Bem como, estavam ao seu dispor os elementos e documentos em poder da recorrida que a AT tivesse por necessários.

w) Mais, sendo que os despachos de indeferimento de pedido de isenção de prestação de garantia não são precedidos de audição prévia, o princípio do inquisitório e o dever de colaboração devem assumir uma dimensão com maior significado e alcance, tal como foi decidido na douta Sentença recorrida, que também nesta parte, não merece qualquer censura. x) Ora, a entender que os elementos apresentados não eram suficientes, deveria a AT ter solicitado os elementos adicionais que julgasse necessários à apreciação do pedido, incluindo junto da ora recorrida, contribuindo assim para a descoberta da verdade material.

y) Pelo que, optando a AT por indeferir logo o pedido, o despacho que indeferiu a peticionada dispensa de garantia, incorreu em erro nos pressupostos, vício determinante da sua anulação, na senda da jurisprudência que emana dos acima citados Acórdãos, desse STA de 15/05/2013, tirado no Recurso n.º 0519/13 e do TCA Sul de 24/01/2020, tirado no Recurso n.º 460/19.6BEALM.

z) Assim, por todo o exposto, a douta Sentença recorrida ao julgar a reclamação procedente, por provada, e, em consequência, ter determinado a anulação do acto reclamado preconizou uma adequada interpretação das normas jurídicas aplicáveis, não merecendo qualquer censura, devendo assim, permanecer na ordem jurídica,

Nestes termos, atentos os fundamentos expendidos, nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o recurso interposto pela Fazenda Pública ser julgado improcedente, pelas razões expendidas, e em consequência, mantida a douta Sentença do Tribunal “a quo”, na ordem jurídica, com todas as consequências legais daí advindas».

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso, revogada a sentença recorrida e julgada improcedente a reclamação apresentada ao abrigo do art. 276.º do CPPT. Isto, após enunciar os termos do recurso e da sentença recorrida, com a seguinte fundamentação: «[…]

A questão que se coloca consiste em saber se a sentença padece do erro de julgamento por violação do disposto nos artigos 52.º, n.º 4, e 74.º, n.º 1, da LGT, 342.º do Código Civil, e n.º 3 do artigo 170.º do CPPT, na apreciação que fez da decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia.
Decorre da sentença recorrida que a executada e aqui recorrida apresentou, em 2/01/2020, um pedido de suspensão da execução fiscal, no âmbito do qual peticionou igualmente a dispensa de prestação de garantia, tendo para o efeito junto documentos contabilísticos relativos ao exercício de 2019 para comprovar a sua situação económico-financeira (ponto D) do probatório).
Sobre os termos em que foi peticionado o pedido de dispensa de prestação de garantia a sentença é omissa, mas atendendo ao que consta da decisão de indeferimento desse pedido resulta que no mesmo a executada terá alegado não possuir bens suficientes para garantir a dívida exequenda.
Mais resulta que a AT indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia com o fundamento de que a executada possuía bens sobre os quais podiam ser constituídas garantias reais, designadamente uma viatura automóvel e o estabelecimento comercial.
Para o tribunal “a quo” a decisão de indeferimento é ilegal, por violação dos princípios do inquisitório e da boa cooperação entre administração e contribuinte, já que se impunha, previamente à decisão, o esclarecimento sobre o real valor dos bens, o que podia ser feito mediante solicitações à executada ou diligências da própria Administração Tributária.
Na formulação de tal juízo considerou o tribunal “a quo” que a AT assentou a sua decisão de indeferimento na “ausência de prova por parte da executada sobre o estado dos bens que integram o seu activo, assim como quanto à inexistência de ónus sobre os mesmos”.
Afigura-se-nos, contudo, e salvo o devido respeito, que a leitura da decisão de indeferimento feita na sentença recorrida não é mais correta.
Na verdade, o que resulta da decisão de indeferimento é que a mesma tem como suporte fundamentador a falta de prova por parte da executada de uma situação de “insuficiência de bens”, reveladora de “manifesta falta de meios económicos”, que lhe permitam garantir a dívida exequenda, nos termos do n.º 4 do artigo 52.º da LGT.
Dispõe este preceito legal que a dispensa de prestação de garantia pode ser concedida nos casos de «…manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido».
Ora, na decisão de indeferimento desse pedido o que a AT contesta é que se verifique essa situação de “manifesta falta de meios económicos”, uma vez que no seu entendimento a executada pode oferecer como garantia o penhor do seu estabelecimento comercial e de uma viatura automóvel, ainda que não esteja na posse de melhores elementos sobre o seu real valor ou ónus. Ou seja, não foi a falta de elementos sobre os concretos valores de tais bens e respectivos ónus que levaram a AT a indeferir o pedido de dispensa de prestação de garantia, mas tão só a existência de tais bens.
É certo que na decisão de indeferimento se alude à falta de tais elementos, mas para vincar que a decisão sobre a suficiência ou insuficiência da garantia que for prestada com o penhor constituído sobre tais bens é que fica dependente de tais elementos, o que a nosso ver e salvo melhor opinião é substancialmente diverso (para além de que nada obsta a que a AT aceite garantias constituídas sobre os bens existentes e conceda a dispensa de prestação de garantia em relação a parte da dívida exequenda).
Questão igualmente diversa é a de saber se a titularidade de tais bens é por si só suficiente para indeferir o pedido de dispensa de prestação de garantia com base na falta de prova do requisito de “manifesta falta de meios económicos”.
Ou por outras palavras, se a titularidade de tais bens não é revelador da insuficiência de bens penhoráveis que consubstancie o conceito de “manifesta falta de meios económicos” previsto no citado normativo.
Nos autos está em causa a cobrança de dívida exequenda no valor de € 45.589,55 euros, ao qual terá que ser acrescido o valor provável das custas para efeitos de constituição de garantia. Segundo a AT a executada limitou-se a invocar no seu requerimento que os bens que possuía mostravam-se insuficientes para garantir o pagamento da dívida. Já outro tanto entendeu a AT, realçando o valor das existências, cujo saldo contabilizado é de cerca de 100.000 euros.
Ora, ainda que se esteja perante mercadorias que se destinam à venda, nada obsta a que se possa constituir uma garantia real (penhor) sobre as mesmas ou sobre o estabelecimento comercial, pelo que não pode concluir-se que a executada esteja perante uma manifesta falta de meios económicos.
Assim sendo e uma vez que a executada não adiantou quaisquer outros elementos para justificar a dispensa de prestação de garantia, afigura-se-nos que bem andou a Administração Tributária ao indeferir o respectivo pedido nos termos em que foi feito.
Entendemos, assim, que a sentença recorrida padece do vício que lhe é assacado pela Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua revogação, e em substituição se julgue improcedente a reclamação apresentada ao abrigo do artigo 276.º do CPPT».

1.6 Cumpre apreciar e decidir, sendo a questão a dirimir a de saber se o Tribunal a quo fez correcto julgamento quando considerou que o órgão da execução fiscal não podia indeferir o pedido de dispensa de prestação de garantia.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

«A. Em 6.1.2020, foi instaurado em nome da Reclamante pelo Serviço de Finanças do Barreiro o PEF n.º 2160202001000721, para cobrança coerciva de dívida de Imposto sobre o Valor Acrescentado («IVA»), no montante de € 36.735,30 – facto não controvertido, que se extrai de fls. 13 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida;

B. Em 16.1.2020, o Serviço de Finanças do Barreiro remeteu para a Reclamante «CITAÇÃO PESSOAL» no âmbito do PEF n.º 2160202001000721 – cf. fls. 22 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida;

C. Em 31.1.2020, foi instaurado em nome da Reclamante pelo Serviço de Finanças do Barreiro o PEF n.º 2160202001017233, para cobrança coerciva de dívida de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas («IRC»), no montante de € 8.854,25 – facto não controvertido, que se extrai de fls. 13 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida;

D. Em 22.1.2020, a Reclamante apresentou articulado junto do Serviço de Finanças do Barreiro no qual requereu «a suspensão dos processos de execução fiscal» referidos nos pontos A. e C. supra, solicitando a dispensa de prestação de garantia, tendo junto «Certidão de dívida», «Demonstração de acerto de contas» e «Balancete de Novembro de 2019» - facto não controvertido, que se extrai de fls. 19 a 21 dos autos e da «Informação» a fls. 18 dos presentes autos, que se dão por integralmente reproduzidas;

E. Em 10.2.2020, foi elaborada «Informação» por técnico da Direcção de Finanças de Setúbal relativamente ao pedido de dispensa de prestação de garantia efectuado no articulado referido no ponto antecedente, na qual, além do mais, consta o seguinte:
«II- DA ANÁLISE
A- DO PROCEDIMENTO DE RECLAMAÇÃO GRACIOSA

Nos termos do n.º 1 do art. 70.º do CPPT a reclamação graciosa deve ser “... apresentada no prazo de 120 dias contados a partir dos factos previstos no n.º 1 do art. 102.º do CPPT”.
A executada foi notificada para o pagamento da liquidação de IVA cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 26-12-2019, e para o pagamento da liquidação de IRC cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 02-01-2020.
Nos termos da alínea a) do art. 102.º do CPPT, “A impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos seguintes:
a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte; ...
O executado indicou que pretende deduzir reclamação graciosa das liquidações de IVA e IRC, verificando- se, da consulta às aplicações informáticas da AT, que já o efectuou em 21-01-2020, tendo sido atribuídos os n.ºs 2160202004000080 (IVA) e 2160202004000064 (IRC), às respectivas reclamações graciosas.

B- DA APRESENTAÇÃO DE GARANTIA COM VISTA À SUSPENSÃO DO PROCESSO

A suspensão da execução fiscal exige a prestação de garantia ou a realização de penhora que garanta a totalidade da dívida exequenda e do acrescido, nos termos das disposições legais previstas no artigo 52.º n.ºs 1 e 2 da LGT e artigo 199.º n.ºs 1, 2 e 6, ambos do CPPT.
No entanto, nos termos conjugados dos n.ºs 1 e 4 do artigo 52.º da LGT e do n.º 3 do artigo 199.º do CPPT, a administração tributária pode dispensar o executado da apresentação de garantia se:
·A prestação de garantia for causa de um prejuízo irreparável para o executado, o que ocorre quando em resultado dos encargos financeiros impostos pela prestação da garantia deixa de fazer face aos compromissos financeiros de que depende a manutenção e desenvolvimento da sua actividade económica;
·A prestação de garantia for causa da manifesta falta de meios económicos, revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para pagamento da dívida exequenda e acrescido; e,
·desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado [n.º 4 do artigo 52.º da LGT alteração introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro (Lei do OE)].
Vejamos, então.
Compete ao executado no requerimento em que solicita a dispensa de garantia, provar que a prestação da mesma lhe causa prejuízo irreparável ou existe manifesta falta de meios económicos revelados pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, pois trata-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido (Cfr. artigo 342.º do C.C., n.º 1 do artigo 74.º da LGT e n.º 3 do artigo 170.º do CPPT).
No caso em apreço, a executada, alega como factores justificativos para a dispensa da prestação de garantia:
·Não possuir bens móveis ou imóveis;
·Não ter possibilidades de obter garantia bancária ou seguro-caução;
·Possuir inventários em stock que se destinam à venda, no âmbito da sua actividade, não tendo estes valor suficiente para garantir a divida;
·Apenas possui, como bem passível de penhora, o estabelecimento comercial, não tendo no entanto valor suficiente para garantir a dívida.
B.1- Bens Imóveis
Por consulta ao sistema informático disponível para a AT, nomeadamente o Imposto Municipal sobre Imóveis, verifica-se não existirem quaisquer imóveis registados em nome da executada.
B.2 - Bens Móveis - Veículos Automóveis
Verifica-se, também, por consulta ao sistema informático do Cadastro de Veículos Nacional, a existência de um veículo automóvel registado em nome da executada, conforme se descrimina de seguida:
·Veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca JAGUAR LAND ROVER LIMITED, modelo IV, com a matrícula ………, de 2015-08-14;
Relativamente ao mesmo poderá ser admitida a constituição de hipoteca voluntária a fim da sua consideração como garantia no Processo de Execução Fiscal, desconhecendo-se, no entanto, o seu estado de conservação, qual o seu valor e a existência ou não de ónus sobre o mesmo.
B.3 - Garantia Bancária ou Seguro Caução
A executada não apresenta qualquer prova documental da impossibilidade de obtenção de garantia bancária ou seguro caução.
B.4 - Bens Móveis - inventários em Stock
Da leitura do balancete geral enviado pela executada, verifica-se ainda a existência de saldo no montante de € 105.088,73 registado na conta "Mercadorias - Existências", sendo que, um dos aspectos a ter em consideração, para efeitos de consideração dos mesmos como garantia idónea para efeitos de suspensão dos Processos de Execução Fiscal, é qual o valor a atribuir.
Outro aspecto a ter em consideração é a sua existência e estado de conservação.
Por último, e a fim de se poder estar perante uma garantia idónea para satisfação do crédito tributário os mesmos deverão ser objecto de contrato de penhor celebrado sob a forma escrita.
Pelo que a executada, caso pretenda apresentar estes bens como garantia nos PEF's em análise, deverá apresentar contrato unilateral de penhor identificando os bens que pretende oferecer em garantia, respectivo valor e localização.
Face ao exposto e verificadas as condições atrás mencionadas, os bens constantes dos inventários da sociedade poderão ser aceites como garantia idónea apenas no caso de apresentação do contrato unilateral de penhor outorgado pela executada nos termos referidos, e somente após aceitação do mesmo por parte da Autoridade Tributária, mediante verificação da existência e do estado de conservação dos mesmos.
B.5 - Bens Móveis - Estabelecimento Comercial
Estando, ainda, perante um estabelecimento comercial enquanto unidade jurídica, o mesmo também é passível de penhora, nos termos do artigo 782.º do CPC, sem que a mesma ponha em causa o seu normal funcionamento ou até a sua viabilidade e continuidade,
Assim sendo, não podemos considerar que estejam preenchidos os pressupostos para ser autorizada a dispensa de garantia, nos termos do n.º 4 do artigo 52.º da LGT.

III - CONCLUSÃO

Pelo exposto e quanto ao pedido de apreciação da dispensa de prestação de garantia com vista à suspensão do processo de execução fiscal n.º 2160202001000721 e 2160202001017233, nos termos do n.º 3 do artigo 170 do CPPT, conjugado com o n.º 4 do artigo 52.º da LGT, e salvo melhor opinião, propõe-se o indeferimento do pedido de dispensa de garantia, por não se provarem os pressupostos para a sua autorização.
É competente para a apreciação do presente pedido de dispensa de prestação de garantia o Chefe do Serviço de Finanças do Barreiro nos termos do despacho n.º 1953/2018, de 2 de Janeiro, publicada no D.R. n.º 39 de 23 de Fevereiro de 2108, de delegação de competências da Sr.ª Directora da Direcção de Finanças, o qual solicitou parecer a esta Direcção de Finanças a fim de ser apreciada a pretensão da executada atendendo às instruções do e-mail da Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários (DSGCT) de 2012.03.16»
– cf. fls. 13 a 15 dos autos, que se dão por integralmente reproduzidas;

F. Em 26.2.2020, a Directora da Direcção de Finanças de Setúbal exarou o seguinte «Despacho» sobre a «Informação» referida no ponto que antecede: «Concordo. Proceda-se como proposto.» - cf. fls. 12 (verso) dos autos, que se dá por integralmente reproduzida;

G. Através do ofício n.º 607, de 17.3.2020, o Serviço de Finanças do Barreiro remeteu para a Reclamante o «Despacho» proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças relativamente ao pedido de dispensa de prestação de garantia referido no ponto D. supra, no qual, além do mais, consta o seguinte:
«Assunto: EXECUÇÃO FISCAL - DISPENSA DE PRESTAÇÃO DE GARANTIA
Exm.º Sr.:
No seguimento do requerimento apresentado nestes Serviços para efeitos de dispensa de prestação de garantia nos termos do art. 170.º n.º 3 do CPPT e n.º 1, 4 e 5 do art. 52.º da LGT, fica por este meio notificado, na qualidade de mandatário de A……………….. LDA, do teor do despacho exarado pelo Chefe do Serviço de Finanças, que se transcreve:
"No âmbito dos PEF’S 2160202001000721 e 2160202001017233 foi requerida a dispensa de prestação de garantia nos termos do art. 170.º n.º 3 do CPPT e n.º 1,4 e 5 do art. 52.º da LGT dada a pretensão de deduzir reclamação graciosa contra os actos de liquidação das dívidas em cobrança coerciva.
Tal pretensão foi analisada pela informação EGDE-22/2020 de 26/02/2020 da D.F. de Setúbal, sancionada pela Exm.ª Sr.ª Directora de Finanças, sendo de parecer pelo indeferimento do requerido.
Nestes termos, por força do art. 77.º n.º 1 da LGT a decisão poderá consistir em adesão às razões de facto e de direito constantes do parecer referido passando o mesmo a fazer parte integrante da mesma decisão, pelo que, concordando com a sua análise e conclusão indefiro o pedido»
– cf. fls. 12 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida;

H. Em 7.5.2020, a presente reclamação foi autuada junto deste Tribunal – cf. informação de fls. 1 dos autos».

2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

2.2.1.1 A sociedade ora Recorrida, pretendendo a suspensão das execuções fiscais em virtude da dedução de reclamação graciosa contra as liquidações que deram origem às dívidas exequendas, apresentou pedido de dispensa da prestação de garantia em execução fiscal a correr termos pelo Serviço de Finanças do Barreiro com fundamento na «inexistência de bens penhoráveis» ou, pelo menos, a sua manifesta insuficiência para garantia a dívida exequenda e o acrescido e também porque «não foi por culpa sua que as dívidas surgiram, nem por sua culpa que [se] revela manifesta a falta de meios económicos para garantir a dívida em causa e acrescido», concluiu que «[e]stão [… ] reunidas as condições para que a dispensa de prestação de garantia seja concedida» e, «para afastar a concessão da dispensa de prestação de garantia, seria necessária a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado», «[o] que manifestamente não aconteceu».
Instruiu o pedido com três documentos: certidão das dívidas exequendas, demonstração de acerto de contas efectuado pela AT e Balancete de Novembro de 2019, sendo que apenas este último pode considerar-se pertinente em ordem à prova dos factos por ela alegados (Os demais respeitam ao montante da dívida exequenda, relativamente ao qual a Executada está dispensada de qualquer prova.)).

2.2.1.2 O pedido foi indeferido com a fundamentação que consta da informação transcrita em E. dos factos provados, que foi apropriada pelo Chefe do Serviço de Finanças do Barreiro. Ou seja, foi indeferido com o fundamento de que à Executada, que pretendia ser dispensada da prestação de garantia por manifesta falta de meios económicos, cumpria alegar e provar os factos constitutivos do respectivo direito, como resulta do disposto no art. 342.º do Código Civil (CC), do art. 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT) e do art. 170.º do CPPT, sendo que a mesma não logrou a demonstração da inexistência ou insuficiência de bens, requerida pelo n.º 4 do art. 52.º da LGT, tanto mais que omitiu que tem um veículo automóvel, sobre o qual podem ser constituídas garantias reais, do balancete apresentado resulta a existência de mercadoria no valor de € 105.088,73, susceptível de ser objecto de penhor e o estabelecimento comercial é susceptível de penhora, sem que ponha em causa a actividade da Executada.
Em síntese, a AT indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia com o fundamento de que a Executada não demonstrou a invocada manifesta falta de meios económicos por inexistência ou insuficiência de bens (cf. art. 52.º, n.º 4, da LGT), pois possuía bens sobre os quais podiam ser constituídas garantias, designadamente, o seu stock de mercadorias e, estes sem pôr em causa a continuação da sua actividade, uma viatura automóvel e o estabelecimento comercial.

2.2.1.3 Inconformada com essa decisão, a Executada dela reclamou para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
Para além de vir, em sede de reclamação pela primeira vez, invocar o prejuízo irreparável que lhe adviria da prestação de garantia, sustentou a Reclamante, ora Recorrida, em síntese, que a decisão que lhe indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia é ilegal, por violação dos princípios do inquisitório e da cooperação que recaem sobre a AT. A seu ver, estes princípios impunham que o órgão da execução fiscal, previamente à decisão, tivesse esclarecido o real valor dos bens, o que podia ser feito quer mediante solicitação à Executada, quer mediante diligências oficiosas, tanto mais que «estavam ao seu alcance todos os elementos necessários à análise da situação da reclamante, no domínio das informações imanentes de bancos, conservatórias e demais instituições»; se entendia que «os elementos apresentados não eram suficientes, deveria a AT ter solicitado os elementos adicionais que julgasse necessários à apreciação do pedido, incluindo junto da ora reclamante, contribuindo assim para a descoberta da verdade material», tanto mais que, porque «os despachos de indeferimento do pedido de isenção de prestação de garantia não são precedidos de audição prévia, o princípio do inquisitório e o dever de colaboração devem assumir uma dimensão com maior significado e alcance».
Por isso, essencialmente, a Reclamante pediu a anulação do despacho reclamado.

2.2.1.4 A sentença julgou a reclamação procedente.
Começou o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada por referir que é sobre o executado que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos para a dispensa da garantia, quer esta se funde na circunstância de a prestação de garantia causar prejuízo irreparável, quer se funde na verificação de manifesta falta de meios económicos revelada pela inexistência ou insuficiência de bens penhoráveis (cfr. arts. 52.º, n.º 4 e 74.º, n.º 1, da LGT, e art. 342.º do CC), cabendo, neste último caso, à AT a demonstração da existência de fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa do executado (cf. art. 52.º, n.º 4, da LGT).
No entanto, apesar desse reconhecimento de que recai sobre o executado o ónus de demonstrar a falta de meios económicos invocada como fundamento do pedido de dispensa de prestação da garantia, considerou que o princípio do inquisitório, consagrado no art. 58.º da LGT, impunha ao órgão da execução fiscal a realização de todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, como suporte da decisão a proferir e que «a circunstância de o ónus de prova de um determinado facto recair sobre o contribuinte não desonera a Administração de realizar oficiosamente as diligências necessárias e adequadas ao apuramento da verdade material, não podendo, pois, a Administração fazer-se valer das regras do ónus da prova para não realizar determinadas diligências probatórias», o que não significa «que os sujeitos passivos fiquem desonerados de requerer diligências e/ou carrear elementos que considerem necessários para o referido apuramento da verdade material, sendo certo que as pessoas ou entidades inspeccionadas também se encontram obrigadas a colaborar no âmbito do procedimento tributário».
Assim, entendeu o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que «[e]mbora a Reclamante não tenha instruído o pedido de dispensa de prestação de garantia com meios de prova quanto ao estado dos bens que possui e que integram o seu activo (imobilizado e existências), assim como quanto à inexistência de ónus sobre os mesmos, e tendo essa ausência de prova sido decisiva para a prolação de decisão de indeferimento, tal como resulta do teor do acto impugnado (cf. pontos E., F. e G. dos factos provados), a verdade é que a AT deve realizar as diligências instrutórias necessárias à descoberta da verdade material, nos termos do artigo 58.º da LGT».
Entendeu ainda que «sendo actualmente pacífico que no âmbito do procedimento de dispensa de prestação de garantia não há lugar a audição prévia do interessado (cf., por todos, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26.9.2012, proferido no processo n.º 708/12, disponível em www.dgsi.pt), a aplicação prática dos acima referidos princípios deve ser enquadrada com maior rigor, no sentido de impor à AT uma actuação mais proactiva, designadamente, na determinação da situação patrimonial concreta do interessado quando são alegados no pedido apresentado junto do órgão de execução fiscal os factos constitutivos do direito à isenção de prestação de garantia, tal como sucedeu in casu».
Mais entendeu que, «optando a AT por indeferir logo o pedido, verificamos que não foi dado cumprimento ao princípio da descoberta da verdade material, enquanto corolário do princípio do inquisitório, e que, no fundo, constituem pedras angulares do procedimento administrativo tributário».
Por isso, anulou o acto reclamado.

2.2.1.5 A Fazenda Pública discorda da sentença e, se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, com a seguinte argumentação: a Executada não alegou nem provou, como lhe competia, matéria de facto suficiente para permitir a conclusão de que deve ser dispensada da prestação de garantia por manifesta falta de meios económicos; não pode pôr-se a cargo da AT o ónus de indagar da existência dessa factualidade, por força do princípio do inquisitório que sobre ela recai, nem de diligenciar em ordem à sua prova; dos autos resulta, não só que a Executada não logrou demonstrar a invocada falta de meios económicos, como resulta também que a AT logrou demonstrar a existência de bens que poderiam servir o desígnio da prestação de garantia, ainda que admita que, para esse efeito, fosse necessário efectuar algumas diligências complementares.
Por isso, a sentença não pode manter-se na ordem jurídica.

2.2.1.6 Tendo presente este enquadramento, a questão que ora cumpre apreciar e decidir é a de saber se o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada decidiu correctamente quando considerou que o órgão da execução fiscal não podia indeferir o pedido de dispensa de prestação de garantia sem, antes, ter efectuado diligências no sentido de estabelecer e comprovar os factos que pudessem integrar a conclusão de insuficiência de bens penhoráveis para assegurar o pagamento da dívida exequenda e do acrescido, quer mediante a solicitação à Executada, quer oficiosamente junto das entidades competentes.
A questão que se coloca consiste, pois, em saber se a sentença padece do invocado erro de julgamento por violação do disposto no art. 52.º, n.º 4, da LGT, no art. 342.º do CC, e no n.º 3 do art. 170.º do CPPT, na apreciação que fez da decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia.

2.2.2 DO PEDIDO DE DISPENSA DE PRESTAÇÃO DE GARANTIA

2.2.2.1 A execução fiscal visa a cobrança coerciva das dívidas elencadas no art. 148.º do CPPT. É um processo de natureza judicial, como decorre expressamente do n.º 1 do art. 103.º da LGT, sem prejuízo de ser instaurada e se desenvolver perante órgãos da AT, que nela praticam os actos de natureza não jurisdicional que couberem, tudo nos termos dos arts. 10.º, n.º 1, alínea f), 149.º, 150.º e 151.º do CPPT. Entre tais actos incluem-se os concernentes à prestação de garantia, quando a ela houver lugar, e às respectivas vicissitudes: apreciação da suficiência, dispensa, reforço, redução, levantamento. É o que se extrai das disposições dos arts. 169.º, 170.º, 183.º, 195.º, 199.º n.ºs 8, 9 e 10 do CPPT. Em síntese, tudo quanto respeite à garantia prestada no âmbito da execução fiscal, quer tenha em vista a sua suspensão, quer o pagamento em prestações da dívida exequenda, é da competência do órgão da execução fiscal.
O pedido de dispensa de garantia deve, pois, ser apresentado ao órgão da execução fiscal, nos termos do n.º 1 do art. 170.º do CPPT – que regulamenta o pedido de dispensa de prestação de garantia previsto no n.º 4 do art. 52.º da LGT –, pois é a esse órgão que está legalmente atribuída a competência exclusiva para decidir sobre esse pedido. Isto, sem prejuízo de o tribunal tributário competente poder ser chamado, mediante solicitação de qualquer interessado, a sindicar a legalidade da actuação da Administração no âmbito desse pedido (cf. arts. 151.º, n.º 1, e 286.º do CPPT).
Estamos, pois, perante um procedimento administrativo tributário enxertado no processo de execução fiscal, sendo a respectiva decisão um verdadeiro acto administrativo (Com interesse sobre a questão e dando conta da melhor jurisprudência, vide DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotação 11 ao art. 52.º, págs. 428/429.)). Esse procedimento da iniciativa do executado (cf. art. n.º 4 do art. 52.º da LGT, que diz «a requerimento do executado» e o art. 170.º do CPPT, que diz «deve o executado requerer») é um procedimento formal, que deve obedecer às regras legais; designadamente, deve seguir a forma escrita (cf. n.º 3 do art. 54.º da LGT), deve indicar o órgão a que se dirige, identificar o requerente, com indicação do nome e domicílio [cf. art. 102.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código do Procedimento Administrativo (CPA)], expor os fundamentos de facto e de direito em que se baseia o pedido e instruir o requerimento com a prova documental pertinente (cf. n.º 3 do art. 170.º do CPPT). Deverá também o requerente mencionar o número de identificação fiscal (cf. n.º 1 do art. 29.º do Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de Janeiro) e ainda, no caso de o procedimento respeitar a um processo de execução fiscal, indicar o número desse processo.

2.2.2.2 No caso, a Executada pediu a dispensa da prestação de garantia com fundamento na manifesta falta de meios económicos por não possuir bens suficientes para garantir a dívida exequenda e o acrescido, alegando, em síntese, a inexistência de bens que possa oferecer em garantia. O único documento que apresentou com o pedido foi o balancete do mês de Novembro de 2019.
A AT indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia com o fundamento de que a Executada, contrariamente ao que alegou, possuía bens que podiam servir o desígnio da prestação de garantia, designadamente uma viatura automóvel e o estabelecimento comercial, que podiam ser dados em garantia sem por em causa a continuação da sua actividade, e também as mercadorias em stock.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, em sede de reclamação judicial, entendeu que essa decisão é ilegal, por violação dos princípios do inquisitório e da boa cooperação entre administração e contribuinte, já que se lhe impunha que, previamente à decisão, 33 diligências em ordem ao esclarecimento sobre o real valor desses bens, designadamente mediante solicitação de esclarecimento à Executada.
Salvo o devido respeito, e como bem salientou o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, o Tribunal a quo incorreu numa menos correcta interpretação da decisão por que a AT indeferiu o pedido: parece ter considerado que o indeferimento do pedido de dispensa da prestação da garantia assentou na falta de prova sobre o estado de conservação dos bens que integram o activo da Executada, o seu valor e a existência ou não de ónus sobre os mesmos, quando, o que resulta dessa decisão é que a mesma tem como suporte fundamentador a falta de prova por parte da executada de uma situação de insuficiência de bens, reveladora de manifesta falta de meios económicos que lhe permitam garantir a dívida exequenda e o acrescido, nos termos do n.º 4 do art. 52.º da LGT.
Na verdade, a AT considerou que não ocorre a situação de manifesta falta de meios económicos porque a Executada pode oferecer como garantia o seu estabelecimento comercial e uma viatura automóvel, sendo que nem deu conhecimento da existência desta, ou a mercadoria que tem em stock.
É certo que nessa decisão, a AT considerou também que não tinha elementos bastantes sobre o real valor do estabelecimento e da viatura automóvel ou de eventuais ónus que incidam sobre os mesmos. Mas, não foi a falta desses elementos que determinou o indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia; foi, tão-só, a falta de prova da insuficiência de bens reveladora da invocada manifesta falta de meios económicos, tanto mais que ficou demonstrado que a Executada tinha em stock mercadoria de valor contabilizado em mais de € 100.000,00, tinha um veículo automóvel e tinha o seu estabelecimento comercial; assim, a AT considerou não estar provada a manifesta falta de meios económicos para prestar garantia, em face do valor da dívida exequenda – € 45.589,55 – a que haverá que adicionar o acrescido. Recorde-se eu foi este o único fundamento aduzido pela Recorrida com vista a obter a dispensa da prestação de garantia.
Salvo o devido respeito, impor à AT que, em sede do procedimento de dispensa de prestação de garantia, diligencie oficiosamente no sentido de apurar o real valor de bens que a Executada não se propôs oferecer em garantia e, alguns, de cuja existência nem sequer lhe deu conta, é fazer tábua rasa da obrigação de alegação e prova que o legislador pôs a cargo do executado que, em ordem à suspensão da execução fiscal, pretenda ser dispensado da prestação de garantia mediante a invocação de falta de condições económicas para a prestar.
Note-se ainda que o procedimento de dispensa de prestação de garantia tem regras próprias de alegação e prova dos factos (cf. art. 52.º, n.º 4, da LGT e art. 170.º, n.º 1, do CPPT), não podendo, sem mais, aplicar-se-lhe as regras do procedimento tributário de liquidação, tanto mais que não é possível estabelecer paralelismo entre ambos: enquanto naquele está em causa a pretensão do executado a obter um efeito que se há-de ter como excepcional em sede de execução fiscal – a norma é a prestação da garantia em ordem a obter a suspensão da execução fiscal – e, portanto, o procedimento tem início a pedido do interessado e a decisão fica sujeita ao que foi pedido (cf. art. 56.º da LGT), neste estamos perante um procedimento tributário que pode ser iniciado oficiosamente (cf. art. 57.º, n.ºs 1 e 7, da LGT) e em que a AT não vê a sua decisão limitada senão pela prossecução do interesse público e pelos princípios enunciados no art. 54.º da LGT; enquanto naquele o interessado pretende obter um efeito constitutivo de direitos, neste o efeito será a declaração (concretização) de uma obrigação tributária.
Entendemos, pois, que a sentença recorrida padece do vício que lhe é assacado pela Recorrente.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - Invocando o executado a manifesta falta de meios económicos por insuficiência de bens penhoráveis susceptíveis de garantir a dívida exequenda e o acrescido, em ordem a obter a dispensa de prestação de garantia (cf. art. 52.º, n.º 4, da LGT), incumbe-lhe o ónus de alegar e demonstrar os factos susceptíveis de integrarem essa insuficiência, o que deve fazer com o requerimento de pedido, instruindo-o com a documentação pertinente (cf. art. 342.º do CC, art. 77.º, n.º 1, da LGT e art. 170.º, n.º 1, do CPPT).

II - Não pode considerar-se que o executado se desincumbiu desse ónus se, para além de não provar a invocada manifesta falta de meios económicos, a AT logrou demonstrar a existência de bens susceptíveis de serem dados em garantia.

III - Nessa circunstância, o indeferimento do pedido de dispensa de garantia não fica dependente de quaisquer diligências a efectuar oficiosamente pela AT ou de quaisquer esclarecimentos a solicitar ao executado, em ordem a estabelecer o valor desses bens.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a reclamação judicial.

Custas pela Recorrida, em 1.ª instância e neste Supremo Tribunal [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT].

*
Lisboa, 4 de Novembro de 2020. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Joaquim Manuel Charneca Condesso – Paulo José Rodrigues Antunes.