Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03/16.3BEALM
Data do Acordão:02/06/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:ATRASO NA JUSTIÇA
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
Sumário:Em situações de responsabilidade do Estado por atraso na justiça como as dos presentes autos, deve entender-se que o prazo prescricional fixado no artigo 498.º do CC apenas começa a correr com a prolação da decisão de mérito irrecorrível.
Nº Convencional:JSTA000P25542
Nº do Documento:SA12020020603/16
Data de Entrada:09/03/2019
Recorrente:A....
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. A…….., devidamente identificada nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do TCAS, de 07.02.19, que negou provimento ao recurso por si interposto.

Na origem do recurso interposto para o TCAS esteve uma decisão do TAF de Almada, de 03.05.18, que julgou “procedente a excepção da prescrição do direito de indemnização, absolvendo o Réu do pedido”.

2. A A., ora recorrente, apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. …):

“1ª Para se apurar, no âmbito do direito administrativo, se uma ação em que se impugna a ilegalidade de um ato administrativo foi proferida em prazo razoável tem que se atender ao momento em que a petição, em que se pede a anulação do ato, deu entrada em tribunal (prazo “a quo”) e ao momento em que foi proferida a decisão final transitada em julgado, (prazo “ad quem”);

2ª Os pressupostos necessários para se exigir a reparação dos danos causados pela demora numa decisão final por parte dos órgãos jurisdicionais, numa ação administrativa de anulação de ato administrativo, só se verificam e estão preenchidos quando a A. verifica, pela decisão final e pela análise do processo, que a demora do processo, como operou, foi ilícita e excessiva;

3ª O direito da A. como lesada, a exigir a responsabilidade extracontratual do Estado pela demora na decisão judicial nos termos do art.º 498.º, n.º1 do C.C., só foi do seu conhecimento quando proferida a decisão final na ação n.º 284/05BEALM, e na qual pode tomar consciência de todos os factos que globalmente não justificavam que uma ação intentada a 22 de abril de 2005 apenas tivesse sido decidida com trânsito em julgado a partir de 5 de junho de 2014, mais de 9 anos após a sua instauração;

4ª A circunstância de a A. ter pedido a atenção, por diversas vezes, para o atraso na conclusão da ação, designadamente, em 28 de janeiro de 2011, não pode ser considerada como correspondendo ao conhecimento do direito da A. para exercer o seu direito a ser indemnizada pela demora excessiva na conclusão do processo, quando, naquela data ainda se não verificavam todos os pressupostos para a A. poder concluir que o atraso na resolução do processo era excessivo;

5ª O decidido no Acórdão do Tribunal Administrativo do Sul, de que se recorre, deve ser julgado como erro substantivo de direito na interpretação do art.º 498.º, n.º 1 do C. C., quando considerou que o lesado tem conhecimento do seu direito para efeito de demandar o Estado por responsabilidade civil extracontratual, logo que perante o processo se queixa da sua demora na resolução do litígio, quando o que está em causa é uma demora excessiva e, não uma simples demora e, aquela, apenas é suscetível de ser apurada globalmente e perante a apreciação de todo o processado.

III. Termos em que deverá:

1. ser o recurso de revista admitido;
2. ser concedido provimento à revista e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido e declarada improcedente a exceção perentória deduzida pelo R. Estado bem como ordenada a baixa dos autos à 1ª instância para aí se pronunciar sobre o mérito da questão e sobre o pedido indemnizatório formulado.
Assim se fazendo justiça, atendendo à pretensão formulada pela recorrente”.

3. O recorrido Estado, representado pelo MP, produziu contra-alegações sem, no entanto, apresentar conclusões.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 26.06.19, veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)

2. A Autora intentou, em 22/04/2005, no TAF de Almada, contra o IPO, a acção n.º 284/05.8BEALM a qual foi julgada parcialmente procedente, por acórdão de 27/09/2007, e foi objecto de um pedido de rectificação da Autora indeferido por decisão de 26/11/2007.

Inconformada, a Autora apelou para o TCAS, em 02/01/2008, recurso que só foi remetido em 30/01/2009, na sequência de requerimento da sua Ilustre Mandatária referindo que a sua retenção a prejudicava gravemente, atendendo a que «não está a ocupar o lugar que o Tribunal reconheceu na sentença ser um direito seu.» Em 12/02/2009, os autos foram remetidos ao TCAS onde foram distribuídos em 27/02/2009.


Em 28/01/2011, a Autora requereu, no TCAS, «
a prolação da douta sentença atento o longo período de tempo já decorrido» o qual foi respondido em 3/02/2011 por despacho onde se mencionou a impossibilidade de satisfazer de imediato o solicitado face ao número de processos urgentes e outros mais antigos que estavam pendentes


Em 05/06/2014, foi proferido acórdão que concedeu parcial provimento ao recurso da Autora.

A Autora instaurou, em 04/01/2016, com fundamento no atraso na administração da justiça, esta acção pedindo a condenação do Estado a pagar-lhe uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 20.000,00 ou naquilo que se viesse a liquidar em execução de sentença e as despesas necessárias à sua instauração


O Réu contestou invocando a prescrição do direito accionado por entender que o prazo de prescrição fixado no art.º 498.º/1 do CC se contava a partir de uma das seguintes datas: (1) de 30/01/2009, data em que a Autora dirigiu ao TAF requerimento solicitando a subida do recurso ao TCA Sul, (2) de 27/02/2009, data da distribuição do recurso no TCAS e (3) de 28/01/2011, data em que dirigiu ao TCA requerimento solicitando a prolação de acórdão. Sendo assim, e sendo que o recurso havia sido interposto para além do prazo de três anos previsto na citada norma, impunha-se concluir que o prazo de prescrição do direito indemnizatório já havia expirado quando esta acção foi instaurada.


O TAF julgou procedente a invocada excepção pela seguinte razão:

“.......
Assente que a Autora tomou conhecimento da verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade pelo menos a 28 de Janeiro de 2011, não tendo sido alegada qualquer causa ou facto interruptivo ou suspensivo da prescrição, a prescrição do direito de indemnização invocado, completou-se a 28 de Janeiro de 2014, sendo que a presente acção de responsabilidade civil extracontratual, fundada na alegada morosidade indevida na finalização da Acção n.º 284/05.8BEALM, para a qual o Réu foi citado em 07 de Janeiro de 2016, foi proposta em 04 de Janeiro de 2016.”

A Ré apelou para o TCA Sul e este negou provimento ao recurso. Decisão que foi assim fundamentada:

“…
O direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos, nos termos do disposto no art. 498º, nº 1, do Código Civil.

....Como se sabe, tal conhecimento é um conhecimento empírico, é o conhecimento da possibilidade legal do ressarcimento dos danos que ocorrem por virtude de certo facto ou atuação danoso.

.... Aqui chegados, considerando, nomeadamente, (i) os factos CC) e HH) e (ii) os danos alegados, devemos concordar que o prazo começou a correr, seguramente, em 28-01-2011, (iii) momento em que a morosidade indevida já existia [6 anos sem decisão].

Essa (i) morosidade e (ii) o consequente prejuízo são expressamente afirmados, neste item “confessados”, pela própria lesada nos termos referidos em CC) e HH), maxime na data de 28-01-2011. É, pois, este o momento em que a autora teve conhecimento do direito indemnizatório ora exercitado.

Assim, tendo esta ação entrado em 04-01-2016 e que a citação ocorreu em 07-01-2016, contado nos termos referidos, é de concluir que o prazo previsto no artigo 498º-1 do CC não foi respeitado pela ora autora.”

3. A Autora não se conforma com essa decisão pelo que pede a admissão da revista sustentando que o seu direito “a exigir a responsabilidade extracontratual do Estado pela demora na decisão judicial nos termos do art.º 498.º, n.º1 do C.C., só foi do seu conhecimento quando proferida a decisão final na ação n.º 284/05BEALM, e na qual pode tomar consciência de todos os factos que globalmente não justificavam que uma ação intentada a 22 de abril de 2005 apenas tivesse sido decidida com trânsito em julgado a partir de 5 de junho de 2014, mais de 9 anos após a sua instauração; A circunstância de a A. ter pedido a atenção, por diversas vezes, para o atraso na conclusão da ação, designadamente, em 28 de janeiro de 2011, não pode ser considerada como correspondendo ao conhecimento do direito da A. para exercer o seu direito a ser indemnizada pela demora excessiva na conclusão do processo, quando, naquela data ainda se não verificavam todos os pressupostos para a A. poder concluir que o atraso na resolução do processo era excessivo;”

4. A única questão suscitada nesta revista é, como se acaba de ver, a de saber em que data é que a Autora teve conhecimento dos danos que lhe permitiam exercer o direito indemnizatório accionado nestes autos, já que é consensual que o prazo de prescrição do referido direito é de três anos a contar da data em que a Autora “teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos” (art. 498º/1 do CC).

Sendo assim, a única dúvida que cumpre esclarecer é a de saber em que data é que se deve considerar que a Autora teve conhecimento dos danos aqui peticionados, por ser nessa data que o referido prazo prescricional começa a correr.


As instâncias foram unânimes em sinalizar essa data no dia 28-01-2011 – data em que a Autora dirigiu ao TCA requerimento a solicitar a prolação de acórdão - daí concluindo que, tendo esta acção sido instaurada em 04-01-2016, o citado prazo já havia expirado quando a Autora exerceu o seu direito.


Todavia, é, no mínimo, controverso fixar o termo
a quo do citado prazo naquela data por tal significar obrigar-se a Autora a instaurar esta acção, que tem características muito próprias, quando o fundamento em que ela se baseia – o atraso na tramitação de um determinado processo – ainda não se chegou ao seu termo e, portanto, ainda se desconhece todos os contornos que poderão, ou não, justificar o accionamento de um processo desta natureza

Nesta conformidade, justifica-se a intervenção deste Supremo Tribunal com vista a uma mais esclarecida aplicação do direito.


5. O Digno Magistrado do Ministério Público, actuando como representante do recorrido Estado português, foi devidamente notificado do acórdão prolatado pela formação de apreciação preliminar.

6. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto:

Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.


2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar a questão suscitada pela ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, que consiste em saber se, contrariamente ao que se decidiu nas instâncias, o prazo de prescrição do direito de indemnização por atraso na justiça se deve contar a partir do momento em que cessa um tal atraso. A recorrente resumiu do seguinte modo o problema em causa:

5ª O decidido no Acórdão do Tribunal Administrativo do Sul, de que se recorre, deve ser julgado como erro substantivo de direito na interpretação do art.º 498.º, n.º 1 do C. C., quando considerou que o lesado tem conhecimento do seu direito para efeito de demandar o Estado por responsabilidade civil extracontratual, logo que perante o processo se queixa da sua demora na resolução do litígio, quando o que está em causa é uma demora excessiva e, não uma simples demora e, aquela, apenas é suscetível de ser apurada globalmente e perante a apreciação de todo o processado”.

Vejamos.

2.2. As questões relacionadas com a prescrição do direito de indemnização no âmbito da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas são, em regra, solucionadas com recurso às normas do Código Civil (CC), por força de remissão constante da legislação especial que regula a responsabilidade civil do Estado. É o caso do artigo 5.º da Lei n.º 67/2007, de 31.12 (que contém o Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas – RRCEEEP), que assim determina: “O direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas colectivas de direito público e dos titulares dos respectivos órgãos, funcionários e agentes bem como o direito de regresso prescrevem nos termos do artigo 498.º do Código Civil, sendo-lhes aplicável o disposto no mesmo Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição”.
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 498.º do CC dispõe da seguinte forma: “O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso”.

Com base nestes dispositivos, e tomando como referência, para efeitos de contagem do prazo de prescrição, a data de 28.01.11 – referente a um requerimento apresentado ao TCAS pela recorrente em que a mesma peticiona “a prolação da douta sentença atento o longo período de tempo já decorrido” (considerado este o momento em que o lesado toma consciência de que o processo tem uma duração excessiva) – e as datas de 04.01.16 e 07.01.16 – datas, respectivamente, da propositura da acção de responsabilidade e da citação do R. –, o acórdão recorrido conclui no sentido da verificação, in casu, da excepção de prescrição do direito de indemnização, porque ultrapassado o supra mencionado prazo de 3 anos.
Em nosso entender, este raciocínio linear não toma na devida conta a circunstância de que estas situações de indemnização por atraso na justiça são situações sui generis, estando-se em face de um non facere, além do mais não reportado a nenhum prazo específico. Acresce a isto que estamos no âmbito do exercício de um direito que tem uma fonte simultaneamente interna (art. 20.º CRP) e internacional (art. 6.º CEDH), sendo que a adequação do ordenamento interno às exigências que derivam da adesão à CEDH pode implicar algumas soluções mais específicas ou individualizadas do legislador ou mesmo do julgador, no sentido de não vulnerar de forma desproporcional o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas. O princípio da subsidiariedade da tutela europeia pressupõe a exaustão dos remédios domésticos e o dever do Estado de implementar ou prover à existência desses mesmos remédios domésticos. Ora, a solução preconizada pelas instâncias nos presentes autos teria como consequência uma restrição excessiva do mencionado direito. A verdade é que nestas situações de indemnização por atraso na justiça, um eventual atraso terá de ser apreciado de forma unitária, desde a proposição da acção até à prolação da decisão de mérito final. Até porque pode haver atrasos em certas fases do processo e não em todas, sendo isso, no entanto, suficiente para condenar o Estado por atraso na justiça. Só uma visão global do processo permite, pois, ao julgador, avaliar se a decisão judicial foi dada sem dilações indevidas.

2.3. Em face de todo o exposto, deve entender-se que o prazo prescricional nestas situações de atraso na justiça apenas começa a correr com a prolação da decisão de mérito irrecorrível, pelo que se impõe a conclusão de que o prazo de três anos previsto no n.º 1 do artigo 498.º do CC ainda não estava esgotado.

III – DECISÃO


Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em não considerar verificada a excepção de prescrição do direito de indemnização por atraso na justiça, e, em consequência, em revogar o acórdão recorrido, devendo os autos baixar ao TAF de Almada para ulterior prosseguimento da acção de indemnização.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2020. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.