Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:057/20.8BALSB
Data do Acordão:04/21/2021
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:IRC
TAXA
TRIBUTAÇÃO
FACTO TRIBUTÁRIO
Sumário:Atento o disposto no n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC, que determina que a formação do facto tributário só se conclui no termo do período anual de tributação, e em face do disposto no n.º 1 do art. 12.º da LGT, é aplicável ao facto tributário formado em 31 de Janeiro de 2015 a taxa de 21%, tal como decorre da Lei n.º 82-B/2014, de 13 de Dezembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2015.
Nº Convencional:JSTA00071114
Nº do Documento:SAP20210421057/20
Data de Entrada:06/23/2020
Recorrente:A......................., SA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:MAIORIA COM 1 DEC VOT E 1 VOT VENC
Legislação Nacional:CIRC ART8 N9 ART87 N1
L82-B/2014 DE 2014/12/31 ART192
LGT ART12 N1
CPC ART423 ART425 ART651
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


1. – Relatório

Z………………….., S.A., melhor sinalizada nos autos, vem, nos termos do artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aplicável ex vi artigo 25.º, nºs. 2 a 4, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária — “RJAT”, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, interpor recurso de uniformização de jurisprudência para o Pleno do Contencioso Tributário do STA, da decisão arbitral proferida no processo n.º 411/2019-T, de 27/02/2020, do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), a qual julgou improcedente o pedido de pronúncia arbitral, visando a declaração de ilegalidade parcial da liquidação de IRC, relativa ao ano de 2014, com um valor a reembolsar de €1.710.371,19 e a restituição do valor de €381.117,25, assim como da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que teve aquele acto como objecto, invocando oposição com a decisão arbitral proferida no processo n.º 412/2019-T, datada de 20/12/2019.

Inconformada, nas suas alegações, formulou a recorrente Z………………, S.A., as seguintes conclusões:

(a) O presente Recurso por Oposição de Acórdãos vem interposto da Decisão Arbitral datada de 27 de Fevereiro de 2020, proferida pelo Tribunal Arbitral Colectivo constituído no processo que, sob o n.º 411/2019-T, correu termos no CAAD, e julgou improcedente o Pedido de Pronúncia Arbitral visando a declaração de ilegalidade parcial do Acto Tributário de Liquidação de IRC n.º 2018 2610484082, relativo ao ano de 2014, com um valor a reembolsar de EUR. 1.710.371,19, e a restituição do valor de EUR. 381.117,25, assim como da decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa que teve o referido Acto Tributário como objecto, por contradição e consequente oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com a Decisão Arbitral de 20 de Dezembro de 2019, disponível em www.caad.org.pt. proferida pelo Tribunal Arbitral Singular constituído no processo que, sob o n.º 412/2019-T, correu termos no CAAD e transitada em julgado;
(b) Entre outros requisitos formais ou processuais, o Recurso por Oposição de Decisões Arbitrais deverá ser admitido quando a decisão colocada em crise esteja em contradição ou oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com a Decisão Arbitral Fundamento;
(c) A doutrina e a jurisprudência do STA têm vindo a entender que, para haver oposição de acórdãos e, por conseguinte, de decisões arbitrais, não é exigível uma total identidade dos factos - que muito raramente se verificará -, mas apenas que eles sejam subsumíveis às mesmas normas legais;
(d) Em conformidade com esta concepção de “oposição de decisões arbitrais” que exige uma identidade de direito (subsunção das situações fácticas às mesmas normas legais), é legítimo admitir-se que, no caso em apreço e supra detalhadamente discriminado, se verifica efectivamente a existência de uma decisão contraditória proferida pelo CAAD, em claro prejuízo da RECORRENTE, e que por isso que reclama a intervenção do Pleno deste Tribunal superior para uma necessária e desejada uniformização do direito;
(e) A questão fundamental de direito e cuja oposição se verifica entre a Decisão Arbitral Recorrida e a Decisão Arbitral Fundamento é enunciável da seguinte forma:
Qual a taxa de IRC aplicável à matéria colectável da Recorrente apurada no termo do período especial de tributação de 2014, com início em 01 de Fevereiro de 2014 e termo em 31 de Janeiro de 2015, isto é no momento do facto de gerador de imposto (em 31 de Janeiro de 2015), se a taxa de 23% prevista no artigo 87.º n.º 1, na redacção dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ou se a taxa de 21% prevista no artigo 87.º n.º 1 do Código do IRC resultado da alteração introduzida pelo artigo 192.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (a Lei do Orçamento do Estado de 2015);
(f) Entendendo-se a oposição de decisões arbitrais como não sendo exigível uma total identidade dos factos, embora na Decisão Arbitral Recorrida e na Decisão Arbitral Fundamento esteja subjacente uma quase coincidência das situações fácticas, mas apenas a sua subsunção às mesmas normas, é forçoso concluir que no caso em apreço se verifica uma efectiva contradição entre as indicadas decisões na exacta medida em que defenderam soluções opostas precisamente quanto à interpretação e a consequente aplicação do disposto no artigo 87.° n.º 1 do Código do IRC, como, aliás se comprova nas páginas 1, 2, 11 e 15 a 20 da Decisão Arbitral Recorrida e nas páginas 2 a 6 e 22 a 33 da Decisão Arbitral Fundamento;
(g) Na Decisão Arbitral Recorrida foi decidido que a taxa aplicável era a taxa de 23% prevista no artigo 87.º n.º 1 do Código do IRC (na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro), por ser a que se encontrava em vigor no momento da verificação do facto tributário em sede de IRC (em 31 de Janeiro de 2015), uma vez que o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, não tinha sido revogado por qualquer outra norma ou diploma legal, incluindo a Lei do Orçamento do Estado para 2015;
(h) A Decisão Arbitral Fundamento por seu turno, em sentido oposto à Decisão Arbitral Recorrida, considerou que a taxa de IRC aplicável era a taxa de 21%, por ser a que se estava em vigor no momento da verificação do facto tributário em sede de IRC (em 31 de Janeiro de 2015), dado que a Lei do Orçamento do Estado para 2015, havia revogado a anterior redacção do artigo 87.º n.º 1 do Código do IRC e, portanto, a anterior taxa de IRC de 23%, não tendo previsto quaisquer disposições transitórias relativas à alteração da taxa de IRC e à sua aplicação temporal;
(i) De facto, a Decisão Arbitral Fundamento considerou a lei nova e, portanto, a taxa de IRC de 21% imediatamente aplicável aos factos posteriores à sua entrada em vigor, uma vez que só no momento da verificação do facto gerador do imposto é que o facto tributário está total e integralmente completo e verificado, o que pressupõe necessariamente que a tributação seja feita de acordo com a lei que esteja em vigor nesse momento, isto é, no termo no exercício;
(j) Porque no caso da RECORRENTE, precisamente pelo facto de o seu exercício de 2014 não coincidir com o ano civil, iniciando-se a 01 de Fevereiro de 2014 e terminando a 31 de Janeiro de 2015, o facto gerador do imposto apesar de ser carácter continuado ou de formação sucessiva, só se completou nesta última data, como previsto no artigo 8.º n.º 9 do Código do IRC, quando já estava em vigor a nova taxa de IRC de 21%, não existindo quaisquer disposições transitórias para a aplicação temporal desta nova taxa de IRC, particularmente para regular os casos de sujeitos passivos que, como a RECORRENTE, adoptaram períodos de tributação não coincidentes com o ano civil;
(k) Aliás, em matéria de aplicação da lei fiscal no tempo, dado que o legislador previu no artigo 8.º n.º 9 do Código do IRC que o facto tributário (de formação sucessiva) se produz no último dia do período de tributação, tal circunstância exclui a aplicação da regra prevista no artigo 12.º n.º 2 da LGT. Neste preciso sentido, leia-se o esclarecedoramente decidido pelo Tribunal Arbitral Singular na decisão Arbitral Fundamento: “(…) Com efeito, atento o disposto no n.° 9 do artigo 8.º do Código do IRC, no sentido de que a formação do facto tributário só se conclui no termo do período anual de tributação, consideramos ser de excluir a aplicação da regra pro rata temporis constante do n.º 2 do artigo 12.° da LGT; nessa sequência, entendemos que a lei nova tem aplicação a todos os factos e situações ocorridos no período de tributação em que entra em vigor, uma vez que só no seu termo é que esses factos e situações adquirem a sua configuração integral, pelo que a sua tributação deve ser efetuada em consonância com a lei em vigor no termo do período de tributação. (…)”;
(l) No domínio da tributação do rendimento das pessoas colectivas, por força do conceito, da configuração e do âmbito do facto gerador do imposto, o legislador consagrou uma regra especial quanto à aplicação da lei fiscal no tempo e à retroactividade. E esta regra especial resolve directamente os problemas de sucessão de normas fiscais no tempo em matéria de tributação (como o do presente caso e afasta a regra geral constante do artigo 12.º n.º 2 da LGT):
(m) Assim, como o período de tributação de 2014 da RECORRENTE terminou em 31 de Janeiro de 2015, não coincidindo assim com o ano civil, e nessa data já estava em vigor a nova taxa de IRC de 21%, introduzida pela lei do Orçamento do Estado para 2015, terá necessariamente de se concluir que a taxa aplicável à RECORRENTE é a taxa de 21%. Esta conclusão é suportada pelos ensinamentos do Professor Doutor Rui Duarte Morais e onde se pode ler que: “(…) O que resulta coerente com a anualidade dos impostos (desde logo, com a alterações que são introduzidas na lei fiscal por força da Lei do Orçamento, também ele referido a um ano civil). Significa isto que aos sujeitos passivos cujo exercício não coincida com o ano civil serão aplicáveis, no cálculo do lucro tributável e do imposto a pagar relativamente a cada período de doze meses, regras diferentes daquelas a que está sujeita a generalidade dos sujeitos passivos. (...).”. (cfr. Apontamentos ao IRC, Reimpressão da edição de Novembro 2007, Almedina, 2009, págs. 47 e 48);
(n) Em suma, o decidido na Decisão Arbitral Recorrida está em clara contradição e confronto com o caso decidido no Decisão Arbitral Fundamento, dado que nesta, numa situação fáctica semelhante - aplicação de diferentes taxas de IRC a sociedade cujo período de tributação de 2014 terminou em 31 de Janeiro de 2015 o CAAD considerou que a taxa aplicável era a taxa de 21%, prevista no artigo 87.º n.º 1 do Código do IRC, na redacção introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2015, por ser a que se encontrava em vigor no momento da produção ou verificação do facto tributário;
(o) Por último, a não admissão do presente Recurso por Oposição de Acórdãos impediria que o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo apreciasse, com critérios de justiça material a que legitimamente recorre nas suas doutas decisões, o caso em discussão e procedesse à anulação da Decisão Arbitral Recorrida, e a substituísse por um Acórdão que, resolvendo o conflito de jurisprudência quanto à questão fundamental de direito enunciada, a decida nos termos peticionados pela RECORRENTE, justamente pelo facto de existir uma decisão contrária à colocada em crise.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, OS QUAIS DOUTAMENTE V. EXAS. SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO DE REVISTA OPOSIÇÃO DE DECISÕES ARBITRAIS SER ADMITIDO, POR SE VERIFICAREM, NOS TERMOS DO DISPOSTO NOS ARTIGO 25.º N.º 2 A 5 E 26.º AMBOS DO RJAMT, DO ARTIGO 152.º DO CPTA E DO ARTIGO 27.º N.º 1 ALÍNEA B) DO ETAF, OS RESPECTIVOS REQUISITOS, POR CONTRADIÇÃO, QUANTO À MESMA QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO COM O TEOR DA DECISÃO ARBITRAL PROFERIDA NO PROCESSO QUE CORREU TERMOS NO CAAD SOB O N.º 411/2019-T E O DECIDIDO NA DECISÃO ARBITRAL FUNDAMENTO, DEVENDO VIR A SER JULGADO PROCEDENTE A FINAL, E, POR CONSEGUINTE, SER A DECISÃO ARBITAL RECORRIDA REVOGADA, E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE PROCEDA À ANULAÇÃO PARCIAL DO ACTO TRIBUTÁRIO DE LIQUIDAÇÃO ADICIONAL DE IRC, REFERENTE AO EXERCÍCIO DE 2014, COM O N.º 2018 2610484082, DE 17 DE DEZEMBRO DE 2018, NO VALOR A REEMBOLSAR DE EUR. 1.710.371,19, RESTITUINDO O MONTANTE DE EUR. 381.117,25, ACRESCIDO DOS RESPECTIVOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS, POR ENFERMAR DO VÍCIO DE VIOLAÇÃO DE LEI POR ERRO SOBRE OS PRESSUPOSTOS DE DIREITO, EM FACE DA ERRADA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 87.º N.° 1 DO CÓDIGO DO IRC, ASSIM FAZENDO VOSSAS EXCELÊNCIAS, MERITÍSSIMOS CONSELHEIROS, A COSTUMADA JUSTIÇA!

A recorrida Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou contra-alegações, que concluiu nos termos que se seguem:
A) Foi interposto recurso para uniformização de jurisprudência do acórdão arbitral proferido no processo n.º 411/2019-T, com fundamento em oposição com decisão proferida no processo arbitral n.º 412/2019-T (cf. artigo 25.º, n.º 3 do RJAT, na redação da Lei n.º 119/2019, de 18.09).
B) Sem prejuízo da identidade das questões, no que concerne à questão de mérito dos presentes autos, não se afigura merecedora de qualquer crítica o acórdão arbitral recorrido, que apreciou corretamente a questão da ilegalidade da aplicação da taxa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas de 23%, no procedimento de liquidação do qual emerge o ato de liquidação de IRC impugnado nos autos arbitrais, em vez da taxa de 21%, que a Recorrente considera a correta.
C) Como bem se entendeu na decisão arbitral recorrida, contestando inclusivamente a fundamentação de outro acórdão arbitral proferido em primeira linha, não está apurar se a taxa de IRC genericamente em vigor a 31 de Janeiro de 2015 era ou não 21%, nem apurar se o facto tributário sujeito a imposto pela liquidação ora em crise se deu naquela data, que se deu, mas, antes, apurar se, e em que medida, o mencionado art.º 14.° estava, ou não em vigor, no dia 31 de Janeiro de 2015.
D) Assim, quanto ao art.º 14.° da Lei n.º 2/2014, como bem se conclui na decisão arbitral «o art.º 14.º da Lei 2/2014 deverá ser interpretado como dispondo no sentido de que as normas daquela Lei se apliquem ao período de tributação de 2014, relativamente à tributação, em IRS ou IRC, que assente naquele, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação, também em IRS ou IRC, que não assente no período de tributação.», e que, «aquele art.º 14.º se encontrava em vigor a 31 de Janeiro de 2015, e, como tal, deve aplicar-se ao período de tributação de 2014 da Requerente, que findou nesse ano.», e que «não obstará, naturalmente, à conclusão retirada o disposto no art.º 12.° da LGT, na medida em que, como se expôs, o art.º 14.º em questão deverá ser entendido como uma norma especial, e, como tal, prevalecente na matéria que regula, relativamente àquele».
E) E para que dúvidas não subsistam mais bem se refere naquela decisão que:
«à luz da interpretação da norma do art.º 14.° da Lei n.º 2/2014, atrás exposto, incluindo a configuração daquele como uma norma especial em relação ao art.º 12.° da LGT, não será possível concluir que o art.º 192.º da Lei n.º 82-B/2014, tenha tido por propósito a revogação daquele art.º 14.°, pelo menos na parte em que se referia à aplicação das normas da Lei que o mesmo integra ao período de tributação de 2014, no caso da tributação em IRS e IRC que tenha por base, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação naqueles impostos que não assente no período de tributação.
Deste modo, concluindo-se, nos termos expostos, que o art.º 14.° da Lei n.º 2/2014 se encontrava vigente a 31/01/2015, na parte em que impõe a aplicação do disposto naquela Lei à tributação em IRS e IRC que assente no período de tributação de 2014, haverá que concluir pela legalidade da atuação da AT, e pela consequente improcedência do pedido arbitral, incluindo os pedidos acessórios».
F) Tudo visto e ponderado, deve o presente recurso para uniformização de jurisprudência ser julgado improcedente, não merecendo qualquer censura o acórdão arbitral recorrido, a qual, por ser válida, deve ser mantido na ordem jurídica.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência ser julgado improcedente, nos termos e com os fundamentos acima indicados e, consequentemente, ser mantido na ordem jurídica a decisão arbitral recorrida, por consentânea com o quadro jurídico vigente.

Neste Supremo Tribunal Administrativo, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido de ser de negar provimento ao recurso, no seguinte parecer:

“Z…………….. S.A., inconformada com a decisão proferida nos autos de processo arbitral, processo nº 411/2019-T vem, nos termos do disposto nos artigos 25.º e 26.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do artigo 25.º, n.º 3 do RJAT, interpor recurso para uniformização de jurisprudência, com base em oposição de acórdãos, apresenta como acórdão fundamento, a decisão Arbitral proferida no processo nº 412/2019-T.
Antes de mais, vejamos se encontram reunidos os pressupostos de que depende a sua admissão e só depois, apreciar do seu mérito.
Sendo o recurso para uniformização de jurisprudência, um recurso extraordinário, tem por finalidade que seja proferida decisão que fixe a orientação jurisprudencial nos casos em que as decisões dos Tribunais superiores sobre uma questão fundamental de direito tenham sido contraditórias. Tem, pois, por finalidade, corrigir a eventual injustiça cometida na decisão recorrida, mas também e essencialmente garantir que o novo julgamento regularize o entendimento a adotar perante a questão fundamental de direito controvertida.
Vejamos então se se encontram reunidos os pressupostos de que depende a sua admissão.
O regime deste tipo de recursos está fixado no artº 152º do CPTA no qual se estabelecem os seguintes requisitos de admissibilidade:
a) Contradição de julgamentos em Acórdãos proferidos pelos Centros de Arbitragem Tributária, Tribunais Centrais Administrativos, ou pelo Supremo Tribunal Administrativo;
b) Que essa contradição tenha recaído sobre a mesma questão fundamental de direito, existindo identidade dos respetivos pressupostos de facto;
c) Que tenha havido o trânsito em julgado dos Acórdãos impugnado e fundamento;
d) Que não exista conformidade da orientação perfilhada no acórdão impugnado com a jurisprudência mais recentemente consolidada no STA.
Por outro lado, mantendo-se os princípios que vinham da jurisprudência anterior, a estes requisitos há que acrescentar as condições de admissibilidade estabelecidas na jurisprudência para o recurso por oposição de julgados, que são:
(i) para cada questão deve o recorrente eleger um e apenas um acórdão fundamento;
(ii) só é figurável a oposição em relação a decisões expressas e não a julgamentos implícitos;
(iii) só releva a oposição entre decisões e não entre meros argumentos.
Posto isto, diremos que para existir contradição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, terão que as decisões contraditórias, ter sido tiradas perante quadros normativos e factuais essencialmente idênticos e, por isso, quando essa contradição tenha resultado apenas de divergente interpretação jurídica.
Acrescente-se ainda que o nº1 do art. 152º do CPTA determina que o recurso tenha sido interposto, no prazo de trinta dias, após o trânsito do acórdão recorrido, e o seu nº 2, obriga que a petição de recurso seja acompanhada de alegação na qual se identifiquem, de forma precisa e circunstanciada, os aspetos de identidade que determinaram a contradição alegada e a infração imputada ao acórdão recorrido.
Sendo que estes pressupostos são de verificação cumulativa, a não verificação de um deles conduz à não admissão do recurso.
Parece-me que todos os pressupostos se encontram reunidos e que o recurso deve ser apreciado.
Pesquisando a jurisprudência sobre esta questão os resultados foram na verdade escassos para não dizer nulos.
Na falta de muleta, que me ajudasse a tomar partido por uma das decisões, não resultou outra hipótese senão escrutinar cada um dos arestos, analisando-os da frente para trás e de trás para a frente, já que a posição da Fazenda Pública também não acrescenta nada para a resolução da dissidência, perdoem-me a franqueza.
Também não serei certamente uma grande ajuda, mas a argumentação vertida na decisão recorrida é muito segura muito bem estruturada e parece-me também que o art. 14º da Lei 2/2014 se trata de uma norma especial, que prevalece perante a matéria de regula e não cede perante qualquer conclusão que se possa retirar do art. 12º da LGT.
Por outro lado, não tendo outra alternativa senão ler a Lei do Orçamento para 2015, também achei que o Orçamento, não contém nenhuma norma que revogue explicitamente, o disposto no art. 14º, e se não existe norma revogatória, certamente não foi porque o legislador se esqueceu, foi porque quis manter o referido artigo, até à entrada em vigor da Lei do Orçamento para 2015.
Parece-me ser de negar provimento ao presente recurso, e manter-se a decisão recorrida pelo acerto na sua argumentação; bem como uniformizar jurisprudência no sentido de que o art.º 14.º da Lei n.º 2/2014 se encontrava vigente a 31/01/2015, na parte em que impõe a aplicação do disposto naquela Lei à tributação em IRS e IRC que assente no período de tributação de 2014.”

A recorrente veio requerer, ao abrigo do Princípio da Colaboração, a junção aos autos da decisão arbitral do CAAD, datada de 22/08/2020 e proferida no processo n.º 783/2019-T.

A este requerimento, o Magistrado do Ministério Público veio dar a seguinte resposta:

“Z……………. S.A., recorrente nos presentes autos, vem requerer a junção da decisão arbitral proferida no processo arbitral do CAAD no processo nº 783/2019-T prolatada em 22.09.2020, já transitada.
Na decisão que a requerente pretende juntar ao processo, discute-se a questão em apreciação nos presentes, e como é bom de ver, esta decidiu no sentido que a Recorrente pretende.
Comecemos por dizer, que a melhor doutrina e jurisprudência têm vindo a afirmar que, os fundamentos excecionais justificativos da apresentação de documentos com as alegações de recurso podem ocorrer:
- quando os documentos se destinem a provar factos posteriores aos articulados;
- quando a sua junção se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior;
- quando a sua apresentação apenas se revele necessária devido ao julgamento proferido em 1.ª instância.
Os fundamentos para a aceitação de documentos com as alegações de recurso têm em vista uma melhor aplicação do direito.
Ora revertendo o que ficou dito, para caso dos autos, a decisão que o Recorrente pretende juntar não foi apresentado com as alegações de recurso, e ainda que o fosse, não poderia ser admitida a sua junção por não se enquadrar em nenhuma das exceções justificativas atrás apontadas.
Destarte, se naquela fase processual não era admissível a sua junção, por maioria de razão após a apresentação das alegações de recurso, também não o será.
Até porque, a sua junção não tem por finalidade uma melhor aplicação do direito ao facto concreto, mas antes tentar influenciar o sentido da decisão.
Assim, entendo que deve ser de indeferir a sua junção.”

Notificada do requerimento que antecede, a DIRETORA-GERAL DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA e ADUANEIRA veio pronunciar-se no sentido de que a apreciação dos pressupostos do recurso em causa são-no sempre por referência ao acórdão fundamento já indicado, assim como a respetiva solução jurídica quanto à questão a decidir, pelo que, salvo melhor opinião, não se antevê como relevante decisão arbitral agora junta, remetendo-se consequentemente para as contra-alegações já apresentadas nos autos.
*

Os autos vêm à conferência do Pleno corridos os vistos legais.

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2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

2.1.1. Na decisão arbitral recorrida foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão, tal como consta em www.caad.pt:

1- A Requerente é uma sociedade de direito português que se dedica ao “comércio de pronto a vestir de criança e adulto, fios de algodão e lãs, retrosarias, tecidos e miudezas” a que corresponde o CAE 47711.
2- Em 29-04-2014, foi constituído um grupo abrangido pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades, sendo a Requerente a sociedade dominante.
3- O grupo adotou um período de tributação não coincidente com o ano civil, com início a 01-02-2014.
4- Em 2015, a Requerente deixou de ser a sociedade dominante do grupo, assumindo essa posição a sociedade de direito espanhol “B..., S.A.”.
5- Por referência ao período de tributação de 2014, em 29-06-2015, a Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC individual.
6- Na qualidade de sociedade dominante do grupo, a Requerente procedeu em 30-06-2015, à declaração de rendimentos modelo 22 de IRC do grupo.
7- O grupo tributado ao abrigo do regime especial de tributação dos grupos de sociedades apurou um lucro tributável no valor de €25.834.480,43, tendo-se apurado um valor total de IRC a recuperar de €1.719.438,93.
8- Na sequência da entrega da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC do grupo, foi emitida a liquidação de IRC n.º 2015..., da qual resultou montante a reembolsar de € 1.588.026,76.
9- A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva interna, em sede de IRC, credenciada pela Ordem de Serviço n.º 2017..., relativa ao período de 2014.
10- A referida inspecção procedeu a uma correcção ao lucro tributável apurado pelo grupo através da desconsideração do montante de €6.693.848,45, referente ao lucro tributável apurado pela “C..., SA”, pelo facto de a AT ter considerado que tal sociedade não se encontrava abrangida pelo RETGS.
11- Em consequência disso, o resultado fiscal do grupo a que pertence a Requerente sofreu uma alteração, diminuindo para o valor de €19.140.631,98.
12- Na sequência das propostas de correção notificadas à Requerente, esta procedeu, no decurso da acção inspectiva, à entrega de uma declaração de rendimentos modelo 22 de IRC de substituição, relativa ao ano de 2014.
13- Na sequência disso, foi emitida a declaração de IRC n.º 2018..., na qual se apurou uma matéria coletável de €19.055.862,58 e um valor a reembolsar de €1.710.371,19.
14- À matéria coletável apurada foi aplicada a taxa de IRC de 23%.
15- Da aplicação da taxa de 23% resultou uma coleta de IRC de €4.382.848,39 e um valor de derrama estadual de €507.729,20.
16- Não se conformando com a taxa de IRC aplicada, a Requerente apresentou em 30-01-2019, um pedido de revisão oficiosa tendo por objecto a liquidação de IRC n.º 2018..., referente ao ano de 2014.
17- Em 13-02-2019, a AT notificou a Requerente do projecto de decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e para, querendo, exercer direito de audição, nos termos do artigo 60.º da LGT.
18- A Requerente não exerceu direito de audição.
19- Através do despacho proferido em 13-03-2019, a AT indeferiu o pedido de revisão oficiosa.
20- Da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa consta a seguinte fundamentação:
[omissis]
*
2.1.2.-Na decisão arbitral fundamento proferida no processo nº412/2019-T foi dada como provada a seguinte matéria factual, tal como consta em www.caad.pt:

a) A Requerente é uma sociedade comercial que tem como objeto social a atividade de representação, produção, exportação, importação e comercialização de confeções e, nesse âmbito, como atividade principal o comércio de pronto a vestir de criança e adulto e acessórios sob a marca “...”. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]
b) Relativamente aos exercícios de 2014 e de 2015, a Requerente adotou um período especial de tributação, sendo que o exercício de 2014 teve início em 01.02.2014 e termo em 31.01.2015 e o exercício de 2015 teve início em 01.02.2015 e termo em 31.01.2016. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]
c) Até 2014, o capital social da Requerente foi detido pela sociedade “B..., S. A.”, sendo participada, indiretamente, pelo Grupo C... . [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]
d) No decurso do exercício de 2014, concretamente a partir de 11.07.2014, em virtude da liquidação da sociedade “B..., S. A.”, a Requerente passou a ser detida pela “D..., S.A.” (doravante, “D...”), mantendo-se a participação indireta no capital por parte do Grupo C... . [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]
e) Sendo a “D...” a empresa dominante de um grupo de sociedades, tributado de acordo com o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), a Requerente ficou integrada nesse mesmo Grupo. [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]
f) A “D...” submeteu as declarações Modelo 22 de IRC, do Grupo, para os exercícios de 2014 e de 2015, considerando a Requerente como empresa-filha (dominada), o mesmo tendo acontecido com esta última que submeteu as respetivas declarações Modelo 22 de IRC para os exercícios de 2014 e de 2015 segundo o RETGS, indicando como sociedade-mãe a “D...”. [cf. documentos n.ºs 5, 6 e 7 anexos ao PPA e PA]
g) A coberto das Ordens de Serviço n.º OI2017... e n.º OI2017..., a Requerente foi sujeita a um procedimento inspetivo externo, em sede de IRC, relativamente aos exercícios de 2014 e de 2015, no âmbito do qual foi elaborado o respetivo Relatório de Inspeção Tributária, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, no qual, além do mais, foi aduzido o seguinte [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA e PA]:
«Nos termos da alínea b), do n.º 3, do artigo 69.º do CIRC:
"3 - A opção pela aplicação do regime especial de tributação dos grupos de sociedades só pode ser formulada quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
b) A sociedade dominante detém a participação na sociedade dominada há mais de um ano, com referência à data em que se inicia a aplicação do regime;
c)
d) …” (sublinhado nosso)
No caso da A..., o requisito da alínea b) não se verifica relativamente ao exercício de 2014, na medida em que a sociedade dominante (D...) só passou a deter a A... em 11/07/2014. Esta é a data considerada para aplicação do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), sendo que a lei determina que tenha de passar um ano sobre esta data para que a opção pela aplicação do RETGS possa ser formulada. Assim, só após 11/07/2015, é que a A... estaria em condições de integrar o Grupo D..., Por outro lado e uma vez que a A... tem período especial de tributação (PET) com início a 1 de fevereiro, só a partir de 01-02-2016 se pode considerar a A... como integrando o Grupo D... .
Acontece que a D... submeteu as declarações Modelo 22 de IRC, do Grupo, para os exercícios de 2014 e 2015, considerando a A... como empresa-filha (dominada) quando tal ainda não era possível. O mesmo aconteceu com a A... que submeteu as respetivas declarações Modelo 22 de IRC para os exercícios de 2014 e 2015 segundo o regime geral de tributação dos grupos de sociedades, indicando, como sociedade-mãe, a D..., quando tal não poderia ter acontecido, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 69.º do CIRC.
Assim, visto que a situação descrita está sujeita a tributação e essa tributação terá de ser efetuada na esfera das duas entidades em referência, da seguinte forma:
• Na A..., LDA NIF..., através da liquidação de declarações individuais de rendimentos para os exercícios de 2014 e 2015, em substituição das anteriormente entregues cuja liquidação ocorreu em sede de regime especial de tributação de Grupo de sociedades;
• Na D..., S.A. – NIF..., através da submissão de novas declarações de rendimentos do Grupo uma vez que, nesses exercícios de 2014 e 2015, a A... figurou como uma das empresas integrantes do Grupo quando tal não acontecia.»
h) No decurso do referido procedimento inspetivo, a Requerente apresentou novas declarações Modelo 22 de IRC, atinentes aos exercícios de 2014 e de 2015, a fim de serem alvo de liquidação a título individual, ou seja, de acordo com o regime geral de IRC. [cf. documentos n.ºs 5 e 8 anexos ao PPA e PA]
i) Nessa sequência, em 17.01.2019 foi emitida a liquidação adicional de IRC n.º 2019..., referente ao exercício de 2014, nos termos da qual foi apurada matéria coletável no valor de € 2.008.154,53, coleta total no montante de € 616.767,22 e um valor a reembolsar de € 3.090,61. [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA]
j) Como decorre da mencionada liquidação adicional de IRC, à matéria coletável apurada, no valor de € 2.008.154,53, foi aplicada, por definição do sistema informático da AT, a taxa de IRC de 23% à parte afeta ao Continente e à Região Autónoma da Madeira e a taxa de IRC de 18,40% à parte afeta à Região Autónoma dos Açores. [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA]
k) Em 30.01.2019, a Requerente deduziu pedido de revisão oficiosa relativamente ao ato de liquidação adicional de IRC mencionado no facto provado i), nos termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, o qual foi autuado sob o n.º ...2019... e correu termos na Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes. [cf. documento n.º 9 anexo ao PPA e PA]
l) No âmbito daquele pedido de revisão oficiosa, foi elaborado o projeto de decisão que aqui se dá por inteiramente reproduzido, no sentido do respetivo indeferimento, com base na seguinte fundamentação [cf. documento n.º 10 anexo ao PPA e PA]:
«§IV. DA ANÁLISE DO PEDIDO
(…)
§IV.I. Do cálculo de imposto
§IV.I.I. Alteração da taxa de IRC – aplicação da lei no tempo
(…)
§IV.I.I.II. Da apreciação
26. De acordo com o entendimento da DSIRC constante da Informação n.º .../2016, sancionada por despacho da Subdiretora Geral de 04/05/2017, em direito fiscal o princípio da anualidade assume especial relevância no que respeita aos impostos sobre o rendimento, na medida em que segmenta em termos anuais o respetivo regime, construindo períodos tributários temporalmente delimitados (Artigo 8.º do CIRC).
27. Assim, em sede de IRC, em conformidade com o princípio da anualidade dos impostos, estabeleceu-se que o lucro tributável das empresas será determinado anualmente, correspondendo, em regra, cada período de tributação, ao ano civil.
28. Com efeito, nos termos do artigo 8.º, n.º 1 do CIRC, o IRC é devido por cada período económico .
29. No caso em apreço, uma vez que a Requerente adotou um período de tributação não coincidente com o ano civil, o período de 2014 iniciou-se a 1 de fevereiro de 2014 e terminou a 31 de Janeiro de 2015.
30. Logo, a lei nova tem aplicação a todos os factos e situações ocorridos no período em que entra em vigor, ou seja in casu em 2015, que para a Requerente iniciou-se em 1 de fevereiro de 2015.
31. Ora, todos os anos, no final do ano civil, com a publicação do Orçamento do Estado, se verificam alterações ao CIRC, cujas normas, regra geral, se vão aplicar ao período de tributação do ano seguinte. E, não é por este facto, que o sujeito passivo, em virtude de ter um período de tributação diferente do ano civil, aplica as regras de um ano para a parte do período de tributação que decorre em determinado ano e as regras de outro ano para o período do ano seguinte.
32. De facto, ao período de tributação que se inicia em 1 de fevereiro de 2014 e termina em 31 de janeiro de 2015, aplicam-se as regras do CIRC em vigor no período de tributação de 2014 e, ao período de tributação que se inicia em 1 de fevereiro de 2015 e termina em 31 de janeiro de 2016, aplicam-se as regras do CIRC, em vigor para o período de 2015 e assim sucessivamente.
33. Pelo que, não se verifica qualquer questão de aplicação retroativa em relação ao IRC, uma vez que a obrigação tributária nasce depois da aprovação e publicação da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro de 2014 isto é, o disposto no n.º 1 do artigo 87.º do CIRC apenas se aplica aos períodos de tributação com início em ou após 1 de janeiro de 2015.
34. Destarte, a taxa de IRC para o período de 2014 é de 23%, nos termos da redação em vigor para os períodos de tributação que se iniciassem em ou após 1 de Janeiro de 2014, dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que implementou a Reforma do IRC.
35. De facto, em conformidade com o disposto no artigo 14.º daquela lei: "Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de Janeiro de 2014”.
36. Por outro lado, tendo em conta a inexistência de disposição transitória relativa à alteração da taxa de IRC e à sua aplicação temporal, relativamente à Lei do Orçamento do Estado de 2015 é aplicável o artigo 12.º, n.º 2 da LGT sobre a aplicação da lei tributária no tempo, que dispõe. "Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”.
37. Desta forma, face à hipotética situação de ter havido o agravamento da taxa de IRC, ao contrário do que sucedeu, segundo a tese defendida pela Requerente, dever-se-ia ainda aplicar a nova taxa agravada a todo o período de 2014 que se iniciou em 1 de fevereiro de 2014.
38. Ora, obviamente tal não seria aceitável face ao princípio da não retroatividade dos impostos (artigo 103.º, n.º 3 da CRP).
39. Assim, não assiste razão à Requerente, sendo de aplicar a taxa de IRC de 23% ao exercício económico iniciado em 2014.
40. Cumpre ainda referir que, por não se verificarem in casu os pressupostos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, designadamente pelo facto de a liquidação ora contestada não enfermar de qualquer erro ou vício imputável aos serviços, pugnamos, também pela improcedência do pedido de juros indemnizatórios.»
m) Por ofício, datado de 14.02.2019, da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, a Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e para, querendo, exercer o direito de audição, o que a Requerente não fez. [cf. documento n.º 10 anexo ao PPA e PA]
n) Posteriormente, por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, datado de 13.03.2019, foi proferida decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, com a fundamentação constante da informação n.º ...-AIR1/2019 e que reproduz integralmente a supra referenciada no facto provado l). [cf. documento n.º 1 anexo ao PPA e PA]
o) A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa por ofício, datado de 13.03.2019, da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes. [cf. documento n.º 1 anexo ao PPA e PA]
p) Em 14.06.2019, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD].

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2.2.- Motivação de Direito

2.2.1.- Questão prévia da admissibilidade da junção do documento

Antes de tudo há que solver a questão prévia da admissibilidade da junção do documento que a recorrente veio requerer, ao abrigo do Princípio da Colaboração, e que se trata da decisão arbitral do CAAD, datada de 22/08/2020 e proferida no processo n.º 783/2019-T, já transitada.
Como ressalta do relato supra, tal junção foi requerida após a emissão do Parecer pela EPGA, portanto, posteriormente à apresentação das alegações recursórias e visando demonstrar o desacerto da decisão recorrida.
Notificada de tal pedido, a Recorrida, nada disse.
Já a Distinta Magistrada do Ministério Público, notificada para o efeito, pronunciou-se no sentido de que deve ser de indeferir a sua junção pois o Doc. que a Recorrente pretende juntar não foi apresentado com as alegações de recurso, e ainda que o fosse, não poderia ser admitida a sua junção por não se enquadrar em nenhuma das excepções justificativas previstas na lei e que doutamente refere.
Aquilatando.
A junção de documentos com as alegações de recurso assume na nossa lei processual natureza verdadeiramente excepcional, conforme advém do estatuído nos artigos 423.º, 425.º e 651.º, todos do CPC.
Assim a regra geral (princípio da oportunidade da prova) é a de que «Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes» [artigo 423.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável aos nossos autos por força do disposto no artigo 2.º, al. e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)].
No entanto, o legislador admite excepções à aludida regra, uma das quais (a que aqui releva) é a junção de documentos apenas em sede de recurso jurisdicional, situação incidental regulada no artigo 651.º, n.º 1, do CPC, de acordo com a qual as partes apenas podem juntar documentos com as alegações em três tipos de situações: (i) - quando os documentos se destinem a provar factos posteriores aos articulados; (ii) - quando os documentos se destinem a provar factos posteriores aos articulados ou quando a sua junção se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior; (iii) -quando a sua apresentação apenas se revele necessária devido ao julgamento proferido em 1.ª instância.
Ora, como bem enfatiza a EPGA, na decisão contida no documento que a requerente pretende juntar ao processo, discute-se a questão em apreciação nos presentes autos e, como é bom de ver, esta decidiu no sentido que a Recorrente pretende.
Mas, o certo é que a decisão que o Recorrente pretende juntar, não só não foi apresentada com as alegações de recurso, como, ainda que o fosse, não poderia ser admitida a sua junção por não se enquadrar em nenhuma das excepções justificativas atrás mencionadas.
É que se naquela fase processual não era admissível a sua junção, por maioria de razão, após a apresentação das alegações de recurso, também não o será, tanto mais que é notório que a pretendida junção não tem por finalidade uma melhor aplicação do direito ao facto concreto, mas antes tentar influenciar o sentido da decisão.
Acrescendo o que, com pertinência e decisivamente, objecta a recorrida no sentido de que a apreciação dos pressupostos do recurso em causa são-no sempre por referência ao acórdão fundamento já indicado, assim como a respectiva solução jurídica quanto à questão a decidir, pelo que não se prognostica como relevante a decisão arbitral agora junta para a decisão do recurso e a composição da lide.
Sendo assim, e em conformidade com a conclusão extraída, é de indeferir, por manifesta falta de fundamento legal, o pedido de junção de documento apresentado, a justificar a ordem de desentranhamento e a condenação da Recorrente em custas pelo incidente a que deu causa, nos termos do artigo 7.º, n.ºs 4 e 8 do Regulamento das Custas Processuais (RCP), e tabela II do mesmo diploma, que se fixa desde já em 1 UC.
*

2.2.2.- Objecto de recurso

Em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pela recorrente, a questão que cumpre decidir subsume-se a saber se a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento se encontram em manifesta e evidente contradição, na medida em que defenderam soluções opostas quanto à interpretação e aplicação do disposto no artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC, atendendo ao facto de o período de tributação de 2014 da recorrente terminar em 31 de Janeiro de 2015, não coincidindo com o ano civil, e estando nessa data já em vigor a nova taxa de IRC de 21%, introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2015, qual seria a taxa aplicável ao caso dos autos – se a taxa de 23% prevista no artigo 87.º, n.º 1, na redacção dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ou a taxa de 21% prevista no artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC, resultado da alteração introduzida pelo artigo 192.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2015).
À guisa de enquadramento, diga-se que a Decisão Arbitral datada de 27 de Fevereiro de 2020, proferida pelo Tribunal Arbitral Colectivo constituído no processo que, sob o n.º 411/2019-T, correu termos no CAAD, e julgou improcedente o Pedido de Pronúncia Arbitral visando a declaração de ilegalidade parcial do Acto Tributário de Liquidação de IRC n.º 2018 2610484082, relativo ao ano de 2014, com um valor a reembolsar de €1.710.371,19, e a restituição do valor de €381.117,25, assim como da decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa que teve o referido Acto Tributário como objecto, por contradição e consequente oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com a Decisão Arbitral de 20 de Dezembro de 2019, disponível em www.caad.org.pt. proferida pelo Tribunal Arbitral Singular constituído no processo que, sob o n.º412/2019-T, correu termos no CAAD e transitada em julgado.
Para a recorrente, a existência dessa divergência é de molde a permitir o recurso para uniformização de jurisprudência, consubstanciado no artigo 152.º do CPTA.

Vejamos.

2.2.2.1.- Da admissibilidade do recurso de uniformização

Importa, então e preliminarmente, perante o circunstancialismo fáctico-jurídico seleccionado, aquilatar da verificação dos requisitos do recurso por oposição quanto à mesma questão fundamental de direito previsto pelo artº 25º, nº 2 do RJAT (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, DL nº 10/2011, de 20/1) na redacção da lei nº119/2019, de 18/09.
Consoante o disposto no nº 2 do art. 25º do RJAT (DL nº 10/2011, de 20/1) a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.
A este recurso é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no artigo 152º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral (cfr. o nº 3 do mesmo art. 25º).
O único requisito explicitamente referido para a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência (152º do CPTA) é a existência de contradição entre a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito.
Na ausência de qualquer expresso tratamento legislativo neste domínio serão de acatar os critérios jurisprudenciais já fixados na vigência da LPTA e do ETAF quer relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deverá existir contradição, quer quanto à verificação da oposição de julgados.
Nessa senda, os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação sempre que, durante o intervalo da sua publicação, não tenha sido introduzida qualquer alteração legislativa substancial que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
No tocante à existência da oposição, impõe-se que a mesma norma jurídica tenha sido interpretada e aplicada diversamente numa idêntica situação de facto, não podendo ser considerada quando relativamente a um dos acórdãos em oposição vier a ser assinalada uma divergência sobre a factualidade apurada que puder ser determinante para a aplicação de um diferente regime jurídico.
A oposição deverá resultar de expressa resolução da questão de direito suscitada, não sendo atendível a oposição implícita dos julgados, o que acarreta que tenha havido julgamento contraditório sobre questões que tenham sido colocadas à apreciação do tribunal e sobre as quais este carecia de emitir pronúncia – cf., neste sentido, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, Ed. Almedina, págs. 608/609, e, entre muitos outros, acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 05.05.1992, in AP.DR de 29.11.1994, pág. 426, de 18.02.1998, recurso 28637, de 26.09.2007, recurso 452/07, de 21.05.2008, recurso 460/07, de 13.11.2013, recurso 594/12, de 26.03.2014, recurso 865/13, de 07.05.2014, recurso 60/14, de 25.02.2015, recurso 964/14, e de 18.03.2015, recurso 525/14, de 11/12/2019, Recurso nº 46/19.5BALSB, de 04-11-2020, Recurso nº 24/20.1BALSB, de 09/12/2020, Recurso nº 43/20.8BALSB e de 20-01-2021, Recurso nº 60/20.1BALSB, todos in www.dgsi.pt.
Não obstante, determina o n.º 3 do artigo 152.º que, "o recurso não é admitido se a orientação perfilhada na decisão impugnada estiver de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.”
Em suma e evocando Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª edição revista, 2007, página 883, e o Acórdão do STA-SCA, de 2012.07.05-P. 01168/1 disponível no sítio da Internet wvww.dgsí.pt, são requisitos do prosseguimento do presente recurso para uniformização de jurisprudência: (i) contradição entre um acórdão do TCA ou do STA e a decisão arbitral; (ii) trânsito em julgado do acórdão fundamento; (iii) existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito; (iv) ser a orientação perfilhada no acórdão impugnado desconforme com a jurisprudência mais recentemente consolidada do STA.
Acresce que, quanto à caracterização da questão fundamental de direito, é exigível a identidade da questão de direito sobre a qual incidiu o acórdão em oposição, que tem pressuposta a identidade dos respectivos pressupostos de facto, oposição que terá de emergir de decisões expressas, e não apenas implícitas, não obstando ao reconhecimento da existência da contradição que os acórdãos sejam proferidos na vigência de diplomas legais diversos se as normas aplicadas contiverem regulamentação essencialmente idêntica. E as normas diversamente aplicadas podem ser substantivas ou processuais, podendo ser invocados mais de um acórdão fundamento, desde que as questões sobre as quais existam soluções antagónicas sejam distintas em oposição ao acórdão recorrido.
*

2.2.2.2.- Da análise do caso concreto:

No caso posto, seguindo a factualidade fixada nas decisões fundamento e recorrida, a situação de paridade que importa considerar é a seguinte:


(i) -Acórdão Fundamento:

O mesmo versa sobre um procedimento interno de inspecção atinente ao IRC de 2014, no âmbito do qual a AT realizou correcções à matéria tributável que se traduziram num acréscimo à mesma, o qual adveio do facto de a requerente, relativamente aos exercícios de 2014 e de 2015, ter adoptado um período especial de tributação, sendo que o exercício de 2014 teve início em 01.02.2014 e termo em 31.01.2015 e o exercício de 2015 teve início em 01.02.2015 e termo em 31.01.2016.
Até 2014, o capital social da Requerente foi detido por outra sociedade, sendo participada, indirectamente, por um determinado Grupo e, porque a empresa dominante de um grupo de sociedades, tributado de acordo com o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), a Requerente ficou integrada nesse mesmo Grupo.
Foram submetidas as declarações Modelo 22 de IRC, do Grupo, para os exercícios de 2014 e de 2015, considerando a Requerente como empresa-filha (dominada), o mesmo tendo acontecido com esta última que submeteu as respectivas declarações Modelo 22 de IRC para os exercícios de 2014 e de 2015 segundo o RETGS, indicando a sociedade-mãe.
A coberto de Ordens de Serviço, a Requerente foi sujeita a um procedimento inspectivo externo, em sede de IRC, relativamente aos exercícios de 2014 e de 2015, no âmbito do qual foi elaborado o respectivo Relatório de Inspecção Tributária, sendo que no decurso desse procedimento inspectivo, a Requerente apresentou novas declarações Modelo 22 de IRC, atinentes aos exercícios de 2014 e de 2015, a fim de serem alvo de liquidação a título individual, ou seja, de acordo com o regime geral de IRC.
Nessa sequência, em 17.01.2019 foi emitida a liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2014, nos termos da qual foi apurada matéria colectável à qual foi aplicada, por definição do sistema informático da AT, a taxa de IRC de 23% à parte afecta ao Continente e à Região Autónoma da Madeira e a taxa de IRC de 18,40% à parte afecta à Região Autónoma dos Açores.
Em 30.01.2019, a Requerente deduziu pedido de revisão oficiosa relativamente ao acto de liquidação adicional de IRC antes referido que negou razão à Requerente na consideração de que era aplicável a taxa de IRC de 23% ao exercício económico iniciado em 2014.
A Requerente foi notificada do projecto de decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e para, querendo, exercer o direito de audição, o que a Requerente não fez, pelo que, por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, datado de 13.03.2019, foi proferida decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa por ofício, datado de 13.03.2019, da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes.
Em 14.06.2019, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
A decisão (arbitral) fundamento, considerou que a taxa de IRC aplicável era a taxa de 21%, por ser a que estava em vigor no momento da verificação do facto tributário em sede de IRC (em 31 de Janeiro de 2015), dado que a Lei do Orçamento do Estado para 2015, havia revogado a anterior redacção do artigo 87.º n.º 1 do Código do IRC e, portanto, a anterior taxa de IRC de 23%, não tendo previsto quaisquer disposições transitórias relativas à alteração da taxa de IRC e à sua aplicação temporal.
Enfim, a Decisão Arbitral Fundamento considerou que a lei nova e, portanto, a taxa de IRC de 21% era imediatamente aplicável aos factos posteriores à sua entrada em vigor, uma vez que só no momento da verificação do facto gerador do imposto é que o facto tributário está total e integralmente completo e verificado, o que pressupõe necessariamente que a tributação seja feita de acordo com a lei que esteja em vigor nesse momento, isto é, no termo no exercício.

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(ii) -Acórdão Recorrido:

A Requerente é uma sociedade de direito português que se dedica ao “comércio de pronto a vestir de criança e adulto, fios de algodão e lãs, retrosarias, tecidos e miudezas” a que corresponde o CAE 47711.
Em 29-04-2014, foi constituído um grupo abrangido pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades, sendo a Requerente a sociedade dominante.
O grupo adoptou um período de tributação não coincidente com o ano civil, com início a 01-02-2014.
Em 2015, a Requerente deixou de ser a sociedade dominante do grupo, assumindo essa posição uma sociedade de direito espanhol.
Por referência ao período de tributação de 2014, em 29-06-2015, a Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC individual.
Na qualidade de sociedade dominante do grupo, a Requerente procedeu em 30-06-2015, à declaração de rendimentos modelo 22 de IRC do grupo.
Na sequência da entrega da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC do grupo, foi emitida a liquidação de IRC.
A Requerente foi sujeita a um procedimento inspectivo externo, em sede de IRC, relativamente aos exercícios de 2014, no âmbito do qual foi elaborado o respectivo Relatório de Inspecção Tributária, tendo a AT procedido a uma correcção ao lucro tributável apurado pelo grupo.
Na sequência das propostas de correcção notificadas à Requerente, esta procedeu, no decurso da acção inspectiva, à entrega de uma declaração de rendimentos modelo 22 de IRC de substituição, relativa ao ano de 2014.
Na sequência disso, foi efectuada liquidação de IRC na qual se apurou uma matéria colectável à qual foi aplicada a taxa de IRC de 23%.
Não se conformando com a taxa de IRC aplicada, a Requerente apresentou em 30-01-2019, um pedido de revisão oficiosa relativamente ao acto de liquidação adicional de IRC antes referido que negou razão à Requerente na consideração de que era aplicável a taxa de IRC de 23% ao exercício económico iniciado em 2014.
A Requerente foi notificada do projecto de decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e para, querendo, exercer o direito de audição, o que a Requerente não fez, pelo que foi proferida decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
Através do despacho proferido em 13-03-2019, a AT indeferiu o pedido de revisão oficiosa.
Seguidamente, examinando o caso concreto, na decisão recorrida expendeu-se que a taxa aplicável era a de 23% prevista no artigo 87.º n.º 1 do Código do IRC (na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro), por ser a que se encontrava em vigor no momento da verificação do facto tributário em sede de IRC (em 31 de Janeiro de 2015), uma vez que o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, não tinha sido revogado por qualquer outra norma ou diploma legal, incluindo a Lei do Orçamento do Estado para 2015.
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2.2.2.3.-Da contradição entre os dois arestos

Entendemos que, sendo patente a identidade factual nas situações versadas em cada um deles, também é manifesta a contradição entre os dois arestos no que tange à mesma questão fundamental de direito consubstanciada na determinação sobre se a taxa de IRC aplicável era a taxa de 21%, por ser a que estava em vigor no momento da verificação do facto tributário em sede de IRC (em 31 de Janeiro de 2015), dado que a Lei do Orçamento do Estado para 2015, havia revogado a anterior redacção do artigo 87.º n.º 1 do Código do IRC e, portanto, a anterior taxa de IRC de 23%, não tendo previsto quaisquer disposições transitórias relativas à alteração da taxa de IRC e à sua aplicação temporal ou, por outro lado, a de 23% anteriormente prevista.
Materializando, flui do antes sintetizado que o acórdão fundamento sustenta que a lei nova e, portanto, a taxa de IRC de 21%, é imediatamente aplicável aos factos posteriores à sua entrada em vigor, uma vez que só no momento da verificação do facto gerador do imposto é que o facto tributário está total e integralmente completo e verificado, o que pressupõe necessariamente que a tributação seja feita de acordo com a lei que esteja em vigor nesse momento, isto é, no termo no exercício; já o acórdão arbitral recorrido, professa a posição contrária, asseverando que o art.º 14.º da Lei 2/2014 deverá ser interpretado como dispondo no sentido de que as normas daquela Lei se apliquem ao período de tributação de 2014, relativamente à tributação, em IRS ou IRC, que assente naquele, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação, também em IRS ou IRC, que não assente no período de tributação, e que, aquele art.º 14.º se encontrava em vigor a 31 de Janeiro de 2015, e, como tal, deve aplicar-se ao período de tributação de 2014 da Requerente, que findou nesse ano, e que não obstará, naturalmente, à conclusão retirada o disposto no art.º 12.º da LGT, na medida em que, como se expôs, o art.º 14.º em questão deverá ser entendido como uma norma especial, e, como tal, prevalecente na matéria que regula, relativamente àquele.
Destarte, afigura-se-nos que a questão fundamental de direito, foi decidida em sentido divergente, o que permite dar como verificada a desarmonia das decisões que justifica a prossecução do recurso por oposição de julgados, assim se devendo passar ao conhecimento do mérito do recurso.
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2.2.3.-Do mérito do recurso
Ponderemos então em que sentido deve ser solucionado o pedido de uniformização de jurisprudência entre as duas decisões arbitrais e cuja questão de fundo se circunscreve à aplicação da taxa de IRC – ou de 23% prevista no artigo 87.º n.º 1, na redacção dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ou de 21% prevista no artigo 87.º n.º 1 do Código do IRC resultado da alteração introduzida pelo artigo 192.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado de 2015) - atendendo ao facto de o período de tributação de 2014 da recorrente ter terminado em 31 de Janeiro de 2015, não coincidindo assim com o ano civil, estando nessa data já em vigor a nova taxa de IRC de 21%, introduzida pela lei do Orçamento do Estado para 2015.
Na tese da recorrente, a Decisão Arbitral Fundamento considerou a lei nova e, portanto, a taxa de IRC de 21% imediatamente aplicável aos factos posteriores à sua entrada em vigor, uma vez que só no momento da verificação do facto gerador do imposto é que o facto tributário está total e integralmente completo e verificado, o que pressupõe necessariamente que a tributação seja feita de acordo com a lei que esteja em vigor nesse momento, isto é, no termo no exercício.
É que, aduz a Recorrente, no seu caso, precisamente pelo facto de o seu exercício de 2014 não coincidir com o ano civil, iniciando-se a 01 de Fevereiro de 2014 e terminando a 31 de Janeiro de 2015, o facto gerador do imposto apesar de ter carácter continuado ou de formação sucessiva, só se completou nesta última data, como previsto no artigo 8.º n.º 9 do Código do IRC, quando já estava em vigor a nova taxa de IRC de 21%, não existindo quaisquer disposições transitórias para a aplicação temporal desta nova taxa de IRC, particularmente para regular os casos de sujeitos passivos que, como a Recorrente, adoptaram períodos de tributação não coincidentes com o ano civil.
Mais adita a recorrente que em matéria de aplicação da lei fiscal no tempo, dado que o legislador previu no artigo 8.º n.º 9 do Código do IRC que o facto tributário (de formação sucessiva) se produz no último dia do período de tributação, tal circunstância exclui a aplicação da regra prevista no artigo 12.º n.º 2 da LGT.
Já a recorrida AT assume a posição que é, de resto, a posição do EPGA, de adoptar a solução prescrita no acórdão recorrido.
Fazendo apelo à fundamentação desse aresto, dela brota claramente que foi adoptado o entendimento, contrariando até a fundamentação de outro acórdão arbitral proferido em primeira linha, de que não está em causa determinar se a taxa de IRC genericamente em vigor a 31 de Janeiro de 2015 era ou não 21%, nem aferir se o facto tributário sujeito a imposto pela liquidação impugnada se verificou naquela data, pois isso é inquestionável, mas, sim, aquilatar se, e em que termos, o aludido art.º 14.° estava, ou não, em vigor, no dia 31 de Janeiro de 2015.
Ora, no tangente a essa questão, expõem-se na decisão recorrida as razões porque considerou que «o art.º 14.º da Lei 2/2014 deverá ser interpretado como dispondo no sentido de que as normas daquela Lei se apliquem ao período de tributação de 2014, relativamente à tributação, em IRS ou IRC, que assente naquele, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação, também em IRS ou IRC, que não assente no período de tributação», extraindo a conclusão de que, «aquele art.º 14.º se encontrava em vigor a 31 de Janeiro de 2015, e, como tal, deve aplicar-se ao período de tributação de 2014 da Requerente, que findou nesse ano.», e, ainda, que «não obstará, naturalmente, à conclusão retirada o disposto no art.º 12.° da LGT, na medida em que, como se expôs, o art.º 14.º em questão deverá ser entendido como uma norma especial, e, como tal, prevalecente na matéria que regula, relativamente àquele».
Coerentemente, ampara a decisão recorrida que «à luz da interpretação da norma do art.º 14.° da Lei n.º 2/2014, atrás exposto, incluindo a configuração daquele como uma norma especial em relação ao art.º 12.° da LGT, não será possível concluir que o art.º 192.º da Lei n.º 82-B/2014, tenha tido por propósito a revogação daquele art.º 14.°, pelo menos na parte em que se referia à aplicação das normas da Lei que o mesmo integra ao período de tributação de 2014, no caso da tributação em IRS e IRC que tenha por base, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação naqueles impostos que não assente no período de tributação.
Deste modo, concluindo-se, nos termos expostos, que o art.º 14.° da Lei n.º 2/2014 se encontrava vigente a 31/01/2015, na parte em que impõe a aplicação do disposto naquela Lei à tributação em IRS e IRC que assente no período de tributação de 2014, haverá que concluir pela legalidade da atuação da AT, e pela consequente improcedência do pedido arbitral, incluindo os pedidos acessórios».
Entende-se, pois, na decisão recorrida, que a considerar-se que aquela norma vigorava a 31 de Janeiro de 2015, por força da mesma, ter-se-á de considerar que a taxa de imposto aplicável era, ainda, a instituída na Lei que a consagra pelo que importará, numa primeira plana, começar por definir o sentido e alcance do questionado art.º 14.º.
Aqui chegados, é altura de procurar classificar a norma para a sua correcta interpretação.
Ora, tradicionalmente, para além de outras delimitações irrelevantes para o caso em apreço, as normas jurídicas classificam-se em gerais, excepcionais e especiais.
As normas gerais são as “que correspondem a princípios fundamentais do sistema jurídico e por isso constituem o regime-regra do tipo de relações que disciplinam” – cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Noções Fundamentais de Direito Civil, Coimbra Editora, 1973, 6.ª edição revista e ampliada, volume I, página 76.
“Excepcionais são, pelo contrário, as normas que, regulando um sector restrito de relações com uma configuração particular, consagram para o efeito uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundadas em razões especiais, privativas daquele sector de relações.” Ibidem.
Finalmente, as normas especiais são as que “representam, dentro dessa classificação tripartida, os preceitos que, regulando um sector relativamente restrito de casos, consagram uma disciplina nova, mas que não está em directa oposição com a disciplina geral”. Ibidem, página 79.
Assim, a doutrina considera disposições, normas ou mesmo leis excepcionais, aquelas que regulam, por modo contrário ao estabelecido na lei geral, certos factos ou relações jurídicas que, por sua natureza, estariam compreendidos nela; aquelas que precisamente se desviam dos princípios gerais, contrariando as últimas consequências que de tais princípios deveriam logicamente derivar, referindo-se a certas relações sociais que, por sua vez, também se desviam do tipo comum, assumindo uma índole especial ou seja, o direito comum é o direito de um género de relações jurídicas e o excepcional ou anómalo o de uma espécie dentro do género (CABRAL DE MONCADA); aquelas que consagram para certos casos, soluções contrárias às dos princípios gerais de direito admitidos em determinado sistema, revelando-se o carácter excepcional da norma algumas vezes do seu próprio contexto, outras resultando do comando que a contém (RODRIGUES BASTOS); ou aquelas que regulando um sector restrito de relações com uma configuração particular, consagram uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundada em razões especiais, privativas daquele sector de relações (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA).
“Há um certo parentesco entre as normas (ou leis) excepcionais e as normas (ou leis) especiais, mas também existem diferenças profundas. “O que distingue a norma geral da especial é que esta regula matérias ou assuntos diversos das reguladas por aquela, podendo deixar de ser opostas e incompatíveis as respectivas disposições. Pelo contrário, o objecto da lei excepcional é o mesmo da lei geral; simplesmente esta deixa de ser aplicada em certos e determinados casos que, sem a lei excepcional, seriam regulados pela lei geral; de modo que o preceito da lei excepcional é o oposto ou contrário ao da lei geral” (JOSÉ TAVARES).
“Adentro de todos os grupos mais ou menos vastos de relações jurídicas, há outros institutos ou grupos dessas relações cujas normas especiais se afastam das normas do tipo comum em que entram sem constituírem por isso um direito excepcional. Para achar o conceito de direito excepcional, devemos sempre atender, não às particularidades técnicas da regulamentação de cada instituto, ou figura jurídica, dentro de um grupo mais vasto de relações jurídicas, mas à índole especial dos grandes grupos de relações sociais que por razões de utilidade pública exigem uma regulamentação e um direito também excepcionais (CABRAL DE MONCADA)
“Enfim, as normas especiais representam, dentro da classificação tripartida (gerais, excepcionais, especiais) “os preceitos, que regulando um sector relativamente restrito de casos, consagram uma disciplina nova, mas que não está em directa oposição com a disciplina geral” (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA)”.
As concepções antes ditas encontram-se nas seguintes obras e pela ordem indicada: Os Princípios Fundamentais de Direito Civil, vol. I, 1.ª parte (Teoria Geral do Direito Civil), Coimbra, 1929, págs. 150 e segs.; Lições de Direito Civil (Parte Geral), vol. I, Coimbra, 1959, págs. 42 e segs.; Das Leis, sua interpretação e aplicação (segundo o Código Civil de 1966), 1967, pág. 45; e Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, Coimbra, 1965, págs. 76 e segs.
Adita-se ainda que, evocando o ensinamento de DIAS MARQUES, Introdução ao Estudo do Direito, volume I, 2.ª edição, páginas 315 a 321. “(...) o conceito de lei é um conceito relacional, ou seja, não há normas em si mesmas gerais ou especiais, mas antes relações de espécie e género, ou de especialidade e generalidade, entre determinadas normas ou, determinadas matérias normativamente reguladas”.
O conceito de que se parte para a distinção das normas em gerais e especiais refere-se, pois, ao seu domínio de aplicação, devendo assim considerar-se especiais aquelas cujo domínio de aplicação se traduz por um conceito que é espécie em relação ao conceito mais extenso que define o campo de aplicação da norma geral e que figura como seu género.
Nisto consiste a relação lógico-jurídica de especialidade, aditando o mesmo doutrinador que:
“As normas especiais podem configurar-se como desenvolvimentos destinados quer a concretizar princípios gerais ou como complementos deles, quer a integrar os aspectos específicos não contemplados naqueles mesmos princípios, mas também podem apresentar-se, em um ou outro ponto, como desvio ou derrogação aos princípios gerais.
Estas observações respeitantes à diversidade das funções das normas especiais (complemento, integração, derrogação) mostram como podem ser distintas, segundo tais funções, relações lógico-jurídicas intercorrentes entre as normas gerais e as especiais. Tais relações serão de cumulação quando se trate de normas especiais complementares ou integrativas, mas já serão de conflito quando se trata das normas especiais derrogatórias”.
Na sua forma pura, o relacionamento entre lex specialis e lex generalis pressupõe uma antinomia ou contradição normativa, isto é, a imputação, por duas normas, de soluções diferentes (embora referíveis a um mesmo princípio geral) para um mesmo caso (vide SÉRVULO CORREIA, A arbitragem voluntária no Domínio dos Contratos Administrativos, Estudos em Memória do professor Doutor JOÃO CASTRO MENDES, sem data (1995), pp. 240-241, citando BYDLNSKI, Juristische Methodenlehe und Rhtsbegriff, Viena-Nova Iorque, 1982, p. 465, OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 1987, p. 486, e SANTIAGO NINO, Introduccion al Análisis del Derecho, Barcelona, pp. 272-278.”
Volvendo ao caso controvertido e tendo em conta tais princípios e a sua doutrinação, seguindo a tese da recorrida, temos que da mera literalidade do normativo decorreria que, no caso de entidades como a Requerente, que tivessem um período de tributação em IRC não coincidente com o ano civil, se aplicariam as normas da Lei 2/2014, relativamente aos factos tributários ocorridos a partir de 1 de Janeiro de 2014, mesmo que relativos ao exercício de 2013. E ainda se extrairia que as normas da Lei 2/2014, por força do seu art.º 14.º, se aplicariam aos exercícios e factos tributários, ocorridos nos exercícios e anos de 2014 e seguintes, e portanto, abrangendo o facto tributário em causa no presente processo arbitral, a menos que se concluísse que aquele artigo 14.º havia sido revogado.
Nesse conspecto, o tribunal arbitral recorrido exteriorizou a necessidade de, em vista da correcta exegese do art.º 14.º da Lei 2/2014, de o intérprete recorrer a outros elementos que não a letra da lei, mormente à logicidade e teleologia normativa do preceito no segmento que apresenta o seguinte teor, “aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram”.
Nesse sentido, revela-se para nós coerente – o que não significa assertivo - o juízo formulado pelo decisor de que deverá atender-se a que a Lei 2/2014 procede a alterações profundas em sede de IRC e, também, em sede de IRS, impostos estes cuja tributação assenta, por norma, em períodos de tributação, mas que, incidentalmente, podem impor tributação de factos tributários isolados (como seja no caso das tributações autónomas), o que inculca que a referência a “períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram” se não deva ter por alternativa, mas como tendo uma relação de subsidiariedade entre si.
Dito de outro modo: para a decisão sob escrutínio, o que o art.º 14.º da Lei 2/2014 pretenderá dizer é que o disposto nesta lei se aplica aos períodos de tributação, quando esta assente naqueles, e aos factos tributários, quando a tributação não tenha por base aqueles.
Cabe também destacar o raciocínio da decisão recorrida no tocante à compulsação do elemento sistemático da hermenêutica do inciso legal, no sentido de que deve ser qualificado como uma norma especial em relação ao art.º 12.º da LGT, que, o que ao caso releva, textua:
“1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos.
2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.”
Daí que para a decisão recorrida e para a recorrida AT e a EPGA, o discutido art.º 14.º veio dispor sobre o âmbito da vigência temporal das disposições da Lei que integra, e apenas se pode explicar como tendo subjacente o propósito de dispor na matéria de modo distinto do que resultaria da aplicação da referida norma da LGT.
A ser assim, conclui a decisão recorrida apoiada pela AT e pelo Ministério Público, que o art.º 14.º da Lei 2/2014 deverá ser interpretado como dispondo no sentido de que as normas daquela Lei se aplicam ao período de tributação de 2014, relativamente à tributação, em IRS ou IRC, que assente naquele, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação, também em IRS ou IRC, que não assente no período de tributação.
Tal entendimento seria potenciado pelo facto de que inexiste qualquer norma que tenha revogado expressamente aquele art.º 14.º, mormente a Lei n.º 82-B/2014, força a conclusão de que o art.º 14.º da Lei 2/2014 se encontrava em vigor a 31 de Janeiro de 2015, pelo que é aplicável ao período de tributação de 2014 da Requerente, apesar deste somente ter findado na citada data de 31/01/2015.
Isso fundamentalmente porque, in casu, não regeria o disposto no art.º 12.º da LGT, dada a natureza de norma especial que o dito art.º 14.º assume perante os subsídios doutrinários supra citados, sendo, por isso, prevalecente na matéria que regula, não cedendo perante qualquer conclusão que se possa retirar do art. 12º da LGT.
Com efeito à guisa de sinopse breve, como veio de demonstrar-se, são amplamente conhecidos dois dos principais princípios da hierarquização das normas: o princípio de que a lei especial derroga a lei geral e de que a lei posterior derroga a lei anterior.
Estabelecem estes princípios, respectivamente, que:
(i) em tudo quanto uma lei geral se encontre em contradição com uma lei especial, valerá a lei especial;
(ii) em tudo quanto uma lei anterior se encontre em contradição com uma lei posterior, valerá a lei posterior.
Mas será que o polemizado artigo 14.º terá de ser classificado como norma especial, a qual, seguindo a lição de DIAS MARQUES DIAS MARQUES, Introdução ao Estudo do Direito, volume I, 2.ª edição, páginas 315 a 321, mais não configura do que um desvio aos princípios gerais, complementando-os nos casos especiais que abarca, já que não se mostra oposto nem incompatível no confronto com esses mesmos princípios gerais? (Vide JOSÉ TAVARES, Os Princípios Fundamentais de Direito Civil, vol. I, 1.ª parte (Teoria Geral do Direito Civil), Coimbra, 1929, págs. 150 e segs).
Noutra vertente, há ainda que atentar no expendido na decisão recorrida no sentido de que a Lei do Orçamento para 2015 não inclui nenhuma norma que revogue, expressamente, o disposto no referido art.º 14.º, sendo que, a ausência de norma transitória, invocada pela Requerente, e notada na decisão arbitral supracitada, não deverá, de per si, ter-se como patenteando uma intenção revogatória.
É que, a existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos, em um conjunto de vectores tão incisivos que a ela equivalham (cfr. Menezes Cordeiro, Da Aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias in Cadernos de Ciência e Legislação nº 7, 1993, págs. 17 e ss).
Acresce ainda segundo a decisão recorrida sufragada pela AT e pela EPGA, que o art.º 14.º em questão, não se reportará exclusivamente, à alteração da taxa de IRC operada pelo art.º 2.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, abrangendo todas as alterações em matéria tributária, consagradas pela mesma Lei, a maioria das quais continua em vigor, pelo que qualquer revogação que se possa equacionar daquela norma seria, meramente parcial.
Assentando em tal ângulo, sustenta-se no discurso da decisão sob escrutínio que “…, o único entendimento possível que se concebe neste domínio, seria o de que art.º 14.º em causa foi parcialmente revogado, na parte em que impunha a aplicação da alteração ao art.º 87.º/1 do CIRC, operada pelo art.º 2.º da Lei n.º 2/2014, e que tal revogação não se poderá retirar senão da entrada em vigor do art.º 192.º da Lei n.º 82-B/2014, que alterou, novamente, aquele mesmo art.º 87.º/1 do CIRC.
Estaríamos, portanto, perante um caso de revogação tácita parcial da supra referida norma do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, na parte em impunha a aplicação da alteração ao art.º 87.º/1 do CIRC, operada pelo art.º 2.º daquela mesma Lei.
Assim, como ensinava o insigne Mestre João Baptista Machado, “A revogação pode ser expressa ou tácita, total (ab-rogação) ou parcial (derrogação). É (...) tácita quando resulta de incompatibilidade entre as disposições novas e as antigas”.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-05-2007, proferido no processo 4117/2007-7:
“A revogação, que ora nos ocupa, pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei, e pode ser expressa ou tácita, total ou parcial.”
Da revogação que ora tratamos, a tácita, é resultante da incompatibilidade entre as disposições novas e as anteriores, ou ainda, quando a nova lei regula toda a matéria (substituição global).
Todavia, este juízo de incompatibilização decorrente da obrigação tácita entre a lei antiga e a nova lei não surge sempre em segurança para o intérprete. Se a nova lei geral sucede a uma especial, a regra é da coexistência, mas o inverso é duvidoso.
No nosso sistema jurídico vigora a presunção da subsistência do regime especial perante alteração de norma geral - artº 7, nº 3 do CCivil – só cederá perante uma interpretação segura, inequívoca da intenção revogatória do legislador.
Como proceder então perante esta aparente coexistência de normas reguladoras da mesma situação? A solução dependerá caso por caso de identificar qual a ligação entre as normas em questão e sobretudo no fundamento, da razão de ser da nova lei.”.
Efectivamente, julga-se ser este o critério a seguir na delimitação do âmbito de uma revogação tácita, ou seja, dever-se-á identificar qual a ligação entre as normas em questão e sobretudo no fundamento, da razão de ser da nova lei.
Ora, vistas as coisas assim, e à luz da interpretação da norma do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, atrás exposto, incluindo a configuração daquele como uma norma especial em relação ao art.º 12.º da LGT, não será possível concluir que o art.º 192.º da Lei n.º 82-B/2014, tenha tido por propósito a revogação daquele art.º 14.º, pelo menos na parte em que se referia à aplicação das normas da Lei que o mesmo integra ao período de tributação de 2014, no caso da tributação em IRS e IRC que tenha por base, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação naqueles impostos que não assente no período de tributação.”
Na decisão recorrida também é afirmado e é perfilhado pela AT e pela EPGA – diga-se que, em abstracto, assertivamente – que em direito fiscal vigora o princípio da anualidade que se reveste de extrema importância no tangente aos impostos sobre o rendimento, porquanto segmenta em termos anuais o respectivo regime, construindo períodos tributários temporalmente delimitados (Artigo 8.º do CIRC).
Vejamos, então, de que lado está a razão nas vertentes assinaladas.
A regra geral em IRC, por força do referido princípio da anualidade dos impostos, é a de que o lucro tributável das empresas será determinado anualmente, correspondendo, em regra, cada período de tributação, ao ano civil, sendo o IRC devido por cada período económico (cfr. artigo 8.º, n.º 1 do CIRC).
Como sobejamente visto a Recorrente adoptou um período de tributação não coincidente com o ano civil, tendo-se iniciado o período de 2014 a 1 de Fevereiro de 2014 e terminado a 31 de Janeiro de 2015.
Significa que a lei nova tem aplicação a todos os factos e situações ocorridos no período em que entra em vigor, no caso concreto, em 2015, que para a Recorrente teve início em 1 de Fevereiro de 2015?
Como é sabido, no final de cada ano civil, com a publicação do Orçamento do Estado, são introduzidas alterações ao CIRC, cujas normas, regra geral, se vão aplicar ao período de tributação do ano seguinte.
No caso sub judice o litígio acaba por circunscrever-se à determinação da taxa de tributação aplicável, em sede de IRC à ora Recorrente que adoptou um período de tributação não coincidente com o ano civil estando em vigor, no momento em que esse período de iniciou, uma taxa de 23% e, no momento do seu termo, uma taxa de 21%. Dito de modo mais singelo: cumpre aferir se a taxa aplicável é a que vigora no momento em que se inicia o período de tributação ou aquela que está em vigor no seu termo.
Na estrutura do IRC, estatui o artigo 1.º do respectivo Código que este imposto incide sobre os rendimentos obtidos no período de tributação, pelos respectivos sujeitos passivos, explicitando o artigo 3.º, n.º 1, alínea a), que o rendimento tributável, no caso de sociedades comerciais, é constituído pelo lucro que o n.º 2 do mesmo preceito legal define como a “diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código.”
E o lucro tributável das pessoas colectivas, determinado a partir do resultado líquido do exercício, “é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.” (cfr. artº 17.º, n.º 1, do CIRC).
O período de tributação segue a regra da anualidade, sendo, em princípio, coincidente com o ano civil, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 8º do mesmo Código, salvo nos casos expressamente elencados no artigo 8º, n.ºs 4 e 8 – anos do início e cessação de atividade, mudança de período de tributação, sujeição e cessação das condições de sujeição a imposto num mesmo ano, liquidação de pessoa colectiva.
Não obstante, consoante o disposto no n.º 2 do mesmo inciso legal, é facultado às pessoas colectivas com sede ou direcção efectiva em território português, bem como as pessoas colectivas ou outras entidades sujeitas a IRC que não tenham sede nem direcção efectiva neste território e nele disponham de estabelecimento estável, a possibilidade de adoptarem um período anual de imposto não coincidente com o ano civil, na condição de o mesmo coincidir com o período social de prestação de contas e de dever ser mantido durante, pelo menos, os cinco períodos de tributação imediatos.
Salvo tratando-se de rendimentos obtidos por entidades não residentes sem estabelecimento estável em território português, catalogados no artigo 8.º, n.º 10, estabelece o n.º 9 do mesmo preceito que “O facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação.”
E, por injunção normativa do artigo 36.º, n.º 1, da LGT, é o facto gerador, normalmente designado por facto tributário, quer seja instantâneo, quer seja referido a um determinado período temporal, que determina a constituição da relação tributária.
No que para o caso releva, por força do prescrito no n.º 9 do artigo 8.º do CIRC, a relação jurídica tributária, constitui-se no último dia do período de tributação, o que corresponde a dizer que o facto tributário só se completa no último dia do período de tributação.
Por assim ser, adversamente ao sustentado pela recorrente o apuramento da base tributável e da taxa aplicável são as definidas no âmbito da legislação em vigor no momento em que ocorre o facto gerador que, no caso do regime geral do IRC se considera verificado no último dia do período de tributação.
Na verdade, ao prescrever-se no já referido artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC, que "O facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação" procurou o legislador impedir a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 12.º da LGT que, como já visto, firmava uma regra para a aplicação da lei no tempo em caso de impostos periódicos (como são, por natureza, os impostos sobre o rendimento): "Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.".
Sincronicamente, a fixação do facto de tributário no último dia do período de tributação, vai colocar o problema da sucessão da lei mais favorável no tempo no âmbito do n.º 1 daquele artigo da LGT, o qual, salvo na existência de norma que o afaste, fixa que: "As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos."
Ora, o que tal significa é que, para um período de tributação (como sucede com o da Recorrente) iniciado em 1 de Fevereiro de 2014 e que termina a 31 de Janeiro de 2015, o facto tributário só se pode considerar verificado nesta última data.
A frase latina pro rata temporis, em particular em direito e economia, refere-se à distribuição de um valor monetário em segmentos de tempo correspondentes à duração desses segmentos de tempo. Pro rata também significa por proporção pelo que é uma divisão de um valor de acordo com a proporção determinada, é o rateamento do valor, usando como referência a proporcionalidade.
E, pelo acima exposto, nem sequer uma repartição do lucro tributável pro rata temporis (tal como enunciada pelo artigo 12.º, n.º 2 da LGT) é aqui aplicável.
Por esse prisma, é forçoso concluir que a lei aplicável é precisamente aquela que se encontrava plenamente em vigor à data da verificação do facto tributário, propendendo nós a considerar que era a Lei n.º 82-B/2014, de 13 de Dezembro, que estabelecia como taxa de IRC aplicável a taxa de 21%, soçobrando a tese da decisão recorrida quanto à especialidade normativa acima escalpelizada.
Na verdade, a Lei n.º 2/2014, de 16/01, modificou a redacção do artigo 87.º, n.º 1 do CIRC, aí passando a constar que “A taxa do IRC é de 23 %, excepto nos casos previstos nos números seguintes.”
E no tangente à sua aplicação no tempo, concilia o artigo 14.º da aludida Lei que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014.”
Resulta cristalino que a norma em exame, na sequência, aliás, de legislação anterior sobre a aplicação temporal de taxas de IRC em caso de alteração destas, se aplica aos períodos de tributação iniciados em 1/01/2014.
Aliás, mais diremos que, ao invés da posição sufragada na decisão recorrida, é nosso entendimento que a referência aí feita aos efeitos do disposto no artigo 14.º da Lei n.º 2/2014 (que procedeu à Reforma do IRC) não abona em favor da aplicação da taxa de 23% que passou a vigorar por força de tal Lei.
É que tal disposição especial de aplicação da lei fiscal no tempo tem óbvias semelhanças com dispositivos similares que, ao longo do tempo, foram sendo introduzidos no ordenamento fiscal para regular as alterações de taxas de IRC.
Foi o que sucedeu com (i) - o artigo 41.º, n.º 1, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, alterou o artigo 69.º, n.º 1, do Código do IRC, passando este a estatuir que a taxa do IRC é de 36,5%, sendo que o n.º 3 do mesmo artigo 41.º determinava: “O disposto no n.º 1 do artigo 69.º do Código do IRC, com a redação dada pela presente lei, é aplicável aos rendimentos obtidos em períodos de tributação cujo início ocorra a partir de 1 de janeiro de 2000.”; (ii) - o artigo 32.º, n.º 1, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, alterou o então artigo 80.º, n.º 1, do Código do IRC, tendo este passado a estatuir que a taxa de IRC é de 30%, sendo que o n.º 7 do mesmo artigo 32.º estipulava o seguinte: “O disposto no n.º 1 do artigo 80.º aplica-se aos rendimentos obtidos nos períodos de tributação cujo início ocorra a partir de 1 de Janeiro de 2002.”; (iii) - o artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 107-B/2003, de 31 de Dezembro, alterou o artigo 80.º, n.º 1, do Código do IRC, passando este a estatuir que a taxa de IRC é de 25%, estipulando o n.º 2 do mesmo artigo 30.º o seguinte: “O disposto no n.º 1 do artigo 80.º aplica-se aos rendimentos obtidos nos períodos de tributação cujo início ocorra a partir de 1 de Janeiro de 2004.”; (iv) - o artigo 2.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, alterou o então artigo 87.º, n.º 1, do Código do IRC, passando este a estatuir que a taxa de IRC é de 23%, determinando o artigo 14.º do mesmo diploma legislativo, na parte que aqui importa considerar, que “a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014.”.
Ora, é precisamente pelo facto de a Lei n.º 82-B/2014, de 13 de Dezembro, não dispor de semelhante disposição que se levanta toda a presente questão: com a entrada em vigor da nova lei, a sua aplicação vale para os novos factos tributários (como aqueles que ocorrem em 31 de Janeiro de 2015).
Enfatiza-se que a norma em causa contém um segmento que não pode descurar-se e que é decisivo: “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º.” o qual, no atinente à evolução das taxas de IRC, no sentido da sua progressiva redução, prescreve:
“1 - Tendo em conta os resultados alcançados pela reforma da tributação do rendimento das pessoas colectivas operada pela presente lei e em função da avaliação da evolução da situação económica e financeira do país, a taxa prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC deve ser reduzida nos próximos anos, ponderando, simultaneamente, a reformulação dos regimes do IVA e do IRS, especialmente no que diz respeito à redução das taxas destes impostos.
2 - A redução da taxa de IRC prevista no número anterior para 21 % em 2015, bem como a sua fixação num intervalo entre 17 % e 19 % em 2016, será objeto de análise e ponderação por uma comissão de monitorização da reforma a constituir para o efeito.”
Assim, nesse preceito a dita Lei previa já uma redução geral da taxa normal de IRC ao longo dos próximos anos e, ainda que dependente de determinadas condições, uma possível redução de taxa de IRC para 21% já em 2015.
Ou seja, e em reforço do que já antes se disse, a norma ínsita no artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, que rege sobre a sua aplicação no tempo, ao antecipar expressamente que a alteração de taxa aplicável aos exercícios iniciados em 2014 se faz “sem prejuízo” do disposto no artigo 8.º albergará a possibilidade de concretização da prevista redução de taxa para os próximos anos e, particularmente, da redução para 21% em 2015.
Nesse sentido, pontifica o facto de a prevista redução da taxa de IRC para 21% ter sido concretizada pelo artigo 192.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12, que alterou a redacção do artigo 87.º, n.º 1, do Código do IRC.
Sendo embora certo que a lei é omissa quanto à sua aplicação temporal, haverá que concluir que a nova taxa é aplicável nos termos gerais, isto é, a todos os factos tributários que ocorram em ou após o seu início de vigência, conforme decorre do regime geral da aplicação no tempo da lei tributária, consagrado no artigo 12.º da LGT.
Assim, em consonância com o artigo 103.º, n.º 3, da CRP que estabelece o princípio da proibição da retroactividade em matéria tributária e com o princípio consagrada no artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil, prevê no seu n.º 1: “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.”
Tal interpretação é consentânea com os princípios gerais de aplicação da lei no tempo, com o da aplicação imediata mas com respeito pela validade dos actos já praticados, com a letra da lei e com os princípios gerais de aplicação temporal das normas de direito substantivo consagrados no artº 12º do Ccivil.
Na parte final do nº 1 deste preceito consigna-se que «ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular».
Preocupado com a tutela da confiança, segurança e estabilidade dos efeitos jurídicos já produzidos pelos factos, apenas os considera dignos de protecção à luz da lei sob a qual foram produzidos quando deliberadamente seja outra a vontade do legislador expressa na lei nova e conquanto ela não ofenda qualquer princípio constitucional (cfr. artºs. 277º e 207º da Constituição da República).
Seguindo essa linha de raciocínio a Lei Nova só seria aplicável aos actos constituídos antes da sua entrada em vigor se fosse essa a vontade expressa do legislador.
Essa vontade está inequivocamente afirmada como se viu, devendo resolver-se a dúvida, se a houvesse - e não há - com a ressalva de retroactividade constante do nº 1 do artº 12º do Ccivil.
Coloca-se aqui a questão de saber quando é que se entendem produzidos pelos factos que a lei visa regular os efeitos jurídicos, a que o Prof. J. Baptista Machado dá resposta na sua obra «Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil», pág. 125:
«Um efeito de direito produziu-se sob o domínio da LA quando na vigência desta lei se verificaram o facto ou os factos que, de acordo com a respectiva hipótese legal da LA, o desencadeiam».
Assim e ainda de acordo com Baptista Machado, in ob. cit., págs. 99, 100 e Introdução. pág. 234, a lei nova respeita integralmente as situações jurídicas constituídas «ex lege», por força da verificação de certos factos. Por tal razão, além de acobertada dentro da ressalva da parte final do nº 1, também se acha englobada na previsão do nº 2, primeira parte, do referido artº 12º do C. Civil.
Deve por isso concluir-se que a Lei Nova ao dispor sobre os efeitos dos factos, apenas visa os factos novos e que, assim, é inaplicável às situações por ele previstas cujos pressupostos, segundo a lei antiga, ocorreram sob o domínio desta lei, só se aplicando aquele às situações que se tenham constituído pela ocorrência dos factos integradores da respectiva previsão legal a partir do início da sua vigência.
Estamos, no entanto, perante um imposto periódico, em que o facto tributário é de formação sucessiva e o n.º 2 do artigo 12º da LGT consagra um critério de “pro rata temporis” prevendo:
Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.”
O critério do pro rata temporis já foi por nós afastado mas, em reforço argumentativo, diga-se ainda que no campo da tributação do rendimento das pessoas colectivas, que é aquele em que nos encontramos, deparamo-nos com um imposto de periodicidade anual em que não se tributa cada rendimento isoladamente mas o englobamento de todos os rendimentos auferidos no período de tributação, deduzidos dos gastos inerentes, obtendo-se um resultado líquido apurado em conformidade com as normas contabilísticas e sujeito a correcções expressamente previstas no respectivo Código.
Todavia e como já se demonstrou, a regra geral compreendida na norma do n.º 2 do artigo 12.º da LGT soçobra face à determinação consagrada no artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC.
É que, no que concerne à aplicação da lei no tempo e em acatamento do princípio constitucional da proibição de retroactividade da lei fiscal, deve entender-se que a aludida norma do CIRC consagra, uma solução específica prevendo que o facto gerador da obrigação de imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação o que vale por dizer que a lei nova, dada a inexistência de disposição legal em sentido diverso, será aplicável aos factos geradores que ocorram a partir do momento em que a mesma entra em vigor.
Destarte e em vista do caso concreto, uma vez que o facto constitutivo da obrigação tributária ocorreu em 31/01/2015, termo do período anual de tributação por que optou a Recorrente e que nesse momento já estava em vigor a taxa de 21% prevista no artigo 87.º, n.º 1, do Código do IRC, na redacção que lhe foi outorgada pela Lei n.º 87-B/2014, de 31/12, em vigor a partir de 01-01-2015, é esta a taxa aplicável para determinação do montante de imposto relativo ao exercício de 2014.
Daí que seja de seguir a doutrina do acórdão fundamento e validar a tese da recorrente apoiada nas seguintes asserções:
-pelo facto de o seu exercício de 2014 não coincidir com o ano civil, iniciando-se a 01 de Fevereiro de 2014 e terminando a 31 de Janeiro de 2015, o facto gerador do imposto apesar de ser carácter continuado ou de formação sucessiva, só se completou nesta última data, como previsto no artigo 8.º n.º 9 do Código do IRC, quando já estava em vigor a nova taxa de IRC de 21%, não existindo quaisquer disposições transitórias para a aplicação temporal desta nova taxa de IRC, particularmente para regular os casos de sujeitos passivos que adoptaram períodos de tributação não coincidentes com o ano civil;
-em matéria de aplicação da lei fiscal no tempo, dado que o legislador previu no artigo 8.º n.º 9 do Código do IRC que o facto tributário (de formação sucessiva) se produz no último dia do período de tributação, tal circunstância exclui a aplicação da regra prevista no artigo 12.º n.º 2 da LGT;
-assim, atento o disposto no n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC, a formação do facto tributário só se conclui no termo do período anual de tributação, é de excluir a aplicação da regra pro rata temporis constante do n.º 2 do artigo 12.º da LGT o que traz implicado que a lei nova tem aplicação a todos os factos e situações ocorridos no período de tributação em que entra em vigor, uma vez que só no seu termo é que esses factos e situações adquirem a sua configuração integral, pelo que a sua tributação deve ser efetuada em consonância com a lei em vigor no termo do período de tributação;
-no domínio da tributação do rendimento das pessoas colectivas, por força do conceito, da configuração e do âmbito do facto gerador do imposto, o legislador consagrou uma regra especial quanto à aplicação da lei fiscal no tempo e à retroactividade. E esta regra especial resolve directamente os problemas de sucessão de normas fiscais no tempo em matéria de tributação (como o do presente caso) e afasta a regra geral constante do artigo 12.º n.º 2 da LGT;
-destarte, como o período de tributação de 2014 da recorrente terminou em 31 de Janeiro de 2015, não coincidindo assim com o ano civil, e nessa data já estava em vigor a nova taxa de IRC de 21%, introduzida pela lei do Orçamento do Estado para 2015, era essa a taxa aplicável;
-nesse sentido pontificam as considerações doutrinais do Professor Doutor Rui Duarte Morais no sentido de que “ (…) O que resulta coerente com a anualidade dos impostos (desde logo, com a alterações que são introduzidas na lei fiscal por força da Lei do Orçamento, também ele referido a um ano civil). Significa isto que aos sujeitos passivos cujo exercício não coincida com o ano civil serão aplicáveis, no cálculo do lucro tributável e do imposto a pagar relativamente a cada período de doze meses, regras diferentes daquelas a que está sujeita a generalidade dos sujeitos passivos. (...).”. (cfr. Apontamentos ao IRC, Reimpressão da edição de Novembro 2007, Almedina, 2009, págs. 47 e 48);
Por isso, e em conclusão, considera-se aplicável ao facto tributário formado em 31 de Janeiro de 2015 a taxa de 21%, tal como decorre da Lei n.º 82-B/2014, de 13 de Dezembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2015.
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Termos em que o recurso será provido, uniformizando-se jurisprudência no seguinte sentido: “Atento o disposto no n.°9 do artigo 8.º do Código do IRC, que determina que a formação do facto tributário só se conclui no termo do período anual de tributação, e em face do disposto no n.º 1 do art. 12.º da LGT, considera-se aplicável ao facto tributário formado em 31 de Janeiro de 2015 a taxa de 21%, tal como decorre da Lei n.º 82-B/2014, de 13 de Dezembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2015.”

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Deve ser consentida a redução de 90% do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do art. 6.º n.º 7 do R.C.P..
Com efeito, in casu, ponderado o montante da taxa de justiça que será devida, esta se afigura desproporcionada em face do concreto serviço prestado, uma vez que foram várias as questões apreciadas no presente recurso, todas de complexidade superior à comum e que não foram tratadas anteriormente pela jurisprudência, levando-se em ainda conta a conduta dos litigantes e a utilidade económica das pretensões das partes.

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3. – Decisão:

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso e anular a decisão arbitral recorrida fixando-se a seguinte jurisprudência: “Atento o disposto no n.°9 do artigo 8.º do Código do IRC, que determina que a formação do facto tributário só se conclui no termo do período anual de tributação, e em face do disposto no n.º 1 do art. 12.º da LGT, é aplicável ao facto tributário formado em 31 de Janeiro de 2015 a taxa de 21%, tal como decorre da Lei n.º 82-B/2014, de 13 de Dezembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2015.”


Custas pela recorrida com redução de 90% do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do art. 6.º n.º 7 do R.C.P., correspondente ao valor da causa, na parcela excedente a €275.000, atento o grau de complexidade do processado, a conduta dos litigantes e a utilidade económica das pretensões das partes.

Comunique-se ao CAAD.
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Lisboa, 21 de Abril de 2021. – José Gomes Correia (Relator) - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (com a declaração anexa) – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Paulo José Rodrigues Antunes – Gustavo André Simões Lopes Courinha – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Anabela Ferreira Alves e Russo (voto de vencida anexado).

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DECLARAÇÃO:

Voto a decisão.
Mas não acompanho integralmente a fundamentação, porque não apoiaria a decisão no n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC.
Que não serve, a meu ver, para dizer qual a lei aplicável, mas em que momento se considera verificado o facto para certos efeitos da lei aplicável (está, por isso, a jusante da determinação da lei aplicável).
Apoiaria a decisão no próprio artigo 12.º da Lei Geral Tributária, do qual decorre que, em princípio e se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei antiga e a lei nova aplicam-se pro rata temporis.
No caso, o facto tributário continua a ser de formação sucessiva, porque é produzido ao longo de um certo período de tempo, o designado período de tributação.
De notar, que não interessa, para efeitos do n.º 2 daquele artigo 12.º, o momento em que o facto tributário de formação sucessiva se considera verificado, mas o facto de não ser de verificação instantânea.
Deve entender-se, no entanto, que esta divisão temporal, quanto aos factos tributários de formação sucessiva, só releva para leis tributárias que criem impostos ou agravem a tributação.
Porque o que se pretende por aqui é resolver legislativamente o problema da proibição constitucional da retroactividade da lei fiscal que importe o agravamento da carga fiscal. Como decorre da parte final do n.º 1 daquele artigo 12.º.
Tratando-se de desagravamentos fiscais, não faz sentido apelar às regras de aplicação da lei no tempo que obedecem a um escopo distinto, nem à protecção da confiança dos sujeitos da relação tributária, visto que o sujeito passivo tem interesse na aplicação da lei nova e o sujeito ativo não tem interesse senão na legalidade da sua atuação.
No caso, estamos perante a aplicação de uma norma que desagrava a tributação, pelo que não existe obstáculo à sua aplicação, ainda que o período de formação do facto tributário remonte, parcialmente, a momento anterior ao da sua entrada em vigor.
Nuno Bastos
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VOTO DE VENCIDA

Não acompanhamos a posição que obteve vencimento pelas razões que passamos a expor.
I – A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2015), alterou a redacção do artigo 87.º, n.º 1 do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), determinando que a taxa do IRC, que se encontrava fixada em 23% até à data da entrada em vigor desta Lei, ou seja, até 1 de Janeiro de 2015, passava a ser de 21 %, (artigos 192.º e 261.º, n.º 1 da referida Lei).
II – A questão fundamental de direito que nos estava imposto decidir traduzia-se em saber qual a taxa de IRC – 21% ou 23% - aplicável a um sujeito passivo que, ao abrigo do artigo 8.º, n.º 2 do CIRC, tinha optado por um ano de tributação não coincidente com o ano civil, sendo que, no caso da Recorrente, o período anual de tributação se iniciara 1 de Fevereiro de 2014 e findara a 31 de Janeiro de 2015.
III – Na tese que obteve vencimento, a taxa aplicável a todo o período de tributação da Recorrente é a taxa de 21%, por ser a que estava em vigor no fim do período de tributação, julgamento que, nuclearmente, ficou suportado em cinco blocos argumentativos: (i) o IRC incide sobre os rendimentos obtidos no período de tributação (artigo 1º do IRC), é constituído pela diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação com as correcções estabelecidas (artigo 2.º), segue a regra da anuidade e de coincidência com o ano civil (n.º 1 do artigo 8.º), salvo os desvios impostos pelo próprio legislador (n.ºs 4 e 8 do mesmo artigo 8.º) ou opção distinta realizada voluntariamente pelo contribuinte (nas situações e condições consagradas no n.º 2 do artigo 8º), o facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação (n.º 9 do artigo 8.º), é o facto gerador (facto tributário) que determina a constituição da relação tributária; (ii) a relação jurídica tributária constitui-se no último dia do período de tributação, o que significa que o facto tributário só se completa no último dia de tributação; (iii) o legislador, ao estabelecer no artigo 8.º n.º 9 do CIRC que “o facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação” visou impedir a aplicação da regra geral de aplicação da lei fiscal no tempo consagrada no n.º 2 do artigo 12.º da LGT ao IRC, redireccionando a resposta da questão da sucessão da lei no tempo, nesta sede (IRC) para o n.º 1 do mesmo artigo 12.º da LGT, nos termos do qual “ as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos”; (iv) não dispondo a Lei n.º 82-B/2014 (Lei do Orçamento de Estado) qualquer disposição a regular expressamente a aplicação sucessiva das taxas, a lei nova (nova taxa) apenas vale para os novos factos tributários, interpretação que se mostra reforçada pelo facto de no artigo 14.º da Lei n.º 2/2014 ter ressalvado o preceituado no artigo 8.º (“Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º”) e naquele último se prever a redução das taxas de IRC a consagrar para os anos subsequentes e a sua progressiva redução; (v) a aplicação da taxa de 23% ao IRC na situação fáctica dos autos (recorde-se, cujo período de tributação não coincide com o ano civil e no caso se iniciou a 1 de Janeiro de 2014 e terminou a 31-1-205) seria violadora do princípio de retroactividade da lei em matéria fiscal, consagrada no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e da regra de aplicação da lei no tempo consagrada no n.º 1 do artigo 12.º da LGT.
IV – Não nos afastamos do entendimento, que de resto resulta claro da Lei, que o IRC incide sobre os rendimentos obtidos no período de tributação, é constituído pela diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação com as correcções estabelecidas e que a regra é a da anuidade e de coincidência entre período de tributação e ano civil, salvo nas situações que a tese que fez vencimento identificou.
V – Discordamos, porém, que exista qualquer relação de especialidade entre o n.º 2 do artigo 12.º da LGT e o artigo 8.º do CIRC ou que o propósito de consagração deste último tenha tido em vista afastar aquele primeiro. Desde logo porque, salvo o devido respeito, os normativos em questão têm âmbitos de aplicação e objectivos completamente distintos. O primeiro constitui uma norma geral de aplicação da lei no tempo e visa, como a epígrafe deixa claro, regular a aplicação da lei fiscal nas situações em que a mesma se altera. O segundo constitui uma ficção do legislador quanto ao momento de geração do facto tributário, imposta pela exequibilidade do próprio sistema de tributação nas situações em que o facto tributário é de formação sucessiva. Ou seja, sendo o IRC um imposto de formação sucessiva – que se vai formando ao longo do tempo – o legislador fixou (não podia deixar de o fazer), o momento em que se deve considerar verificado o facto gerador do imposto, tornando indiscutível a data a partir da qual a obrigação resultante da formação continuada nasce, assegurando, simultaneamente, através dessa ficção e fixação, a cristalização das bases fácticas e jurídicas necessárias ao controlo de um conjunto de direitos e deveres, reconhecidos e impostos ao Estado (através da Administração Tributária) e ao sujeito passivo, como sejam, grosso modo, o dever de liquidar o IRC, o prazo para o fazer, o dever de o pagar ou de invocar a sua inexigibilidade.
Em suma, em nosso entender, não há qualquer relação de especialidade ou incompatibilidade entre o artigo 12.º da LGT e o artigo 8.º do CIRC.
VI – Acresce que, no caso concreto, como é reconhecido em ambas as decisões em confronto submetidas à nossa apreciação, e confirmado no julgamento que obteve vencimento, a Lei do Orçamento de Estado para 2015 não consagrou qualquer norma especial de aplicação no tempo da nova lei (contrariamente ao que ocorre em todas as normas que a título de exemplo se encontram identificadas no presente acórdão), tendo apenas ficado estabelecido que entrava em vigor (bem como as demais alterações por essa Lei operadas sem especificação concreta) a 1 de Janeiro de 2015. Donde, sendo indiscutível que houve uma alteração da lei durante o período de formação do imposto da Recorrente (cujo período de tributação estava em curso a 1 de Janeiro de 2015 por força da opção que exercera ao abrigo do n.º 2 do artigo 8.º do CIRC), a questão de aplicação de sucessão da lei (e de aplicação da nova lei) só pode, em nosso entender, ser resolvida pelo quadro jurídico que o legislador expressamente previu para a resolução desta questão: “Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.” (n.º 2 do artigo 12.º da LGT).
VII – Vale, assim, o que vimos dizendo, desde já o adiantamos, que, para nós, em conformidade com o referido n.º 2 do artigo 12.º da LGT, a questão que nos é colocada deve ser resolvida por recurso à regra “pro rata temporis”.
VIII - Concretizando: estando em causa um facto tributário de formação sucessiva que apenas se determina no final do exercício, por força do artigo 8.º, n.º 9 do CIRC, na ausência de norma de direito transitório e atento o disposto no n.º 2 do artigo 12.º da LGT, a taxa de IRC em vigor a partir de 1 de Janeiro de 2015 apenas se aplica à parte do lucro tributável correspondente ao período ocorrido entre 1 e 31 de Janeiro de 2015, devendo sobre o lucro tributável apurado entre 1 de Fevereiro de 2014 e 31 de Dezembro do mesmo ano incidir a taxa de tributação de 23%.
IX – Não aceitamos que o entendimento que professamos seja violador do princípio de retroactividade da lei em matéria fiscal, consagrada no artigo 103.º da CRP ou da regra de aplicação da lei no tempo consagrada no n.º 1 do artigo 12.º da LGT.
X – Não viola o artigo 12.º, n.º 1 da LGT, porque o que aí se determina é que as normas tributárias se aplicam aos factos posteriores à sua entrada em vigor e que não podem ser criados quaisquer tributos retroactivos. Ora, ao defendermos que a taxa de 23% se aplica apenas ao lucro tributável correspondente ao período posterior à sua entrada em vigor, tal normativo mostra-se escrupulosamente respeitado.
XI – Não viola o princípio da retroactividade da lei em matéria fiscal porque o Tribunal Constitucional tem reiteradamente decidido que o que decorre do referido preceito legal é uma proibição de aplicação de uma lei fiscal nova desvantajosa a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável. Ou seja, diz-nos o Tribunal Constitucional, a retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Proíbe-se, na Lei Fundamental, a retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos tributários antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova). O que não é o caso. Porque os rendimentos sobre os quais defendemos a aplicação da lei nova geraram-se já após a lei nova. E porque a lei nova, que defendemos aplicar aos factos gerados à luz da sua vigência, é mais vantajosa para o contribuinte, atenta a redução operada no valor da taxa.
Aliás, como salienta a doutrina, de forma unânime, “No n.º 2 do artigo 12.º, o legislador contempla os casos de retroactividade inautêntica, consagrando o critério ‘pro rata temporis’, com vista a afastar o princípio da anualidade dos impostos. Se estivermos perante um facto tributário de formação sucessiva, admite o legislador que a lei nova se possa aplicar ao período decorrido após a sua entrada em vigor” (citamos José Maria Fernandes Pires, Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, Almedina, Edição de 2015, página 105). “O facto tributário, quando duradouro, só se completa no termo do período de tributação. Mas essa natureza do facto tributário não prejudica que se possa fragmentar ou decompor, para efeitos de aplicação no tempo, das normas tributárias, à medida do seu desenvolvimento. Há, então, lugar a uma verdadeira tributação "pro rata temporis". Assim, em caso de factos tributários de formação sucessiva como é o rendimento, aplica-se a lei antiga aos rendimentos gerados até à entrada em vigor da lei nova e a lei nova aos rendimentos posteriores. Não contende com os princípios da não retroactividade ou irretroactividade, pois, a aplicação da lei nova aos factos que, embora verificados no seu domínio temporal de aplicação, se iniciaram no domínio da lei antiga, desde que nessa aplicação seja respeitado o princípio do fraccionamento, com a consequente tributação do rendimento "pro rata temporis", o que parece a solução mais adequada” (citamos Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária, Editora Rei dos Livros, Lisboa, página 91).
Em suma, “O facto tributário, quando duradouro, só se completa no termo do período de tributação. Mas essa natureza do facto tributário não prejudica que se possa fragmentar ou decompor, para efeitos de aplicação no tempo, das normas tributárias, à medida do seu desenvolvimento. Há, então, lugar a uma verdadeira tributação "pro rata temporis".
Assim, em caso de factos tributários de formação sucessiva como é o rendimento, aplica-se a lei antiga aos rendimentos gerados até à entrada em vigor da lei nova e a lei nova aos rendimentos posteriores. Não contende com os princípios da não retroactividade ou irretroactividade, pois, a aplicação da lei nova aos factos que, embora verificados no seu domínio temporal de aplicação, se iniciaram no domínio da lei antiga, desde que nessa aplicação seja respeitado o princípio do fraccionamento, com a consequente tributação do rendimento "pro rata temporis", o que parece a solução mais adequada”.
XII – No mesmo sentido, de resto, já decidiu este Supremo Tribunal Administrativo, ao afirmar que o facto tributário de formação sucessiva tem de ser encarado como sendo constituído por diversos factos, só podendo ser considerados destes últimos os ocorridos após a entrada em vigor da lei nova. E que uma interpretação em sentido distinto, atendendo apenas ao fim do período de tributação, desproveria de efeito útil o disposto no n.º 2 do art.º 12.º, da LGT (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 4 de Dezembro de 2013, proferido no processo n.º 1582/13). Bem como, que na ausência de norma transitória a questão só pode ser resolvida por recurso à disciplina consagrada no artigo 12.º, n.º 2 da LGT (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7-11-2018, proferido no processo n.º 1900/12.0BELRS, que não obstante ter por objecto a criação do imposto Derrama Estadual, teve como pressupostos decisivos a natureza de imposto de formação sucessiva que lhe atribuiu e, consequentemente, ser jurisprudência inteiramente transponível para o presente caso).
XIII – Também a interpretação por nós perfilhada não contende com o princípio da protecção da confiança ou da segurança jurídica. Porque o sujeito passivo teve sempre conhecimento, com a antecedência exigível, que a taxa de 23% era a taxa que seria aplicável ao período de tributação, tal como teve conhecimento, com a aprovação da Lei do Orçamento de Estado para 2015, que o facto tributário iria passar a estar sujeito a outra - mais reduzida – tributação e que dela, taxa mais reduzida, iria parcialmente beneficiar. O que significa que não achamos relevante para a formação da nossa decisão nem afecta a nossa conclusão de inexistência de qualquer violação do princípio da confiança, que a Lei n.º 2/14, de 16 de Janeiro (que procedeu à reforma da tributação das sociedades, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas), tenha consignado no seu artigo 14.º (onde ficaram fixados os seus efeitos e se determinou que essa Lei se aplicava aos períodos de tributação que se iniciassem ou aos factos tributários que ocorressem em ou após 1 de Janeiro de 2014) “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º”.
Quer porque aí se não diz que se aplica aos factos ocorridos após 1 de Janeiro de 2015, e nós defendemos a sua aplicação aos que ocorram em 2014. Quer porque o artigo 8.º (ressalvado) constitui uma norma meramente programática, em que Estado se limitou a assumir que o objectivo a prosseguir nos anos subsequentes seria a redução progressiva da taxa prevista no artigo 87.º, n.º 1 do IRC (redução para 21% para o período de tributação do ano de 2015, que se verificou, e a sua fixação num intervalo entre 17% e 19% em 2016, que nunca existiu) e em função dos resultados que viessem a ser obtidos com pela reforma que empreendia através dessa lei e de outras reformas a realizar nos regimes do IVA e do IRS, resultados esses a serem monitorizados por uma comissão que seria constituída para o efeito.
Realçamos, chamando de novo à colação a doutrina, que “não obstante o facto tributário se considerar verificado, em princípio, apenas no termo do período de tributação, a consideração da materialidade subjacente à dinâmica da formação do facto tributário permite constatar que, antes desse momento, se verificam realidades materiais directamente resultantes do comportamento volitivo dos contribuintes, que determinarão os termos em que se constituirá a obrigação de imposto”, daí que, está na livre disponibilidade do contribuinte “a opção por continuar ou não a realizar os actos materiais que determinam o recebimento de rendimentos tributáveis, através da continuação ou não da actividade económica geradora do lucro tributável”, sendo, “possível identificar realidades fragmentárias ao longo da formação do facto tributário que, por resultarem directamente da actuação dos contribuintes, traduzem a sua intenção e têm subjacente a confiança na manutenção dos efeitos fiscais que lhes estão associadas no momento da respectiva materialização» (citamos Diogo Ortigão Ramos e Fernando Lança Martins, A proibição da retroactividade da lei fiscal no âmbito do estado de direito», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Coimbra, ano 4, n.º 3, 2011, página 242).
XIV – Por fim, e mais uma vez com inteiro respeito, a interpretação e aplicação por nós preconizada é a que de forma mais confortável respeita o princípio da igualdade e da capacidade contributiva em matéria tributária consagrados nos artigos 13.º, 103.º e 104.º, n.ºs 2 e 4 da CRP.
XV – Na verdade, o princípio constitucional da igualdade tributária, que mais não é do que a expressão no domínio tributário do princípio fundamental consagrado de forma geral no artigo 13.º da CRP, concretiza-se através de duas características que devem acompanhar o sistema de tributação através de impostos, a saber, a generalidade, que significa que todos os cidadãos (com capacidade para pagar os impostos) estão adstritos ao seu pagamento e a uniformidade, de que decorre que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos (neste sentido, Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5.ª Edição, página 261). Deste critério, que se concretiza por meio do princípio da capacidade contributiva, decorre a imposição de “igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” - citamos Casalta Nabais, Direito Fiscal, 7.ª Edição, 2012, página 155.
Em resumo, nas palavras do Tribunal Constitucional, “o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 695/2014).
XVI – No caso, da posição que obteve vencimento resulta a aplicação a sujeitos passivos que durante 11 meses estiveram precisamente na mesma situação taxas de imposto distintas, apenas porque no caso da Recorrente o período de tributação não coincide, em 1 mês, com o ano civil.
XVII – Ora, salvo o devido respeito, nem a opção realizada ao abrigo do n.º 2 do artigo 8.º CIRC foi facultada ao sujeito passivo para que este obtivesse um tratamento fiscal mais vantajoso (damos como adquirido que se a taxa, em vez de ter sido reduzida, tivesse sido aumentada, a questão da aplicação da taxa de menor percentagem, pelo menos ao período compreendido entre 1 de Fevereiro de 2014 e 31 de Dezembro de 2014 obteria resposta uniforme afirmativa com fundamento em violação do artigo 103.º da CRP), antes ditada por razões conexas com exigências de maior complexidade organizacional de determinadas sociedades ou o território em que detém sede, nem essa faculdade está, por força das condições legalmente impostas para o seu exercício, acessível a todos os contribuintes. Pelo que, qualquer relação que seja estabelecida entre essa opção ou essa não coincidência e a taxa aplicável a um mesmo período de tributação viola o princípio da igualdade nos termos supra densificados.
XVIII – É essa a razão por que também não acompanhamos o entendimento, que alguma doutrina vem desenvolvendo (em nosso entender, com algum excesso interpretativo de acórdãos do Tribunal Constitucional) de que não há obstáculo à aplicação retroactiva da nova lei fiscal se esta for mais favorável. Para nós há e haverá se e enquanto essa aplicabilidade conduzir, como ocorre no caso, a uma não aplicação uniforme do imposto ou, em bom rigor, que contribuintes em situações idênticas sejam tratados fiscalmente segundo critérios desiguais. Por, pelo menos, violar o princípio da igualdade na sua vertente positiva.
XVIII - Foi, se bem vemos, por tudo quanto ficou exposto, que o legislador, tendo em conta, muito particularmente, a existência de impostos de formação sucessiva, as previsíveis mutações das leis fiscais, o impacto e questões que estas alterações têm, em especial nos impostos desta natureza e de que o IRC é exemplo de excelência, e consciente do dever que sobre si recaia de criar um quadro compatível com o respeito pelo princípio da igualdade em matéria fiscal, que o legislador estabeleceu o critério consagrado no artigo 12.º, n.º 2 da LGT.
Que a não ser assim interpretado, nenhum efeito útil terá.
Anabela Russo