Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0319/10.2BESNT
Data do Acordão:09/08/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO
INQUÉRITO CRIMINAL
ARQUIVAMENTO
TERMO INICIAL
PRAZO
Sumário:I - Nos termos do n.º 5 do art. 45.º da LGT (número aditado pela Lei do Orçamento do Estado para 2006), o prazo de caducidade previsto no n.º 1 do mesmo artigo «é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano», nos casos em que «a liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal».
II - Verificada essa condição, o referido alargamento do prazo da caducidade do direito à liquidação aplica-se, na sequência do arquivamento do inquérito, quer o ilícito criminal investigado seja de natureza comum quer seja de natureza tributária.
Nº Convencional:JSTA00071236
Nº do Documento:SA2202109080319/10
Data de Entrada:07/07/2020
Recorrente:A............, LDA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:LGT ART45 N5
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 319/10.2BESNT
Recorrente: “ A………, Lda.”
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) do ano de 2003 com fundamento em caducidade do direito à liquidação.

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«I- A ora Recorrente/Impugnante, impugnou tempestivamente a liquidação do IRC de 2003, no montante de 158.760,81 €;

II- Invocando, em sua defesa, que tal liquidação era ilegal, já que tinha sido notificada à Recorrente/Impugnante para além do prazo legal de caducidade, previsto no Art. 45.º, n.º 1 da LGT, que é de 4 anos;

III- Não obstante a douta Sentença recorrida ter constatado que o tributo impugnado chegou ao conhecimento da Recorrente/Impugnante fora do prazo de caducidade supra referido;

IV- Entendeu, porém, não julgar verificado tal fundamento invocando que à liquidação sob censura também se aplicava o prazo de suspensão previsto no n.º 5 do mesmo preceito;

V- Ou seja, a caducidade não ocorre, sempre que o direito à liquidação respeita a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, alargando-se o prazo de caducidade referido no n.º 1 do citado preceito até mais um ano após o arquivamento do inquérito ou após o trânsito em julgado da Sentença;

VI- Na verdade, a Recorrente/Impugnante discorda da interpretação emprestada pela Sentença recorrida ao preceito em causa, já que e quando existe inquérito puramente criminal tributário tal processo nunca acaba antes de qualquer liquidação tributária;

VII- Bem pelo contrário, se tiver havido a instauração de qualquer inquérito criminal-tributário o mesmo não será concluído enquanto não for apurada a situação tributária da qual dependa a qualificação criminal dos factos, levando, inclusive, à sua suspensão (do processo penal tributário) enquanto correr o respectivo processo de impugnação ou de oposição à execução, cujas Sentenças, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário, v.g. Art. 42.º, 47.º e 48.º, todos do RGIT;

VIII- Que é uma situação totalmente contrária à referida na douta Sentença, já que a Sentença que constitui caso julgado para o processo penal tributário só agora foi proferida (18.11.2019) ao passo que o processo de inquérito criminal tributário foi arquivado em 01.06.2009;

IX- Daí que o campo de aplicação do citado Art. 45.º, n.º 5 da LGT tenha como único destinatário o processo de inquérito penal por infracções não tributárias, mas de cuja aquisição de prova possa resultar qualquer liquidação tributária, justificando, aqui, isso sim, a suspensão do prazo da caducidade até um ano após, ou o arquivamento do inquérito, ou o trânsito em julgado da Sentença;

X- Ao não ter feito esta interpretação do referido Art. 45.º, n.º 5, da LGT, a Sentença recorrida violou o Art. 42.º, n.º 4; o Art. 47 e o Art. 48.º, todos do RGIT;

XI- E cuja norma, por sua vez, quer na interpretação referida, quer na sua aplicação, sofre da inconstitucionalidade material, já que atenta contra o acesso à justiça tributária, plasmado no Art. 20.º, n.º 1, da CRP, atenta, igualmente, contra as garantias de defesa inerentes a qualquer cidadão, como é referido no Art. 32.º n.º 1 e n.º 9 da CRP e como atenta, por fim, contra a distribuição de competência entre tribunais, com clara violação do Art. 212.º, n.º 3, da CRP.

Assim, nestes termos, e nos demais de direito que V. as Ex. as doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser considerado procedente e provado e por via dele ser revogada a douta Sentença recorrida ».

1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação: «[…]

A única questão a analisar é a de saber se a douta sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar não verificada a caducidade do direito à liquidação,
O que passa por averiguar qual o prazo e respectivo modo de contagem para o exercício de tal direito, designadamente se a esse prazo é aplicável o previsto no n.º 5, do artigo 45.º, da LGT.
Ora, o prazo de caducidade do direito à liquidação é de 4 anos, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1, da LGT,
Contando-se, nos impostos periódicos a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário (cf. o n.º 4 do acima citado diploma legal).
E o IRC é um imposto periódico, uma vez que assenta num facto tributário de carácter duradouro, que se reporta a um determinado período de tempo, renovando-se as obrigações.
Na redacção introduzida pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, o artigo 45.º, da LGT tinha a seguinte redacção:
«1- O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.
2- Nos casos de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo ou de utilização de métodos indirectos por motivo da aplicação à situação tributária do sujeito passivo dos indicadores objectivos da actividade previstos na presente lei, o prazo de caducidade referido no número anterior é de três anos.
3- Em caso de ter sido efectuado reporte de prejuízos, bem como de qualquer outra dedução ou crédito de imposto, o prazo de caducidade é o do exercício desse direito.
4- O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.
5- Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano.
6- Para efeitos de contagem do prazo referido no n.º 1, as notificações sob registo consideram-se validamente efectuadas no 3.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil».
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 57.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, o disposto no aditado n.º 5 é aplicável aos prazos de caducidade em curso à data da entrada em vigor da referida lei, isto é, 01/01/2006.
A partir daqui, cumpre notar que, estando em causa liquidação de IRC de 2003, que é um imposto periódico, cujo prazo de caducidade de quatro anos se conta a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário, isto é, 31/12/2003,
Logo se alcança que, normalmente, a Administração Tributária tinha de efectuar a liquidação e dela validamente notificar o contribuinte até 31/12/2007.
Porém, dispõe o n.º 1 do art. 46.º, da LGT, que “[o] prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da acção de inspecção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo do seu início, caso a duração da inspecção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação”,
Sendo certo que o referido prazo de seis meses é contado entre a data do início da acção de inspecção e a data da notificação ao sujeito passivo do respectivo relatório, conforme disposto no art. 62.º do RCPIT.
No entanto, há que averiguar se é possível estabelecer identidade entre os factos averiguados no Inquérito-crime nº …………………. e os factos tributários que, no seguimento do processo inspectivo, deram origem à liquidação de IRC de 2003.
Ora, como se refere no Acórdão do STA, de 01/10/2014, proferido no proc.º 0178/14, disponível em www.dgsi.pt, “…a contagem do prazo de caducidade nos termos do 45.º, n.º 5, da LGT só ocorre se a liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos…”.
O que, in casu, se verificou, não sendo, aliás, objecto de controvérsia.
Assim sendo, resulta da factualidade assente que, em 31/10/2007, a Impugnante, ora Recorrente foi notificada do início da acção de inspecção (cf. alínea D) dos factos provados).
Pelo que, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 46.º da LGT, com o referido acto o prazo de caducidade suspendeu-se,
Não retomando o seu curso até à data da notificação do relatório final da acção de inspecção, que ocorreu em 04/04/2008 (cf. as alíneas D) e G) dos factos provados).
Consequentemente, em 05/04/2008, foi retomado o decurso do prazo de caducidade do direito à liquidação, sendo que, aos dois meses que faltavam quando o referido prazo se suspendeu por efeito da acção de inspecção,
Acresce o tempo decorrido até ao arquivamento da decisão de arquivamento do processo de inquérito, acrescido de um ano,
Ou seja, tendo o arquivamento ocorrido por despacho notificado ao Impugnante ora Recorrente através do ofício de 1/06/2009, e presumindo-se a respectiva notificação no terceiro dia subsequente (04/06/2009), o prazo de caducidade ocorreria em 04/06/2010.
Assim, quando ocorreu a notificação da liquidação, em 5/11/2009 (cf. alínea Q) dos factos provados), o prazo de caducidade, claramente, ainda se não havia completado.
Consequentemente, não ocorrendo a invocada caducidade do direito à liquidação, afigura-se-nos que o recurso não merece provimento».

1.5 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«A) A impugnante é uma sociedade por quotas que possui a classificação de actividade económica n.º 41.200 – Construção de Edifícios (residenciais e não residenciais), estando sujeita a IRC no regime normal e a IVA no regime normal, de periodicidade trimestral – cf. print do cadastro da impugnante a fls. 223 a 225 do PEF em apenso.

B) Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º 200707661, de 12.10.2007, com despacho de 17.10.2007, foi despoletada uma acção inspectiva externa, para o exercício de 2003, à impugnante – cf. relatório de inspecção a fls. 71 do PAT em apenso.

C) Através do ofício n.º 19.10.2007 dos Serviços de Inspecção da Direcção de Finanças de Lisboa, foi a impugnante notificada de que iria ser sujeita a uma acção de inspecção de âmbito parcial, respeitante ao exercício de 2003, referente aos impostos de IRC, IVA e outros – cf. cópia da carta aviso remetida à impugnante constante de fls. 24 dos autos.

D) A inspecção externa teve o seu início em 31.10.2007 – cf. cópia da notificação pessoal realizada na pessoa do TOC da impugnante, na sede da mesma, a solicitar a exibição da escrita, livros ou outros documentos, a fls. 226 do PAT em apenso.

E) A 26.03.2008 foi elaborado o relatório de inspecção em cumprimento da ordem de serviço identificada em B) supra, tendo sido determinada a aplicação de métodos indirectos para o apuramento da matéria tributável, em sede de IRC – cf. cópia do relatório de inspecção a fls. 68 a 212 do PAT em apenso.

F) Por despacho de 31.03.2008 do Chefe de Divisão da Inspecção Tributária foram sancionadas as conclusões identificadas no relatório de inspecção identificado no ponto anterior, e determinada a remessa do auto de notícia levantado face à identificação de infracções tipificadas no relatório que podiam consubstanciar situação de fraude fiscal – cf. cópia do ofício a fls. 25 e 26 dos autos, e informação da data de recepção da carta registada com aviso de recepção a fls. 27 e 28 dos autos.

G) A 04.04.2008, através do ofício n.º 025589 de 02.04.2008 foi a impugnante notificada no teor do relatório de inspecção – cf. cópia do ofício a fls. 25 e 26 dos autos, e informação da data de recepção da carta registada com aviso de recepção a fls. 27 e 28 dos autos.

H) A 05.05.2008 foi pela impugnante apresentado junto do Serviço de Finanças de Oeiras 3, um pedido de revisão da matéria tributável – cf. cópia do requerimento a fls. 29 dos autos, e a fls. 231 a 250 do PAT em apenso.

I) A 23.05.2008 foi emitida a liquidação adicional de IRC relativo ao exercício de 2003, identificada com o n.º 2008.8310033291, e correspondentes juros compensatórios, que deram origem à emissão de demonstração de acerto de contas n.º 2008.638257, de 23.05.2008, com montante a pagar de 158.759,96, que teve data limite de pagamento a 02.07.2008 – cf. cópia da demonstração de acerto de contas a fls. 30 a 32 dos autos.

J) A 09.07.2008 foi pela impugnante deduzida impugnação judicial contra a liquidação de IRC identificada no ponto anterior, que correu termos neste tribunal sob o n.º 716/08.3BESNT – cf. cópia da sentença proferida nos autos de impugnação judicial n.º 716/08.3BESNT, a fls. 35 a 36 dos autos.

K) Por despacho de 27.11.2008 do Director de Finanças Adjunto, em sede de instrução do processo de impugnação identificado no ponto anterior, foi determinada a revogação total do acto impugnado, face à constatação da existência de pedido de revisão da matéria tributável, com efeito suspensivo da liquidação, pedido que apenas foi remetido ao órgão competente em Setembro de 2008 – cf. cópia da informação prestada nos termos do artigo 112.º do CPPT em sede do PAT elaborado no processo de impugnação judicial n.º 716/08.3BESNT, a fls. 45 a 49 do PAT em apenso.

L) Por sentença de 03.02.2009, proferida nos autos de impugnação judicial n.º 716/08.3BESNT, foi declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, face à revogação total do acto impugnado – cf. cópia da sentença proferida nos autos de impugnação judicial n.º 716/08.3BESNT, a fls. 35 a 36 dos autos.

M) A 22.09.2009 foi emitida a liquidação adicional de IRC relativo ao exercício de 2003, que deram origem à emissão de demonstração de acerto de contas n.º 20096525651, de 22.09.2009, anulando a liquidação identificada em G) supra – cf. cópia da demonstração de acerto de contas a fls. 37 dos autos.

N) Através do ofício n.º 069016, de 13.06.2009, da Direcção de Finanças de Lisboa foi a impugnante notificada do teor da decisão que recaiu sobre o pedido de revisão apresentado nos termos do artigo 91.º da LGT – cf. cópia do ofício a fls. 39 dos autos.

O) Através do ofício datado de 01.06.2009 dos Serviços do Ministério Público de Oeiras, foi o arguido B………….. e outros, em sede do processo de inquérito n.º .............., notificado do teor do despacho de arquivamento do referido processo – cf. cópia do ofício a fls. 40 dos autos.

P) Acto impugnado: A 30.10.2009 foi emitida a liquidação adicional de IRC relativo ao exercício de 2003, identificada com o n.º 2009.8310017491, e correspondentes juros compensatórios, que deram origem à emissão de demonstração de acerto de contas n.º 2009.6682306, de 30.10.2009, com montante a pagar de € 158.760,81, que teve data limite de pagamento a 09.12.2009 – cf. cópia da demonstração de acerto de contas a fls. 21 a 23 dos autos.

Q) A impugnante foi notificada da liquidação que antecede em 05.11.2009 – facto não controvertido.

R) A presente impugnação judicial foi apresentada 08.03.2010 – cf. carimbo dos CTT aposto a fls. 3 dos autos.


*

Nada mais se provou com interesse para a decisão a proferir».

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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

2.2.1.1 A ora Recorrente apresentou impugnação judicial contra a liquidação oficiosa de IRC que a AT lhe efectuou na sequência de uma inspecção de que resultou a alteração da matéria tributável com recurso a métodos indirectos, pedindo a anulação daquele acto tributário com fundamento em caducidade do direito à liquidação.
Isto, em síntese, porque considerou que o termo final do prazo para o exercício do direito à liquidação, descontado o tempo em que o prazo esteve suspenso por força do procedimento de inspecção e mesmo aceitando que tal prazo fosse de quatro anos (o que não concede, pois sustenta que, estando em causa uma liquidação com recurso a método indirecto esse prazo era de três anos, nos termos do n.º 2 do art. 45.º da LGT), ocorreu em 3 de Junho de 2008. Ora, nessa data, a AT ainda não tinha efectuado a liquidação, nem sequer tinha terminado o procedimento de revisão previsto no art. 91.º da LGT; mais considerou ser inaplicável à situação a suspensão do prazo prevista no n.º 5 do art. 45.º da LGT.

2.2.1.2 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou improcedente essa impugnação. Em resumo, após elencar a legislação pertinente para resolver a contenda, considerou o seguinte:
i) o prazo de caducidade aplicável é o previsto no n.º 1 do art. 45.º da LGT, ou seja, de quatro anos, e não o prazo de três anos invocado pela Impugnante, ora Recorrente, e previsto no n.º 2 do mesmo artigo até 31 de Dezembro de 2015 (A 2.ª parte do n.º 2 do art. 45.º da LGT – onde se previa a aplicação do prazo de três anos aos casos de «utilização de métodos indirectos por motivo da aplicação à situação tributária do sujeito passivo dos indicadores objectivos da actividade previstos na presente lei» – foi revogada pela nova redacção dada à norma pelo art. 7.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro (ELI: https://data.dre.pt/eli/lei/82-e/2014/12/31/p/dre/pt/html), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2016, nos termos do art. 19.º da mesma Lei.), pois este, como já salientou a jurisprudência (A sentença refere os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 24 de Março de 2004, proferido no processo com o n.º 1914/03, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/936323608ffa412b80256e670038fe6d;
- de 26 de Setembro de 2007, proferido no processo com o n.º 481/07, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/f8cce2490f23cd758025736e00388b9e;
- de 16 de Novembro de 2011, proferido no processo com o n.º 247/11, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/f5e20088acf4a50f80257950004e6529.), só se aplicaria nos casos em que a AT, na aplicação dos métodos indirectos na determinação da matéria tributável, recorresse aos indicadores subjectivos da actividade previstos no art. 89.º da LGT (Justificando-se a diminuição do prazo, relativamente à regra, pela inexistência de procedimento de inspecção.), o que não sucedeu no caso, nem poderia ter sucedido, uma vez que o legislador nunca procedeu à concretização daqueles indicadores por via regulamentar, necessária para o efeito (O próprio n.º 2 do art. 90.º da LGT foi revogado pelo art. 16.º, alínea c), da já referida Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro.);
ii) estando em causa a tributação em IRC do ano de 2003, o prazo para o exercício do direito à liquidação iniciou-se em 1 de Janeiro de 2004 (Apesar de a sentença referir o termo inicial do prazo a 31 de Dezembro de 2003, afigura-se-nos que se tratará de lapso, uma vez que, nos termos do n.º 4 do art. 45.º da LGT, aí expressamente citado, «[o] prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário». O que significa que o primeiro dia do prazo é 1 de Janeiro de 2004 [cfr. art. 279.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil].) e terminaria em 31 de Dezembro de 2007, nos termos do n.º 4 do art. 45.º da LGT, se não houvesse factos suspensivos ou interruptivos a considerar;
iii) o prazo suspendeu-se, nos termos do n.º 1 do art. 46.º da LGT («O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da acção de inspecção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspecção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação, acrescido do período em que esteja suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspecção».), entre 31 de Outubro de 2007, data em que a Impugnante foi notificada do início da inspecção, e 4 de Abril de 2008, data em que foi notificada do relatório final da inspecção, retomando-se a contagem no dia seguinte, pelo que, se não houvesse outros motivos de suspensão ou interrupção, faltariam então dois meses para o termo final do prazo de caducidade do direito à liquidação;
iv) acontece, porém, que, por força do disposto no n.º 5 do art. 45.º da LGT («Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano».), na redacção do n.º 1 do art. 57.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro de 2005 (ELI: https://data.dre.pt/eli/lei/60-a/2005/12/30/p/dre/pt/html.) – Orçamento do Estado para 2006 –, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2006 e é aplicável aos prazos de caducidade em curso (Tudo nos termos do disposto nos arts. 57.º, n.º 2, e da mesma Lei.), há que ter em conta que o termo final do prazo de caducidade passou a ser 4 de Junho de 2010, i.e., um ano após a notificação em 4 de Junho de 2009 (data em que se presume efectuada notificação efectuada por ofício remetido em 1 de Junho de 2009) do arquivamento do inquérito criminal instaurado pelos mesmos factos que deram origem à liquidação;
v) assim, quando a ora Recorrente foi notificada da liquidação adicional impugnada, em 5 de Novembro de 2009, o prazo da caducidade do direito da AT liquidar o IRC de 2003 ainda não se tinha completado.
Ou seja, a sentença considerou que, respeitando a liquidação a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o termo final para o exercício do direito à liquidação, por força do disposto no n.º 5 do art. 45.º da LGT, se verificaria apenas em 4 de Junho de 2010, i.e., um ano após a notificação do arquivamento desse inquérito; porque a ora Recorrente foi notificada da liquidação em 5 de Novembro de 2009, não se verifica a invocada caducidade do direito à liquidação.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, procurando rebater a argumentação aduzida pela Impugnante – que entendeu não ser aplicável o disposto no n.º 5 do art. 45.º da LGT, cujo campo de aplicação limitou aos casos em que no processo criminal estejam em causa “apenas infracções não tributárias, mas de cuja prova dependerá a liquidação e impostos” – realçou ainda o seguinte:
«Na sua construção literal a norma é clara, referindo-se expressamente a uma necessária identidade de factos (i.e., identidade entre o facto tributário e o facto criminal), sem mais.
A norma prevista no n.º 5 do artigo 45.º da LGT resulta, assim, da necessidade de garantir uma boa decisão da causa em matéria fiscal, aguardando-se o desfecho dos inquéritos ou dos processos-crime em que o facto tributário se encontra em discussão. Ou seja, o inquérito criminal teve por objecto a averiguação da eventual prática de crimes fiscais relacionados com a matéria objecto da inspecção tributária e da liquidação subsequente.
Vai neste sentido, da exigência de uma identidade objectiva – entre os factos tributários e os factos objecto de inquérito criminal –, a jurisprudência do STA no que respeita à interpretação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT. Assim, o Acórdão do STA de 11.05.2016, rec. n.º 1071/14 [(Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/68fa8d4f4319883680257fb2004d92d8.)], em que se consignou que “[a] contagem do prazo de caducidade do direito de liquidar tributos nos termos do art. 45.º, n.º 5, da LGT, só ocorre se o acto tributário de liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos” e o Acórdão de 03.11.2016, rec. n.º 1407/15 [( Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/0e6608193ca6167e80258065004d6ef0.)], onde se consignou, citando jurisprudência anterior, que “[…] a contagem do prazo de caducidade do direito de liquidar tributos nos termos do art. 45.º, n.º 5, da LGT, só ocorre se o acto tributário de liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos […]» (No mesmo sentido, tinha já decidido esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo nos seguintes acórdãos:
- de 1 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 178/14, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/c010887b851997fa80257d6c002f7d96;
- de 11 de Novembro de 2015, proferido no processo n.º 190/14, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/dce7f9bb6fcc169980257efc004c8fd4.).

2.2.1.3 A Impugnante insurge-se contra a sentença porque entende que esta fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no n.º 5 do art. 45.º da LGT.
Entende a Recorrente que esta norma só logra aplicação nas situações em que «o processo de inquérito penal [seja instaurado] por infracções não tributárias, mas de cuja aquisição de prova possa resultar qualquer liquidação tributária, justificando, aqui, isso sim, a suspensão do prazo da caducidade até um ano após, ou o arquivamento do inquérito, ou o trânsito em julgado da sentença». Ou seja, se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, a Recorrente defende uma interpretação em que o alargamento do prazo da caducidade previsto no n.º 5 do art. 45.º da LGT teria o seu âmbito de aplicação restringido àquelas situações em que no inquérito criminal estivesse em causa a prática de uma infracção de natureza não tributária e que, no caso sub judice, o inquérito até deveria ter ficado suspenso, nos termos do n.º 4 ao art. 42.º do Regime Geral das Infracção Tributárias (RGIT), a aguardar «a prática do acto tributário de apuramento da situação tributária», na medida em que desta «depende a qualificação criminal dos factos», bem assim como «outras consequências relevantes a nível de qualificação e sancionamento dos mesmos».

2.2.1.4 Assim, a questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença incorreu em erro de julgamento ao considerar aplicável à situação o alargamento do prazo da caducidade do direito à liquidação previsto no n.º 5 do art. 45.º da LGT.

2.2.2 DA CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO EM IMPUGNAÇÃO JUDICIAL – ÂMBITO DA APLICAÇÃO DO N.º 5 DO ART. 45.º DA LGT

O n.º 5 do art. 45.º da LGT dispõe: «Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano». Ou seja, quando a liquidação se refira a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo do n.º 1 do art. 45.º da LGT é alargado, passando o seu termo final a situar-se um ano depois do termo do processo-crime, seja por arquivamento do inquérito ou por trânsito em julgado da sentença proferida no processo criminal.
Bem se compreende a teleologia da norma: como dizem NUNO VICTORINO e JOÃO RICARDO CATARINO, com a introdução do citado n.º 5 «põe-se […] um ponto final numa dificuldade prática que vinha sendo sentida pela Administração Tributária e que resultava do facto de ser impossível (por já ter caducado), proceder à liquidação de tributos fiscais quando pela demora decorrente da investigação criminal tributária ou do processo penal tributário se tivessem ultrapassado os prazos constantes do n.º 1 do referido artigo 45.º (ou seja quatro anos)», sendo, no entanto, que «[o] preceito […] só se tornará necessário quando os mecanismos consagrados no RGIT, por alguma circunstância estranha e não prevista pelo legislador, falhem e não se consiga produzir em tempo útil a almejada liquidação tributária antes de terminar o inquérito» (A evolução do RGIT — Regime Geral das Infracções Tributárias — nas leis de orçamento de estado para 2005 e 2006, Fiscalidade, n.º 25, Janeiro-Março 2006, Instituto Superior de Gestão, págs. 182 e 186, respectivamente.).
Como ficou dito no acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Dezembro de 2017, proferido no processo com o n.º 73/16 (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/21d109b85f196d09802581f5003ab886.), «a norma prevista no n.º 5 do artigo 45.º da LGT resulta da necessidade de garantir uma boa decisão da causa em matéria fiscal, aguardando-se assim o desfecho dos inquéritos ou dos processos-crime em que o facto tributário se encontra em discussão. Ou seja, o inquérito criminal teve por objecto a averiguação da eventual prática de crimes fiscais relacionados com a matéria objecto da Inspecção Tributária e da liquidação subsequente – independentemente de o agente que praticou o crime ser o sujeito passivo do imposto» (Neste acórdão discutia-se se, para efeitos do alargamento do prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no n.º 5 do art. 45.º da LGT, se exigia, a par de uma “identidade objectiva”, entre facto tributário e facto objecto de inquérito criminal, uma identidade subjectiva, entre o arguido ou agente e o sujeito passivo de imposto, tendo o acórdão respondido negativamente.).
No caso, não se discute a identidade factual subjacente ao acto tributário de liquidação e à investigação criminal – que, como bem assinalou a Juíza do Tribunal a quo, constitui requisito para o alargamento do prazo da caducidade do direito à liquidação previsto no n.º 5 do art. 45.º da LGT –, nem sequer o relevo da falta de coincidência entre os arguidos e o sujeito passivo da liquidação. O dissídio resulta apenas de a Recorrente entender que o n.º 5 do art. 45.º da LGT não pode ser aplicado senão aos casos em que no inquérito criminal estivesse em causa a prática de uma infracção de natureza não tributária.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com esta interpretação restritiva. Vejamos:
Na interpretação das normas fiscais devem seguir-se as regras as regras e princípios gerais de interpretação das normas jurídicas, ou seja, as regras consagradas no art. 9.º do Código Civil (CC), como decorre do n.º 1 do art. 11.º da LGT.
Assim, desde logo, há que ter presente a letra da lei, que, não constituindo o único, nem sequer o mais importante elemento a considerar na tarefa hermenêutica, é o que constitui o seu ponto de partida e «[c]omo tal cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei» (J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 182. O mesmo Autor, na pág. 189, explicita: «A letra (o enunciado linguístico) é, assim o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, n.º 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto “falhado” se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação».), como resulta do disposto no n.º 2 do art. 9.º do CC.
Ora, com todo o respeito, a letra da lei não consente a interpretação defendida pela Recorrente. A previsão legal refere «o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal»; no texto da norma não encontramos qualquer referência ou alusão, ainda que remota ou implícita, ao enquadramento jurídico desses factos como infracções tributárias ou como infracções de natureza não tributária e, muito menos, que permita concluir que o legislador pretendeu que o alargamento do prazo do direito à liquidação aí consagrado se aplicasse exclusivamente ao inquérito criminal por factos insusceptíveis de integrarem infracção tributária (ubi lex non distinguet, nec nos distinguere debemus). A única referência efectuada pelo legislador é que a liquidação respeite a factos por que foi instaurado inquérito criminal, sem qualquer outra menção ou referência que possa ser convocada em abono da tese da Recorrente como podendo constituir o “mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” requerido pelo n.º 2 do art. 9.º do CC, no sentido de que os inquéritos aí previstos são apenas aqueles em que se investigue a prática de infracções não tributárias e já não os que se referem a infracções tributárias («[N]ão se pode, na interpretação, transcender a linguagem, a construção linguística (sintáctico-formal) para afirmar um resulta que não resulte expresso.// Verifica-se, pois, uma conexão essencial entre linguagem expressiva e conteúdo expresso. Seja qual for o objecto que se pretende atribuir à norma, quando não resultar expresso no contexto lógico-literal ou quando não apreça suficientemente definível com base no próprio contexto, o objecto deve considerar-se não significado» (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita Editora, 4.ª edição, 2012, anotação 1 ao art. 11.º, pág. 120).). Se a intenção do legislador fosse, como sustenta a Recorrente, a de «que o inquérito criminal referido no art. 45.º, n.º 5 da LGT, é tão só aquele cuja instauração visa a perseguição criminal, por infracções não tributárias, mas de cujos actos criminosos possa resultar vantagens patrimoniais tributárias passíveis de tributação», por certo teria encontrado um modo de expressar esse desígnio na letra da lei (cf. n.º 3 do art. 9.º do CC).
É certo que, se bem interpretamos a tese da Recorrente – de que a extensão do prazo de caducidade do direito à liquidação prevista no n.º 5 do art. 45.º da LGT apenas é aplicável às situações em que os crimes não tenham natureza tributária –, esta sustenta que o inquérito não poderia ter sido concluído sem que tivesse sido efectuada a liquidação do imposto, devendo aquele ter sido suspenso (sobrestar-se na sua decisão) até que este acto fosse praticado; argumenta, em síntese, que «o inquérito penal tributário aqui referido e por força do art. 42.º, n.º 4 do RGIT, após a sua instauração, deve ser suspenso, aliás obrigatoriamente suspenso, já que exige a prática do acto tributário de apuramento da situação tributária da qual depende a qualificação criminal dos factos e tenham outras consequências relevantes a nível de qualificação e sancionamento dos mesmos» e explica porquê: porque «da quantificação da vantagem ilícita que se pretende obter com a fraude fiscal depende, desde logo, a sua qualificação como crime ou como contra-ordenação», porque «tal quantificação é também relevante para a determinação da medida da pena – art. 13.º do RGIT – e para o funcionamento do disposto no art. 14.º do mesmo diploma legal», porque «a prática do acto tributário de apuramento da situação tributária ou contributiva é ainda essencial a que o arguido possa beneficiar do regime do art. 22.º do RGIT, pois sem procedimento tributário não se vê como possa o agente repor a verdade sobre a situação tributária», valendo este argumento «mutatis mutandis, quanto ao art. 32.º, n.º 2 do RGIT» e porque «também o n.º 2 do art. 119.º do RGIT pressupõe que esteja determinado se há, ou não, imposto a liquidar – aqui, no sentido de cobrar/pagar – o que, por sua vez, pressupõe que esteja já decidida definitivamente, em termos tributários, tal questão».
Seja ou não assim, i.e., pudesse ou não o inquérito criminal ser concluído sem que estivesse praticado o acto tributário de liquidação do tributo – e admitimos que, em circunstâncias normais, o não deva ser (No entanto, a questão não é pacífica, ao contrário do que a Recorrente pretende. Na verdade, há quem defenda – apesar de não ser essa a tese por nós sustentada, pois entendemos que, perante uma situação tributária de que dependa a qualificação criminal dos factos, resulta dos arts. 42.º, n.ºs 2 e 4, 47.º, 48.º e 21.º, n.ºs 3 e 4, a obrigação de suspender o processo penal até que esteja definida a situação tributária pelos meios procedimentais e processuais tributários – que o inquérito criminal pode ser concluído sem que seja praticado o acto tributário de liquidação do tributo sem violação do disposto no n.º 4 do art. 42.º do RGIT. Isto porque pode sustentar-se que a exigência de que as investigações não terminem sem que esteja «apurada a situação tributária de que dependa a qualificação criminal dos factos» não implica a prática de acto tributário algum e, muito menos, de um acto tributário de liquidação de imposto (que pode nem sequer ter lugar, sem prejuízo de relevantes alterações na matéria tributável); que o que se exige, isso sim, é que, no âmbito das investigações a efectuar no âmbito do inquérito e se tal se mostrar necessário à qualificação dos factos como crime, seja apurada (i.e., indagada ou averiguada) a situação tributária do investigado. Ora, nesse tese, o apuramento dessa situação tributária que se mostre necessária à qualificação dos factos imputados ao investigado como crime não pressupõe a liquidação do tributo que eventualmente seja devido; pressupõe apenas que essa situação tributária seja apurada, designadamente, se tal se mostrar necessário (pode haver infracções tributárias sem que seja devido qualquer imposto), que se apure o valor do imposto devido, o que pode ser feito por perícia (cf. art. 163.º do Código de Processo Penal), a solicitar à AT, que a prestará no âmbito de procedimento desencadeado para o efeito (e seria a esse procedimento, e não ao procedimento para liquidação, que se refere o n.º 4 do art. 42.º do RGIT) e a juntar ao processo de inquérito.) –, a verdade é que, se o foi, ainda que indevidamente, não pode daí retirar-se que a Administração Tributária fique, por esse motivo, impedida de proceder à liquidação que se mostre devida, que pode até ter como sujeito passivo quem não foi agente do facto criminoso investigado. O eventual incumprimento pela autoridade judiciária das regras que devem presidir ao inquérito judicial não pode repercutir-se sobre a relação jurídico-tributária e a obrigação de pagar os impostos.
Como salienta GERMANO MARQUES DA SILVA, «O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime e por isso que a extinção da responsabilidade penal tributária, seja qual for o seu fundamento, não implica por si só a extinção da responsabilidade pelo pagamento da prestação tributária» ( Direito Penal Tributário, Universidade Católica Editora, 2.ª edição revista e ampliada, pág. 119.).
Acresce que o inquérito pode até ser arquivado por motivos que dispensem ou antecedam a necessidade do apuramento da situação tributária da qual depende a qualificação criminal dos factos e tenham outras consequências relevantes a nível de qualificação e sancionamento dos mesmos.
Seja como for, se houver irregularidade no inquérito, ou até nulidade, esta pode ser aí arguida, nos termos das regras do processo penal (cf. art. 118.º e segs. do Código de Processo Penal); não pode é a mesma irregularidade contender com a relação jurídico-tributária, tanto mais que, para além da já referida autonomia entre a responsabilidade criminal e a responsabilidade tributária, a liquidação tem mera natureza declarativa, que não constitutiva, da obrigação tributária, ou seja, a liquidação não é senão a «aplicação de uma norma tributária material, praticada por um órgão da Administração» (ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Acto Tributário, Livraria Almedina, 1972, págs. 83 a 92) e que «define o conteúdo das posições jurídicas do Estado e do Contribuinte, concretizando, para o primeiro, o direito a receber uma prestação pecuniária de determinado montante, e, para o segundo, o dever de a prestar» (CARDOSO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal, pág. 414.); não pode a mesma irregularidade, designadamente, obstar a que a Administração Tributária, no exercício das competências que lhe estão legalmente cometidas [cf. art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CPPT], proceda à liquidação do imposto que se mostrar devido, ainda que após o termo do processo penal.
É porque se mantém essa obrigação de imposto – haja ou não a prática de um crime tributário – e prevenindo as demoras que a investigação, por norma e em razão da sua complexidade, exige, que o legislador entendeu permitir, aditando ao art. 45.º da LGT um n.º 5 (Através do art. 57.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2006.), que, ao prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no n.º 1 desse artigo, se somasse mais um ano, tudo nos termos que deixámos referidos supra.
Ou seja, porque a obrigação de imposto se mantém, independentemente da prática do crime tributário, para garantir a liquidação dos impostos evadidos, tendo em conta a complexidade geralmente associada à investigação da criminalidade tributária, o legislador terá adoptado como solução o alargamento do prazo de caducidade da liquidação do imposto respeitante a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal. Alargamento esse que, como deixámos dito, se deve verificar, quer o processo penal seja por crime comum quer seja por crime tributário; ponto é que a liquidação se refira a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal.
Finalmente, a Recorrente invoca a inconstitucionalidade material do n.º 5 do art. 45.º da LGT, na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida, por violação do disposto nos arts. 42.º, n.º 4, 47.º e 48.º, todos do RGIT, «os quais são especificamente dirigidos às infracções tributárias, porquanto são normas especiais que não foram revogadas pela citada redacção do preceito supra referido e cuja desaplicação viola ostensivamente o art. 20.º, n.º 1 (acesso à justiça tributária), o art. 32.º, n.º 1 e n.º 9 (garantias de defesa) e o art. 212.º, n.º 3 (competência dos tribunais), todos da C. R. Portuguesa».
Apesar da falta de substanciação da invocada inconstitucionalidade, porque estamos perante questão do conhecimento oficioso, sempre diremos o seguinte:
i) o acesso à justiça, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), designadamente o acesso à justiça tributária, em nada ficou comprometido pela solução adoptada na sentença recorrida, uma vez que a Recorrente em nada viu diminuídas as suas possibilidades de impugnar judicialmente a liquidação, como, aliás, bem o demonstra o presente processo; e se não usou outro fundamento que não a caducidade do direito à liquidação é apenas porque assim entendeu organizar a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e não porque o seu acesso ao direito e aos tribunais tenha sido de algum modo restringido pela interpretação normativa adoptada pela sentença recorrida;
ii) as garantias de defesa no processo criminal previstas no art. 32.º da CRP, designadamente o direito de recurso e a impossibilidade de subtrair uma causa ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior não são postas em causa de modo algum pela interpretação que foi adoptada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e que também subscrevemos; recordemos, por um lado, que o inquérito criminal foi arquivado e, por outro, que a competência para a liquidação nunca seria de tribunal algum (criminal ou tributário), mas sempre da AT;
iii) não vislumbramos também como a interpretação do n.º 5 do art. 45.º da LGT que foi adoptada pela 1.ª instância e sufragada por este Supremo Tribunal possa pôr em causa a competência dos tribunais administrativos e fiscais.
Pelo que deixámos dito, concluímos que o alargamento do prazo da caducidade previsto no n.º 5 do art. 45.º da LGT deve ser aplicado em todos os casos em que houve arquivamento do inquérito criminal, sejam os crimes investigados de natureza tributária ou não, desde que a liquidação se refira aos factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal. A sentença recorrida, que decidiu neste sentido, não merece censura.

2.2.3 CONCLUSÕES

I - Nos termos do n.º 5 do art. 45.º da LGT (número aditado pela Lei do Orçamento do Estado para 2006), o prazo de caducidade previsto no n.º 1 do mesmo artigo «é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano», nos casos em que «a liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal».

II - Verificada essa condição, o referido alargamento do prazo da caducidade do direito à liquidação aplica-se, na sequência do arquivamento do inquérito, quer o ilícito criminal investigado seja de natureza comum quer seja de natureza tributária.


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3. DECISÃO

Pelo exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente, que ficou vencida (cf. art. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT).


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Assinado digitalmente pelo relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente acórdão os Conselheiros que integram a formação de julgamento como adjuntos.
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Lisboa, 8 de Setembro de 2021. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Gustavo André Simões Lopes Courinha.