Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03652/15.3BESNT 0924/17
Data do Acordão:01/13/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANÍBAL FERRAZ
Descritores:IRC
DERRAMA
Sumário:I - O reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar que o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
II - As derramas municipais têm, para legitimação, de se ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…
III - Em situações de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo.
IV - O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).
Nº Convencional:JSTA000P26996
Nº do Documento:SA22021011303652/15
Data de Entrada:09/06/2017
Recorrente:A......................... – ENGENHARIA E CONSTRUÇÕES, SA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
***

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa;

# I.


A……………… - Engenharia e Construções, S.A., …, recorre da sentença proferida, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, em 9 de março de 2017, que julgou totalmente improcedente impugnação judicial, apresentada contra ato de liquidação de Derrama, referente ao exercício de 2010, no valor de € 938.619,03.

A recorrente (rte) elaborou alegação, finalizada com as seguintes conclusões: «

A) O presente recurso vem interposto contra a Douta Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que considerou improcedente o pedido de anulação da decisão de indeferimento de anulação de parte da Derrama Municipal apurada pelo GRUPO A……………., no exercício de 2010, no âmbito do RETGS;

B) Do resultado do GRUPO A…………….., no valor total de € 65.181.876,87, resultou provado que € 52.079.027,80 resultam de rendimentos gerados exclusivamente pelas Sucursais e Estabelecimento Estável da Sociedade ora RECORRENTE (individualmente considerada), constituídos em Angola, Moçambique e Argélia;

C) A Derrama Municipal apurada no exercício de 2010 teve por referência - erradamente - a totalidade do lucro tributável do Grupo, tendo sido liquidada e paga Derrama Municipal no valor total de € 938.619,03, cifrando-se a Derrama liquidada e paga em excesso em € 749.938,00, conforme Pedido de Revisão Oficiosa de cujo indeferimento se impugnou junto do Tribunal a quo

D) A questão de direito que subjaz ao presente recurso prende-se com a (des)consideração dos rendimentos provenientes de fonte estrangeira no cálculo da Derrama Municipal devida individualmente por sociedades residentes, num primeiro momento e, seguidamente, quando abrangidas pelo RETGS e, mais em concreto, no exercício de 2010;

E) Sem prejuízo de a lógica que subjaz à tributação em sede de IRC das sociedades comerciais com sede em Portugal, abrangidas pelo RETGS, e a que preside a tributação em sede de Derrama Municipal, serem diferentes, tal não significa que deva existir uma sobreposição dos princípios gerais de tributação do IRC face aos princípios específicos da Derrama Municipal:

Estamos perante impostos autónomos, com ratios legis completamente diferentes, com bases de incidência distintas (rendimento tributáveis com origem mundial/local), ainda que a forma de cálculo ou apuramento subjacente possa ser a mesma;

F) Em sede de IRC - e independentemente da aplicação do RETGS -, é considerado o rendimento mundial das sociedades que integram o perímetro do Grupo, independentemente do estado da fonte dos mesmos, o que não se contesta;

G) Porém, a RECORRENTE não acompanha a conclusão do Tribunal a quo no sentido de que a base de incidência do IRC e da Derrama são as mesmas, mormente, o segmento da Sentença recorrida que refere que «a norma de incidência não define (nem tinha que o fazer) como se apura o respetivo lucro tributável, porquanto, face à sua própria natureza jurídica, esse lucro é o que resultar das regras de determinação do mesmo para efeitos de IRC (…)» (…);

H) Liminar e respeitosamente se dirá que, se é verdade que a lei ‘não define como se apura o respetivo lucro tributável’ e que ‘esse lucro é o que resultar das regras de determinação do mesmo para efeitos de IRC’, terá que se acrescentar e necessariamente considerar as diferentes bases tributáveis (territoriais) subjacentes a cada um desses impostos autônomos;

I) Salvo o devido respeito, quando o Douto Tribunal a quo considerou ‘aplicável’ a forma de cálculo do IRC à Derrama Municipal, sem previamente expurgar os rendimentos legalmente não sujeitos a este último imposto, perfilhou uma interpretação violadora da lei, fazendo ilegalmente equivaler, por simplificação de cálculo (?), as bases de incidência dos dois impostos, como se a derrama fosse um ‘mero’ IRC, apenas com uma taxa diferente (o que não corresponde à verdade, pois 1,5% de todos os rendimentos, não equivale a 1,5% de apenas parte desses rendimentos);

J) A letra da lei - art.° 14.° da LFL, na redação em vigor à data dos factos, previa, de forma expressa, que a Derrama Municipal incidia sobre «o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português» (ou seja, a uma tributação de 1,5% de apenas parte desses rendimentos...);

K) No entendimento da RECORRENTE, e salvo melhor, a resposta à questão que subjaz aos presentes autos não pode deixar de ser procurada nos princípios e na ratio da Derrama Municipal:

L) Em primeiro lugar, não pode o Douto Tribunal ad quem ignorar que a Derrama Municipal, enquanto imposto municipal, visa, exclusivamente, financiar os municípios pelos custos que estes têm de assumir face à presença, no respetivo municípios, de sociedades comerciais (infra-estruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.);

M) A lógica comutativa subjacente à Derrama Municipal é evidente na solução legal de que a Derrama Municipal apurada por uma sociedade comercial deve ser ‘distribuída’ por tantos Municípios quanto aqueles em que a sociedade atua no território nacional, ou seja, em conformidade com a ‘fonte’ dos rendimentos, o que se impõe atentos os princípios do benefício e da justiça na repartição dos encargos públicos;

N) Em segundo lugar, valore o Douto Tribunal que o princípio da territorialidade no âmbito da Derrama Municipal impõe que, legalmente, só estejam sujeitas a Derrama Municipal as sociedades comerciais com sede ou direção efetiva em Portugal, e no caso das sociedades que aqui não tenham sede nem direção efetiva, apenas os rendimentos diretamente imputáveis aos estabelecimentos estáveis existentes no território nacional, ou seja, e nas palavras do Ilustre Professor J.L. Saldanha Sanches, ob. cit. p. 143, o propósito último da Lei é, efetivamente «a atribuição da derrama em atenção à “proporção do rendimento gerado na sua área geográfica”»;

O) Donde, e inversamente, em observância do mesmo princípio da territorialidade, a Derrama Municipal só deverá incidir sobre o lucro tributável das entidades que tenham sede e direção efetiva em território nacional, que se considere obtido em território nacional;

P) Por fim, de relevar que não obstante a Derrama Municipal contestada nos presentes autos ter sido apurada no âmbito do RETGS, a opção de tributação das sociedades ao abrigo de tal regime especial não prejudica a ratio, forma de cálculo, e distribuição da Derrama Municipal, que continua a ser imputada às diferentes áreas geográficas em que as sociedades que integram o Grupo atuam;

Q) O cálculo de um imposto autónomo - a Derrama Municipal -, ainda que seja feito, in fine, com base na mesma forma de cálculo do IRC em sede de RETGS - i.e., tendo em consideração os rendimentos individualmente declarados por cada uma das empresas que compõem o Grupo/lucros tributáveis individuais;

R) Num momento de cálculo necessariamente anterior, aquando da consideração dos rendimentos individualmente obtidos por cada uma dessas sociedades, dever-se-ão considerar, antes e só, os rendimentos tributáveis com origem em atividades exercidas nos municípios portugueses;

S) Pelo que deverá o Douto Tribunal de Recurso aferir o que tem ‘maior’ enquadramento ou cabimento à luz dos princípios da legalidade e da justiça material:

(i) Tributar artificialmente, em sede de Derrama Municipal, os rendimentos tributáveis mundiais da sociedade RECORRENTE, inquestionavelmente com origem fora de Portugal e sem qualquer suporte na ratio legis desse imposto autónomo? - aliás, como concluiu o Tribunal a quo? ou,

(ii) Expurgar dos cálculos (individualmente, numa primeira fase, e depois em sede de RETGS) esses rendimentos tributáveis com origem fora de Portugal, face aos ‘nacionais’, dado não estar inequivocamente sujeito a Derrama Municipal?

T) Sendo a base de incidência uma matéria da competência da Assembleia da República, protegida constitucionalmente, não se admite como legítimo que a forma de cálculo da Derrama Municipal (matéria necessariamente acessória) possa, por uma questão de facilidade no cumprimento das obrigações fiscais e do automatismo da aplicação da lei, conduzir a uma tributação excessiva, indevida e em manifesta violação de lei, por não estar inequivocamente prevista com tal abrangência;

U) Em face de todo o exposto, deverá a Sentença recorrida ser revogada, e em consequência da procedência do presente Recurso, o Douto Tribunal concluir que a parte do lucro tributável do GRUPO A……………… que teve, comprovadamente, origem estrangeira, no valor total de € 52.079.027,80, não pode ser sujeito a Derrama Municipal, por não existir o elemento de conexão objetivo (o ‘elemento territorial’) exigido pela Lei;

V) Devendo, em consequência, a Autoridade Tributária reembolsar à RECORRENTE, na qualidade de sociedade dominante do Grupo, a Derrama Municipal paga em excesso no exercício de 2010, sendo ainda devidos à RECORRENTE os juros indemnizatórios devidos desde a data do pagamento em excesso da Derrama Municipal até integral reembolso de tal montante, ao abrigo do artigo 43.° e do artigo 100°, ambos da LGT, em caso de procedência do presente Recurso Jurisdicional.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS,

DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, POR PROVADO, COM A REVOGAÇÃO DA DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, POR A DERRAMA MUNICIPAL DEVIDA PELAS ENTIDADES RESIDENTES DEVER INCIDIR APENAS SOBRE OS LUCROS TRIBUTÁVEIS QUE TENHAM, COMPROVADAMENTE, A RESPETIVA ORIGEM EM TERRITÓRIO NACIONAL, CONDENANDO-SE, EM CONFORMIDADE, A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA A IGNORAR, PARA EFEITO DE CÁLCULO DA DERRAMA MUNICIPAL DEVIDA PELO GRUPO A……………., NO EXERCÍCIO DE 2010, OS RENDIMENTOS DE ORIGEM ESTRANGEIRA, QUE ASCENDERAM A € 52.079.027,80, O QUE SE TRADUZ NUMA ANULAÇÃO PARCIAL DA DERRAMA PAGA EM TAL EXERCÍCIO, NO VALOR DE € 749.938,00, ACRESCIDOS DOS PETICIONADOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS DEVIDOS NOS TERMOS DA LEI,

POIS SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA! »


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Não ocorreu a apresentação de contra-alegação.

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A Exma. Procuradora-geral-adjunta emitiu parecer, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso jurisdicional e mantida, inteiramente, a sentença recorrida.

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Cumpridas as formalidades legais, compete conhecer e decidir.

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# II.


Na sentença, em sede de julgamento factual, expressou-se: «

A) A impugnante está colectada pelo exercício de actividade sujeita e não isenta de IRC, sendo sociedade dominante de um grupo de sociedades, tendo optado pela aplicação do regime especial de tributação de grupos de sociedade previsto no art° 69° do CIRC. - cfr art° 1° , da p.i de fls 3 e segs e “D.P. “ da sociedade dominante, de fls 17 a 22 v. do Proc. Revisão Oficiosa apensa.

B) A impugnante apresentou a declaração modelo 22 de IRC relativo ao lucro tributável do grupo relativo ao ano de 2010 e onde procedeu ao apuramento do resultado líquido do exercício em resultado da soma algébrica dos resultados fiscais, os quais foram corrigidos pela I.T., tendo-se apurado um lucro tributável no montante de € 65.181.876,87, o qual comporta um valor de € 52.079.027,80 obtido fora do território português, e do apuramento do valor da derrama, na importância de € 938.619,03, - cfr “Demonstração da liquidação de imposto”, de fls. 13, “Informação dos Serviços” de fls 16 e v. Relatórios da I.T de fls 127 a 178 e de fls 180 a 333, do P.A. apenso; e “D.P” do Grupo, de fls 24 a 27, do Proc Rev. Oficiosa.

C) Em 09.06.2015, foi apresentado pelo Impte um pedido de revisão oficiosa do acto tributário do exercício de 2010, com fundamento em erróneo apuramento da derrama municipal quanto à sua incidência sobre o rendimento gerado fora do território português, por entender que o mesmo não obedece ao principio da territorialidade do rendimento que subjaz àquele tributo local, o qual mereceu decisão de indeferimento proferido em 18.09.2015 pelo Director da D.G.A.T. da U.G.C., aposto sobre Parecer e Informação dimanada dos Serviços. - cfr Requerimento de fls 9 e segs e “Despacho”, Parecer” e “informação” de fls. 109 a 111, do Proc. Ver. Apenso.

D) A Impte procedeu, em 31.05.2011, ao pagamento do imposto autoliquidado relativo ao exercício de 2010, no montante de € 1.570.179,56 - cfr “Doc. de Pagamento” de fls 32, dos autos. »


***

Neste recurso jurisdicional, somente, se discute o acerto (ou não) da sentença recorrida, em julgar totalmente improcedente esta impugnação judicial, com base neste conjunto de argumentos jurídicos: «

Sabendo-se que a derrama constitui um imposto acessório relativamente ao IRC cujo sujeito activo é o Município, nos termos da Lei das Finanças Locais (cfr artº 14º, da Lei nº 2/2007, de 15.01), importa estabelecer que o mesmo incide sobre o lucro tributável das empresas sujeitas a IRC e dele não isentas (incidência objectiva) e são seus sujeitos passivos, as entidades residentes que exerçam a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e os não residentes que possuam um estabelecimento estável em território português, nos termos daquela disposição. A determinação do imposto devido é o que resulta da aplicação da taxa fixada pelo respectivo Município àquele lucro tributável. Definidos os contornos do tributo, importa dizer, por um lado, que a norma de incidência não define (nem tinha que o fazer) como se apura o respectivo lucro tributável porquanto, face à sua própria natureza jurídica, esse lucro é o que resultar das regras de determinação do mesmo para efeitos de IRC, pelo que na quantificação do mesmo se terá de considerar as disposições contidas nos artºs 17º e segs, do CIRC, maxime as regras específicas de determinação do lucro tributável do grupo tal como foi gizado pelo legislador no artº 70º, do CIRC, que no caso do regime especial de tributação dos grupos de sociedade, por cada um dos períodos de tributação o lucro tributável é o que resulta da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas sociedades pertencentes ao grupo, nos termos do disposto no referido preceito legal, e por outro, nada releva nessa sede a questão da imputação daquele lucro tributável aos diversos municípios em que a sociedade a ela sujeita desenvolve a sua actividade, já que tal determinação da proporção do rendimento relativo à área geográfica onde ele é gerado tem a ver com a referida titularidade activa do tributo, pelo que obviamente deverá atender à actividade desenvolvida pelo respectivo s.p. em cada circunscrição sobre que incidirá a referida derrama municipal, face à regra da determinação uniforme do lucro tributável, nos termos do disposto no referido artº 14º da L.F.L., nada naquela lei se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas e à data que ora importa, a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do nº 1, do artº 4º, do CIRC, permite a conclusão que aquele lucro tributável é integralmente sujeito a derrama, da mesma forma que, inversamente os não residentes com estabelecimento estável sito nesse território só são sujeitos a derrama quanto aos rendimentos nele obtidos, por aplicação do princípio da tributação na fonte vertido no nº 2, do artº 4º do mesmo Código, não definindo a lei de finanças locais a determinação do lucro tributável sujeito e não isento de I.R.C sobre a qual recai aquela derrama, a qual é definida nos termos do disposto nos artºs 3º e segs, do CIRC.
(…) .»

Numa formulação sintética, a discórdia reside na questão de saber se, para efeitos de autoliquidação de derrama municipal, incidente, consensualmente, sobre “o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) (Cf. art. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro (Lei da Finanças Locais, em vigor no ano de 2010).), há (ou não) lugar, no respetivo cálculo/apuramento, à destrinça entre rendimentos tributáveis com (e sem) origem em atividades exercidas nos municípios/freguesias portuguesas.

Em breve excursão legislativa (pelos tempos mais próximos), o artigo (art.) 18.º n.º 1 da Lei n.º 42/98 de 6 de agosto, que estabeleceu o regime financeiro dos municípios e das freguesias, na sequência de o art. 16.º alínea (al.) b) identificar como receita dos municípios “O produto da cobrança de derrama lançada nos termos do disposto no artigo 18.º;”, permitia-lhes que, anualmente, pudessem lançar uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a coleta do IRC, que proporcionalmente correspondesse ao rendimento gerado na sua área geográfica … Este diploma foi, expressamente, revogado, pelo art. 64.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro - intitulada Lei das Finanças Locais (LFL) (Presentemente, esta, também, se encontra, já, revogada, vigorando, desde 1 de janeiro de 2014, o Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (RFALEI), estabelecido pela Lei n.º 73/2013 de 3 de setembro, cujos arts. 14.º al. c) e 18.º n.º 1, no essencial, reproduzem, “ipsis verbis”, os arts. 10.º al. b) e 14.º n.º 1 da LFL.)-, cujos arts. 10.º al. b) e 14.º n.º 1 passaram a estatuir: «
O produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do disposto no artigo 14.º;
Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica …”. »

Atento a esta evolução legislativa, o STA, com expressão, entre outros, no acórdão de 2 de fevereiro de 2011 (0909/10) (Que se debruçou, nuclearmente, sobre hipótese de anulação de derrama, autoliquidada em declaração de rendimentos de IRC, respeitante ao exercício de 2008, no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades.), desde logo, perfilhou e explicitou, o entendimento de que com a Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro, a partir do início desse ano, a derrama passava a ser calculada por aplicação de uma taxa ao lucro tributável, em vez da coleta, de IRC, perdendo, assim, a natureza de imposto extraordinário e deixando de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento. “A circunstância, porém, de a derrama sempre ter prefigurado um mero imposto adicional, assente sobre as regras de incidência e liquidação dos impostos da administração central, levou a que a sua disciplina legal se mantivesse relativamente ligeira. (…). É certo que, de acordo com a actual redacção da LFL de 2007, se trata claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito activo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objectiva comum (…)”.

Posto isto e realçando, sobretudo, este cariz de tributo autónomo relativamente ao IRC, para solucionar a questão que nos ocupa, importa começar por mencionar que a comparação dos quadros legais (sucessivos), enformadores da cobrança de derrama(s) municipal(ais), permite extrair, com objetividade, estas premissas:
- sempre (nas Leis n.ºs 42/98, 2/2007 e (73/2013)) esteve (e está) presente a previsão e exigência, de o IRC sobre que recai a percentagem de derrama seja a proporção correspondente “ao rendimento gerado na sua (do município) área geográfica”; aliás, neste aspeto particular, a Lei n.º 1/87 de 6 de janeiro (Revogada pela Lei n.º 42/98 de 6 de agosto.), ainda, era mais incisiva e precisa, estabelecendo que os municípios podiam lançar uma derrama…, “na parte relativa ao rendimento gerado na respectiva circunscrição”;
- comummente àquelas três leis, por referência à redação da Lei n.º 2/2007 (aqui, aplicável), há de considerar-se: “2 - …, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria colectável superior a (euro) 50000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado …”. “5 - Nos casos não abrangidos pelo nº 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direcção efectiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 117º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade.”;
- desde a redação inicial, o art. 18.º da Lei n.º 73/2013 de 3 de setembro (RFALEI) estabeleceu a regra, inalterada até hoje, de que “(…) Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1, quando uma mesma entidade tem sede num município e direção efetiva noutro, a entidade deve ser considerada como residente do município onde estiver localizada a direção efetiva.”.

Neste momento, dirigindo, já, atenções para a situação julganda, podemos afirmar, com segurança, que a rte, no exercício de 2010, estando coletada pelo exercício de atividade sujeita e não isenta de IRC, possuindo sede (Nada se provou (ou consta dos autos), quanto a, eventual, direção efetiva noutro local.) no município de Oeiras (………… - Edifício …….., ……….), com um lucro tributável de € 65.181.876,87, tinha, em princípio, de apurar e pagar (o que, efetivamente, fez), derrama municipal, na importância de € 938.619,03 (€ 65.181.876,87 x 1,44%). Assim, legitimava e impunha, o art. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro ao dispor que “Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola …”. A dúvida reside, apenas, em saber se o lucro tributável, a operar como base de incidência da derrama, é o montante mencionado ou, perante a comprovação de que esse valor integra, comporta, a importância (global) de € 52.079.027,80, obtida fora do território português (no estrangeiro), deve ser o de € 13.102.849,07 e, consequentemente, a derrama, devida, fixar-se em € 188.681,03 (€ 13.102.849,07 x 1,44%), portanto, num montante inferior ao autoliquidado (-749.938,00).

Antecipando o resultado, entendemos que a razão está do lado da rte.
Como emana do antes exposto e, destacadamente, das premissas acima expressas, o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede …
Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.

Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente, por exemplo, num preâmbulo à Lei n.º 2/2007 (aplicável, neste caso) (No âmbito da Lei n.º 42/98 de 6 de agosto a derrama podia ser lançada “para reforçar a capacidade financeira ou no âmbito da celebração de contratos de reequilíbrio financeiro. A, precedente, Lei n.º 1/87 de 6 de janeiro (art. 5.º n.º 6) só admitia o lançamento de derrama “para acorrer ao financiamento de investimento ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro”.), certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, “a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” e devem respeitar “os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material (Artigo 5.º da Lei Geral Tributária (LGT).), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…
Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).

Obviamente, não é incorreto afirmar (como na sentença recorrida) que, na LFL, “nada … se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas …, a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do nº 1, do artº 4º, do CIRC, …”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, “relativamente ligeira”. Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).

Assim sendo, decorre, inevitável, a necessidade de se reputar erróneo o julgamento concretizado em 1.ª instância, com a inerente revogação da sentença sob escrutínio, do que deriva ter de ser, neste STA, julgada procedente a impugnação judicial, apresentada pela rte, com o consequente apontamento de ilegalidade, além do mais (Cf. a decisão de indeferimento de pedido de revisão oficiosa, mencionado em C) dos factos provados.), ao ato de apuramento (autoliquidação) de derrama, respeitante ao exercício de 2010, pelo valor total de € 938.619,03 - ponto B) dos factos provados, na parte em que excede o montante, efetivamente, devido de € 188.681,03 (considerando o lucro tributável de € 13.102.849,07, em vez de € 65.181.876,87).
Acresce, porque se mostra comprovado o pagamento, pela impugnante, do imposto autoliquidado, relativo ao exercício de 2010 - alínea D) dos factos provados, atender o seu pedido, no sentido da restituição do montante de € 749.938,00, respeitante a derrama municipal liquidada em excesso, no mesmo período, adicionado, nos termos e para os efeitos do art. 43.º n.º 1 da LGT, dos competentes juros indemnizatórios. Quanto a estes e sua contagem, que, em princípio, devia ter início na data do pagamento indevido do imposto e correr até à data do processamento da respetiva nota de crédito, in casu, julgamos apropriado, face à circunstância de a, agora, decretada ilegalidade (tradutora do erro imputável aos serviços da autoridade tributária e aduaneira (AT)) ter tido origem num pedido de revisão oficiosa, somente, formalizado em 9 de junho de 2015, em sintonia com a jurisprudência, uniforme e reiterada, do STA ( Entre muitos outros, acórdão de 4 de novembro de 2020 (38/19.4BALSB).), transferir o ponto inicial da contagem dos juros devidos, para o dia 9 de junho de 2016.
Finalmente, estando o valor desta causa fixado em € 749.938,00, atento o disposto no art. 6.º n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais (RCP), no pressuposto de que a novidade da matéria debatida nestes autos imprimiu alguma complexidade à causa (por reporte ao que é normal), justifica-se dispensar, mas não na totalidade, o excesso da taxa de justiça devida (que será só na 1.ª instância), pelo valor superior a € 275.00,00.
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# III.


Pelo exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, acordamos:

- conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida;

- julgar procedente a impugnação judicial e anular a decisão, proferida em 18 de setembro de 2015, de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, identificado em C) dos factos provados, bem como, o ato de apuramento (autoliquidação) de derrama, respeitante ao exercício de 2010, pelo valor total de € 938.619,03, na parte em que excede o montante de € 188.681,03;

- condenar, a AT, na restituição, à impugnante, da importância de € 749.938,00 (setecentos e quarenta e nove mil, novecentos e trinta e oito euros), acrescida de juros indemnizatórios, contados desde o dia 9 de junho de 2016 e até à data do processamento da competente nota de crédito.


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Custas pela recorrida (Fazenda Pública), em ambas a instâncias, sem taxa de justiça neste STA e dispensando-se o remanescente da devida (na 1.ª instância), em 80%.

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[texto redigido em meio informático e revisto]


Lisboa, 13 de janeiro de 2021. – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (relator) – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.