Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0904/12.8BESNT-A-A
Data do Acordão:01/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:PEDIDO
REFORMA
ÂMBITO
Sumário:I - A reforma das decisões judiciais, como uma das excepções legalmente previstas aos princípios da estabilidade das decisões e do esgotamento do poder jurisdicional após a decisão, pressupõe que, por manifesto lapso, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, a decisão tenha sido proferida com violação de lei expressa ou que dos autos constem documentos ou outro meio de prova que, só por si e inequivocamente, implique decisão em sentido diverso e que não tenha sido considerado igualmente por lapso manifesto [cf. arts. 613.º, n.º 2, e 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC).
II - A reforma do pedido não se destina a alterar o julgamento com base em divergências na interpretação das normas aplicáveis, pois esses erros só poderão ser corrigidos por recurso, nos casos em que a lei ainda o admita.
Nº Convencional:JSTA000P25413
Nº do Documento:SA2202001160904/12
Data de Entrada:06/24/2019
Recorrente:A.........
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Pedido de reforma do acórdão que confirmou a decisão singular que indeferiu a reclamação do despacho que não admitiu o recurso interposto de acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul no processo n.º 904/12.8BESNT

1.

1.1 O acima identificado Recorrente, invocando o art. 280.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentou no Tribunal Central Administrativo Sul requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo do despacho que, por falta de indicação do acórdão fundamento, não admitiu o recurso por ele, ora Reclamante, interposto do acórdão daquele Tribunal Central. Este último acórdão, confirmando decisão do relator, manteve o despacho de não admissão do recurso interposto pelo ora Reclamante da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra em processo de impugnação judicial. Aquele requerimento foi convolado pelo Desembargador relator em reclamação prevista no art. 643.º do Código de Processo Civil (CPC).

1.2 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e aqui sujeitos a distribuição entre os Juízes da Secção do Contencioso Tributário, apresentados a despacho ao Conselheiro relator (Após a alteração que foi introduzida no CPC pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, a reclamação do despacho que não admita o recurso passou a ser decidida pelo relator, como resulta do n.º 4 do art. 688.º daquele Código, a que hoje – após a nova redacção dada ao CPC pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 36/2013, de 12 de Agosto – corresponde o n.º 4 do art. 643.º.), este decidiu no sentido do indeferimento da reclamação e manutenção do despacho que não admitiu o recurso.

1.3 Inconformado com essa decisão, o Reclamante apresentou um requerimento no qual, depois de manifestar discordância com a posição sustentada na decisão por que o Relator indeferiu a reclamação deduzida ao abrigo do art. 643.º do CPC, concluiu formulando a sua pretensão nos seguintes termos: «Requer, assim, a reapreciação da decisão, permitindo o reparo do requerimento, com a inclusão do acórdão em questão e por outro lado que se analise a eventual prescrição, tudo como de Direito».

1.4 Esse requerimento foi interpretado como sendo de reclamação e o despacho do Conselheiro relator foi submetido à conferência, que o confirmou por acórdão de 9 de Outubro de 2019.

1.5 Notificado desse acórdão, vem agora o Recorrente, sem indicar qualquer disposição legal, contra ele apresentar “reclamação”. Se bem interpretamos a sua alegação, o Recorrente insiste que deveria ser apreciada neste processo a prescrição da obrigação tributária respeitante à liquidação impugnada e declarada a inutilidade superveniente da lide.

1.6 Cumpre apreciar e decidir.

2.

2.1 Antes do mais, cumpre apreciar da admissibilidade do requerimento ora sob apreciação.
Da leitura do mesmo parece resultar que o Recorrente mantém que se deveria ter conhecido da prescrição da obrigação tributária correspondente à liquidação impugnada e decidido pela inutilidade superveniente da lide. Ou seja, o Recorrente manifesta discordância com o decidido no acórdão deste Supremo Tribunal e dele apresenta “reclamação”.
Porém, o referido acórdão não é susceptível de “reclamação” alguma, que o Recorrente, aliás, não alicerça em norma legal que a preveja ou autorize.
No entanto, procurando conferir efeito útil ao requerimento apresentado, em obediência aos princípios da tutela efectiva e do favorecimento da decisão, apesar de o Recorrente não ter referido qual o meio processual de que lançou mão, entendemos, na ausência de qualquer outro que se adeqúe ao pedido de tutela jurisdicional formulado – que passa pela alteração do decidido pelo acórdão – que ele não poderia ser senão o pedido de reforma previsto no art. 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC. É sob essa óptica que passaremos a considerar o requerimento.

2.2 Recordemos a redacção da norma, que foi introduzida no CPC pela reforma de 1995/1996, sofreu ulterior alteração (não relevante para os efeitos de que nos ocupamos) introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, e que é hoje a constante do referido art. 616.º, n.º 2 (anteriormente, n.º 2 do art. 669.º):
«[…] 2- Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
[…]».
Ou seja, após a reforma de 1995/1996, o art. 669.º do CPC, continuou, como anteriormente, a permitir a reforma das decisões judiciais (Embora a norma se refira apenas à sentença deve considerar-se aplicável a todas as decisões judiciais, designadamente aos acórdãos dos tribunais superiores, como resulta expressamente do disposto nos arts. 666.º, n.º 1, e 685.º, do CPC, aplicável ao contencioso tributário ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT.) quanto a custas e multa e, de forma inovadora, veio também permiti-la relativamente a erros de julgamento, em certos casos, numa opção legislativa que se mantém no Código aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, agora no art. 616.º. O relatório do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, justificou tal opção, à data inovadora, nos seguintes termos:
«[…] sempre na preocupação de realização efectiva e adequada do direito material e no entendimento de que será mais útil, à paz social e ao prestígio e dignidade que a administração da Justiça coenvolve, corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável, permite-se, embora em termos necessariamente circunscritos e com garantias de contraditório, o suprimento do erro de julgamento mediante a reparação da decisão de mérito pelo próprio juiz decisor, ou seja, isso acontecerá nos casos em que, por lapso manifesto de determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica, a sentença tenha sido proferida com violação de lei expressa ou naqueles em que dos autos constem elementos, designadamente de índole documental, que, só por si e inequivocamente, impliquem decisão em sentido diverso e não tenham sido considerados igualmente por lapso manifesto. Claro que, para salvaguarda da tutela dos interesses da contraparte, esta poderá sempre, mesmo que a decisão inicial o não admitisse, interpor recurso da nova decisão assim proferida.
Recurso este que, note-se, é admissível ainda que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, como refere expressamente o art. 670.º, n.º 4, [hoje, art. 617.º, n.º 4] do CPC».
Ou seja, numa solução que mereceu muitas críticas à doutrina, a lei passou a admitir, como uma das excepções ao esgotamento do poder jurisdicional, que, em circunstâncias muito extraordinárias, o tribunal alterasse a decisão que ele próprio proferiu.
Assim, a possibilidade de reforma de uma decisão judicial ao abrigo do n.º 2 do art. 616.º do CPC tem carácter de excepção, sendo que «quanto ao alcance do mesmo preceito legal, o STA tem construído um critério orientador para a definição do carácter manifesto do lapso cometido e que possibilita a imediata reparação do erro de julgamento que o originou. Tem sido, com efeito, sublinhada a excepcionalidade desta faculdade, que insere um desvio aos princípios da estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 666.º, n.º 1, do CPC), salientando-se que a mesma só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto» (Cf. Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 25, pág. 54, também citado por JORGE LOPES DE SOUSA no Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume, anotação 8 ao art. 126.º, pág. 388 e, entre muitos outros e a jurisprudência aí referida.).
A referida faculdade não se destina, manifestamente, à reapreciação dos factos apurados e sua interpretação ou à reapreciação das regras e princípios de direito aplicados. Se quanto a estas, houver divergência entre o alegado pela parte e o decidido pelo tribunal, a sua reapreciação e a correcção de eventuais erros por este cometidos só será possível em sede de recurso, desde que este seja admissível.

2.3 Delimitado que ficou o âmbito da reforma, logo verificamos que a alegação do Recorrente não integra os casos em que a mesma é autorizada.
Na verdade, o Recorrente continua a insistir que o tribunal – este Supremo Tribunal Administrativo agora, como o Tribunal Central Administrativo Sul antes – deveria ter apreciado a questão da prescrição.
Ora, como deixámos já dito, se o processo não dever, como não deve, prosseguir, por o recurso não ser admitido, o Tribunal ad quem não pode conhecer de questão alguma relativa ao mérito da relação jurídica controvertida, ainda que de conhecimento oficioso.
Mas o Recorrente manifesta também discordância relativamente à seguinte afirmação feita no acórdão: «Sem prejuízo, e em mero reforço argumentativo, diremos ainda, por um lado, que nunca a questão da prescrição foi suscitada perante este Supremo Tribunal (pois não foi apresentada a motivação do recurso) e, por outro lado, que estamos perante processo de impugnação judicial, ao qual uma eventual prescrição da obrigação tributária nunca poderia servir de fundamento e que, quando muito, se inequivocamente verificada, apenas poderia levar à inutilidade superveniente da lide». Sustenta que deveria este Supremo Tribunal Administrativo ter apreciado a questão da prescrição e, em consequência, julgado extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Salvo o devido respeito, é manifesta a falta de razão do Recorrente.
Desde logo, porque, reiteramos, não tendo sido admitido o recurso, o tribunal ad quem não pode conhecer de qualquer outra questão relativa ao mérito da relação jurídica controvertida, ainda que do conhecimento oficioso.
Mas, ainda que assim não fosse, porque já foi proferida sentença, que transitou em julgado quanto à questão da validade do acto impugnado, extinguiu-se a instância nos termos do disposto na alínea a) do art. 277.º do CPC; consequentemente, não há possibilidade de extinguir a instância por outro modo, motivo por que nunca haveria que indagar da utilidade da prossecução da lide (Vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 2 de Maio de 2012, proferido no processo com o n.º 1174/11, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3e068cd57c9867af802579fb003909e9;
- de 8 de Janeiro de 2020, proferido no processo com o n.º 1/99.0BUPRT, brevemente disponível em www.dgsi.pt.). Isto, obviamente, sem prejuízo da questão da prescrição ser conhecida na sede própria, qual seja a execução fiscal instaurada para cobrança coerciva da dívida correspondente à obrigação tributária.
Seja como for, nunca o invocado erro de julgamento que o Recorrente assaca ao acórdão se poderia erigir em fundamento de reforma.
Na verdade, como deixámos dito, a reforma das decisões judiciais, como uma das excepções legalmente previstas aos princípios da estabilidade das decisões e do esgotamento do poder jurisdicional após a decisão, pressupõe que, por manifesto lapso, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, a decisão tenha sido proferida com violação de lei expressa ou que dos autos constem documentos ou outro meio de prova que, só por si e inequivocamente, implique decisão em sentido diverso e que não tenha sido considerado igualmente por lapso manifesto [cf. arts. 613.º, n.º 2, e 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC).
O Requerente parece entender que o acórdão terá incorrido em erro de julgamento ao não conhecer da prescrição, mas, mesmo que assim fosse (e não é), a verdade é que essa faculdade excepcional de reformar a decisão tem como escopo corrigir um erro juridicamente insustentável, que, como a jurisprudência tem vindo a afirmar, só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto; a reforma não se destina a alterar o julgamento com base em divergências na interpretação das normas aplicáveis, pois esses erros só poderão ser corrigidos por recurso, nos casos em que a lei ainda o admita. Ora, o pedido de reforma, nos termos sobreditos, não integra qualquer expressão de directa imputação a este Supremo Tribunal de erro de julgamento grosseiro decorrente de lapso manifesto, assentando antes em considerações que traduzem, apenas, uma divergência interpretativa relativamente a um mesmo quadro legal, uma tese jurídica diferente.
Assim, o pedido de reforma improcede.

3.

Pelo exposto, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em indeferir o requerido.

Custas pelo Recorrente, que decaiu na sua pretensão, fixando-se a taxa de justiça em uma UC (cf. arts. 527.º, 529.º, 530.º, 539.º, do CPC, art. 7.º, n.º 4, do RCP e Tabela II ao mesmo anexa).


Lisboa, 16 de Janeiro de 2020. – Francisco Rothes (relator) – Joaquim Manuel Charneca Condesso – Nuno Bastos.