Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02507/15.6BEBRG
Data do Acordão:01/12/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:CLÁUSULA GERAL
CLÁUSULA ANTI-ABUSO
Sumário:I - A prova exigida no âmbito da aplicação da CGAA não pode ser uma prova diabólica, ou seja, a AT não tem de provar uma intencionalidade “abusiva” do sujeito passivo. Não é exigível que a AT faça prova de que o sujeito passivo optou pela construção que conduz ao aforro fiscal para, intencionalmente, evitar a solução que estaria sujeita a tributação. Basta que a AT faça prova de que a operação realizada não tem um propósito racional à luz do ordenamento jurídico mobilizado e que, por isso, a sua intencionalidade se esgota no aforro fiscal a que conduz. Feita esta prova, os pressupostos do artigo 38.º, n.º 2 da LGT devem considerar-se preenchidos.
II - A interpretação jurídica que, à luz dos princípios da praticabilidade e da razoabilidade, assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na sua redacção prévia à alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019, é a que sustenta que quando a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção e na sua substituição por uma operação cuja regulação legal imporia a prática de um acto de retenção na fonte a título definitivo (e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário), é aquele que se vem a qualificar como substituto (à luz da aplicação da CGAA) quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele e seja possível concluir, no âmbito do procedimento do artigo 63.º do CPPT, que ele tinha a obrigação legal de conhecer a operação jurídica alternativa que se vem a qualificar como legalmente devida por efeito da desconsideração da operação realizada (da construção adoptada).
Nº Convencional:JSTA000P28772
Nº do Documento:SA22022011202507/15
Data de Entrada:05/03/2021
Recorrente:A........... – SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS,S.A.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I - Relatório

1 – A............ – Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A., com os sinais dos autos, vem interpor recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, de 31 de Agosto de 2020, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial intentada por, relativa ao acto de liquidação de retenções na fonte de IR e de juros compensatórios, referente ao exercício de 2012, no valor de €136.027,39€, tendo apresentado, para tanto, alegações que concluiu do seguinte modo:
«[…]
A. O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida pela Recorrente contra o acto de «Liquidação de retenções na fonte de IR» com o n.º 2015 6410000065 e de liquidação de juros compensatórios com o n.º 2015 00000007561, referentes ao ano de 2012, dos quais resultou um valor global a pagar de € 136.027,39 (cento e trinta e seis mil, vinte e sete euros e trinta e nove cêntimos).

B. A vexata quaestio no presente recurso jurisdicional prende-se com a questão de saber se as operações societárias realizadas pela sociedade em 2010 eram aptas, ou não, à aplicação da CGAA, se interpretada com exactidão a natureza, o conteúdo e o alcance desta cláusula anti-abuso, tal como prevista no n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LGT) e no artigo 63.º do CPPT, quer quanto à entidade destinatária dos actos impugnados, quer quanto aos factos concretos que se subsumiram a cláusula geral.
C. As operações societárias encabeçadas pela Recorrente traduziram-se em duas amortizações de acções, com redução de capital (ambas realizadas em 2010, a primeira em Fevereiro e a segunda em Maio), tendo ambas sido seguidas da incorporação de reservas de modo a acautelar o mínimo legal de capital social previsto para este tipo de entidades.
D. Por força destas operações, três accionistas da sociedade à data apuraram uma mais-valia nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, a qual se encontrava excluída de tributação, ao abrigo do regime vigente no n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS.

POIS BEM,
E. Veio a AT desconsiderar por completo as operações societárias realizadas, sustentado que a operação havia sido «montada» pelos respectivos accionistas com o intuito de obter uma vantagem fiscal (ignorando por completo a substância económica das operações realizadas).
F. Em suma, entendeu a AT que as operações foram realizadas de modo a permitir que a A............ SGPS distribuísse dividendos sob a «capa» de amortização de acções, evitando, dessa forma, a tributação em sede de IRS a que estariam sujeitos (caso distribuíssem dividendos).
G. Concluiu, assim, a AT pela subsunção desta matéria factual ao regime da CGAA, propondo o preenchimento dos elementos previstos na cláusula anti abuso, bem como a verificação dos pressupostos processuais de que a lei faz depender a sua aplicação.
H. Como a Recorrente teve oportunidade de demonstrar nestas alegações, nem os pressupostos processuais, nem tão pouco os elementos contemplados na cláusula anti abuso encontravam-se preenchidos, neste caso.
I. Na verdade, os serviços de inspecção tributária «montaram» o procedimento administrativo e exigiram o montante dos actos tributários impugnados a quem dos actos ou negócios escriturados não retirou qualquer vantagem fiscal, muito menos aquela que os serviços de inspecção tributária reputaram de ilegítima.
J. Deste modo, ficaram totalmente desonerados aqueles que a própria AT reconhece como sendo os beneficiários daquela alegada vantagem (os três accionistas da sociedade).
K. Para além disso, a AT não cumpriu o dever de fundamento «acrescido» que lhe cabia, nem os factos subsumidos à CGAA estão inseridos no seu campo de aplicação.
L. Surpreendentemente, contudo, o Tribunal a quo julgou a presente impugnação judicial sem o sentido crítico que este caso merecia, tendo acolhido na íntegra os argumentos trazidos pela AT.
M. Os factos dados como provados pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão não merecem qualquer comentário por parte da Recorrente.
N. Assim, apesar do Tribunal a quo incluir nos factos dados como provados o escurso argumentativo quase integral da AT (reproduzindo quase na íntegra os despachos da AT que conduziram à aplicação da CGAA ao presente caso), a verdade é que os factos dos autos não se mostram convertidos.
O. Na verdade, o presente recurso jurisdicional prende-se com o clamoroso erro na interpretação da norma – da sua função e do seu conteúdo –, a qual não está pensada para o caso concreto (em que os actos ou os negócios não são realizados com «abuso de formas jurídicas», mas sim utilizados para prosseguir os seus fins jurídico-económicos típicos).
P. E tal é assim devido ao facto do Tribunal a quo ter sintetizado os argumentos expostos pela Recorrente em dois planos: (i) o plano da interpretação da previsão da norma e (ii) o plano da interpretação da sua estatuição – cfr. pág. 17 da Sentença.
Q. Em concreto, tendo a AT querido dizer que a operação realizada não teve qualquer racionalidade subjacente – tese à qual o Tribunal a quo parece ter aderido, salvo o devido respeito, no sentido contrário do controlo da legalidade que nesse caso se impunha –, deveria tê-lo fundamentado em cumprimento do ónus da prova que, nos termos do n.º 3 do artigo 63.º do CPPT, sobre si impendia, explicando as concretas razões que conduziram a que considerasse que a Recorrente não utilizou a operação jurídico-societária realizada – a amortização de acções com redução do capital prevista no artigo 347.º CSC – para a finalidade típica a que se destina, antes apenas para alcançar uma finalidade fiscal.
R. Sobre esta questão sustentou – ao arrepio da lei – o Tribunal a quo: «a AT considerou que a amortização de ações com redução do capital social, seguida de um aumento do capital social por incorporação de reservas, sem que tenha existido qualquer alteração da estrutura acionista é, em si mesmo, um indício de que a operação realizada carece de racionalidade económica, o que consideramos ser suficiente, sob o ponto de vista formal (e a fundamentação de um ato é uma exigência de forma), para satisfazer o dever de fundamentação que sobre a AT impende» - cfr. pág. 19 da Sentença
S. De resto, julgou o Tribunal a quo verificarem-se os quatro elementos a que a metodologia sugerida por GUSTAVO LOPES COURINHA faz referência.
T. Deste modo, quanto ao elemento resultado, o Tribunal a quo considerou-o verificado por entender que, no caso, estaria na obtenção da exclusão de tributação
- que mais não é do que a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS, na respectiva redacção à data – visto que, caso fossem distribuídos dividendos, haveria lugar à sua tributação.
U. Já no que respeita aos elementos meio e intelectual, entendeu o Tribunal a quo que a sua observância deveria ser aferida em conjunto; nesse sentido, concluiu que «Aquilo que a AT considerou abusivo e artificioso foi a redução e o simultâneo aumento do capital social, nos termos em que foi feito, pois na sua ótica tal operação não obedecia a qualquer critério de racionalidade económica»
cfr. pág. 28 da Sentença.

V. Por fim, quanto ao elemento normativo, o Tribunal a quo ancora-se aparentemente nos ensinamentos de SALDANHA SANCHES, sendo que no momento da subsunção ao caso concreto, não cumpre devidamente o raciocínio do referido Autor visto que conclui que «a legítima opção que acima referimos entre amortizar ações ou receber dividendos, não pode deixar de ter como pressuposto uma situação normal ou não artificiosa, pois se o legislador tivesse pretendido não tributar tout court os rendimentos de capitais gerados por uma sociedade anónima, não teria deixado de o dizer» – cfr. pág. 36 da Sentença.
W. Quanto ao argumento mobilizado pela Recorrente – e, em boa verdade, prévio a todos os demais – no sentido da ilegalidade dos actos impugnados por ilegitimidade da A............ SPGS, desde logo por o procedimento administrativo e respectivos actos tributários de liquidação impugnados terem desembocado na exigência do montante de imposto alegadamente em falta a quem dos actos ou negócios escriturados não retirou qualquer vantagem fiscal, o Tribunal a quo entendeu – salvo o devido respeito, de forma manifestamente contrária à letra e espírito da lei, fazendo tábua-rasa da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT – que «[s]egundo esta interpretação da norma, que consideramos ser a correta, e estando em causa nos autos uma situação de "eliminação (...) de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico", então haverá que "efetuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis" na ausência dos atos ou negócios jurídicos abusivos, o que implica analisar a forma como o CIRS regulava a tributação dos rendimentos de capitais e não apenas as respetivas normas de incidência, como defende a impugnante
cfr. pág. 41 da Sentença.

X. De resto, no que respeita à violação do princípio da capacidade contributiva (porque os actos tributários destinam-se a quem não aproveitou qualquer vantagem fiscal), o Tribunal a quo simplesmente desconsiderou por completo o argumento, não se pronunciando sobre o fundo da questão, e concluindo que com tal argumento estaria a Recorrente a «atacar» o próprio mecanismo de retenção na fonte, argumentando que a Recorrente poderia sempre fazer uso do instituto do direito de regresso…
Y. Finalmente, no que respeita aos juros compensatórios, entendeu o Tribunal a quonegar provimento à pretensão da Recorrente, tendo concluído que «a liquidação de juros compensatórios é, em casos como o presente, a consequência natural da verificação do abuso, sobretudo atendendo aos elementos meio e intelectual, demonstrativos de que houve intenção deliberada de evitar a retenção na fonte devida» – cfr. pág. 46 da Sentença.
Z. Entende, pois, a Recorrente, face ao exposto, que o Tribunal recorrido se susteve na visão e interpretação dos factos ensaiada pela AT, o que conduziu a uma incorrecta apreciação da matéria de direito, dando assim causa ao presente recurso jurisdicional.
AA. Pois bem, a CGAA encontra-se plasmada no artigo 38.º da LGT, cuja redação do n.º 2, à data dos factos, previa que «[s]ão ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».
BB. A CGAA visa combater a evasão e elisão fiscal as quais se traduzem na prática de actos ou negócios lícitos mas que a lei fiscal qualifica como anómalos, anormais ou abusivos, por desconformidade dos mesmos com a realidade económica que presidiu ao seu surgimento.
CC. De acordo com a doutrina corrente, a norma do n.º 2 do artigo 38.º, na sua versão à data, dependia da observância de quatro requisitos cumulativos essenciais:
· O elemento meio – é necessário que o sujeito passivo faça uso de um ou mais actos ou negócios jurídicos;
· O elemento resultado – é indispensável que a celebração desses actos ou negócios se venha a traduzir numa vantagem fiscal;
· O elemento normativo – a actuação do contribuinte traduzir-se no abuso de formas jurídicas, isto é, na utilização de institutos cuja criação ou surgimento ocorreu por motivos económicos.
· O elemento intelectual – a motivação fiscal deve representar um carácter essencial ou principal fara a celebração daqueles actos ou negócios.
DD. Apenas caso todos estes elementos se observassem, poderia a AT, perante o elemento sancionatório fazer uso da CGAA e decretar a ineficácia, para efeitos tributários, desses actos ou negócios em causa.
EE. Se a operação realizada pelos accionistas da Recorrente se traduzisse em qualquer abuso de formas, susceptível de aplicação da CGAA – o que não se concede, mas se refere em benefício da exposição – que sentido faz, à luz do programa legislativo específico da CGAA, exigir o IRS à sociedade alegadamente distribuidora dos dividendos, deixando que a esfera jurídica dos accionistas que os receberam — autores do esquema alegadamente abusivo e únicos beneficiários da vantagem gerada — permanecesse incólume ao funcionamento da norma? Nenhum!
FF. Aliás, neste caso, a violação do princípio da capacidade contributiva na esfera da entidade que não praticou a conduta abusiva até é mais acentuada, porque a sociedade (alegadamente) distribuidora dos dividendos é objecto de dupla tributação (confessada pela AT, que com ela se conforma): não só terá distribuído dividendos pelo seu valor ilíquido de imposto (facto que é afirmado pela AT) como terá que adicionalmente entregar ao Estado um montante de imposto igual ao que previamente entregou aos accionistas.
GG. É verdade que o regime fiscal da tributação dos dividendos em IRS prescreve que cabe à sociedade distribuidora a retenção na fonte dos valores de imposto devidos pelos beneficiários e a sua entrega ao Estado.
HH. No entanto, esta é apenas uma obrigação acessória, que nada tem a ver com a tributação propriamente dita, isto é, com a incidência objectiva e subjectiva de imposto que na CGAA verdadeiramente preocupa o legislador.
II. A Recorrente não desconsidera, nem põe em causa o mecanismo da retenção na fonte. Conhece-o e sabe que, em caso de distribuição de verdadeiros dividendos aos accionistas, a sociedade que os distribui deverá sujeitar tais rendimentos a retenção na fonte.
JJ. Na verdade, a lei não deixa margem a ambiguidades, esclarecendo o n.º 2 in fine do artigo 38.º da LGT (a disposição que aqui releva), na redacção à data dos factos, qual o seu programa sancionatório: «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».
KK. O que se pretende é a possibilidade de expurgar da ordem jurídica as «vantagens fiscais» obtidas com o «abuso de formas jurídicas».
LL. E só é possível expurgar da ordem jurídica uma determinada vantagem fiscal se os sujeitos do procedimento administrativo correspondente houverem sido precisamente aqueles que dela beneficiaram directamente.
MM. Caso contrário, se a sanção do «abuso de formas jurídicas» recair sobre quem, de facto, não beneficiou da vantagem fiscal resultante da conduta abusiva por si levada a cabo – a CGAA prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT e no artigo 63.º do CPPT é duplamente violada.
NN. Desde logo porque, nestes casos, a aplicação da CGAA fica aquém do próprio comando normativo, ao deixar desonerados da sanção do «abuso de formas jurídicas» aqueles que a própria AT «identifica» como os verdadeiros beneficiários daquela vantagem fiscal que se propôs expurgar da ordem jurídica, a norma não é respeitada, porque aí aquela vantagem não será, de todo, expurgada do ordenamento.
OO. Mas também porque, nestes casos, a aplicação da CGAA extravasa claramente o seu escopo: se o procedimento administrativo que lhe é inerente e os actos tributários subsequentes desembocam na exigência do montante de imposto alegadamente em falta a quem dos actos ou dos negócios visados não colheu a vantagem fiscal ilegítima, então a norma não é cumprida em desrespeito frontal pelos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade, da liberdade de iniciativa económica e da capacidade contributiva, tertium comparationis do princípio da igualdade no domínio dos impostos.
PP. Em rigor, a AT apenas deve limitar-se a aplicar as regras de incidência objectiva e subjectiva da distribuição de lucros/dividendos: não pode, para além disso, invocar outras normas, que impõem deveres de carácter acessório, porque isso significa tratar a realidade como se, de facto, tivesse mesmo ocorrido uma distribuição de dividendos e «perspectivar» o negócio visado, não como um esquema abusivo, mas como um verdadeiro negócio simulado.
QQ. No caso, a AT apenas tinha de limitar-se a aplicar as regras de incidência objectiva e subjectiva da distribuição de dividendos: não podia, para além disso, aplicar as restantes normas, designadamente, a relativa à responsabilidade em caso de substituição tributária, porque isso significa tratar a realidade como se, de facto, tivesse mesmo ocorrido uma distribuição de dividendos e o negócio visado, não como um esquema abusivo, mas como um verdadeiro negócio simulado, o que, como se assinalou já, não pode ser o caso.
RR. É um facto que, de acordo com a nova redacção do artigo 38.º da LGT – Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, que reforça o combate às práticas de elisão fiscal, transpondo a Directiva (UE) 2016/1164, do Conselho, de 16 de Julho –, impor-se-ia a liquidação por via de retenção na fonte se – o que no presente caso nem sequer se apurou ou alegou – «o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções».
SS. Porém, a Lei n.º 32/2019 que entrou em vigor em Maio de 2019 não tem, obviamente, eficácia perante factos ocorridos previamente à sua entrada em vigor, até porque não foi contemplada qualquer norma transitória que determine a aplicação retroactiva (que seria sempre inconstitucional, por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal, plasmado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP) ou que atribua natureza interpretativa (que seria também inconstitucional porque, ainda assim, implicitamente retroactiva).
TT. Aliás, a nova redacção conferida ao artigo 38.º da LGT reforça, de resto, a posição da Recorrente nos autos, atendendo a que, se os n.os 4 e 5 deste artigo foram aditados para que, na aplicação da CGAA, se devam aplicar as regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária, dúvidas não se oferecem de que, não sendo esta referência feita na redacção do artigo 38.º da LGT à data dos factos sub judice, não se poderá aplicar de forma retroactiva a nova redacção do artigo, com vista a legitimar a liquidação dirigida à A............ SGPS.
UU. Facto é que o n.º 2 do art.º 38.º da LGT, na redacção à data dos factos, não admitia este tipo de reconstrução da realidade, muito menos quando essa reconstrução iria ao ponto de fazer com que quem sofresse (e sofre) a investida fiscal não seja o beneficiário da vantagem decorrente do abuso de formas.
No domínio da jurisdição administrativa e fiscal, aderimos ao entendimento vertido na sentença de 2 de Maio de 2017, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga no processo n.º 1869/13.4BEBRG, supra transcrito; no campo dos tribunais arbitrais, a CGAA também tem gerado controvérsia, sendo a grande maioria das decisões arbitrais no sentido do acolhimento da posição da Recorrente – veja-se, o processo n.º 200/2014-T (provavelmente o leading case da jurisprudência arbitral nesta matéria), e aqueles que o seguiram: nos processos sob os n.ºs 283/2014-T, 377/2014-T, 379/2014-T, 395/2014-T, 32/2015-T e 335/2015- T, 363/2016-T, etc..
VV. Discutia-se no âmbito desses casos, precisamente a ilegitimidade procedimental de entidades, normalmente substitutos tributários, às quais havia sido aplicada a CGAA, deixando ilesos os verdadeiros beneficiários de determinada «vantagem fiscal ilegítima» (como se verificou, in casu).
WW. A A............ SGPS ficaria altamente desprotegida caso uma solução como aquela decidida na sentença recorrida se mantivesse, visto que como é óbvio, não só a lei fiscal tem de ser auto-suficiente na salvaguarda dos valores jurídicos a que deve respeito (em particular aos princípios constitucionais) como, em bom rigor, o direito de regresso não oferece qualquer garantia, uma vez que o seu exercício depende de requisitos próprios (relativos à substância da situação, aos prazos, etc.) que poderão estar ou não verificados, dependendo do caso concreto.
XX. Mesmo que se admitisse que os factos em causa nos autos envolvem uma actuação abusiva, no que não se concede, a aplicação da CGAA ao caso sub judice padece de vício por violação da lei, pois a AT sempre teria de instaurar o procedimento administrativo de aplicação da CGAA contra os três accionistas da Recorrente e dirigir àqueles os actos tributários em crise, e não à A............ SGPS, que daqueles actos ou negócios não retirou a vantagem (que se diz ser) ilegítima.
YY. Donde se conclui pela ilegitimidade da Recorrente no procedimento administrativo de aplicação da CGAA em que desembocaram tais actos tributários, ferindo-os de irremediável ilegalidade, quer à luz do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, quer à luz do espírito e da ratio legis da cláusula, densificados pela necessária observância dos princípios constitucionais da legalidade (artigo 103.º da CRP), da proporcionalidade (ou da proibição do excesso, no artigo 18.º da CRP), da liberdade de iniciativa económica (artigos 61.º e 62.º da CRP), da capacidade contributiva (artigos 13.º e 104.º da CRP) e da não retroactividade da lei fiscal (artigo 103.º da CRP) – o que expressamente se invoca.
SEM PRESCINDIR,
ZZ. Caso não se entenda que os actos de liquidação não padecem de vício de violação da lei, atenta a ilegitimidade da A............ SGPS – o que apenas por cautela de patrocínio se admite, – sempre se dirá que essa ilegalidade subsistia por o caso concreto estar fora do campo de aplicação da CGAA, não podendo através desta ser censurado; desde logo porque está demonstrada a impossibilidade de subsunção dos factos relevantes à fattispecies do n.º 2 do artigo 38.º da LGT e, outrossim, a impossibilidade de verificação da estatuição ou consequência da norma aí contida.
AAA. Em primeiro lugar, quanto ao elemento meio é fundamental concluir-se que as amortizações de acções com redução do capital da Recorrente, nos termos consignados no artigo 347.º do CSC, foram deliberadas pelos seus accionistas visando a redução do capital próprio da Recorrente, com base em motivações financeiras e de estratégia de gestão do Grupo (finalidade que o legislador atribuiu a tal operação jurídico-societária), que se prendiam com a reanálise do processo de internacionalização do mesmo, independentemente do regime fiscal que se despoletaria na esfera dos accionistas.
BBB. Por outro lado, quanto ao elemento normativo todos os negócios foram realizados sem a sua «desfuncionalização», isto é, as formas jurídicas utilizadas foram-no a fim de cumprirem a sua vocação habitual e os seus efeitos típicos; o respectivo instituto legal das amortizações de acções com redução de capital não foi vergado abusivamente à vontade fiscal ilícita do sujeito passivo.
CCC. Pelo que, ao contrário do que concluiu a AT e decidiu o Tribunal recorrido, o «encadeado» das operações não constitui nenhuma forma anómala, inusual ou artificiosa.
DDD. No que respeita ao elemento resultado, o presente caso não traduz nenhuma situação artificiosa, mas apenas o recurso a uma ausência de tributação que o próprio legislador criou (aquilo a que a doutrina chama de «lacuna consciente de tributação», aqui na modalidade de «economia de opção explícita»).
EEE. Mas pior, defende a AT que o ganho de mais valias obtido pelos accionistas da A............ SGPS estaria sempre sujeito ao regime geral e não já à exclusão de tributação constante da anterior al. a) do n.º 2 do art.º 10.º do Código do IRS, pelo que segundo a AT o regime fiscal a destinar à operação abusiva não representava qualquer vantagem (não havendo, portanto, qualquer resultado no presente caso)…
FFF. Por último, quanto ao elemento intelectual, não foi, pois, para obter uma vantagem fiscal comparativa que os accionistas da A............ SGPS levaram a cabo essa redução (o que não é o mesmo que dizer que não tenha havido legítimas ponderações de índole fiscal), mas sim para que fosse libertado a seu favor capital próprio excessivo da Recorrente.
GGG. Em face de tudo quanto vem exposto, as liquidações impugnadas são ilegais, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT e no artigo 63.º do CPPT, atendendo a que a CGAA está pensada para actos ou negócios que são realizados com abuso de formas jurídicas, e não para actos ou negócios, como aqueles deliberados pelos accionistas da A............ SGPS, que serve (e serviram) para prosseguir os fins jurídico-económicos típicos

Nestes termos e nos mais de direito, deve por VV. Exas. ser o presente recurso julgado totalmente procedente, nos termos acima expostos, por errada apreciação da qualificação jurídica dos factos em causa, e, em consequência, ser anulada a sentença recorrida e substituída por uma outra que julgue a impugnação judicial procedente, com todas as consequências legais.
[…]».
2 – Não foram apresentadas contra-alegações


3 - O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

II – Fundamentação


1. Dos factos
A decisão recorrida deu como provada a seguinte factualidade concreta:
[…]
A) A impugnante é uma sociedade anónima, estando registada para o exercício da atividade de “atividades das sociedades gestoras de participações sociais não financeiras” (CAE 64202) - cfr. fls. 20 do PA;
B) No início do ano de 2010 os capitais próprios da impugnante ascendiam a € 25.329.412,07, compondo-se do seguinte modo:
Capital social
55.000,00 €
Reservas legais
402.539,16 €
Outras reservas
16.527.875,72 €
- cfr. fls. 30 do PA;


C) No início do ano de 2010 o montante do capital social da impugnante era de € 55.000,00, sendo constituído por 50.000 ações com o valor nominal de € 1,10 cada, distribuídas do seguinte modo:
Acionista
Ações
Percentagem
    B…………
21.420
42,84 %
    C…………
21.420
42,84 %
    D…………
7.160
14,32 %
- facto não controvertido;

D) No ano de 2010, o Conselho de Administração da impugnante era composto pelos três acionistas referidos na alínea anterior - cfr. fls. 10-11 do PA;
E) No dia 22-02-2010 os acionistas da impugnante deliberaram, por proposta do Conselho de Administração, amortizar 30.000 ações, com redução do capital social, pelo preço de € 500,00 cada, com posterior aumento do capital social em € 33.000,00, na modalidade de incorporação de reservas legais, passando o capital social da impugnante a ser composto por 20.000 ações ao valor nominal de € 2,75 cada - facto não controvertido;
F) No dia 07-05-2010 os acionistas da impugnante deliberaram, por proposta do Conselho de Administração, amortizar 10.000 ações, com redução do capital social, pelo preço de € 1.000,00 cada, com posterior aumento do capital social em € 27.500,00, na modalidade de incorporação de reservas legais, passando o capital social da impugnante a ser composto por 10.000 ações ao valor nominal de € 5,50 cada - facto não controvertido;
G) As quantias devidas aos acionistas pelas amortizações referidas nas alíneas E) e F) não foram pagas de uma só vez, mas sim em várias prestações ao longo dos anos de 2010, 2011 e 2012, sendo que no dia 04-09-2012 a impugnante emitiu quatro cheques para pagamento das seguintes quantias:


Acionista
    Quantia
B…………
€ 214.200,00
    C…………
€ 214.200,00
      D………...
€ 71.600,00
- cfr. fls. 13, 14v., 15-16, 22v. e 23 do PA

H) A impugnante foi submetida a ações inspetivas relativas aos exercícios de 2010 e 2011, as quais se iniciaram no dia 29-10-2012 - cfr. fls. 21 do PA;
I) No contexto da ação inspetiva relativa ao exercício de 2010 foi elaborado, na Direção de Finanças de Braga, com data de 08-11-2012, um projeto de decisão de aplicação do disposto no art.º 38º, nº 2, da LGT, aos atos descritos nas alíneas E) e F) - cfr. fls. 34-40 do PA;
J) Através do ofício nº 504.10124 de 09-11-2012, foi a impugnante notificada para exercer o direito de audição relativamente ao projeto de decisão de aplicação da norma anti-abuso consagrada no art.º 38º, nº 2, da LGT - cfr. fls. 33 do PA;
K) A impugnante exerceu o direito de audição sustentando que o negócio em causa foi realizado para cumprir a sua vocação habitual e os efeitos para os quais o legislador o pensou, pelo que nada tinha de artificial - (cfr. fls. 42-44 do PA);
L) Com data de 14-12-2012 foi elaborada, na Direção de Finanças de Braga, uma proposta de aplicação do disposto no art.º 38º, nº 2, da LGT, aos atos descritos nas alíneas E) e F), de cujo teor se destaca o seguinte:
«[…]
1. Motivo

No decurso da ação inspetiva credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI201202387, emitida para o exercício de 2010, verificou-se a existência de duas operações de amortização de ações com redução de capital, enquadráveis na figura do planeamento fiscal abusivo (…)

2. Descrição de Negócio Celebrado

(…) No relatório que foi elaborado pelo conselho de administração em 28 de fevereiro de 2011, consta o seguinte:

“Cumprindo o contrato com os sócios, amortizamos a restante dívida referente à aquisição de acções próprias; e começamos a restituir a dívida referente à amortização de acções com redução de capital.”

Com efeito, conforme Demonstração Individual das Alterações no Capital Próprio, em 2010, foram reduzidos os capitais próprios em €25.000.000,00 (de reservas legais €60.500,00 e de outras reservas €24.939.500,00).

Ainda durante o exercício de 2010, empresa procedeu à alteração da estrutura dos seus capitais próprios, tal como descrito no ponto 28 - Instrumentos Financeiros - do Anexo às Demonstrações Financeiras:

“A 31 de Dezembro de 2010 o capital social é representado por 10.000 acções de valor nominal de 5,50€ cada, totalmente subscrito e realizado.
Durante o exercício ocorreram alterações no número de acções em circulação, que se resumem assim:
- A 02/02/2010 amortizamos 30.000 acções com redução do capital pelo preço de 500,00€ cada, com o objectivo de redução de capital social e libertação de excesso de capital. Com posterior aumento do capital social em 33.000,00€ na modalidade de incorporação de reservas legais, ficando com 20.000 acções ao valor nominal de 2,75€ cada.
- A 07/05/2010 amortizamos 10.000 acções, com redução do capital pelo preço de 1.000,00€ cada, com o objectivo de redução de capital social e libertação de excesso de capital. Com posterior aumento do capital social em 27.500,00€ na modalidade de incorporação de reservas legais, ficando com 10.000 acções ao valor nominal de 5,50€ cada.” (…)
3. Demonstração das consequências fiscais do negócio e da sua verdadeira substância económica
Face ao descrito, afigura-se que a situação corresponde, em substância, a uma distribuição de lucros aos acionistas, por via de resultados acumulados em reservas, sujeita a IRS como rendimento de capitais.
O sujeito passivo, no entanto, definiu, tratou e qualificou aqueles atos como amortização de ações com redução de capital, enquadráveis em IRS na esfera dos respetivos beneficiários como incrementos patrimoniais a título de mais valias, não sujeitas a IRS. (…)
Como o capital social da empresa era de €55.000,00, valor este que excedia em apenas 10% o valor mínimo exigido para as sociedades anónimas, conforme dispõe o artigo 276.º do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.), terá de se concluir que o que o conselho de administração do S.P. considerava excessivo era, tão só, o valor dos capitais próprios da sociedade e não o valor do capital social.
Em abono daquela tese, será de salientar que, em simultâneo com a amortização de ações com redução do capital, foi deliberado o aumento do mesmo para o valor inicial, não se verificando, na forma e na substância, qualquer redução do capital social nem do interesse e direitos sobre ele, em valor ou em percentagem, de cada um dos accionistas.
Os atos de redução de capital social, por via da amortização das ações, e do simultâneo aumento do mesmo para o valor inicial, revelam-se em termos do interesse societário, seja da perspetiva da empresa seja dos seus acionistas na relação com o mesmo capital social, absolutamente inúteis. (…)

A redução e o simultâneo aumento do capital social, nos termos em que o foi, não obedece, em si mesmo, a qualquer critério de racionalidade económica: o valor do capital social manteve-se intacto; manteve-se a estrutura acionista, em percentagem e valor.

O valor atribuído a cada uma das ações amortizadas, para determinação do valor a pagar aos acionistas, tendo por referência o valor dos capitais próprios, obtido pela divisão deste pelo número total de ações, inclui um good will que não está minimamente justificado.

O enquadramento tributário que o S.P fez das operações foi o seguinte: (…)

- Em sede de IRS, os ganhos obtidos pelos acionistas não estariam sujeitos a retenção na fonte e, na medida em que se enquadravam na categoria G, como mais valias, estavam excluídos de tributação nos termos do n.º 2 do art.º 10.º do CIRS. (…)

Com efeito, não existindo qualquer racionalidade económica nos atos de redução e simultâneo aumento do capital, mantendo-se este intacto em valor e estrutura acionista, o que o S.P. pretendeu foi, em substância e através daqueles inúteis atos no âmbito societário, proceder à distribuição de lucros aos acionistas acumulados em reservas, sob a capa de reembolso de capital subscrito e realizado por via da respetiva amortização.

Daquela forma, procurou o S.P. que a incidência em IRS do negócio jurídico fosse alcançado pela alínea b), n.º 1 do artigo 10.º do respetivo código, que sabia estar excluído de tributação no termos da alínea a) do n.º 2 deste mesmo artigo, em vez da sua qualificação como rendimentos de capitais abrangido pela alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, não procedendo, consequentemente, à retenção na fonte do imposto (…)

4. Enquadramento fiscal e descrição das normas de incidência a aplicar

4.1 Descrição dos factos

(…) Em 22 de fevereiro de 2010, de acordo com o descrito na ata n.º 20, ponto quatro, foi deliberado, sobre proposta do Conselho de Administração, a amortização, com redução de capital, de 30.000 ações da sociedade no valor nominal de €1,10, em conformidade com o disposto nos art.ºs 347º e 95º, ambos do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.), com o objetivo de redução do capital social e libertação de excesso de capital. As ações amortizadas foram reembolsadas aos acionistas a €500,00 cada uma, no total de €15.000.000,00. No ponto cinco da referida ata, foi ainda proposto o aumento de capital em
€33.000,00, na modalidade de incorporação de reservas legais, passando de

€22.000,00 após a redução proposta no ponto quatro, para €55.000,00, ou seja, foi reposto o valor do capital social antes da redução. (…)

Em 7 de maio de 2010 o sujeito passivo efetuou nova amortização de ações com redução de capital e um novo aumento do capital social por incorporação de reservas, conforme com o descrito na ata n.º 21 da respetiva A.G..

Nos seus pontos 1 e 2, são descritos os pormenores da operação: o objetivo da assembleia era deliberar, sobre proposta do Conselho de Administração, a amortização de ações com redução de capital, especificamente 10.000 ações da sociedade a €1.000,00 cada uma e sobre o aumento do capital social em

€27.500,00, na modalidade de incorporação de reservas legais, através do aumento do valor nominal de €2,75 para €5,50 de cada uma das 10.000 ações que compõem o capital social. (…)

O capital social da empresa, em 1 de janeiro de 2010, estava representado por

50.000 ações com o valor nominal de €1,10, perfazendo €55.000,00. Em 31 de dezembro desse ano o seu capital estava representado por 10.000,00 ações, com o valor nominal de €5,50 cada, totalizando também €55.000,00.

Verifica-se que, em relação ao capital social, não ocorreram alterações, exceto no número de ações e respetivo valor nominal, mantendo-se, no entanto, intacto o valor do capital social bem como a percentagem de detenção e os direitos de voto dos seus acionistas. (…)

4.2. Descrição das normas de incidência a aplicar

O sujeito passivo, ao efetuar as operações que designou como amortização de ações com redução de capital, não fez mais do que distribuir reservas - legais e livres - as quais provêm dos resultados líquidos, positivos, apurados ao longo dos anos da respetiva atividade. (…)

Assim, deveriam ter sido efetuadas retenções na fonte sobre os rendimentos pagos aos acionistas da empresa nos seguintes montantes e datas, os quais não foram efetuados: (…)
5.Conclusão e proposta de aplicação das normas antiabuso

(…) De acordo com os factos relatados nos pontos anteriores, consideram-se verificados os pressupostos para aplicação da disposição antiabuso estabelecida no n.º 2 do artigo 38.º da LGT

[…]».

- cfr. fls. 47-54v. do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;


M) Com data de 11-02-2013 foi elaborada, na Divisão de Planeamento e Apoio Técnico da DSPCIT, a informação nº 34, de cujo teor se destaca o seguinte:
«[…]
I- Introdução

Foi remetida a esta Direção de Serviços, através do ofício n.° 504.11157 de 19- 12-2012, Informação de 14-12-2012, emanada da Divisão de Inspeção Tributária I da Direção de Finanças de Braga, que aqui se dá por integralmente reproduzida, com identificação de determinados negócios jurídicos realizados pelo sujeito passivo A............ S.G.P.S., SA., NIF…………., tendo em vista a aplicação da Cláusula Geral Antiabuso (…)

Dos factos

Na sequência de procedimento inspetivo - credenciado pelas ordens de serviço n.º OI201202736 e 01201202737, aos exercícios de 2010 e 2011, de âmbito parcial (Retenção na Fonte de IRS) - foram detetados os seguintes factos: (…)

· Pois bem, o que sucedeu foi a amortização de 30.000 ações (3 em 5 ações detidas) imediatamente aquando da deliberação da assembleia, por um preço de 500€ por ação. A contrapartida seria paga de acordo com as disponibilidades financeiras da empresa no prazo máximo de dois anos. Por fim, aumentou-se o capital social para o mesmo valor que ele tinha antes da redução. (…)

Em resumo sucedeu o seguinte: foram amortizadas 10.000 ações (metade do total existente) de imediato aquando da deliberação em assembleia, por €1.000 cada ação. A contrapartida seria paga de acordo com as disponibilidades financeiras da empresa no prazo máximo de 3 anos. Logo após esta decisão o capital social foi aumentado para o mesmo valor que tinha antes daquela redução.
· Estas deliberações às quais se faz referência, concretizadas em fevereiro e maio, resultaram num reembolso aos acionistas de €25.000.000 (cabendo a cada acionista um valor correspondente à percentagem de capital detida). Em paralelo efetuou-se o aumento do capital social por incorporação de reservas fazendo com que, na prática, aquele se mantivesse igual. (…)

· Vejamos então: o capital social da empresa era de €55.000, a 1 de janeiro de 2010, representado por 55.000 ações, com o valor nominal de €1,10 cada. Em 31 de dezembro desse mesmo ano o capital social continuava a ser de €55.000 só que representado por 10.000 ações, com o valor nominal de €5,50 cada.

· Logo, o capital social não sofreu nenhuma alteração de valor no ano de 2010, mesmo após ter sido afetado por duas reduções de capital e dois aumentos no decurso do ano. Os €55.000 iniciais mantiveram-se até ao fim do exercício, tal como a percentagem de detenção e os direitos de votos dos acionistas. Mudaram sim, o número de ações e o respetivo valor nominal. (…)

Do Direito Enquadramento Jurídico

1. Face ao descrito a situação parece configurar uma distribuição de lucros aos acionistas, por via de resultados acumulados em reservas, que é tributável em sede de IRS enquanto rendimento de capitais.

2. Só que o que acontece é que o sujeito passivo definiu, tratou e qualificou aqueles atos como amortização de ações com redução de capital, qualificáveis como incrementos patrimoniais a título de mais-valias, não sujeitas a IRS. (…)

11. Tanto é que as amortizações praticadas foram sempre e em paralelo feitas com aumentos de Capital que deixaram o valor do capital social inalterado. Nem formal nem substancialmente o capital social teve uma efetiva redução, tal como os interesses e direitos dos acionistas sobre ele que continuaram os mesmos.

12. Seja da perspetiva da empresa, seja da perspetiva dos acionistas na relação com o capital, os atos da redução do capital social através da amortização das ações seguido do aumento do mesmo para o valor inicial, revelam-se verdadeiramente inúteis. Até porque dada a exigência do n.º 5 do art. 276.º do CSC, a redução deliberada do capital social teria de ser sempre e necessariamente acompanhada de um aumento para o valor mínimo requerido (€50.000).

13. Assim sendo há que atender ao que estipula o artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LGT): (…)

14. Doutrinariamente, seguindo o entendimento de Gustavo Lopes Courinha vertido n’ “A Cláusula Geral Antiabuso no Direito Fiscal” temos que a aplicação desta norma exige a verificação de quatro elementos na atuação do sujeito passivo: o elemento resultado, o elemento meio, o intelectual e o normativo. Analisemo-los ponto por ponto.

15. Elemento Resultado: cabe aqui demonstrar a equivalência económica dos atos ou negócios praticados que conduziu à eliminação dos impostos devidos e a vantagem fiscal que daí se retirou.

16. O sujeito passivo, ao efetuar as operações que designou como amortização de ações com redução de capital, não fez mais que distribuir reservas (legais e livres), que provêm de resultados da respetiva atividade, líquidos, positivos, apurados ao longo dos anos. (…)

21. Tais rendimentos ficam sujeitos a tributação quando são colocados à disposição dos seus titulares (art. 7.º, n.º 3, alínea a), n.º 2 do CIRS). A tributação faz-se mediante retenção na fonte, a título definitivo, à taxa liberatória de 21,5% (taxa em vigor à data dos factos), nos termos do art. 71.º, n.º 1, alínea c) do CIRS, sem prejuízo da opção pelo respetivo englobamento (art. 71º, n.º 6 do CIRS). (…)

23. Todavia não foi feita qualquer retenção na fonte.

24. Elemento Meio: há que aferir se foi ou não praticado um ato ou negócio com caráter artificioso ou fraudulento. Será que esta redução consubstanciou um comportamento comercial e empresarial normal, com racionalidade económica, e uma prática societária regular e justificável, ou materializou-se para evitar uma oneração fiscal? Parece claro tratar-se desta última opção. A redução do capital social foi feita propositadamente para distribuir o dinheiro afeto a reservas. Era esse o único propósito, tanto mais que o valor que foi amortizado foi imediatamente substituído por incorporação das reservas para perfazer o montante inicial de €55.000.

25. Elemento Intelectual: trata-se de constatar que a motivação preponderante do sujeito passivo foi a fiscal e não outra. O contribuinte pretende a prática de um ato ou negócio mas só pelas vantagens fiscais e não pelo conteúdo intrínseco ou pelos efeitos do mesmo. (…)

Então o propósito subjacente à redução parece ser única e exclusivamente distribuir os montantes acumulados em reservas, sem haver o jugo da tributação de IRS por rendimentos de capitais na modalidade de distribuição de dividendos.

29. Elemento Normativo: trata-se de saber se está em causa uma reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida. Ora o legislador da norma que prevê a tributação da distribuição de dividendos não pretendia este efeito indesejado. Se a sociedade sempre que quisesse distribuir lucros reduzisse primeiro o seu capital social para depois o voltar a aumentar por incorporação de reservas, aquela norma seria vazia de conteúdo e de difícil aplicação

IV – Conclusão

Da presente informação, e em concordância com a Informação elaborada pela Direção de Finanças, conclui-se que a amortização de ações por redução do capital, imediatamente seguida do aumento de capital por incorporação de reservas, feitas pela A............ SGPS teve como objetivo único e primordial que os sócios da sociedade não vissem incidir na operação a tributação em IRS pela distribuição de dividendos, e a obrigatoriedade de retenção na fonte por sujeição a uma taxa liberatória de 21,5%.

[…]».

- cfr. fls. 56-70 do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;

N) Por despacho de 04-04-2013 do Diretor-Geral da AT, foi autorizada a aplicação da norma do art.º 38.º, n.º 2, da LGT, com base nos fundamentos expostos na informação referida na alínea anterior - cfr. fls. 56 do PA;
O) Através do ofício n.º 504.3165 de 15-04-2013, foi a impugnante notificada do teor da informação e do despacho referidos nas duas alíneas anteriores - cfr. fls. 71 do PA;
P) A impugnante foi submetida, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI201401880, a uma ação inspetiva de âmbito interno e parcial (IRC e retenções na fonte de IRS), relativa ao exercício de 2012, a qual se iniciou em 09-09-2014 e terminou em 11-12-2014 - cfr. fls. 20 do PA;
Q) Através do ofício n.º 504.9487 de 12-12-2014, foi a impugnante notificada para exercer o direito de audição relativamente ao projeto de relatório de inspeção elaborado no âmbito da ação inspetiva referida na alínea anterior) - cfr. fls. 1 do PA;
R) Consta do relatório de inspeção tributária (RIT), elaborado no âmbito da ação inspetiva referida na alínea P), o seguinte:
«[…]
Em fevereiro de 2010 foram amortizadas ações com redução de capital no montante de 15.000.000,00 EUR, e em maio foi reduzido o capital em 10.000.000,00 EUR, totalizando 25.000.000,00 EUR. Este valor não foi pago integralmente aos acionistas, sendo pago alegadamente de acordo com as disponibilidades financeiras da empresa. (…)

Em 2012, mais concretamente em setembro, foi paga mais uma tranche de 500.000,00 EUR (anexo 2), registada contabilisticamente como se apresenta a seguir:

[IMAGEM]

(…) De acordo com a legislação em vigor em 2012, a distribuição de lucros aos acionistas encontra-se sujeita a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), qualificados como rendimentos de capitais, nos termos do art.º 5º do código daquele imposto. (…)

O art.º 7.º do mesmo código refere o momento a partir do qual estes rendimentos são sujeitos a tributação. O seu n.º 1, em conjugação com o n.º 2 da alínea a) do n.º 3, diz que ficam sujeitos a tributação quando são colocados à disposição dos seus titulares.

São tributados em IRS através de retenção na fonte, a título definitivo, à taxa liberatória de 25%, de acordo com o estipulado pela alínea c) do n.º 1 do art.º 71.º, com a redação que foi dada pelo Orçamento de Estado para 2012 - Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, sem prejuízo da opção pelo respetivo englobamento, nos termos do n.º 6 do mesmo artigo, desde que oportunamente exercida.
A alínea a) do n.º 2 do art.º 101.º refere que esta retenção cabe à entidade devedora dos rendimentos.

Da conjugação da alínea a) do n.º 3 do artigo 7.º com o n.º 1 e n.º 3 do artigo 98.º, ambos do CIRS, a retenção deve ser efetuada no momento da colocação dos rendimentos à disposição dos respetivos beneficiários, devendo ser entregue nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte.

Assim, deveriam ter sido efetuadas retenções na fonte sobre os rendimentos pagos aos acionistas da empresa nos seguintes montantes e datas, os quais não foram efetuados:

[IMAGEM]

[…]».
- cfr. ponto “III.1.1.1 Rendimentos de Capitais – Categoria E” do RIT, a fls. 22v.-23v. do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;

S) Através do ofício n.º 504.48 de 06-01-2015, foi a impugnante notificada do teor do relatório referido na alínea anterior - (cfr. fls. 17 do PA);
T) Com data de 19-01-2015 foi emitida a “demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR”, a qual apresentava como valor a pagar a quantia de € 125.000,00 (liquidação nº 2015 6410000065), acrescida da quantia de € 11.027,39 relativa a juros compensatórios (liquidação nº 2015 00000007561) e data limite de pagamento o dia 18-03-2015 - cfr. “doc. N.º 1” a fls. 99 do SITAF;
U) A petição inicial foi apresentada no dia 18-06-2015 - cfr. print do SITAF a fls. 2 do suporte físico dos autos.



2. Questões a decidir
As questões que se colocam no presente recurso reconduzem-se ao que a Recorrente identificada como três erros de julgamento, a saber: i) erro na interpretação e aplicação à factualidade assente dos pressupostos jurídicos da cláusula anti-abuso, tal como a mesma se encontra prevista nos artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT à data a que se reportam os factos; ii) erro de julgamento a respeito da determinação do sujeito passivo do imposto alegadamente devido; e iii) erro de julgamento quanto à interpretação e aplicação da norma relativa à obrigação de juros compensatórios.
Vejamos se assiste razão à Recorrente em alguma das questões.

3. De direito
A questão principal aqui em apreço prende-se com a interpretação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redacção que o artigo tinha à data dos factos, e a sua aplicação em articulação com o disposto no artigo 63.º do CPPT. Vejamos.

3.1. Do enquadramento da questão
A Recorrida é uma SGPS constituída com um capital social de 55.000,00€. Em 2010, a Recorrida encontrava-se numa situação de excesso de capital próprio resultante de uma acumulação de reservas (€402.539,16 de reservas legais e €16.527.875,72 de outras reservas) (ponto B da matéria de facto).
O Conselho de Administração, composto por três accionistas – B………… (titular de 21.420 acções, correspondentes a 42,84% do capital social), C………… (titular de outras 21.420 acções, correspondentes a 42,84% do capital social) e D………… (titular de 7.160 acções, correspondentes ao restante 14,32% do capital social) (ponto C da matéria de facto assente) –, decidiu promover a “libertação desse excesso de capital” e, nesse seguimento, os accionistas deliberaram: i) no dia 22.02.2010 amortizar 30.000 acções, com redução do capital social, pelo preço de €500,00 cada, com posterior aumento do capital social em €33.000,00, na modalidade de incorporação de reservas legais, passando o capital social da impugnante a ser composto por 20.000 acções ao valor nominal de €2,75 cada; e ii) no dia 07.05.2010, amortizar 10.000 acções, com redução do capital social, pelo preço de €1.000,00 cada, com posterior aumento do capital social em €27.500,00, na modalidade de incorporação de reservas legais, passando o capital social da impugnante a ser composto por 10.000 acções ao valor nominal de €5,50 cada (pontos E e F da matéria de facto).
Em resultado dessas operações de amortização com redução do capital foram efectuados pagamentos aos accionistas nos anos de 2010, 2011 e 2012, estando aqui em apreço apenas o pagamento efectuado em 4 de Setembro de 2012. Nessa data foram emitidos cheques nos seguintes valores: B………… – 214.200,00€; C………… – 214.200,00€; e D………… – 71.600,00€ (ponto G da matéria de facto assente). Pagamentos que, segundo a Recorrente, por constituírem mais-valias isentas, não foram submetidos a tributação, ou seja, sobre eles não foi efectuada qualquer retenção na fonte por parte da Recorrente.
Na sequência de um procedimento inspectivo, a AT desencadeou o procedimento do artigo 63.º com vista à aplicação da CGAA prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, o qual culminou com a decisão de promover as correcções das liquidações dos exercícios de 2010 e 2011 (uma parte dos pagamentos em conformidade com a decisão, segundo a qual as operações de amortização de acções com redução de capital constituíram um expediente para distribuir reservas provenientes de resultados líquidos da actividade da empresa que deveriam ter sido tributados como dividendos).
No essencial, decidiu a AT, no culminar daquele procedimento de aplicação da CGAA, que a operação que o sujeito passivo e aqui Recorrido configurou legalmente como amortização com redução de capital e que, enquanto tal, enquadrou tributariamente como variação patrimonial negativa, ex vi do artigo 24.º, n.º 1 al. c) do CIRC, deveria ter sido enquadrada como distribuição de lucros e, nessa medida, deveria ter dado lugar a retenção na fonte a título definitivo (pontos L a O da matéria de facto assente).
A Recorrente foi ainda submetida a uma acção inspectiva de âmbito interno e parcial (IRC e retenções na fonte de IRS), relativa ao exercício de 2012, no âmbito da qual se concluiu que os pagamentos aos accionistas (a título de última tranche acima descrita), estavam sujeitos a tributação à luz do artigo 5.º do CIRS e, como tal, deveriam ter sido objecto de retenção na fonte a título definitivo à taxa de 25% (segundo o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 71.º do CIRS, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro). Foi esse o fundamento para a prática dos actos de liquidação aqui impugnados: liquidação n.º 2015 6410000065, no valor de €125.000,00, acrescida da liquidação nº 2015 00000007561, no valor de €11.027,39 relativa a juros compensatórios.

3.2. Da legalidade do acto de liquidação na parte respeitante à aplicação da CGAA

A Recorrente começa por alegar que a sentença recorrida errou na interpretação e aplicação que fez dos artigos 38.º, n.º 2 da LGT e 63.º do CPPT. Mas, como veremos, sem razão.

3.2.1. A Recorrente entende que a AT tinha, à luz do disposto no n.º 3 do artigo 63.º do CPPT, o ónus de provar que a operação por si realizada não tinha racionalidade económica subjacente, o que não teria logrado fazer. Nas suas alegações recursivas não explica, contudo, em que medida existe erro da sentença recorrida na interpretação e aplicação que faz das referidas normas e, na verdade, compulsado o tero da sentença recorrida nesta parte, nela não se identifica qualquer erro quanto à questão aqui em apreço. Pelo contrário, a sentença apresenta abundante fundamentação, seja nos pressupostos teoréticos em que assenta o seu juízo, seja na explicação das razões que sustentam a solução que em concreto preconiza.
Com efeito, a Recorrente alegara que a operação de amortização de acções com redução do capital social ao abrigo do artigo 347.º do CSC tivera como propósito a redução do capital excessivo ou exuberante da sociedade e a efectiva devolução de património social aos seus accionistas, a que acrescia o facto de a isenção da tributação dessas mais-valias ser uma faculdade legalmente previstas de que os accionistas neste caso tinham o direito de beneficiar, pelo que não havia aqui qualquer “desfuncionalização” do instituto da amortização de acções com redução do capital social, o que impedia a aplicação in casu dos pressupostos da CGAA. No essencial, a Recorrente não tinha lançado mão de qualquer meio ou construção artificiosa, tinha-se limitado a praticar uma operação societária corrente e a beneficiar de um regime legal de tributação mais reduzida, no âmbito do que se tem de considerar o exercício do direito ao aforro fiscal.
A esta argumentação, a sentença contrapõe na sua fundamentação, de forma bastante analítica, e após percorrer os diversos fundamentos que, à luz do direito societário, suportam as operações de amortização de acções com redução do capital social, que a operação que em concreto veio a ser realizada pela Recorrente – a amortização de acções com redução do capital social, deliberada conjuntamente com um aumento do capital por incorporação de reservas –, desacompanhada de “[sem que tivesse ocorrido] qualquer alteração da estrutura accionista”, constituía “uma operação desprovida de racionalidade económico-financeira no contexto do desenvolvimento da actividade societária da impugnante”. Ou seja, deu razão à AT quanto à qualificação como “artificiosa” da operação que, “simultaneamente, reduzia e promovia o aumento do capital social, pois uma tal operação não obedecia a qualquer critério de racionalidade económica, uma vez que não houve qualquer alteração na composição do capital social e na respectiva estrutura accionista, que seriam os fundamentos que, à luz do direito societário, justificariam este tipo de acções”.
E por isso “subscreveu” a tese da AT no sentido de que uma operação como a dos autos, em que as normas do direito societário são utilizadas para obter um fim que não se enquadra na racionalidade para a qual foram estipuladas e que apenas serve de instrumento para alcançar um fim de redução de tributação tem de reconduzir-se à previsão do artigo 38.º, n.º 2 da LGT.
E a sentença respondeu também à questão de saber se a operação realizada, sendo instrumental e fútil à luz do direito societário, ainda assim se teria de considerar enquadrável no direito ao aforro fiscal, ou seja, se teria sempre de considerar-se ilegítima a “desconsideração” in casu do direito à isenção fiscal prevista para as mais-valias resultantes da venda de participações sociais detidas por mais de um ano. Na tese sufragada na sentença recorrida afirma-se a este respeito que aquela isenção fiscal era também ela instrumental (tinha como propósito dinamizar o mercado de capitais em Portugal) e não absoluta e, por isso, o legislador mantinha em vigor a norma de incidência (artigo 5.º do CIRS) e a norma de isenção (artigo 10.º do CIRS), sendo legítimo aplicar a norma de incidência e desaplicar a norma de isenção sempre que – como era o caso aqui – o facto tributário a subsumir se revelasse, na sua globalidade, insusceptível de preencher os pressupostos da norma de isenção. A sentença concluiu depois que a factualidade dos autos seria insusceptível de poder ser reconduzida à norma de isenção, porque na sua génese não estava (também) uma operação de dinamização do mercado de capitais. E este raciocínio fundamentador é correcto. A prova exigida no âmbito da aplicação da CGAA não pode ser uma prova diabólica, como parece pretender a Recorrente, ou seja, a AT não tem de provar uma intencionalidade “abusiva” do sujeito passivo. Quer isto dizer que não é exigível que a AT faça prova de que o sujeito passivo optou pela construção que conduz ao aforro fiscal (ou seja, optou por uma operação que a lei isenta de tributação com certo propósito) para, intencionalmente, evitar a solução que estaria sujeita a tributação (no caso, a distribuição de dividendos). Basta que a AT faça prova de que a operação realizada não tem um propósito racional à luz do ordenamento jurídico mobilizado – basta, no caso, provar que a operação não se enquadra nas razões que o direito societário apresenta para uma operação de amortização com aumento de capital, nem pode qualificar-se como uma operação de dinamização do mercado de capitais – e que, por isso, o seu propósito se esgota no aforro fiscal a que conduz. Feita esta prova, os pressupostos do artigo 38.º, n.º 2 da LGT devem considerar-se preenchidos. E, neste caso, acresce ainda que o próprio aforro fiscal que é alcançado, também ele assenta em pressupostos especiais e não numa solução juridicamente inarredável, pelo que não é igualmente atendível o argumento de que esta operação teria necessariamente que ser isenta por ser esse o único regime legalmente previsto para ela. Como se explica na sentença, a operação em causa – a realização de mais-valias no âmbito dos rendimentos de capitais – está, em regra, abrangida pela incidência do imposto, limitando-se a isenção aos casos em que se vise a dinamização do mercado de capitais.
Em suma, não merece qualquer censura a sentença recorrida na parte em que julgou estarem preenchidos os pressupostos para a aplicação in casu do regime previsto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT e 63.º do CPPT.


3.2.2. O segundo argumento que vem suscitados nas alegações recursivas prende-se com o erro de julgamento ao admitir que a tributação resultante da desconsideração da operação de amortização de capital e a sua tributação em sede de distribuição de dividendos pudesse dar lugar a uma liquidação do imposto em falta à Recorrida por a mesma não ter efectuado a retenção na fonte a que estava legalmente obrigada.

Ora, esta questão foi já analisada e decidida por este Supremo Tribunal Administrativo, em relação a esta mesma operação, efectuada pela agora Recorrente, no âmbito do processo n.º 1869/13.4BEBRG, em acórdão de 12 de Maio de 2021, publicado na íntegra em www.dgsi.pt, no qual se discutiam as liquidações emitidas por ocasião dos pagamentos efectuados aos accionistas em 2010 e 2011, uma decisão que aqui reiteramos e na qual a respeito desta questão se escreveu o seguinte:
«[…] A questão era pertinente à data dos factos e à data em que a decisão judicial recorrida foi proferida atenta a falta de resposta na lei sobre esta questão, o que permitia que a respeito dela se esgrimissem duas teses.

3.3.1. A primeira – a que aqui é defendida pela AT – segundo a qual o imposto em falta podia exigir-se à Recorrida ex vi do disposto no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, na redacção que o preceito tinha à data dos factos, por considerar que, segundo aquela norma, a sociedade Recorrida era solidariamente responsável com os accionistas em relação ao pagamento do imposto em falta respeitante às operações “desconsideradas” como amortizações com redução de capital e “requalificadas” como distribuição de lucros, dividendos.

3.3.2. A segunda tese – que subjaz à sentença recorrida – rejeita aquela construção, embora não explique directamente a razão pela qual é de afastar in casu o regime do referido n.º 4 do artigo 103.º do CIRS e o regime de solidariedade tributária nele previsto.
Lembre-se que a norma em crise dispunha o seguinte “[T]ratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido”.
A sentença recorrida limita-se a remeter para o teor de decisões arbitrais anteriores proferidas em casos semelhantes, nas quais se defendeu que o princípio da capacidade contributiva e o princípio da justiça material impedem que a liquidação seja exigida ao sujeito passivo que coloca os rendimentos à disposição daqueles que obtêm a vantagem tributária, porque tal redundaria numa distorção da relação jurídica material que está subjacente à aplicação da CGAA. A tese diz, no essencial, que, se por efeito da aplicação da CGAA, o imposto devido, que os accionistas não pagaram, pudesse ser exigido à sociedade Recorrida, isso significaria que se poderia exigir o imposto em falta a um sujeito que não era aquele que obteve a vantagem fiscal e isso violaria o disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT. Mas – repetimos – nunca enfrenta a questão da interpretação e aplicação ao caso do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, que havia sido invocado pela AT.

3.3.3. Quer isto dizer que, a nosso ver, a tese sufragada pela sentença não explica convenientemente a razão pela qual a AT não tem razão ao defender a aplicação de uma relação de solidariedade tributária entre a Recorrida e os sócios no âmbito da aplicação da CGAA, ex vi do disposto no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, que legitimaria, na sua versão, a exigência do imposto à Recorrida.

3.4. Lembre-se que a questão que subjaz à consulta foi expressamente “resolvida” pelo legislador com o aditamento ao artigo 38.º da LGT dos n.ºs 4 e 5 pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio. Aí se dispõe que:
«[…]
4 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2, nos casos em que da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com carácter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, considera-se que a correspondente vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou actos que correspondam à substância ou realidade económica.

5 - Sem prejuízo do número anterior, quando o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções, devem aplicar-se as regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária.
[…]».

Assim, desta nova redacção do artigo 38.º da LGT resulta que, em casos como o dos autos, em que da construção utilizada e que depois é desconsiderada por efeito da aplicação da CGAA tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com carácter definitivo, considera-se que a vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, i. e. dos accionistas, mas tal não invalida que, se o substituto (no caso a sociedade que deliberou a amortização com redução do capital) tivesse ou devesse ter conhecimento daquela construção, o mesmo não possa ser chamado a responder pela dívida tributária segundo as regras aplicáveis à responsabilidade em caso de substituição tributária, ou seja, segundo as regras do 28.º da LGT.
Ora, segundo o artigo 28.º da LGT, designadamente o n.º 3 que é o aplicável a este caso, nos casos de retenção na fonte a título definitivo, em que o substituto não retém na fonte as quantias a que por lei estaria obrigado, cabe a ele substituto a responsabilidade originária pelas quantias que deviam ter sido retidas e não foram e aos substituídos a responsabilidade subsidiária pela satisfação dessas quantias.
Quer isto dizer que à luz da redacção actual do artigo 38.º da LGT a solução adoptada pela AT nos autos é correcta, embora não pelos fundamentos por ela alegados.
É, porém, óbvio, que estas normas não se podem aplicar à resolução do caso dos autos. Mas é também evidente que importa saber se a solução que nelas se consagra — sobretudo a de que o substituto é o responsável originário pelas dívidas tributárias do beneficiário da construção que levou à aplicação da CGAA quando tivesse conhecimento daquela construção e sobre ele impendesse a obrigação de retenção na fonte com carácter definitivo — tem carácter inovador face às normas que vigoravam no ordenamento jurídico à data em que nos autos a AT decidiu aplicar a CGAA e exigir o imposto em falta à sociedade Recorrida; ou se, pelo contrário, esta já era a solução que resultaria da correcta hermenêutica das regras legais então em vigor, podendo dizer-se que o legislador se limitou a positivar esse sentido em letra de lei.

3.5. Comecemos por analisar se a tese da AT nos autos se baseou na interpretação legal que veio a obter consagração expressa em 2019. A resposta não é totalmente positiva, pois, como vimos, a AT baseou a sua decisão na alegada responsabilidade tributária solidária que, ao abrigo do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, existiria entre a sociedade e os sócios em relação à obrigação tributária resultante da aplicação da CGAA.
Ora, parece evidente que estamos perante questões jurídicas diferentes. Tanto assim é que a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, que aditou os referidos n.ºs 4 e 5 ao artigo 38.º da LGT, não modificou a redacção do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS. Tal indicia, à luz do elemento sistemático da interpretação jurídica, que a responsabilidade solidária que se consagra no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS não contende com a responsabilidade tributária nos casos de substituição fiscal quando venha a ter lugar uma “requalificação” de uma operação ou facto tributário em razão da aplicação da CGAA. Caso contrário, o legislador teria sentido a necessidade de alterar a redacção do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, precisamente para excepcionar os casos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 38.º da LGT. Em outras palavras, a modificação legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019 não foi no sentido de alterar uma previsão normativa expressa anterior que regulava aqueles factos sob o regime da responsabilidade tributária solidária para os passar a submeter ao regime de responsabilidade fiscal subsidiária.
Também o elemento literal da interpretação jurídica apontaria para a não aplicação desta responsabilidade solidária ao caso dos autos, essencialmente, por duas razões. Primeiro, porque a situação dos autos – a reconfiguração tributária de um facto ou operação por efeito da aplicação da CGAA – dificilmente se pode subsumir, de forma directa, na previsão daquele n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, pois é difícil dizer que o pagamento aos accionistas das quantias respeitantes às amortizações decorrentes da redução de capital consubstanciasse “rendimentos não contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários”. Isso seria pressupor que aquela operação resultara de uma deliberação da sociedade totalmente alheia à vontade dos sócios e não é isso que sucede no âmbito da aplicação da CGAA, em que se trata apenas de a AT avaliar a substancia económica de uma operação da qual resulta aforro fiscal para saber se ela se deve considerar legítima no plano tributário (por ter uma razão substantiva económica) ou se a sua finalidade exclusiva ou principal se esgotava naquele aforro fiscal, caso em que a mesma é desconsiderada e requalificada para efeitos tributários como a operação sujeita a imposto que foi “indevidamente omitida ou evitada”.
Segundo, porque ainda que se pretendesse dizer que para este efeito, à CGAA poderia aplicar-se, por interpretação extensiva, a regra do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, tal é vedado pelo n.º 4 do artigo 22.º da LGT, que estipula como regra a responsabilidade apenas subsidiária e reserva para a responsabilidade solidária os casos em que tal se encontre expressamente previsto na lei.
Julgamos, por isso, que o n.º 4 do artigo 103.º do CIRS não é aplicável ao caso e, nessa medida, não constitui nem podia constituir, à data, pressuposto legal para a exigibilidade do imposto devido à sociedade Recorrida.

3.6. Não obstante, é porém também certo que a solução que veio a ser consagrada – de responsabilizar de modo originário pela dívida tributária que resulta da aplicação da CGAA a sociedade que sabia da construção que vem a ser desconsiderada no plano tributário e estava obrigada à retenção na fonte, reservando para os accionistas o papel de responsáveis subsidiários pela dívida que resulte dessa obrigação tributária – acaba por ser, na prática, quase idêntica à que resulta do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, pois em ambas a sociedade responde (ou pode responder) em primeira linha pela obrigação fiscal que resulta da aplicação da CGAA.
Na verdade, a solução a que em 2019 se deu consagração expressa na lei, que reserva nestas hipóteses – em que não o imposto devido por efeito da aplicação da CGAA deveria ser pago por retenção na fonte a título definitivo – para os que obtêm a vantagem fiscal um papel de responder subsidiariamente pela dívida tributária, acaba até por parecer mais “desviada” da regra de que a obrigação fiscal que resulta da aplicação da CGAA só pode ser exigida ao sujeito que obteve a vantagem fiscal e não àquele que a proporcionou, do que a tese defendida pela AT, segundo a qual existiria uma situação de responsabilidade solidária entre os beneficiários e aquele que tinha proporcionado o benefício. Parece que sob o prisma da segurança jurídica e da protecção da confiança, a “solução jurídica” sufragada pela AT nos autos se aproxima mais da finalidade da CGAA quando ela pretende neutralizar a vantagem fiscal do beneficiário da mesma.

3.7. Resta-nos, então, saber se a solução adoptada pela AT, de liquidar e cobrar o imposto à sociedade Recorrida se pode manter apenas com base na aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT e no artigo 63.º do CPPT, na redacção que os artigos tinham à data dos factos.
Para isso é importante atentar no elemento histórico com o intuito de tentar retirar dele o “sentido” desta alteração legislativa.

Na exposição de motivos que acompanhou a proposta de lei parece querer dizer-se que as regras da responsabilidade em caso de substituição tributária prevalecem neste caso sobre a regra de que a obrigação tributária que emerge da aplicação da CGAA só pode opor-se ao beneficiário da vantagem fiscal:

«[…] Prevê-se ainda que, nos casos em que das construções ou séries de construções qualificáveis como abusiva tenham resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, deve-se considerar que a correspondente vantagem fiscal se produziu na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica em causa, sem prejuízo da aplicação das regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária, nos casos em que o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções […]». [destacados nossos]

Se compulsarmos o que se disse no debate na generalidade a respeito da Lei n.º 32/2019, parece resultar daí que o legislador, ao introduzir os n.ºs 4 e 5 no artigo 38.º da LGT e alterar a redacção do artigo 63.º do CPPT, mais do que clarificar o sentido do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, veio “introduzir novidades” no ordenamento jurídico e alterar efectivamente o que estava em vigor, por forma a garantir maior segurança jurídica, quer aos contribuintes e sujeitos passivos, quer a AT na aplicação da CGAA.
Pode ler-se no debate parlamentar na generalidade o seguinte:
«[…] Mas esta proposta de lei tem uma inovação muito importante, do ponto de vista do ordenamento jurídico interno: promovemos uma alteração à cláusula geral antiabuso, prevista na lei geral tributária. Isto é importante, porque nos permite criar mais certeza tanto para os contribuintes, como para a Autoridade Tributária. Trata-se de direcionar a cláusula antiabuso para aqueles que, efetivamente, são os beneficiários dos rendimentos e prever os casos estritos em que possa haver substituição tributária e, também, o processo inerente ao acionamento dessa cláusula antiabuso […]». [destacados nossos]

A isso acresce o facto de que só com a alteração do artigo 63.º do CPPT é que o procedimento de aplicação da CGAA passou a exigir previamente – para os casos em que se apliquem as regras de responsabilidade em caso de substituição tributária (o n.º 5 do artigo 38.º da LGT) – um procedimento de inspecção dirigido também ao beneficiário do rendimento (artigo 63.º, n.º 4, al. b) do CPPT). E é também a partir deste momento que se clarificam as garantias do substituto e do substituído nestas situações de aplicação da CGAA, com a previsão de reclamação graciosa prévia obrigatória, que pode ser apresentada por ambos, caso em que a decisão de ambos procedimentos é da competência do mesmo órgão periférico regional, podendo aqueles ser apensados.

3.7.1. Ora, os subsídios que podemos retirar do elemento histórico da interpretação jurídica, em vez de proporcionarem uma resposta directa à nossa questão, suscitam antes a necessidade esclarecer uma dúvida: i) a “novidade” que emerge da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019 para situações como a dos autos é a de que o substituto passa a responder pela dívida tributária quando o beneficiário da vantagem fiscal seja o substituído e desde que preencha os pressuposto no n.º 5 do artigo 38.º da LGT; ou devemos entender antes que ii) a “novidade” é a de que o beneficiário da vantagem fiscal, quando tenha o papel de substituído numa relação jurídica fiscal em que devesse ter tido lugar a retenção na fonte a título definitivo, passa também a poder responder subsidiariamente pela dívida tributária em relação às quantias que deveriam ter sido retidas pelo substituto e não o foram?

3.8. A resposta deve então buscar-se no elemento teleológico ou racional da interpretação jurídica. No essencial devemos perguntar se à luz da redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, conjugado com o artigo 63.º do CPPT, à data dos factos, a liquidação do imposto resultante da aplicação da CGAA poderia ser dirigida à sociedade, por ter sido ela a deliberar e executar a construção que proporcionou a vantagem fiscal (como resulta do acto praticado pela AT) ou se, ao invés, aquela liquidação teria de ter como destinatários os sócios, por terem sido eles a beneficiar directamente da vantagem fiscal (tese que vem acolhida e proferida na sentença recorrida).
Ora, atentando exclusivamente no teor do artigo 63.º do CPPT na sua redacção à data dos factos concluímos, aí, como hoje, que o procedimento de aplicação da CGAA só podia ter como destinatário a sociedade, por ser ela e não os sócios, quem utiliza/pratica a construção que permite a obtenção da vantagem fiscal e, nessa medida, por ser ela, e não os sócios, quem, em sede procedimental, pode apresentar os argumentos que sustentem a racionalidade económica da construção utilizada e, com isso, afastar a aplicação da CGAA.
A prevalecer a tese vertida na sentença recorrida ter-se-ia de concluir que, na prática, era impossível aplicar a CGAA sempre que fosse utilizada por um sujeito passivo de IRC uma construção que proporcionasse uma vantagem fiscal da qual resultasse a “substituição” de uma operação em que devesse ter tido lugar uma retenção na fonte a título definitivo. É que de acordo com aquela tese, nessas situações, a aplicação da CGAA com desconsideração da referida construção “esbarraria” com esta perplexidade: i) no procedimento tributário do artigo 63.º do CPPT só o substituto poderia participar por ser ele o único que estaria em condições de “afastar” a aplicação da CGAA, justificando as razões económicas daquela construção; ii) mas a liquidação não poderia ter esta entidade como destinatária, por a vantagem tributária ter sido proporcionada a outro: os sócios. No absurdo, se a AT tivesse iniciado – como parece decorrer dessa decisão – o procedimento tributário do artigo 63.º do CPPT contra os sócios, a mesma tese defenderia que tal constituiria uma “distorção” da relação jurídica tributária por não terem sido os sócios a praticar o acto (a deliberação) que deu origem à construção que proporcionou a vantagem tributária que a CGAA desconsiderara.
Assim, concluímos que a tese sufragada pela sentença recorrida não se pode manter por repousar numa interpretação do n.º 2 do artigo 38.º da CGAA, conjugado com o artigo 63.º do CPPT, que, na prática, conduziria a uma impossibilidade de aplicação daquela norma. A interpretação que assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT é, assim, aquela que está subjacente à posição da AT, no sentido de que, sempre que a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção que resulte na não aplicação de uma retenção na fonte a título definitivo, e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário, é o substituto quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele, que levou à não retenção na fonte do imposto que agora (por efeito da desconsideração daquela construção) se pretende liquidar e cobrar.
Por aqui se percebe, como é afirmado nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 32/2019, que sendo a regra do artigo 38.º, n.º 2 da LGT a de que a CGAA visa neutralizar financeiramente uma vantagem tributária indevida, e, por isso, o seu destinatário é quem dela beneficia (sendo, nestes casos, esses beneficiários os sócios), tal não significa que, o princípio da praticabilidade associado aos princípios da igualdade tributária e da racionalidade não imponham que nestes casos em que está subjacente à aplicação da CGAA uma relação jurídica de substituição fiscal total, com retenção na fonte a título definitivo, não devam também aplicar-se as regras da substituição tributária em geral. De acordo com estas regras, aquele que esteja legalmente obrigado à liquidação em substituição e não o faça, se tiver conhecimento (ou devesse ter) da construção que se substituiu a esta obrigação de retenção na fonte a título definitivo, será o responsável originário pelas quantias que devia ter retido e não reteve.
A novidade introduzida pela Lei n.º 32/2019, e que não pode aplicar-se no caso dos autos, é, pois, a de que também o substituído, no caso, os accionistas, podem ser chamados a responder por este crédito tributário, a título subsidiário e, por isso, passa também a ser exigida a sua participação no âmbito do procedimento de aplicação da CGAA, previsto e regulado no artigo 63.º do CPPT.
A exigência do imposto devido por efeito da CGAA à sociedade não é uma novidade é apenas a consagração em letra de lei (uma mera clarificação) do que, pelas razões antes esgrimidas, já se retirava das regras e dos princípios legais em vigor na redacção anterior dos preceitos legais em causa. De resto, a solução que aqui se adopta é um corolário da aplicação das regras da responsabilidade em caso de substituição tributária, em que não pode deixar de impender sobre aquele que legalmente está obrigado à retenção na fonte a título definitivo a obrigação de satisfazer, em primeira linha, o pagamento do imposto devido, que, por incumprimento da lei pela sua parte (não nos esqueçamos que estes são casos de liquidação tributária em substituição), o Estado deixou de arrecadar.
A única questão que se poderia suscitar era a de a referida obrigação, nestes casos, resultar do acto de aplicação da CGAA e não directamente da lei, pois o substituto, ao ter praticado (antes da aplicação da CGAA) uma operação diversa da que legalmente impunha aquela retenção na fonte, não poderia agora ser “responsabilizado por aquela omissão”. Mas também este argumento é afastado pelo facto de ser sempre exigível, por efeito da verificação dos pressupostos da correcta aplicação da CGAA, que no procedimento (decisão depois escrutinada em sede de impugnação judicial da liquidação ou do acto de correcção dos prejuízos fiscais) de aplicação da CGAA fique provado que o substituto “tinha conhecimento da construção”, o que significa, neste caso, que sabia (tinha o dever de saber) que as decisões de amortização com redução de capital poderiam, antes, ter dado lugar a distribuição de dividendos, cabendo-lhe explicar o fundamento económico da decisão que tomou […]».


Assim, também quanto a esta questão se conclui pelo acerto da solução adoptada na sentença recorrida, embora com uma fundamentação algo diversa e que resulta da decisão antes transcrita.

3.2.3. Por último, sustentando nós a tese de que a Recorrida é responsável pelo pagamento do imposto que não foi retido na fonte e que deveria tê-lo sido, consideramos também que inexiste erro de julgamento da sentença recorrida ao concluir que “pelo menos a título de negligência, afigura-se-nos que a liquidação de juros compensatórios é, em casos como o presente, a consequência natural da verificação do abuso, sobretudo atendendo aos elementos meio e intelectual, demonstrativos de que houve a intenção deliberada de evitar a retenção na fonte devida”.


III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.


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Custas pelo Recorrente [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário].
*

Lisboa, 12 de Janeiro de 2022. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.