Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0288/16.5BEPRT 098/18
Data do Acordão:07/01/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO
COMPETÊNCIA
HIERARQUIA
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
CPPT
Sumário:I - Em regra, a competência em razão da hierarquia para conhecer recurso jurisdicional de decisão de tribunal tributário de 1.ª instância cabe aos tribunais centrais administrativos, dado que o Supremo Tribunal Administrativo apenas goza dessa competência quando o recurso tiver por exclusivo fundamento matéria de direito [arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do ETAF, e art. 280.º, n.º 1, do CPPT].
II - Quando no recurso se invocam factos que a sentença não deu como provados ou quando no recurso se questiona um juízo fáctico formulado na sentença, pretendendo em qualquer dos casos daí extrair relevante consequência jurídica, é de considerar que o recurso não tem por fundamento exclusivo matéria de direito.
Nº Convencional:JSTA000P26132
Nº do Documento:SA2202007010288/16
Data de Entrada:02/07/2018
Recorrente:A............, LDA.
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 288/16.5BEPRT (98/18)

1. RELATÓRIO

1.1 Inconformada com a sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela acima identificada Recorrente, após indeferimento da reclamação graciosa, contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) que lhe foi efectuada oficiosamente, veio a mesma interpor recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte.

1.2 O recurso foi admitido e a Recorrente apresentou alegações, com conclusões do seguinte teor:

«I- O presente recurso é apresentado em consequência da sentença proferida em 23.03.2017, a qual julgou, in totum, improcedente a impugnação judicial deduzida pela Impugnante, aqui recorrente, Massa Insolvente de A………… Lda., relativa às liquidações oficiosas de IRC, emitidas em 2012 e que tem por referência, o exercício económico de 2011, no montante de € 33.152,98.

II- Os pressupostos nos quais a AT se baseou para proceder à liquidação do indicado tributo padece dos mais elementares fundamentos legais enformadores da relação jurídico tributária e, nessa medida, os factos tributários subjacentes à emissão da liquidação são inexistentes, isto porque a sociedade em causa já se encontrava insolvente e com a actividade do estabelecimento definitivamente encerrada.

III- Sendo, ademais, assente que a Massa Insolvente não é sujeito passivo de imposto sobre o rendimento quando deliberado o encerramento da actividade do estabelecimento, nem o Administrador de Insolvência está obrigado ao cumprimento de qualquer obrigação de natureza declarativa e fiscal que ainda possa sobrestar na esfera jurídica da sociedade insolvente, designadamente, por tal resultar de imposição legal que consta vertida no art. 65.º, n.º 3, e 82.º, n.º 2, do CIRE.

IV- No caso dos presentes autos, sempre ficou demonstrado, provado e comprovado que foi deliberado pelos credores, em sede de assembleia de credores de 07.09.2010, o encerramento da actividade do estabelecimento da insolvente (art. 156.º, n.º 2, do CIRE) e, doutra parte, ficou deliberado, ainda, a liquidação do património da empresa insolvente para posterior distribuição do produto pelos seus credores.

V- Não tendo a Recorrente exercido qualquer actividade susceptível de imputação de imposto, nem a Autoridade Tributária, tal-qualmente lhe impõe o ónus da prova, ter provado e comprovado que a mesma exerceu actividade susceptível de ser tributada e geradora de lucro tributável, venha lançar um anátema, por via das liquidações oficiosas e, com isso, tentar obter o pagamento de um imposto que bem sabe não ser devido.

VI- Na esteira daquilo que é o princípio da incidência do imposto sobre o rendimento, que se encontra vertido no art. 1.º do CIRC, tal aponta no sentido de que este tributo incide sobre os rendimentos (lucro) que foram obtidos pelo sujeito passivo, referente a um período de tributação delimitado no tempo, ou seja,

VII- Para que exista lucro sujeito a tributação, tem de existir uma actividade económica que esteja a ser exercida com regularidade pelo sujeito passivo, cabendo, dessarte, à AT, por um lado, a prova da sujeição da entidade ao cumprimento das obrigações declarativas e fiscais e, doutro passo ainda, a existência/verificação dos pressupostos de que depende a liquidação do imposto.

VIII- Encontrando-se a actividade do estabelecimento definitivamente encerrado desde 07.09.2010, sendo tal facto do conhecimento da AT, porque o mesmo consta da informação cadastral e registal comercial da entidade insolvente e, ademais, não tendo a AT, tal como exigido, provado a existência da qualquer actividade susceptível de fazer qualquer obrigação tributária (artigos 74.º/1 e 75.º/2, da LGT), não poderiam tais liquidações oficiosas terem sido emitidas nem, tampouco, estaria o Administrador da Insolvência obrigado ao cumprimento das obrigações fiscais, pois estas tinham cessado – vide art. 65.º, n.º 3, do CIRE.

IX- Neste sentido, era de concluir que para além da actividade do estabelecimento ter sido encerrada em 07.09.2010, não existe qualquer lucro sujeito a tributação por inexistência da actividade da impugnante, como também, pela lei falimentar, não existe qualquer obrigação de natureza declarativa e fiscal que incida sobre o legal representante da massa insolvente – Administrador da Insolvência.

X- A sentença recorrida, fez uma incorrecta interpretação das normas jurídicas, pois que, seguiu a peugada exposta pela AT e olvidou-se de aplicar ao caso sub judicio as especificidades decorrentes da insolvência, como também, doutro passo, não cuidou da verificação da existência dos pressupostos de que dependem a liquidação do imposto sobre o rendimento, designadamente a verificação e existência de facto tributário gerador de lucro tributável, nos termos em que consta exposto no art. 13.º, do CIRC, sendo que este será apurado,

XI- em função das variações patrimoniais positivas e as negativas da entidade sujeita a tributação, o qual fica expresso no resultado líquido do período que, depois, será vertido nos documentos contabilísticos e fiscais, sendo de concluir que a existência do apuramento do lucro tributável nasce, assim, do exercício de uma actividade geradora de rendimento directo para o sujeito passivo, ou seja, a relação jurídica tributária nasce desse elemento primordial caracterizador da incidência do impostos – a existência de actividade passível de gerar lucro tributável.

XII- O aresto recorrido, formou uma convicção que nem a própria AT conseguiu fazer ao longo de todo o processo, designadamente infere que o facto da impugnante, aqui recorrente, na sua óptica, não se encontrar cessada é condição do exercício da actividade económica. Assim, a conclusão que se extrai do aresto não encontra qualquer arrimo legal, nasce de uma presunção, ou seja, como a actividade não se encontra cessada, logo há actividade e lucro tributável, o que, de todo em todo, contraria o estipulado em sede do art. 65.º, n.º 3, do CIRE, e art. 1.º, 3.º e 13.º, do CIRC, sendo, assim, errónea a interpretação e aplicação das normas jurídicas.

XIII- Destarte, inexistem fundamentos directos, do ponto de vista jurídico tributário para liquidar imposto, dada a inexistência de actividade e ausência de lucro tributável, e, do ponto de vista jurídico falimentar, carece de legitimidade e fundamento a liquidação do imposto, porque tomada ao arrepio das mais elementares normas que regem o processo de insolvência, que sendo normas especiais tem de ser aplicadas ao caso em concreto e que, por seu turno, foram postergadas na sua totalidade, pela douta sentença recorrida.

XIV- Conforme é sabido e consabido, a insolvência trata-se de um processo de execução universal dos bens do devedor, em que o Administrador da Insolvência gere o processo de alienação dos activos, presta contas ao processo judicial (as quais são completa e totalmente alheias à sindicância da AT) e procede, de acordo com as determinações da sentença de verificação e graduação de créditos, à elaboração do mapa do rateio que visa a distribuição do produto da liquidação dos activos pelos credores da insolvente.

XV- Pelo que, se de uma parte, encerrada a actividade do estabelecimento comercial da insolvente cessam todas as obrigações fiscais e, bem assim, cessa a actividade da insolvente, é de concluir que a mesma não detém, in se, qualquer actividade que seja geradora de lucro tributável e, como tal, não é sujeito passivo de imposto,

XVI- Como também não o é a Massa Insolvente, pois esta não detém qualquer actividade susceptível de gerar lucro tributável, sendo, por conseguinte inexistente a relação jurídico tributária de que dependem a incidência do imposto e, nesse seguimento, não subsiste na esfera jurídica do Administrador da Insolvência qualquer obrigação de natureza declarativa e fiscal (cfr. arts. 46.º, 55.º, 65.º, n.º 3, 81.º, n.º 4, todos do CIRE).

XVII- Assim, não pode a AT, como o faz, proceder a liquidação oficiosa do IRC, tendo, ademais, por base um critério aritmético que não tem correspondência com a realidade (avocando valores de declarações transactas), em clara e manifesta violação do princípio da legalidade, o qual encontra o seu arrimo no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

XVIII- Nos termos dos n.º 3 e n.º 5 do art. 65.º do CIRE, resulta que, declarada a insolvência de uma sociedade comercial e sendo deliberado pelos credores o encerramento do estabelecimento comercial, esta passa a ser um nado morto e, cessando todas as obrigações de natureza declarativa e fiscais, sendo que, tal obrigação de comunicação da situação insolvencial à Fazenda Pública é uma obrigação do Tribunal, onde foi declarada a insolvência e não do Administrador da insolvência.

XIX- Se seguíssemos o entendimento aposto pela AT e sufragado pela sentença recorrida, chegaríamos a um ponto de impossibilidade do cumprimento legal das obrigações, pois que cumpre indagar como é que se mostra possível, do ponto de vista jurídico, a aprovação e apresentação de contas nos termos do CIRC para a massa insolvente (é esta a entidade que o Administrador da Insolvência representa) pois que, para promover aprovação de contas numa sociedade comercial, a competência não é do órgão de gestão, mas sim do órgão deliberativo, que como sabemos é a Assembleia Geral – cfr. art. 65.º, do CSC.

XX- Os actos tributários colocados em crise nos presentes autos são nulos, na medida em que não assiste à AT qualquer razão ou fundamento (jurídico factual) para a emissão das liquidações oficiosas de imposto, porquanto tal não tem qualquer enquadramento legal nem sequer se mostra possível em relação a uma sociedade cujo estabelecimento tenha sido encerrado e a actividade cessada como, também, não está o Administrador da Insolvência obrigado ao cumprimento das obrigações declarativas e fiscais, conforme consta apontado na decisão recorrida.

XXI- A posição que se tem vindo a sustentar encontra-se devidamente sufragada pela Jurisprudência dos Tribunais Superiores, designadamente, no Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul (disponível em www.dgsi.pt), proferido no processo a 08251/14, no qual se apreciavam factos idênticos ao dos presentes autos, tendo ficado assente que: “Nos termos do artigo 65.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, «conforme a administração passou a ser confiada ao administrador da insolvência, nos termos do artigo 81.º, n.º 1, ou pelo contrário, foi mantida no próprio insolvente, assim será aquele ou este quem deve agir e responde pelo incumprimento. // Porém, uma vez tomada a deliberação de encerramento do estabelecimento, nos termos do artigo 156.º, n.º 2, extinguem-se todas as obrigações fiscais e declarativas inerentes à actividade do devedor que, evidentemente, cessa”.

XXII- De acordo com a menção exarada no aresto, impunha-se uma decisão diferente em primeira instância, na medida em que as liquidações oficiosas do imposto foram apenas lavradas no pressuposto da não entrega da declaração de rendimentos – à qual, sempre se refira, a Massa Insolvente não estava obrigada – não tendo em consideração que o facto tributário primordial de que depende a liquidação do imposto é inexistente, atenta a cessação da actividade do estabelecimento no exercício económico de 2010, mormente em 07.09.2010, altura em que foi tomada a deliberação na Assembleia de Credores, cfr. art. 156.º, n.º 2, do CIRE.

XXIII- Assim, as liquidações em crise são ilegais e violam os mais elementares princípios jurídicos que se encontram subjacentes à relação jurídico tributária, designadamente o princípio da decisão, do procedimento tributário, da boa-fé, e da colaboração, os quais encontram o seu arrimo legal junto dos artigos 55.º, 56.º e 59.º da LGT.

XXIV- Doutrarte, não foram levadas, também, em consideração pela sentença recorrida os efeitos directos que a insolvência opera em relação aos administradores e legais representantes da sociedade insolvente, isto porque, as obrigações tributárias primordiais que ainda subsistam por cumprir permanecem na esfera da insolvente e dos seus legais representantes, não sendo, como tal confundível com a posição do Administrador da Insolvência e da Massa Insolvente (vide art. 82.º, n.º 2, do CIRE), pois este não é representante da insolvente nos termos em que se encontra preceituado no art. 109.º, do CIRC, dado que o conteúdo e natureza das suas funções encontra-se previsto nos artigos 55.º e 81.º, n.º 4, do CIRE.

XXV- Ante o exposto, era de primordial justiça e adequação ad legem, que a decisão da primeira instância decidisse no sentido da anulação das liquidações promovidas pela AT, porquanto e nessa medida, ficou demonstrado que: (i) declaração de insolvência opera a imediata dissolução da sociedade, o que equivale à sua morte e, atento o carácter insolvencial da devedora, não são de aplicar as disposições relativas à simples dissolução da sociedade atenta a existência de normas específicas no CIRE (art. 65.º) e; (ii) pelos credores da Massa Insolvente, em 07.09.2010, foi deliberado, de forma definitiva, o encerramento do estabelecimento comercial da insolvente;

XXVI- (iii) a impugnante não tinha e/ou desenvolvia qualquer actividade e, como tal não existia qualquer lucro tributável o que leva à inexistência de facto tributário; (iv) não existiam quaisquer obrigações declarativas e fiscais que sobrestassem na esfera jurídica da Massa Insolvente; (v) o Administrador da Insolvência não representada da sociedade insolvente, nos termos em que estipula o art. 109, do CIRC, apenas assume a representação para efeitos de carácter patrimonial que importa à insolvência, não tendo qualquer obrigação de natureza fiscal em relação a esta, pois que, a existir, é da responsabilidades dos legais representantes da sociedade insolvente (art. 82.º, n.º 2, do CIRE).

XXVII- Se a declaração de insolvência equivale, como refere o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo judicial n.º 01107/12, datado de 09.07.2014, à morte do infractor, o mesmo entendimento terá de ser delimitado quanto às demais obrigações fiscais, tanto mais que, nos termos do art. 65.º, n.º 3 do CIRE, deliberado o encerramento do estabelecimento comercial cessam todas as obrigações declarativas e fiscais, sendo obrigação do Tribunal a comunicação, à AT, para efeitos de cessação da actividade.

XXVIII- Daí que, reverte-se claro que a deliberação do encerramento da actividade do estabelecimento da insolvente (in casu motivado pela situação de insolvência) não é subsumível ao conceito de sujeito passivo objecto de imposto, por manifesta falta de verificação dos pressupostos legais necessários para o surgimento da relação jurídico-tributária e, como tal, não subsiste na esfera jurídica da Massa Insolvente e do Administrador da Insolvência qualquer obrigação declarativa e fiscal que medeie entre a tomada da deliberação e o encerramento da liquidação».

1.3 A AT não contra-alegou.

1.4 O Tribunal Central Administrativo Norte declarou-se incompetente em razão da hierarquia e indicou este Supremo Tribunal Administrativo como sendo o competente.

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que deve ser concedido provimento ao recurso e os autos devolvidos à 1.ª instância, para ampliação da matéria de facto e ulterior novo julgamento, com a seguinte fundamentação:

«[…] A questão que se coloca consiste em saber se a sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento que lhe é imputado pela Recorrente e designadamente se o tribunal “a quo” fez uma incorrecta apreciação e aplicação das normas legais aplicáveis ao ter confirmado a legalidade da liquidação oficiosa
Como se alcança dos autos, o presente recurso foi dirigido ao TCA Norte (requerimento de fls. 106), cujo tribunal excepcionou a incompetência hierárquica, aliás na sequência de a mesma ter sido suscitada pelo Ministério Público, e determinou a remessa dos autos a este tribunal.
Temos algumas dúvidas sobre se essa ponderação foi a mais correcta, ou seja, se não está em causa no recurso uma divergência sobre a factualidade assente, uma vez que decorre das alegações e conclusões de recurso que a Recorrente assenta a sua argumentação sobre o erro de julgamento atribuído à sentença recorrida, no facto de o seu estabelecimento ter sido encerrado na sequência de deliberação da assembleia de credores tomada em 07/09/2010 e nessa medida cessado qualquer actividade sujeita a tributação, o que no seu entendimento e à luz do disposto no n.º 3 do artigo 65.º do CIRE, implica a cessação das obrigações declarativas e fiscais.
Ora, independentemente da pertinência de tal facto para a aplicação do disposto no citado normativo na redacção então em vigor (questão que a Recorrente omite), certo é que tal facto não foi levado ao probatório.
De todas as formas afigura-se-nos que a sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento que lhe é assacado pela Recorrente e de insuficiência da matéria de facto que importa fixar em função da apreciação da questão colocada ao tribunal
Como se deixou exarado no acórdão do STA de 24/02/2011 (proc. 01145/09), citado na sentença recorrida, «... qualquer que seja a causa da dissolução, a sociedade em liquidação continua a existir enquanto sujeito passivo de IRC, permanecendo vinculada a obrigações fiscais. Isto é, inexistindo qualquer excepção prevista na lei, todas as sociedades dissolvidas, qualquer que seja a causa da dissolução, mantêm obrigações fiscais (nomeadamente a de possuir contabilidade organizada conforme a lei comercial e fiscal, embora com a derrogação de alguns princípios contabilísticos, como, por exemplo, o da «continuidade» ou o da «especialização do exercício») e obrigações declarativas, sendo a sua responsabilidade do liquidatário ou do administrador da insolvência, conforme expressamente é referido pelo n.º 7 do artigo 94.º do CIRC (Que corresponde ao n.º 9 do artigo 109.º, na redacção do CIRC em vigor previamente à produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, e que corresponde, ainda, ao actual n.º 9 do artigo 117.º do CIRC)».
Se é certo que a jurisprudência do STA vai no sentido da manutenção das obrigações declarativas e fiscais no período após a declaração da insolvência, já no que respeita à concretização dessas obrigações tributárias a jurisprudência ainda é pouco clara, como parece depreender-se do acórdão de 03/11/2016, proc. 0448/141 1 [1 «Com base na falta de apresentação de declaração de rendimentos e impossibilidade de comprovação e quantificação directa do lucro tributável, poderia a Administração Tributária proceder à determinação do lucro tributável com recurso a métodos indirectos, se, tendo em conta a sua declaração de falência e a sua declaração de que cessou a sua actividade comercial em 1991, e apenas relativamente às condições que subsistam de sujeição ao IRC, para além das que derivam do exercício de uma actividade económica, como sejam os negócios jurídicos que se possam ter continuado a realizar seja por serem de execução duradoura que se protelou para além da declaração de falência, ou por terem resultado da confirmação de negócios do falido posteriores à declaração de falência, ou, até pelo que sobrou do produto da venda dos bens que integravam a massa insolvente depois de pagas as dívidas da massa e os créditos reconhecidos»], que sufragando a doutrina do acórdão de 29/10/2003, proc. 01079/03, parece arredar a tributação na situação de mera liquidação dos bens da massa insolvente (no mesmo sentido o acórdão de 02/07/2014, proc. 01431/13, e mais recentemente o acórdão de 08/11/2017, proc. 0876/15).
Também na jurisprudência do TCA, este tribunal se inclina pela não verificação de matéria tributável nas situações de liquidação dos bens da massa insolvente: «… perante a comprovação do encerramento da empresa, no quadro do processo de falência, ocorrido em 28 de Novembro de 2000, perante a apreensão do seu património e o rateio, pagamento das dívidas dos credores e a subsequente prestação de contas, dir-se-á que a liquidação oficiosa de IRC do exercício de 2007 em exame não tem por base elementos que comprovem a ocorrência do facto tributário (o lucro tributável), nem se vê como tal possa suceder perante uma sociedade extinta. O ónus da prova recai sobre a parte que alega o direito (artigos 74.º/1 e 75.º/2, da LGT). Ónus que no caso não foi observado» – acórdão de 13/07/2016, proc. 08251/14.
Decorre da sentença que a Recorrente foi declarada insolvente no ano de 2010 e que desde 2009 que não apresenta declaração de IRC, tendo a AT emitido a liquidação oficiosa de IRC ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC (ou seja, tendo por referência a matéria tributável do exercício mais próximo – € 128.713,72).
O tribunal “a quo” deu ainda como não provado que «a impugnante estivesse sem qualquer actividade desde 2009».
Todavia, tendo a sociedade sido declarada insolvente em 2010 e respeitando a liquidação oficiosa ao ano de 2011, importaria que fosse caracterizada e definida que tipo de actividade foi desenvolvida neste período, sendo certo que, com essa declaração, a actividade da insolvente fica sujeita a diversas limitações, designadamente no âmbito da administração dos bens – arts. 81.º e 149.º do CIRE –, uma das quais se prende com o funcionamento do estabelecimento da insolvente – artigo 156.º, n.º 2, do CIRE.
Da prova documental junta aos autos consta um relatório do administrador de insolvência no qual é efectuada a caracterização da empresa da sociedade insolvente e circunstâncias da sua situação económico-financeira, assim como a sua aprovação na assembleia de credores, elementos probatórios estes que o tribunal “a quo” ignorou.
Ora, se no ano a que respeita o acto tributário – 2011 – ainda não se encontrava em vigor a actual redacção do n.º 3 do artigo 65.º do CIRE 2 [2 “3- Com a deliberação de encerramento da actividade do estabelecimento, nos termos do n.º 2 do artigo 156.º, extinguem-se necessariamente todas as obrigações declarativas e fiscais, o que deve ser comunicado oficiosamente pelo tribunal à administração fiscal para efeitos de cessação da actividade”] certo é que a actividade desenvolvida pela insolvente nesse período não pode equiparar-se a uma normal actividade da sociedade, motivo pelo qual nunca a AT podia socorrer-se para efeitos de tributação da matéria tributável do exercício mais próximo (como parece depreender-se da norma citada na sentença, um vez que nenhum elemento factual foi levado ao probatório), pois neste caso não opera a ficção prevista naquele normativo.
Por outro lado e considerando o sentido da jurisprudência supra citada e ao invés do entendimento sufragado na sentença recorrida, embora na falta de apresentação da declaração por parte da insolvente assista à AT o direito de proceder à liquidação oficiosa, recai sobre a mesma o ónus da prova da verificação do facto tributário.
Entendemos, assim, que a sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento que lhe é assacado pela Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua revogação e a baixa dos autos a fim de ser ampliada a matéria de facto e ulterior decisão à luz dos considerandos e jurisprudência deste tribunal supra citada».

1.6 Cumpre apreciar e decidir.


*

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

A sentença efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«Factos provados:

1. A sociedade A…………, Lda., com o NIPC ………, foi declarada insolvente por decisão judicial de 07.09.2010 – fls. 7 e 84 e ss.;

2. Desde 2009 que a Impugnante não apresenta declaração anual de rendimentos em sede de IRC – acordo;

3. A AT procedeu à liquidação oficiosa de IRC de 2011, n.º 20128310020817 no valor de € 32.546,64 – fls. 8 e ss. e PA em anexo;

4. E à liquidação n.º 20122094511, respeitante a juros compensatórios no montante de € 606,34 – fls. 8 e ss. e PA em anexo;

5. A Impugnante deduziu reclamação graciosa, que lhe foi indeferida – PA em anexo.

Factos não provados:

Com interesse para a decisão da causa não se provou que a Impugnante estivesse sem qualquer actividade desde 2009».


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Antes do mais, porque o presente recurso foi interposto para o Tribunal Central Administrativo Norte, que se declarou incompetente em razão da hierarquia e indicou como tribunal competente para conhecer deste recurso este Supremo Tribunal, cumpre reapreciar a questão.

2.2.2 DA COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA

2.2.2.1 A competência do tribunal é uma questão de ordem pública e prioritária em relação a qualquer outra [cf. art. 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro]. Cumpre, designadamente, aferir da incompetência em razão da hierarquia, que determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual é do conhecimento oficioso e pode ser arguida até ao trânsito em julgado da decisão final [cf. art. 16.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)].
Note-se ainda que na sequência da declaração de incompetência em razão da hierarquia, deverão os autos ser oficiosamente remetidos, no prazo de 48 horas, ao tribunal competente (cf. art. 18.º, n.º 2, do CPPT, na redacção da Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro).
É certo que, no caso, o Tribunal Central Administrativo Norte já se declarou incompetente em razão da hierarquia e indicou este Supremo Tribunal como competente.
No entanto, essa decisão não só não dispensa este Supremo Tribunal de aferir da sua competência, como a decisão que a esse respeito vier a proferir, se em divergência com a proferida pelo Tribunal Central Administrativo Norte, prevalecerá, definitivamente [cfr. art. 5.º, n. º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro,].

2.2.2.2 Como é sabido, nos termos do disposto nos arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do ETAF e no art. 280.º, n.º 1, do CPPT, a competência para conhecer dos recursos das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância em matéria de contencioso tributário, pertence à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo quando os recursos tenham por exclusivo fundamento matéria de direito, constituindo uma excepção à competência generalizada dos tribunais centrais administrativos, aos quais cabe conhecer «dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º» [art. 38.º, alínea a), do ETAF].
Assim, para aferir da competência em razão da hierarquia do Supremo Tribunal Administrativo, há que olhar para as conclusões da alegação do recurso e verificar se, em face das mesmas, as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, implicam a necessidade de dirimir questões de facto, seja por insuficiência, excesso ou erro, quanto à matéria de facto provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, seja porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, seja ainda porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos.

2.2.2.3 Apesar da escassa matéria de facto dada como assente na sentença, dela resulta que a AT procedeu à liquidação oficiosa de IRC relativamente ao ano de 2011 e à sociedade ora Recorrente, a qual foi declarada insolvente por decisão judicial proferida em 2010. Ou seja, a AT, perante a falta de apresentação de declaração de rendimentos relativamente ao ano de 2011, entendeu proceder à liquidação oficiosa de IRC, o que fez, de acordo com o ofício por que notificou esse acto ao administrador da insolvência da ora Recorrente, «nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 90.º do CIRC», disposição legal que, na redacção aplicável (A redacção anterior à da republicação do Código operada em 2014.), prescrevia: «Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efectuada até 30 de Novembro do ano seguinte àquele a que respeita […] e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada».
A sociedade impugnou essa liquidação, alegando, em síntese, que tinha cessado actividade de facto em Fevereiro de 2010, foi declarada insolvente em 20 de Julho do mesmo ano e a assembleia de credores, por deliberação de 7 de Setembro ainda do mesmo ano, aprovou o encerramento do estabelecimento, motivo por que em 2011 não tinha qualquer actividade e, consequentemente, i) deve ter-se por extinta (invocando jurisprudência deste Supremo Tribunal em que, para efeitos de responsabilidade contra-ordenacional se equiparou a dissolução da sociedade à morte das pessoas físicas) e incapaz de ser parte em qualquer relação jurídico-tributária, ii) deve considerar-se dispensada da apresentação de declarações fiscais, atento o disposto no n.º 3 do art. 65.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que dispõe: «Com a deliberação de encerramento da actividade do estabelecimento, nos termos do n.º 2 do artigo 156.º, extinguem-se necessariamente todas as obrigações declarativas e fiscais, o que deve ser comunicado oficiosamente pelo tribunal à administração fiscal para efeitos de cessação da actividade» (Mas que, como veremos adiante, só foi introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.) e, finalmente, iii) não auferiu quaisquer rendimentos do ano de 2011, não tendo a AT logrado demonstrar que estes existem.
Vejamos, em síntese, como decidiu a sentença recorrida:
Após considerandos de ordem geral e de ter salientado que a «liquidação de IRS sindicada nos autos assenta num juízo valorativo da AT que, perante determinado circunstancialismo, considerou existirem rendimentos sujeitos a tributação, nomeadamente, pelo facto de a impugnante não ter cessado a sua actividade para efeitos em sede de IR e IVA», rebateu o argumento da Impugnante, de que tinham cessado as suas obrigações declarativas por força do disposto no n.º 3 do art. 65.º do CIRE, afirmando que da leitura deste artigo, «concretamente do seu n.º 5, resulta que o n.º 3 não se refere à mera declaração de insolvência e que mesmo depois desta existem obrigações fiscais» e que dos autos não resulta que a sociedade tenha sido dissolvida, mas apenas que foi declarada insolvente.
Prosseguiu, considerando que, em face do mesmo art. 65.º do CIRE, a sociedade estava obrigada a cumprir com as suas obrigações declarativas e que, em face do incumprimento das mesmas, estava a AT legitimidade a proceder à liquidação oficiosa.
Finalmente, considerou: «[…] resta apurar da alegada ilegalidade do acto de liquidação de IRC por inexistência de facto tributário, traduzido na alegação de total ausência de exercício de actividade desde o ano de 2009 e falta de obtenção de quaisquer rendimentos passíveis de tributação.
Com efeito, a inexistência de facto tributário em resultado da inactividade do sujeito passivo e falta de obtenção de receitas no ano a que respeita a tributação constitui um vício que pode ser imputado à liquidação oficiosa do imposto sobre o rendimento. Deste modo, impendia sobre a impugnante o ónus da prova da sua inactividade, da falta de rendimentos, o que não logrou atingir já que nenhuma prova foi feita nesse sentido, pois a Impugnante limitou-se a invocar a insolvência como causa de extinção de todas as obrigações fiscais».
Como resulta da leitura das conclusões de recurso, a Recorrente não aceita o decidido. Interessa-nos agora considerar, para apreciar a questão da competência em razão da hierarquia, o segmento em que a sentença, apreciando a invocada inexistência de facto tributário, que a Impugnante alicerçou na alegação de que não exerceu actividade alguma em 2011 e de que a AT não logrou demonstrar o exercício de actividade alguma nesse período.

2.2.2.4 Da leitura das conclusões do presente recurso jurisdicional resulta que a Recorrente alegou, repetidamente, que não exerceu actividade alguma durante 2011 (cfr., a título exemplificativo, conclusões II, V, IX, XIII, XXII e XXVI), facto que a sentença deu como não provado.
Por outro lado, a Recorrente questiona o juízo de facto que alega que a sentença efectuou, partindo do facto de a actividade não ter sido formalmente cessada para dar como assente que houve efectiva prossecução da actividade e lucro tributável (cfr. conclusão XII)
Ou seja, a Recorrente não só afirma factualidade que foi dada como não provada pela sentença e da qual pretende extrair consequência relevante, qual seja a inexistência de facto tributário, como também discorda da ilação de facto efectuada na sentença relativamente à prossecução da actividade.
O que tudo significa que o presente recurso não tem por exclusivo fundamento matéria de direito.
Assim, a competência em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso pertence, não a este Supremo Tribunal Administrativo, mas ao Tribunal Central Administrativo Norte.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar este Supremo Tribunal Administrativo incompetente em razão da hierarquia e declarar que a competência para conhecer do presente recurso é do Tribunal Central Administrativo Norte.

Após o trânsito, remeta os autos ao Tribunal Central Administrativo Norte (art. 18.º, n.º 1, do CPPT)

Custas pela Recorrente, sem prejuízo da isenção prevista no art. 4.º, n.º 1, alínea u), do Regulamento das Custas Processuais.

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Lisboa, 1 de Julho de 2020. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Paulo Antunes.